A CULTURA NAS ESCOLAS E OS ESTUDANTES FAZENDO CULTURA
Eu gostaria de saudar a todos e a todas e de agradecer à UBES pela oportunidade de estar aqui, conversando com lideranças secundaristas de todo o Brasil, neste evento tão importante que é o Coneg. E de salientar também a sensibilidade da diretoria em colocar na pauta um tema tão importante quanto a cultura, muitas vezes esquecida – injustamente – diante do conjunto de problemas que afligem a educação brasileira.
Gostaria de começar fazendo um breve resumo do trabalho do Centro Popular de Cultura, mais conhecido como CPC-UMES (cujo nome, é uma homenagem ao CPC da UNE), e, em seguida, contar um pouco de sua história e dos motivos que nos levaram a tratar deste tema junto com a UMES de São Paulo.
O Centro Popular de Cultura tem mais ou menos 11 anos de existência como entidade autônoma, e, anteriormente, mais três anos trabalhando como braço cultural da UMES. Foram dois os motivos nos levaram a constituir uma entidade autônoma. Em primeiro lugar o fato de boa parte dos profissionais do trabalho cultural não serem – há muito tempo – secundaristas (o exemplo principal era o do cineasta Denoy de Oliveira, nosso fundador, falecido em 1998 e antigo integrante do CPC da UNE). Vimos que a autonomia faria bem às duas entidades. O outro era a possibilidade de trabalhar com outras entidades, ampliar o alcance de nossa ação. Hoje nós mantemos um teatro na sede da UMES (Teatro Denoy de Oliveira), uma gravadora, uma editora, um balé, trabalhamos na área de cinema e vídeo e de formação de artistas. Nesse período, de mais ou menos 14 anos, nossas realizações foram as seguintes:
– Mais de 600 shows musicais (Projeto Umes Cantarena, com compositores, Projeto Serenata na UMES, com intérpretes, Mostra Secundarista de Música, de novos talentos, Projeto A Fina Flor do Samba, que é uma homenagem ao projeto homônimo do Teatro Opinião, 1° e 2° Campeonatos Brasileiros de Poetas Repentistas, 1° Campeonato Paulista de Poetas Repentistas);
– Teatro: mais de 1.000 apresentações, 4 montagens de rua, 10 montagens no teatro, com mais de 100.000 espectadores (hoje o teatro tem como grupo residente o Forte Casa Teatro);
– Balé de Arte Negra da UMES: 2 espetáculos, com mais de 100 apresentações;
– Cursos: Dança, Música, Teatro, Dramaturgia, Produção, Cinema, com mais de 750 alunos (hoje abrigamos um Ponto de Cultura, em convênio com o Minc);
– Livros: 13 títulos dos Cadernos do CPC, mais 5 títulos sobre cultura popular;
– Audiovisual: 4 vídeos, dois médias metragens, dois curta-metragens (co-produção), dois longa-metragens (co-produção);
– Gravadora CPC-UMES – mais de 100 discos produzidos;
– Bloco UMES/Caras-Pintadas – desfilando desde 1993 pelas ruas do Bixiga;
– Cineclube da UMES – entrando no 4° ano;
– Resumo: mais de 120 atividades por ano, mais de 1 milhão de espectadores, dezenas de prêmios (prêmio Shell de Teatro, Prêmio Tim de Música, Festivais de Brasília, Gramado, É Tudo Verdade).
Feitas as apresentações, gostaria de voltar ao tema proposto para o debate: “A cultura na escola e os estudantes produzindo cultura”.
Para isso é preciso saber exatamente o que quer dizer “educação escolar” e “cultura”. Quanto à educação escolar, não vou me deter. É a especialidade de vocês, que conhecem bem a sua importância e as suas mazelas. Já quanto à cultura, vale a pena demorar um pouco mais para detalhar seu conceito.
CULTURA
A palavra cultura vem do Latim, de um verbo (colo) que quer dizer, ao mesmo tempo, cultivar, habitar, morar em, cuidar de, tratar, preparar, honrar, venerar, respeitar. É o mesmo verbo que dá origem às palavras cultivo (no sentido de cultivar plantas), colono (aquele que cuida da terra), domicílio, culto (no sentido religioso) e vários outros termos que designam o oposto daquilo que é dado pela natureza, ou seja, o que é trabalhado, construído pela ação humana, tanto no campo material (como na agricultura) quanto no simbólico e no do pensamento. Modernamente a palavra cultura designa o conjunto de valores, sejam eles materiais ou espirituais, de saberes, de crenças e hábitos, que a humanidade cria através de suas práticas sócio-históricas, e que caracterizam cad sociedade e cada momento histórico.
