Vianinha: a geração que revolucionou a nossa cultura
No dia 10 de abril, o Cine Clube UMES apresentou o documentário “Vianinha”, autor cuja obra é um marco no desenvolvimento da estética nacional-popular em nosso país. No debate que se seguiu com o diretor Gilmar Candeias, tomei, por assim dizer, a liberdade de pedir-lhe um texto que desse uma panorâmica sobre a vida e a obra de Oduvaldo Vianna Filho, em conexão com o momento de sua criação. Ele, generosamente, nos enviou este artigo.
(Caio Plessmann)
GILMAR CANDEIAS*
Aproveitei o convite para escrever este artigo e reli alguns textos de Vianinha que havia pesquisado e com os quais tive contato mais profundo em 1984, quando, com Jorge Achôa, fizemos um documentário sobre sua vida, obra e participação política, reunindo um grupo de profissionais amigos que deram à produção qualidade e camaradagem: Roberto Santos Filho, Vanderlei Klein, Fernando Peixoto, Ana de Holanda e principalmente Reinaldo Maia.
Lembro que nos chamou a atenção a qualidade e a quantidade da produção de Vianinha. O mesmo pode-se dizer dessa geração, que, com esforço coletivo, ideias e ideais, promoveu uma transformação profunda na produção cultural e social.
Vianinha escreveu para teatro, show e televisão. Também foi ator — ganhou vários prêmios, dentre os quais cinco “Molière”.
Brincando, ele dizia que lamentava ser um autor premiado, mas não encenado, por força da censura da ditadura militar.
Em 38 anos de vida, participou como ator em “Gente como a gente”, de Roberto Freire (1959), em “Revolução na América do Sul”, de Augusto Boal (1960), no episódio “Escola de Samba Alegria de Viver” dirigido por Carlos Diegues em “Cinco vezes favela” (1962) e em “O desafio”, de Paulo César Saraceni (1965), entre outros. E escreveu “Bilbao via Copacabana” (1957), “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (1960), “Quatro quadras de terra” e “Os Azeredos mais os Benevides” (1962), “Meia volta vou ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “Allegro desbum” (1972) e “Rasga coração” (1974), entre outros.
Estamos perto do aniversário de sua morte — 16 de julho —, um bom pretexto para homenagear, revisitar ou conhecer sua obra e, no caso deste artigo, mostrar um pouco da trajetória seguida para produzi-la.
Oduvaldo Viana Filho, mais conhecido como Vianinha, nasceu em 1936. Herdou do pai o nome, a profissão e a paixão pela vida e pela política: foram ambos militantes do Partido Comunista. Podemos dizer que nasceu em cena, pois, aos três meses de idade, participou como figurante no filme “Bonequinha de seda”, dirigido por seu pai.
Risonho, brincalhão e irônico, estudioso e idealista, com o pé em sua época e o olho na história, Vianinha criou e defendeu uma dramaturgia brasileira comprometida com as transformações sociais.
No teatro, na década de 50, vigorava a estética do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), com autores estrangeiros encenados em palco italiano, onde se dava grande importância ao guarda-roupa e a plateia de colunáveis por vezes era mais importante do que o próprio espetáculo.
“É preciso um teatro de criação e não de imitação do real, um teatro otimista, direto, violento, sátiro e revoltado, como precisa ser o povo brasileiro” (Vianinha).
Em 1954, Vianinha entra para o Teatro Paulista de Estudante junto com o também estudante Gianfrancesco Guarnieri; depois, eles se reencontram no Teatro de Arena. Com Augusto Boal, começam a trabalhar temas da atualidade, fatos sociais e do cotidiano, para criar uma dramaturgia mais próxima da realidade brasileira. Nesse contexto, o fenômeno do futebol é apresentado por Vianinha sob condicionantes sociais, com destaque para as tramas do poder e da traição, na peça “Chapetuba Futebol Clube”.
Vianinha e Guarnieri vão para o Rio de Janeiro e, em 1961, com Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman, participam da fundação do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), cuja proposta é a atuação nos parâmetros das ideias do “nacional e popular”, levando cultura para as massas por meio de diversas formas de arte. Propuseram e criaram um teatro feito para ser encenado sem grandes recursos cênicos, mais direto e de agitação, nas ruas, em cima de caminhões. E fizeram mais.
A atuação engajada conduz à necessidade de informação e reflexão sobre conceitos que balizavam a ação — um teatro didático. Segundo Chico de Assis, surgiu a ideia de escrever um trabalho a seis mãos. Entretanto, Vianinha “não brincava em serviço” e escreveu inteira “A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, em que um conjunto de pequenas tramas do cotidiano era apresentado à luz do conceito marxista de mais-valia. A peça foi montada na Faculdade de Arquitetura do Rio de Janeiro; em mais uma mostra de integração, os cenários foram feitos pelos alunos da faculdade.
O final da década de 50 e os anos 60 são marcados pela efervescência dos ideais e dos desejos — anos das vanguardas política e cultural. Vianinha, entre outros, não separava uma coisa da outra, o que provocou embate de ideias, principalmente, com aqueles que acreditavam em uma arte sem a influência da política mais comprometida com uma estética ou, como se dizia então, uma “arte pela arte”. Debatia-se tudo, além de política e a arte — educação, psicanálise, imprensa, etc. —, o que resultou, na época, em uma visão ampla e multifacetada do desafio brasileiro, do homem e da sociedade.
As apresentações das peças no CPC eram feitas junto com projeções de cinema, debates, shows musicais, exposições de artes plásticas, ao mesmo tempo em que serviam de pontos de venda e circulação de tabloides e cordéis “rodados” em mimeógrafos. O teatro, em particular, alcançava lugar de destaque na cultura urbana, e sobressaíram o Teatro Oficina e o Teatro Opinião.
