ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSTA DE LEGALIZAR AS DROGAS
Em declarações à imprensa, o governador Sérgio Cabral tem defendido a legalização de todas as drogas hoje consideradas ilícitas, como uma medida que favoreceria à redução da criminalidade, em especial, à redução do crime organizado. O consumo dessas drogas já foi descriminalizado. O então senador Sérgio Cabral foi o relator dessa lei, sancionada pelo presidente Lula no ano passado. Portanto, o governador somente pode estar se referindo, agora, à legalização do tráfico de drogas. E, como é de seu estilo, franco e aberto, ele é explícito sobre a questão.
Se a fonte dessas declarações fosse de algum desses trêfegos rapazes da mídia ou da chamada vida acadêmica – ou até da vida política – não nos daríamos ao trabalho de prestar muita atenção. Mas, o governador Cabral é homem de responsabilidade – e, além disso, pessoa que temos, como sabem os leitores, em nossa elevada estima e consideração. Para completar, ele governa o Rio de Janeiro, Estado que mora no coração de todo brasileiro – pelo menos é o que pensa o autor destas linhas, carioca convicto há mais de cinco décadas e eleitor do governador, apesar de (ninguém é perfeito) especialista no penoso ramo da psiquiatria…
Em sua recente entrevista à “Época”, declarou o governador que “não sou a favor de cocaína, heroína ou do cigarro de maconha. Sou favorável a que o mundo reconheça que há uma demanda por drogas que só aumenta”.
Realmente, a demanda é crescente. Trata-se de substâncias cujo uso, no caso da maior parte de seus consumidores, não é voluntário. Ou seja, trata-se de substâncias que causam dependência e, mais do que isso, “tolerância” – o que quer dizer que são necessárias doses crescentes para se alcançar o mesmo efeito. Portanto, é inevitável que a demanda seja crescente. No entanto, essa não é a principal razão para o brutal aumento da demanda nas últimas décadas. A demanda aumentou brutalmente porque a oferta aumentou brutalmente. Como em qualquer outro produto, é a oferta que cria a demanda, e não o contrário.
Por essa razão, concordamos inteiramente com o governador que combater exclusivamente o consumo é coisa de hipócritas. Determinadas pessoas preferem os mal chamados “paraísos artificiais”, em vez da realidade, porque a realidade tornou-se para elas insuportável. Portanto, é preciso mudar a realidade, para que ela seja um estímulo a que as pessoas se integrem, e, não, a que se desintegrem. Querer acabar com o consumo através de medidas meramente repressivas, é apenas coonestar uma realidade injusta – e, para alguns, mais torturante ainda do que a dependência às drogas. Além de ser inútil, entre outras coisas porque é impossível resolver o problema sem combater a oferta, ou seja, a produção ilícita e sua conseqüência, o comércio ilícito dessas drogas.
Portanto, agiu muito bem o governador ao descriminalizar o consumo, pois o drogado é vítima, não criminoso. Exatamente pelas mesmas razões, por que o aumento da demanda seria um argumento a favor da legalização também do tráfico de drogas? Por que, já que a oferta cria a demanda, e não vice-versa, isso não seria, exatamente, um argumento contra a legalização do narcotráfico? Na China, a demanda pelo ópio, que os ingleses estimularam no país, só fazia aumentar. A dependência ao ópio sugava as energias de milhões de pessoas. Foi necessário acabar com o tráfico, reprimindo duramente os traficantes, para acabar com o consumo. Caso contrário, o país nunca teria se levantado e se transformado no gigante econômico atual. E, do ponto de vista ético: a legalização do tráfico, depois da descriminalização do consumo, não seria, tão somente, a equiparação dos criminosos com suas vítimas? Não estamos aqui, evidentemente, falando de consumidores que traficam para consumir, mas dos grandes traficantes nacionais e internacionais. Por que seria justo que a lei tratasse os que se enriquecem com o desespero dos consumidores de drogas da mesma forma que estes?
Mas vamos aos argumentos mais de fundo, expostos pelo governador. Primeiro, vejamos aqueles de natureza histórica. Na entrevista mencionada, o governador refere que inspira-se em Franklin Delano Roosevelt, que em 1933 acabou com a “lei seca” nos EUA.
