Creative Commons é renúncia irrevogável do direito do autor
Em seminário durante o Festival do Rio 2006 de cinema, o mineiro Fernado Brant, autor de clássicos como “Travessia” e presidente da União Brasileira de Compositores, afirmou que, ao defender a “flexibilização” do direito dos autores, o ministro Gil “não está ao lado dos criadores brasileiros de cultura”. Na palestra, que hoje reproduzimos na íntegra, Brant denuncia que “flexibilizar é, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome”.
FERNANDO BRANT
Sou apenas um compositor brasileiro. É dura a vida de um compositor popular em nosso país.
Posso falar de meu caso, pois ele se aplica a muitos que têm algum talento musical ou literário e se aventuram na arte de criar melodias e harmonias, juntá-las às palavras e criar uma canção.
A canção move o mundo.
Ao lado do trabalho e da criatividade, o autor necessita de sorte, persistência. Tem de estar disposto a enfrentar muita incompreensão. Precisa ser original no que faz e sagaz na relação com a indústria cultural, com o mercado editorial e de comunicação.
Com 20 anos de idade, estudante ainda, fiz minha primeira letra para uma canção. A obra, em parceria com Milton Nascimento, abriu um deslumbrante horizonte para nós. Ingênuos, no entanto, assinamos um contrato de edição e, sem querer, arranjamos um parceiro indesejado que nos acompanha até hoje. A satisfação do menino letrista assinando o seu primeiro contrato se dissolveria no tempo, permanecendo, porém, um incômodo que ainda o acompanha.
Mas que, por não ser irrevogável, pode ser solucionado.
Esse fato serviu, no entanto, para que ele adquirisse a consciência da importância de manter a sua obra sob seu controle. É o que ele fez, o que eu fiz, daí em diante. Eu sou o meu editor.
Volto a dizer: é dura a vida de um compositor brasileiro.
Tendo sua obra sob seu controle, nem por isso os problemas foram todos resolvidos.
Donos de emissoras de rádio não queriam pagar direitos autorais, pois estavam, segundo eles, divulgando a obra. Inútil dizer-lhes que divulgação não paga comida, escola, aluguel, taxas e impostos. Ou alertá-los para o fato de que estariam, sem autorização, lucrando com o trabalho alheio.
As emissoras de televisão também não concordavam em pagar pelo uso de música. E os exibidores de cinema. E as prefeituras, os governos em geral.
Depois de muita luta, de muitos anos de esclarecimento sobre o que ocorria em todo mundo, a situação foi melhorando. Nossos direitos passaram a ser reconhecidos. Muitos começaram a observar os direitos dos autores musicais. Mas a cada um que respeita os criadores e as leis, surge um outro disposto a burlar, piratear, usar sem autorização o que não lhe pertence. Brigar pelos direitos autorais é uma batalha sem fim.
Há alguns anos, ouvi de um dirigente de bolsa de valores o seguinte raciocínio. Segundo o simpático financista, a música só deveria render para o autor durante, no máximo, cinco anos. Depois ela seria de todos. Argumentei com ele que até concordaria com sua tese se ele também considerasse que todos os seus bens – imóveis, ações e carros – seriam igualmente de todos ao fim do mesmo período. Socialista com a minha propriedade, ele era radicalmente capitalista com o que era seu.
Este é um conceito que deve ficar claro: o direito autoral é um direito de propriedade. A obra original, criada por alguém, pertence a seu criador e é protegida moral e materialmente.
Em termos de legislação estamos bem. Nossa Constituição define com exatidão a questão: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Ninguém pode utilizar uma obra de criação sem que o autor autorize.
O juiz da Corte Internacional de Haia, Francisco Resek, em congresso realizado em São Paulo, frisou a importância da proteção da propriedade intelectual no mundo contemporâneo, lembrando que ela nasceu da Declaração Universal dos Direitos do Homem que, em seu artigo 27, determina que “todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.”
