Apresentação do CD “Teclas no Choro”

Texto de apresentação do CD "Teclas no Choro", do vibrafonista Ricardo Valverde, escrito por Marcus Vinicius de Andrade, diretor artístico da Gravadora CPC-UMES

 

A história do vibrafone na Música Brasileira, mesmo pouco conhecida e estando ainda por ser escrita, é de grande importância para o entendimento da diversidade sonora do país. Não há registros de instrumentos lamelofones (i.e., que soam pela percussão de lâminas) entre nossos indígenas, mas é certo que foram os africanos quem trouxeram para o Brasil os primeiros instrumentos do tipo, como atesta uma gravura de Debret, de 1826, em que se vê uma sanza ou mbira tocada em meio a um grupo de escravos músicos. Marimbas propriamente ditas, até meados dos anos 1990 ainda eram encontradas em certas congadas do Litoral Norte do estado de S. Paulo, sendo possível que ainda lá subsistam, embora cada vez mais raras. Afora isso, não se sabe do uso regular de outros instrumentos de lâminas percutidas na etnomúsica do Brasil.

 

O vibrafone, pouco depois de ser inventado nos EUA no início do século passado, começou a ser ouvido em terras brasílicas junto às primeiras grandes orquestras internacionais que para cá excursionavam em temporadas de concertos e óperas. Não demorou muito e a paixão brasileira pelo instrumento logo se fez sentir: para muitos ouvintes, uma das mais ternas lembranças da Era do Rádio seria exatamente o solo de vibrafone de Luciano Perrone em Luar do Sertão (Catulo da Paixão Cearense-João Pernambuco), o memorável prefixo da Rádio Nacional – cujos sons, antes mesmo do Hino Nacional, foram os primeiros a ser levados ao ar na inauguração da emissora, a 12/9/1936. Assim, seria possível dizer que os sons do vibrafone ungiram a eclosão da Época de Ouro da nossa música popular, à qual chegaram para nunca mais sair.

 

Ainda que tenha sido criado como instrumento mais apropriado às rupturas rítmico-melódicas da música de concerto pós-romântica, o vibrafone rapidamente ‘deseruditizou-se’ e ganhou lugar na melhor música popular que também se gestava em muitas partes do mundo, ao longo do trepidante século XX.

 

Nos EUA, ele se integrou a várias correntes do jazz, celebrizando nomes como, entre outros, Milt Jackson, Cal Tjader e o extraordinário Gary Burton, que desenvolveu a técnica de execução com quatro baquetas.

 

Já no Brasil, a história vibrafonística haverá sempre de fazer justiça a nomes como o Maestro Sylvio Mazzuca, cuja orquestra foi uma das mais populares entre os anos 1950-1970, Ugo Marotta, talvez o principal vibrafonista da fase da bossa-nova, o mestre da percussão Luiz Almeida D’Anunciação (Pinduca), afora outros, como os craques Ney Rosauro, Altivo Penteado (Garoto), Beto Caldas, Aécio Flávio, Guga Stroeter e Jotinha de Moraes, ou o meio misterioso José Scarambone, que em 1956 atacou de vibrafone num ousado LP de 10 polegadas (hoje uma raridade!) intitulado Ritmos e Melodias, arranjado, dirigido e clarinetado por ninguém menos que o genial K-Ximbinho. Isso para não falar de outros músicos notáveis que, em algum momento de suas vidas, aderiram ao instrumento: ou alguém aí sabia que os saudosos maestros Erlon Chaves e Antonio Waghabi (o Magro, do MPB-4) começaram suas carreiras como vibrafonistas?

 

A crônica do vibrafone no Brasil também muito deve a nomes como Pedro Cameron (autor da primeira obra brasileira para vibrafone solo, em 1973), Claudio Stephan, Roberto Victorio, Carlos Tarcha, Augusto Moralez, Joaquim Abreu e outros, que se tornaram expoentes não só como instrumentistas, mas também como excelentes e respeitados didatas. Especial destaque deve ser dado a André Juarez, músico notável que, com seu projeto Vibrafone Solo, transformou-se talvez no maior divulgador do instrumento no Brasil, ao encomendar obras para vibrafone a alguns dos mais importantes compositores nacionais.

 

Mas tudo isso é somente uma parte da história. A outra parte começa agora, com este Teclas no Choro, CD com que Ricardo Valverde abre uma nova vereda na trajetória do vibrafone em nosso país. Fascinado pelo som do instrumento desde criança (quando ouvia os discos de 78 rotações de seu pai, entre os quais os de Milt Jackson, que depois definiria como o ‘Pelé do vibrafone’), Ricardo escolheu ser vibrafonista quando em Campinas, num encontro de estudantes de percussão, assistiu a um concerto de Ney Rosauro. Foi a partir daí que tudo mudou: tendo já conquistado o coração de Ricardo, o vibrafone logo tomou também a cabeça do jovem músico, passando a ser a principal razão de sua vida profissional e de seus estudos, realizados junto a professores de primeiríssimo time, como Beto Caldas, André Juarez e Carlos Tarcha, aqui já mencionados, aliás. Ricardo não poderia estar em melhores mãos, e o resultado, como vimos, seria o excelente instrumentista em que ele se transformou.

 

O ápice desse processo de formação da persona musical de Ricardo, porém, certamente tem sido sua luminosa iniciativa de trazer as sonoridades do vibrafone para o campo da música brasileira tradicional – especialmente do choro, um dos nossos mais exigentes gêneros musicais, desafiador por nutrir-se nas complexidades da linguagem instrumental, muitas vezes levadas à sua densidade máxima. Tendo vocabulário e processos de criação específicos, o choro como que gerou um código sonoro próprio, similar ao que o legendário pianista Arthur Schnabel identificou em Mozart: “é música fácil para diletantes, mas dificílima para profissionais”.

 

Ricardo Valverde, além de enfrentar esse desafio, trouxe-o para um terreno novo, ficando incumbido (ainda que involuntariamente) de prospectar o que poderá vir a ser a dicção chorona do vibrafone brasileiro. Para isso ele já deu dois passos fundamentais, primeiro ao rejeitar os chavões e maneirismos interpretativos supostamente ‘modernos’, que muitas vezes fazem a música instrumental brasileira soar como uma prima pobre do jazz ou do pop internacional; depois, por ter tido a sabedoria de também convocar, para essa tarefa, músicos de alta categoria, como Silvia Goes, Pepa D’Elia e Ivani Sabino, aos quais se somaram, em participações especiais, Heraldo do Monte, Cesar Roversi, Izaías Bueno de Almeida e Oswaldinho do Acordeon. Um time de talentos excepcionais que, com Ricardo Valverde à frente, nos apresenta um novo momento no choro brasileiro.

 

A história do vibrafone no Brasil continua sendo escrita, pois aí estão Daniela Rennó, Antonio Loureiro e tantos outros novos executantes para confirmar o que dizemos. Mas essa história ganha mesmo um novo capítulo com esse CD de Ricardo Valverde: sem esconder sua reverência pela sonoridade do Quinteto de Radamés Gnattali, Ricardo nos traz um CD que aponta o futuro enquanto revela o passado. Um CD atual e moderno, mas que é sempre um disco de choro: um disco que mostra que a imorredoura alma brasileira ganha uma vibração nova e especial quando envolvida nos sons do vibrafone, em felicíssimo casamento. Quem duvidar, que escute Ricardo Valverde.

 

MARCUS VINICIUS DE ANDRADE

Diretor Artístico da Gravadora CPC-UMES

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