Roosevelt é, realmente, uma excelente fonte de inspiração. Porém, não nos parece que o fim da “lei seca” nos EUA, na década de 30, possa servir de argumento a favor da legalização do narcotráfico no Brasil de hoje. E não apenas, nem principalmente, porque não estamos discutindo a proibição do que sempre foi permitido, e sim a permissão do que sempre foi proibido. O motivo verdadeiro, ou mais importante, é o próprio significado da “lei seca” – e os motivos de sua abolição.
A “lei seca” foi uma aberração parida em 1919 por uma aliança entre mequetrefes sem escrúpulos do Partido Republicano e fanáticos religiosos alucinados. Os primeiros queriam desmoralizar o presidente Wilson, democrata que havia aberto luta frontal contra os cartéis e monopólios que nessa época já sufocavam o país, e que era conhecido por sua devoção religiosa protestante. Os republicanos queriam atingir esta reputação de Wilson, obrigando-o a vetar a lei – ou atingir sua popularidade nas camadas proletárias do eleitorado, se não a vetasse. Na época, é necessário lembrar, Wilson, reeleito em 1916, poderia concorrer a um terceiro mandato no ano seguinte, 1920.
Já o objetivo dos fanáticos alucinados era, como o de qualquer alucinado, o de adaptar a realidade às suas alucinações. Muitos partidários da “proibição”, é verdade, faziam parte das duas categorias. Wilson, de quem Roosevelt era secretário da Marinha, vetou a lei – e, em meio a uma cruzada da imprensa, seu veto foi derrubado no Congresso.
ABORTO JURÍDICO
A “lei seca” era, portanto, apenas uma mistura de chicana e delírio. E por isso foi, ainda que tardiamente, abolida. Era um aborto jurídico e moral que não protegia ninguém. Não correspondia a nenhum interesse social verdadeiro. Não tinha função alguma no combate ao alcoolismo. Seu efeito prático era o de fazer o cidadão comum transgredir a lei para tomar um aperitivo, algo que até faz bem à saúde, enquanto os magnatas podiam encher a cara livremente em seus iates, mansões e bordéis de luxo, sem falar nas viagens ao exterior. Até o próprio Eliot Ness, promovido pela mídia a paladino da “lei seca”, disse, anos depois, que era uma lei contra a maioria da população.
A “lei seca” nada tinha a ver, portanto, com as leis sobre drogas que tivemos no Brasil, desde que esse problema entrou para o Código Penal, em 1943. No entanto, embora a péssima edição da entrevista não deixe claro, o governador deve estar supondo que houve uma diminuição da criminalidade após o fim da “lei seca”. Daí, a seguinte afirmação: “Se a gente for quantificar os mortos por conta da proibição da droga, o total é esmagadoramente maior do que os mortos por conta do uso da droga”. Na continuação, o governador refere-se às “brigas de gangue” e outros conflitos.
O problema das drogas não consiste, como o governador certamente não ignora, principalmente nas mortes provocadas por elas. Mas, analisemos, antes, a suposta diminuição da criminalidade após o fim da “lei seca”.
As quadrilhas que operavam com bebidas alcoólicas não se tornaram honestas depois da revogação da “lei seca”. Elas não tinham nenhuma preferência especial pelo álcool. O seu negócio era, como ainda é, ganhar dinheiro. Portanto, depois da revogação da “lei seca”, passaram a explorar mais intensamente outros ramos da criminalidade – a jogatina, a prostituição, o lenocínio, o roubo, o assassinato sob encomenda, e, evidentemente, os narcóticos. O que diminuiu, com o fim da “lei seca”, foi o número de prisões por consumo de bebidas alcoólicas. Mas essas não eram prisões de criminosos, e sim de simples amigos do copo, ou nem isso.
Alguém poderia argumentar que aquelas outras atividades a que se dedicaram os gangsters também poderiam ter sido legalizadas. Mas não seria por causa disso que os criminosos deixariam de ser criminosos e o crime deixaria de ser crime. Levando o raciocínio ao absurdo, mesmo se a lei permitisse todos os crimes, nem por isso eles deixariam de existir: um homicídio é sempre um homicídio; um estupro é sempre um estupro.