Aqui eu abro um parêntese para falar aos criadores do cinema nacional. Cresci vendo filmes. Sonhei, como muitos de minha geração, em ser cineasta. Andava pelas ruas de minha cidade com meu olhar-câmera desvendando e recriando o mundo. Aprendi muito com todos os cinemas: americano, europeu, latino, asiático e, sobretudo, amei e torci e torço profundamente pelo cinema brasileiro. A arte cinematográfica sempre foi uma de minhas paixões. Aprendi muito vendo filmes e ouvindo suas trilhas sonoras. O cinema brasileiro sempre caminhou junto com a música. Por essas razões, não consigo entender algumas manifestações equivocadas de criadores brasileiros de cinema que, ao contrário de reconhecer nos músicos e compositores seus parceiros, se movimentam para negar os direitos autorais musicais.
Mas vamos em frente.
A chegada de um novo meio de comunicação não significa que os direitos e obrigações existentes possam ser desrespeitados ou devam ser abolidos.
O que vale para o cinema, a televisão, o rádio e toda espécie de comunicação ao público de uma obra, continua valendo para a internet e o que mais seja criado.
Da mesma forma que crimes como o assalto às contas bancárias, a distribuição de pornografia e/ou pedofilia ou as calúnias são punidas quando ocorrem no mundo digital, o mesmo se aplica para os direitos autorais.
O avanço tecnológico cria um grau maior de dificuldade para o controle do uso e circulação das músicas, dos filmes, das obras artísticas em geral.
Essa situação cria a ilusão de que não é mais possível controlar os direitos autorais no âmbito digital. Isso não é verdade. A mesma tecnologia que facilita a distribuição oferece mecanismos de controle.
Para o presidente da Associação Brasileira de Direitos Autorais (ABDA), Manoel Joaquim Pereira dos Santos, “a solução para este problema não está em flexibilizar os direitos do autor, mas sim em aprimorar os mecanismos de controle legal. A resposta está no direito autoral, não fora dele.”
Se for para flexibilizar os direitos de autor, por que, então, não flexibilizar também os demais direitos de propriedade e trabalho. Se a Fundação Getúlio Vargas advoga o fim de nossos direitos, nós poderíamos sustentar que eles, da mesma forma, trabalhem sem remuneração. E que todos os produtos das indústrias e do comércio, tudo que é negociado em nosso dia a dia, fiquem disponíveis para todos, de graça. Por que socializar apenas o nosso direito?
Quando se fala em flexibilização, o que quer dizer mesmo é estatização. Pelo menos no que refere ao Ministério da Cultura, que mostrou suas garras autoritárias no episódio da ANCINAV. Ali se quis transferir os direitos autorais das músicas para aquele órgão.
Tenho receio – um pouco de pavor, confesso – quando tenho conhecimento de anteprojetos de assessorias, circulando pelos corredores do ministério, propondo intervenção estatal nos direitos autorais. Tenho lembrança da ditadura e não aprecio seus quitutes. O Ministro, em entrevista recente, a propósito, lamenta que a questão autoral seja de direito privado e não público.
Vejam a declaração que o Ministro fez à revista “BACK STAGE”: “não vemos com bons olhos a aplicação de medidas tecnológicas de proteção de direitos autorais para o ambiente digital”.
Como se todos os autores estivessem com a vida ganha e não devessem se defender e serem remunerados pelo uso de suas obras.
Mas vamos ao Creative Commons, esse sistema de licenciamento, idealizado pelo professor de Direito da Universidade de Stanford, Lawrence Lessig, como um sistema alternativo ao direito autoral. Segundo a revista Forbes, “Lessig não é amigo verdadeiro de nenhum autor”.
Emma Pike, diretora-geral dos direitos britânicos da música, recomendou que os autores estejam absolutamente esclarecidos antes de assinarem uma licença do creative commons.
“Não oferece nenhuma remuneração, funciona para sempre, se aplica no mundo inteiro e não pode ser revogado”. Só amadores, só desavisados ou artistas milionários aceitariam essa renúncia, irrevogável, aos seus direitos.
Para a maioria absoluta dos autores, o Creative Commons não oferece nenhum benefício real e impede o exercício de seus direitos básicos à proteção, à distribuição e à remuneração apropriadas de seus trabalhos.
Michel Sukin adverte: creative commons são uma ferramenta para amadores e não para profissionais. Qualquer um que queira fazer sua vida com suas criações deve ter cuidado antes de se juntar a essas licenças.
O Creative Commons, dizem seus incentivadores, quer aproximar a noção de que “todos os direitos são reservados” da ideia de que “alguns direitos são reservados”. O autor doa seu trabalho para “a utilização comum” e recebe os créditos como autor de sua obra.