As artes se integravam, a estética se afinava e o debate pela transformação social e política se aprofundava no seio de uma geração que acreditava em um Brasil progressista, inteligente e com menos diferenças sociais.
Uma geração que deve ser saudada, parafraseando Vinícius de Moraes e Baden Powell no “Samda da benção”: Saravá, Vianinha, Paulo Pontes, Guarnieri, Boal, Armando Costa, Zé Celso, Zé Renato e Antunes Filho! Saravá, Glauber Rocha, Cacá Diegues e Denoy de Oliveira! Saravá, Hélio Oiticica, Hélio Pelegrino e Sérgio Ricardo! Saravá, Nara Leão, João do Vale, Zé Kéti, Chico Buarque, Vandré, Caetano e tanto outros.
“Nessa avenida colorida…” (Lendas e mistérios da Amazônia, de Catoni, Jabolô e Waltenir).
Em 1964, os militares entram na contramão. O discurso de Jango Goulart na Central do Brasil serve de pretexto para que militares e conservadores organizem a “Marcha da família com Deus pela liberdade”… e “pelo golpe”. A sociedade civil engrossa a Passeata dos Cem Mil, que percorre as ruas do Rio. Não deu. Deu ditadura. A UNE é destruída e seus militantes vão para a clandestinidade; o prédio do CPC é incendiado. O Teatro Oficina, onde estava sendo encenada a peça Roda-Viva, é invadido e os atores e técnicos são espancados e presos. E com o Ato Institucional nº 5, o regime institucionaliza a censura e todos os atos de exceção.
“Quando um muro separa, uma ponte une…” (Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro).
Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes escrevem o show “Opinião”; o espetáculo se torna símbolo da resistência cultural. Manifestações contra a censura são organizadas a cada ato da censura. A título de ilustração: dona Diocélia, mãe de Vianinha, conta que foi com Nelson Rodrigues, grande autor teatral considerado reacionário, em um dos atos de protesto, na escadaria do Teatro Municipal do Rio, e ele reclamava para ela: “Só o Vianinha… Só o Vianinha pra me pôr aqui. Imagina eu fazendo greve…”
Em 1968, usando um tema da época, Vianinha escreve “Papa Highirte”, a história do ditador deposto de um país fictício (Alhambra) que planeja no exílio a volta ao poder. A certa altura da peça, Vianinha monta um diálogo entre dois pontos de vista, o do povo e o do ditador, que, entre outras coisas, reclama do povo brasileiro, o qual não inventou a máquina de calcular e, sim, o vilão, e que, portanto, não sabe prever nem planejar e perde todo o seu tempo cantando “nas eternas esquinas e madrugadas”; por fim, conclama: “Ao trabalho, povo de Alhambra!”. Mais uma obra censurada.
Manguari Pistolão, homem comum e personagem da peça “Rasga coração”, sintetiza uma questão central do nosso herói do cotidiano: “A Revolução sou eu! Revolução pra mim já foi uma coisa pirotécnica, agora é todo dia, lá no mundo, ardendo, usando as palavras, os gestos, a esperança desse mundo”.
A saída para autores e atores sobreviverem foi a televisão. Vianinha foi convidado pela TV Globo a escrever os capítulos de uma série que já estava no ar e com baixa audiência. Aceitou e, com Armando Costa e também “palpites” de Paulo Pontes, entrou para “A grande família”, promovendo mudanças: mudou a família do Leblon e a levou para morar no subúrbio carioca. Usou seu conhecimento de teatro e sua afinada observação do universo popular e criou um “microcosmo” para desenvolver tramas com temas como a carestia, o feminismo, a sexualidade, a participação social, inclusive com o personagem Junior, filho politizado do casal de classe média. A série foi retomada hoje sem esse personagem.
Vianinha morreu em 1974. Morreu trabalhando, ditando para sua mãe as ultimas cenas de “Rasga coração”, que não chegou a ver encenada. Pode-se dizer que cada vez que um pano de cena se abre e um texto é encenado, é uma conquista. Vemos um pouco do Vianinha e de nossa história de luta e criação.
* GILMAR CANDEIAS, cineasta.
São Paulo, 29 de abril de 2010.
ODUVALDO VIANA FILHO (1936-1974)
Vianinha viveu apenas 38 anos, mas de intensa atividade.
Foi um dos fundadores do Teatro de Arena (1955), com José Renato e Gianfrancesco Guarnieri. Junto com eles participou da revolução estética produzida pela montagem da peça “Eles não usam black-tie” (1958), escrita por Guarnieri, com direção da José Renato e músicas de Adoniran Barbosa.
No Rio de Janeiro, criou o Centro Popular de Cultura da UNE (1960-1964) e foi se destacando como um autor de peças sintonizadas com a realidade brasileira, que tiveram importante significado no desenvolvimento da estética nacional-popular.
Em 1964, foi criador do Grupo Opinião, com Paulo Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira, João das Neves, Ferreira Gullar e Teresa Aragão.
Também trabalhou como ator de teatro, cinema e como autor de televisão – onde fez sucesso com a série “A grande família”, na Rede Globo (1973).
Entre suas peças encontram-se “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (1960), “Auto dos 99%” (1962), “Quatro quadras de terra” (1962), “Os Azeredos mais os Benevides” (1962), “Opinião” (1964), “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” (1965), “Moço em Estado de Sítio” (1965), “Mão na Luva” (1966), “Meia volta vou ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “A longa noite de cristal” (1971), “Corpo a corpo” (1971), “Em família” (1972), “Allegro desbum” (1973) e “Rasga coração” (1974). (14/05/2010)
Texto extraído da Hora do Povo
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