No entanto, houve realmente uma diminuição apreciável da criminalidade nos EUA, durante a década de 30. Mas não por causa do fim da “lei seca”. Os mortos nas guerras entre quadrilhas, a que se refere o governador, diminuíram – não nos EUA em geral, mas em Chicago, onde eram endêmicas – depois da prisão de Al Capone, em 1932, quando a máfia conseguiu estabelecer uma divisão de áreas “civilizada”, ou melhor, cartelizada, no crime organizado.
Quanto à criminalidade em geral, esta diminuiu com o “New Deal”, ou seja, diminuiu devido ao aumento do emprego, da renda, do atendimento público, do maior aparelhamento policial, em suma, diminuiu em função da política econômica de Roosevelt, priorizando o povo e não os monopólios que derrotara nas eleições de 1932. Na entrevista, o governador cita o “New Deal”, mas, provavelmente devido à edição, não é possível compreender que relação que ele faz entre essa política, a revogação da “lei seca” e a criminalidade.
Passemos agora ao segundo argumento, de natureza política: “O que deve ser proibido no mundo? Tudo que violar as regras da cidadania. (….) Desde que você não prejudique o outro…”. Segundo o governador, o consumo de drogas seria uma questão de “liberdades individuais”. Logo, supõe-se, a interdição do tráfico seria um atentado à liberdade individual do cidadão que escolher consumi-las.
Há realmente um problema de liberdade individual no consumo de drogas. A questão das drogas é uma questão de falta de liberdade individual, e não de exercício dessa liberdade individual. Que “liberdade individual” tem o dependente de crack? Que escolha tem ele, senão ir atrás da substância que dá alívio – momentâneo – à sua pavorosa ansiedade? Portanto, é a dependência das drogas que é um atentado à liberdade individual, e não a preocupação da sociedade em impedir essa dependência.
Em um de seus momentos menos brilhantes, Rui Barbosa, na época em que Oswaldo Cruz instituiu a vacinação obrigatória contra a varíola, argumentou que essa obrigatoriedade feria a liberdade individual do cidadão de se infectar. Se outros não quisessem contrair a moléstia, que se vacinassem…
Há aqui um problema semelhante. Por exemplo: se alguém, ao atravessar a Ponte Rio-Niterói, divisar um cidadão prestes a se atirar no mar, sua reação, se não for um psicopata, será a de parar imediatamente o carro e tentar impedi-lo de consumar o desesperado ato, ao invés de respeitar a suposta “liberdade individual” de se matar. Em outras palavras, a liberdade individual é uma relação do indivíduo com os outros. A vida individual não existe sem relação com a vida dos demais membros da sociedade. Só é possível ser um indivíduo na medida em que se faça parte da coletividade. Fora dessa relação, nem se pode falar em liberdade – ou, mesmo, em indivíduo.
O ser humano que se destrói através das drogas, ou vive em função do seu consumo, não está fazendo mal apenas a si mesmo – exceto se ele não tiver filhos, esposa, pais, irmãos, parentes, amigos ou semelhantes, isto é, se não fizer parte da sociedade. Mas, se isso fosse possível, não haveria necessidade de leis – e, portanto, não existiria a discussão sobre a “legalização”, ou não, de alguma coisa.
O terceiro argumento do governador, este de ordem clínica, é o seguinte: “quantas pessoas no mundo perdem seus alicerces estruturais, de família, amigos, trabalho e estudos, por conta do álcool? E morrem”. Ou seja, se o álcool, que causa tantos males, é permitido, porque não a cocaína, a heroína, a maconha, etc.?
Infelizmente, não é possível estabelecer uma isonomia entre todas as drogas, lícitas e ilícitas. Há um motivo para que as bebidas alcoólicas sejam permitidas, e a cocaína, heroína, crack, etc., não o sejam. Esse motivo chama-se dependência. Evidentemente, também existem dependentes do álcool. Porém, a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é dependente do álcool. Podem muito bem passar sem ele, se necessário, o que não é verdade em relação ao ópio e seu derivado sintético, a heroína, ou à cocaína e seu sub-produto, o crack, ou às anfetaminas e seus coquetéis – um deles é hoje denominado ecstasy. Ou, mesmo, em relação ao uso crônico da maconha.