É a mesma ideia dos donos de rádio de antigamente e de alguns dos dias de hoje: você não ganha nada mas tem seu trabalho e seu nome divulgados, promovidos. Você não vai poder comer, morar, se educar, mas terá muito prestígio.
Flexibilizar os direitos autorais é um retrocesso, não um avanço. É voltar ao tempo da barbárie sob verniz tecnológico.
É, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome.
Essas são as características essenciais da licença do creative commons: é irrevogável e concedida perpetuamente (ou para o período completo do direito autoral, o que dá no mesmo).
O autor, assim, desiste, de fato, de todas as possibilidades de ganhar dinheiro do trabalho sujeito a tal licença, mesmo se ele reservar o direito de explorá-lo comercialmente, pois não é razoável que alguém possa ser convencido a pagar por um trabalho que já está disponível.
A lei brasileira, que não é de direito de cópia e sim de direito autoral (com suas implicações morais e materiais) já permite que o autor libere o uso de sua obra quando quiser.
Recebo mais pedidos de liberação sem ônus do que com pagamento. E muitas e muitas vezes, em casos de entidades beneficentes, escolas e intérpretes iniciantes, entre outros exemplos, eu autorizo o uso, gratuitamente.
É muito mais racional os autores conservarem o domínio sobre suas obras (editando eles mesmos os seus catálogos) do que entregá-las aos discípulos de Lawrence Lessig.
Nosso querido Gilberto Gil nos deixa em situação embaraçosa.
Sentimos uma certa timidez em contestar publicamente um colega e um democrata que admiramos. Mas hoje, quando ele fala, não se vê apenas o grande artista, o compositor brasileiro admirável. Seu discurso nos chega como a palavra do Governo em termos de Cultura.
O autor Gilberto Gil ceder para os Creative Commons uma de suas mais de quinhentas composições é uma coisa. É apenas uma canção entre centenas que ele criou. Mas, sendo ele também o Ministro da Cultura, é grande o estardalhaço.
Por que ele não cede as outras, cuja maioria tem sob seu controle? Certamente por que ele, o autor, não tem tanta certeza quanto o ministro, que diz que o “creative commons é mais um movimento bem sucedido de implementação de licenças alternativas que vem ao encontro da política de acesso à cultura do Ministério da Cultura”.
“O Ministério, continua Gilberto Gil, tem apoiado a Fundação Getúlio Vargas na implantação desse projeto no Brasil, desde seu lançamento”.
Quer dizer o seguinte: o ministério que cuida da cultura não está ao lado dos criadores brasileiros de cultura.
Pois, na realidade, o Creative Commons mina o valor dos trabalhos criativos e a administração coletiva do direito autoral. Vem para confundir e tornar mais difícil, para o criador, fixar a proteção, o controle e a remuneração de suas criações; remove o incentivo econômico tradicionalmente associado ao direito autoral e lesa, ao contrário do que se afirma, a diversidade cultural. Quem vai querer trabalhar com cultura se dela não pode viver?
Assinando uma licença creative commons o autor não recebe nada em troca. O Creative Commons não se responsabiliza por nada. É textual no contrato de licenciamento: “o Creative Commons não dá qualquer garantia quanto às informações fornecidas e se exonera de qualquer responsabilidade por danos resultantes de seu uso”.
Por outro lado, no sistema de gestão coletiva de direitos autorais os autores são mais fortes do que quando agem individualmente. As licenças abertas do Creative Commons passam por cima do sistema de administração coletiva dos direitos e enfraquecem a todos os autores, a toda a comunidade autoral.
E as licenças do Creative Commons, desrespeitando a nossa lei e os fundamentos do direito brasileiro, atropelam os direitos morais do autor.
Enfim, os Creative Commons foram inventados a partir de uma confusão entre software livre, que gerou o LINUX, uma ótima ideia, e os direitos autorais, que não tinham entrado e nem queriam entrar nessa história.
Melhor negócio faz o autor que, conservando o controle sobre sua obra, mas tendo dificuldade de divulgá-la, cria seu sítio (site) na internet. Colocando ali sua obra, promovendo-a no mundo digital e, ao mesmo tempo, conservando todos os seus direitos.
Creative Commons é um engodo. A quem ele serve?
Texto extraído da Hora do Povo – 06/12/2006
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