Assim, poderíamos dizer que o nosso idioma, a nossa arte em geral (música, dança, teatro, literatura, artes plásticas, cinema, etc.) e também nossa culinária, os saberes populares (lendas, mitos, práticas da medicina popular), as crenças e manifestações religiosas, as tradições, nossa maneira de tratar com os outros, os hábitos, os esportes, os valores morais, tudo isso integra a nossa cultura. É o que nos faz brasileiros do século XXI, é o que nos permite viver o presente, ter um passado, almejar um futuro.
O que nos fez homens, diziam Marx e Engels, foi o trabalho, a capacidade de transformar a natureza em nosso benefício, ao invés de nos submetermos a ela. E o resultado deste “cultivo” (remete ao sentido latino da palavra), que a humanidade em geral, e cada povo em particular, vem fazendo ao longo dos séculos, é o que chamamos cultura.
Ela é a consolidação de todo o desenvolvimento do ser humano, a possibilidade de que as gerações futuras aprendam com as passadas e tornem-se melhores. É o que nos torna semelhantes ao ser humano que habita o outro lado do planeta e, ao mesmo tempo nos torna, com os nossos saberes particulares, únicos e especiais. Voltando ao verbo latino que originou a palavra cultura: é o que deve ser cuidado e venerado (nossa tradição), trabalhado constantemente, é o habitat essencial do ser humano.
ARTE
É bom que façamos aqui uma pequena distinção entre cultura e arte. O conceito de cultura é mais abrangente. Como disse antes, inclui o conjunto dos valores e saberes de um povo. O conceito de arte é um pouco mais restrito, mas mantém uma relação direta com a cultura. A arte é um tipo específico de consciência social, um produto da altíssima capacidade humana de refletir a realidade objetiva de uma maneira não diretamente racional, mas estética. Ou seja, uma maneira de posicionar-se diante do mundo, de manifestar sentimentos, de descortinar horizontes, de revelar o mundo e a realidade que transcende ao discurso lógico.
Dentro do que chamamos genericamente de cultura, a arte é, talvez, a manifestação mais importante do grau de desenvolvimento da consciência de um povo e da humanidade. Nela os homens conseguem expressar de maneira estética os seus valores mais elevados.
Diante disso, fica óbvia a ligação entre educação e cultura. O papel de escola não é apenas ensinar a ler, escrever e fazer contas. É ajudar a colocar o cidadão em contato com o mundo, propiciar a integração de quem está chegando com a história e a tradição, permitir a criação de identidades próprias, que bebam do passado e construam o futuro.
Também não é novidade para ninguém que a escola que conhecemos não faz isso. Apesar do esforço sobre-humano de alguns bons profissionais e das lutas dos movimentos populares, a escola, falando genericamente, mal consegue transmitir alguns conteúdos, frequentemente defasados. Este foi, inclusive, o principal motivo para o começo do nosso trabalho junto à UMES: suprir esta carência fundamental da escola, de produzir cultura com e para os estudantes.
Mas não devemos achar que a escola não cumpre este papel apenas por incompetência ou despreparo de seus profissionais ou por falta de consciência dos governos. O problema é muito mais grave. Existem interesses poderosos que trabalham para sufocar a nossa cultura em todos os aspectos, e o sistema educacional não foge à regra.
TRANSFORMAÇÃO
O poeta Ferreira Gullar, em um livro chamado “Cultura Posta em Questão”, ressalta que “a cultura tanto pode ser instrumento de conservação como de transformação social”. O campo cultural concentra, de maneira extraordinária, a luta ideológica que existe entre a nação e o imperialismo e entre explorados e exploradores.
Como não anda exatamente no mesmo ritmo das relações sociais, a cultura tem a capacidade de ajudar a avançar – ou a retardar – a luta pela libertação dos povos. Vejamos alguns exemplos históricos, tanto de uma coisa como de outra.
Já no Império Romano podemos notar um pouco disso: a liberalidade com que os romanos tratavam a sua própria religião e idioma – incorporando deuses dos vencidos e palavras de seus idiomas – contrasta com a brutalidade de sua dominação armada. Parece que eles sabiam que, quanto menos os dominados se sentissem diferentes dos dominadores, mais fácil seria manter a dominação. Mas este exemplo é muito antigo, e não existe nenhum registro da época que confirme a hipótese.