Resumindo: consumidor de bebidas alcoólicas não é igual a dependente do álcool. E, se alguém argumentar que consumidor de heroína também não é igual a dependente de heroína, responderemos apenas que no dia em que nos apresentarem um que não seja, nos comprometemos a rever esse raciocínio. Sobre o que significa essa dependência, é mais do que suficiente ler aquela bíblia da literatura beatnik, “O Almoço Nu”, de William S. Burroughs. Nem mesmo é necessário chegar ao fim daquele circo de horrores.
Escolhemos a heroína como exemplo porque o nosso governador referiu-se à liberação de todas as drogas. Assim, a heroína, a esse respeito, é particularmente ilustrativa. Mas, certamente, para o cidadão da alta classe média, o consumo de cocaína pode não ser tão deletério quanto o da heroína e, muitas vezes, ele pode livrar-se da dependência, ainda que pagando a um profissional – ou a uma equipe deles – para que o ajude. Não é por acaso que essa é a camada da população que em geral é a favor da liberação geral das drogas. Realmente, para esses, seria confortável a liberação do tráfico. Poderiam consumir sem os riscos inerentes à compra dessas drogas. Talvez, como no caso das bebidas alcoólicas após o fim da “lei seca”, até pudessem contar com uma cocaína de mais confiança, fabricada pela Merck, pela Johnson ou outro monopólio transnacional, ao invés daquela que é fornecida pelo Fernandinho Beira-Mar…
Porém, vamos a um bairro da periferia de qualquer grande cidade. Vejam-se os dependentes do crack, um subproduto da cocaína. Vejam-se os próprios dependentes de cocaína, que existem na periferia e que, em geral, alternam o crack com a cocaína. São gente que não somente não tem como pagar uma ajuda profissional, mas que não tem estímulos para superar a dependência. É evidente que precisamos mudar essa realidade. Mas, enquanto não mudamos, o que significará, para esses dependentes, a legalização do tráfico, senão que o Estado e a coletividade estão se lixando para suas vidas?
Andemos mais um pouco pela periferia. Vejam-se as famílias – a que se referiu o governador – que lutam para que um ou mais de seus membros não sejam devorados pelo crack ou pela cocaína. Para esses, a legalização do tráfico seria o sinal de que não podem contar com a ajuda do Estado – ou, pior, o sinal de que o Estado é seu inimigo na luta para salvar um ente querido.
O governador Cabral considera que morrem mais pessoas pelas guerras de quadrilha do que por overdose. É verdade. Mas um dos motivos pelo qual isso acontece é que existem alguns limites, um dos quais é constituído pelo critério social que se expressa na interdição legal ao tráfico.
Por último, algumas observações rápidas sobre a mais incensada das drogas, o delta-9-THC, princípio ativo da maconha, que há anos é objeto de uma renitente campanha para considerá-la inofensiva. Permitam os leitores um testemunho pessoal. Durante muitos anos, como profissional, estive convicto de que seu uso era sem sequelas. Apenas, não me agradava um certo isolamento, que cruzava com o individualismo, nos usuários da droga. Mas não considerava isso um problema médico. Mantive a convicção de que a maconha, como dizem alguns, “faz menos mal que o cigarro”, mesmo quando, a partir da década de 70, alguns trabalhos, em várias partes do mundo, apontaram para danos mais sérios, sobretudo em estruturas cerebrais. Também não mudei de posição quando foram publicadas experiências em que voluntários desenvolveram surtos persecutórios graves após ser-lhes administrado diretamente o delta-9-THC. Parecia-me que esses estudos permitiam ainda um grau de dúvida razoável.
No entanto, médicos são gente prática. Foi impossível manter a minha antiga convicção, quando apareceram não apenas pacientes que relatavam surtos persecutórios, como outros cujo quadro de empobrecimento psíquico e comportamental somente poderia ser explicado por dano estrutural do cérebro devido ao uso crônico de maconha. Nada como ver um caso diante dos olhos. E não foi apenas um.
Carlos Lopes
Psiquiatra e diretor de redação do jornal Hora do Povo
Texto publicado no Jornal Hora do Povo em abril de 2007
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