O exemplo Japonês, também de dominação, é mais atual e mais brutal. Quando da invasão da Coréia pelo exército imperial japonês, proibiu-se qualquer prática da cultura anterior. As pessoas eram impedidas de batizar seus filhos com nomes coreanos, as escolas não podiam ensinar o idioma e as pessoas eram proibidas até de conversar em público no idioma de seu país. Tentaram, pela força, impedir que os conquistados tivessem uma identidade própria, pudessem diferenciar-se de seus conquistadores.
O mesmo aconteceu no Timor Leste: quando a Indonésia invadiu a ex-colônia portuguesa uma das primeiras medidas foi proibir o uso do idioma português, o que quase o extinguiu no país.
RESISTÊNCIA
Mas nós podemos citar um exemplo mais próximo, onde se tentou usar a cultura como fator de dominação e ela acabou sendo um instrumento de resistência. É o exemplo dos africanos, trazidos como escravos ao Brasil. Na condição de escravos, eles não tinham direito a nada: não podiam falar seu idioma, cultuar seus deuses, fazer suas festas, nada. Partia-se do princípio de que aqueles homens e mulheres eram inferiores, que seus conhecimentos não valiam nada. Só passariam a valer alguma coisa se aprendessem a se comportar como os conquistadores, falar seu idioma, rezar para seus deuses. Foram cerca de três séculos até que o povo brasileiro conseguisse acabar com a vergonha da escravidão. E mais algumas décadas para que o negro começasse, na prática, a ser reconhecido como um cidadão com os mesmos direitos que os brancos.
Seria de se imaginar que a cultura africana tivesse sido totalmente apagada depois de tanta repressão. E o que temos hoje? O dicionário traz milhares de palavras de origem africana. Na culinária não apenas utilizamos ingredientes originários da África – o quiabo, o dendê – como nosso prato mais tradicional, a feijoada, era a comida dos escravos. Nossa festa popular mais importante, o carnaval, era, no início do século passado, uma festa tipicamente européia. Se olhamos para as fotos do carnaval do início do século XX isso fica bem claro: as famílias ricas, os corsos, confete e serpentina, pierrôs, colombinas, mas nenhum negro, nada de samba. E, poucas décadas depois da libertação, o samba já tinha tomado conta do carnaval, a cultura negra já tinha tomado conta da festa. A capoeira, que encanta o mundo inteiro, nada mais era do que uma maneira dos negros prepararem-se para lutar, fazendo de conta que estavam dançando. Na religião também: os negros eram obrigados a rezar para a branca Nossa Senhora, mas dirigiam suas preces à Iemanjá; olhavam para Santa Bárbara, mas pensavam em Iansã; falavam em São Jorge, mas dirigiam-se a Ogum. Para cada figura branca que lhes apresentavam, associavam um orixá. E mantiveram, assim, suas crenças.
Foi através de sua cultura que eles resistiram, foi de suas raízes e tradições que eles tiraram forças para enfrentar a escravidão. Foi assim que conseguiram construir uma identidade que lhes permitiu lutar contra a opressão. E, é claro, conseguiram muito mais: a luta dos negros contra a opressão transformou-se em luta de todos os que não concordavam com a injustiça. E a sua perseverança em manter as raízes criou uma cultura nova, riquíssima, que plasmou não apenas os seus valores, crenças e tradições como também incorporou os valores de todo o povo oprimido de nosso país.
ARSENAL
Os exploradores de todos os tempos, e o imperialismo contemporâneo em particular, sabem que não é fácil manter a dominação. É por isso que mantêm arsenais enormes e não hesitam um minuto em usá-los. Mas eles sabem que só pelas armas não conseguem manter-se para sempre. Precisam acabar com a cultura dos povos, com sua possibilidade de identificação. Precisam se passar por superiores, impor seus deuses, sua língua, sua música, apagar da memória dos oprimidos tudo aquilo que lembre que eles são diferentes, que eles são livres, que eles são na verdade superiores aos opressores. Acham que se conseguirem transformar nosso sonho de liberdade, de igualdade, de justiça em uma simples aspiração a tornar-se igual a eles, seu domínio estará garantido. E também usam todo um gigantesco arsenal – não bélico, mas cultural – para conseguir isso.
A forma de fazer isso é sufocar nossa cultura, pasteurizá-la, esvaziá-la de conteúdo, através do que chamamos de “indústria cultural”. Vou apenas lembrar alguns fatos sobre a ocupação cultural do nosso país.
Durante décadas a indústria fonográfica tentou impor a música americana no Brasil: compravam prateleiras nas lojas, faziam dumping, impediam as gravadoras nacionais de prensarem discos. Não adiantou nada: até hoje mais de 70% de toda a música que toca nas rádios é cantada em português. Resolveram então apelar para a transformação da nossa música em subproduto, boicotando os melhores artistas, produzindo nulidades, tentando transformar o sertanejo em country music, a música baiana em reggae, o forró em lambada, o samba em pagode.
Comprando espaço ilegalmente em rádios e TV’s ocupam a maioria do mercado, tentando sufocar os verdadeiros valores da música nacional. Mas ainda assim, não conseguiram vencer. As porcarias que eles produzem não conseguem se sustentar por muito tempo: cada vez gasta-se mais em marketing e menos em arte, cada vez mais rapidamente o “grande sucesso” de ontem cai no esquecimento e eles precisam inventar outro.
No cinema eles andam um pouco mais folgados, pois o cinema brasileiro ainda não conseguiu ter a mesma força que a música. Dominam praticamente todo o espaço de exibição. Ao final de 2007, apenas 10% do público que freqüentou cinema em nosso país terá assistido a filmes brasileiros. Para citar só um exemplo, houve um momento, no primeiro semestre, que apenas três filmes norte-americanos (Shrek 3, Homem Aranha 3 e Piratas do Caribe 3) ocuparam mais de 80% das salas de exibição no Brasil. Isso para não falar que apenas 4% das cidades brasileiras possuem salas de cinema e que as empresas americanas já dominam também este setor, através da Cinemark, UCI e outras redes que se expandiram nos últimos 10 anos à sombra da omissão governamental na defesa do nosso mercado.
No teatro a coisa é um pouco mais complicada, mas eles já estão mostrando as garras, trazendo para o Brasil espetáculos da Brodway, pagos com dinheiro público, via renúncia fiscal. De qualquer maneira, o que eles tentam fazer é sempre a mesma coisa: criar um “produto” único para o mundo inteiro, uma música (ou filme, livro, programa de TV) que possa vender no Brasil, na Índia, em Angola. O imperialismo não consegue trabalhar com a diversidade, precisa apelar para o emburrecimento, para a simplificação, para a massificação pasteurizada. É como o Mc Donald’s: o gosto de isopor da comida é igual no mundo inteiro. E o resultado em termos culturais é parecido com o que aquele filme, Supersize Me, mostra com relação à comida do Mc Donald’s: detona o cara!
TAREFA
Para finalizar, eu gostaria de apontar algumas soluções. Denunciar a ação dos inimigos da cultura brasileira é importante, mas é preciso construir soluções concretas. Uma delas é óbvia: radicalizar a luta pela qualidade da educação em todos os níveis. Outra, acreditamos, é a que estamos desenvolvendo: utilizar a estrutura das entidades estudantis para fazer cultura com e para a nossa juventude.
Enquanto não conseguimos construir a escola dos nossos sonhos, onde educação, cultura e arte sejam realmente transmitidas a todos os alunos, precisamos tomar em nossas mãos a tarefa de defender a nossa cultura, a nossa identidade, o nosso direito de escolha. E não faltam aliados no campo da cultura: com certeza os melhores artistas e as melhores figuras da cultura nacional estão dispostos a auxiliar nesta tarefa.
E uma terceira é a luta pela construção de uma rede de Rádios e TV’s públicas que ofereça uma programação condizente com a riqueza cultural de nosso país, que reflita o conjunto da cultura nacional e não que sirva como mera reprodutora da cultura enlatada e como fonte eterna de mentiras e de distorções da realidade como são as rádios e TV’s comerciais que estão aí.
Nossa tarefa é, portanto, fazer todo o inverso do que fazem os monopólios da indústria cultural: estimular a diversidade, fazer com que cada vez mais pessoas possam produzir cultura, possam ter acesso à cultura, elevar cada vez mais a consciência dos artistas e intelectuais brasileiros, difundir as melhores manifestações da cultura do nosso povo. É preciso que o nosso povo tenha plena consciência do valor de sua cultura, possa sonhar em português, possa amar a sua música, a sua comida, o seu teatro, o seu cinema, enfim, possa ter orgulho de ser brasileiro.
Vinícius de Moraes, no poema “Operário em Construção”, conta a história de um operário que vai se dando conta do quanto é explorado. Quando o personagem ganha consciência da exploração e assume a luta pela sua libertação, o poeta diz que ele atingiu “a dimensão da poesia”. É nossa tarefa fazer com que o povo brasileiro atinja a dimensão da poesia.
VALÉRIO BEMFICA
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