Carta-Testamento – O maior libelo da história do Brasil

No início de agosto de 1954, tudo indicava que o governo do presidente Getúlio Vargas havia derrotado a conspiração golpista que começara antes mesmo de sua posse (a quatro meses das eleições presidenciais, Carlos Lacerda escreveu em seu jornal, a Tribuna da Imprensa: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Em junho, uma tentativa de impeachment não conseguira o apoio nem ao menos de toda a UDN – fora derrotada por 136 votos contra e 35 votos a favor. Mas, em 5 de agosto, os golpistas conseguiram um cadáver, o de um major que fazia a segurança de Lacerda – e uma farsa, a história de um suposto atentado contra Lacerda, hoje completamente insustentável, após o trabalho dos repórteres Palmério Dória e Hamilton Almeida Filho (“Mataram o Presidente!”, Editora Alfa-Omega, 1978) e do pesquisador Ronaldo Conde Aguiar (“Vitória na Derrota – A Morte de Getúlio Vargas”, Ed. Casa da Palavra, 2004). Para uma síntese, ver HP, 28/08/2005.

No dia 24 de agosto, o presidente Getúlio sacrificava sua vida – e sua carta-testamento se tornaria o documento mais importante, mais candente e mais profundo de toda a História do Brasil. É este texto que hoje republicamos. Getúlio havia explicitado a posição que posteriormente nortearia seu governo em maio de 1947, discursando no Senado. Disse ele:

“O que existe por parte de alguns homens em nosso país, arvorados em líderes da economia nacional, é apenas um acentuado complexo contra o trabalhador brasileiro. Acham que ele não deve ser operário nas fábricas, que o Brasil não deve ter indústria, que é indispensável destruir toda e qualquer possibilidade de trabalho fora dos campos. O Brasil, no conceito desses homens, deve ser uma nação essencialmente agrícola. O operário deve mudar de profissão, pelo que pretendem, ou então voltar ao regime de escravatura”.

Durante a campanha eleitoral, tornou mais nítidos os seus pontos de vista. Em 10 de agosto de 1950, discursaria em São Paulo:

“O que existe, defendida intransigentemente pelos velhos partidos, com novos rótulos, é a democracia política, baseada em leis que lhe asseguram o gozo de privilégios para oprimir e explorar o trabalho alheio. O trabalhismo brasileiro surgiu, assim, como uma afirmação contra a máquina montada em nome da liberdade política, com sacrifício da igualdade social”.

A questão fundamental era clara para ele há muito tempo. Em 1944, ao se referir às relações econômicas com os EUA no pós-guerra, havia enunciado:

“Não podemos admitir a hipótese de que terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica. (…) E nem vale a pena pensar em que desorganização caótica, de revoluções e perturbações, mergulhará o mundo de novo se não for ouvida a voz da razão e não nos convencermos de que não é possível a hegemonia de nenhum povo ou raça, isoladamente, sobre os demais”.

A eleição, além da vitória esmagadora de Getúlio, confinou a UDN a três governos estaduais – Alagoas, Mato Grosso e Paraná. Num quarto, o Pará, a UDN venceu em coligação com o PSP, de Ademar de Barros, que apoiava Getúlio.  Apesar disso, a campanha golpista começou logo em seguida – para isso, funcionava no Rio de Janeiro o “Escritório Monsen”, uma suposta empresa de advocacia pertencente à Standard Oil, que tinha como um de seus principais membros o genro do diretor da Hollerith, uma subsidiária da IBM.

A questão, confessada depois pelo próprio Lacerda e por Eugênio Gudin – o mais notório defensor da nossa suposta “vocação agrícola” – era impedir que a política de Getúlio se tornasse “permanente”, se consolidasse como o programa do Estado e da Nação brasileira naquela nova fase da nossa história. Para isso, a conspirata golpista seguiu por três lados: a tentativa de isolar o governo das Forças Armadas; a tentativa de privar Getúlio de qualquer órgão de comunicação com o povo; e a tentativa de isolá-lo do empresariado nacional.

O primeiro episódio não poderia ser mais claro sobre o caráter dos golpistas: a campanha contra o ministro da Guerra, general Newton Estillac Leal, por sua oposição a que o Brasil enviasse tropas para ajudar os EUA na agressão à Coreia. Em dezembro de 1951, o presidente decidiu, definitivamente, que o Exército Brasileiro não iria coadjuvar a agressão. No mesmo mês, Getúlio enviou ao Congresso o projeto inicial de criação da Petrobrás. Isso iniciaria dois anos de luta pela aprovação. Em 31 de dezembro de 1951, o presidente denunciou a escandalosa remessa de lucros das empresas estrangeiras. Logo em seguida, a 3 de janeiro de 1952, ele assinaria um decreto limitando em 10% dos lucros as remessas para o exterior. Os EUA, imediatamente, ameaçaram suspender todos os financiamentos ao Brasil. Mas o presidente manteve o decreto. Enquanto isso, a oposição dos militares brasileiros a que fossem morrer pelos norte-americanos na Coreia e seu apoio à Petrobrás foram tachados de “comunistas”. A questão era atrair, neutralizar e intimidar oficiais com essa cruzada, para fazer com que o Ministério da Guerra ficasse em mãos cada vez menos firmes – em 1952, Estillac Leal sai do ministério.

Era impossível, no entanto, derrubar o governo sem isolá-lo do povo, portanto, tentar destruir o único jornal com que Getúlio contava, a “Última Hora”, de Samuel Wainer. Em abril de 1953, Lacerda publicou uma acusação falsa, a de que Wainer não havia nascido no Brasil: a Constituição de 46 proibia a propriedade de órgãos de comunicação por estrangeiros ou brasileiros naturalizados. O serviçais do escritório da Standard Oil acusavam Wainer de ser… estrangeiro. Em seguida, a acusação passou a ser a de que o jornal tinha obtido créditos bancários para se viabilizar. Exigiam da empresa que fosse a única no mundo a sobreviver sem empréstimos. Por fim, acusavam o governo de favorecer o jornal. Com sua falta de escrúpulos, Lacerda inventou um crédito de Cr$ 300 mil que teria sido concedido pelo Banco do Brasil ao “Última Hora” sem que Wainer tivesse que pagá-lo. Além disso, um aval cambial para importação de papel de imprensa, que o BB estava, por lei, obrigado a conceder, foi chamado de “empréstimo”.

No entanto, a “Última Hora” era o jornal que devia menos ao BB – a dívida executável era de 8 mil cruzeiros. Já os “Diários Associados”, de Chateaubriand, deviam CR$ 162 milhões ao BB; “O Globo”, somente nos dois anos anteriores, tinha obtido US$ 1.022.211,00 do BB em sucessivos empréstimos, dando sempre como garantia uma mesma velha impressora, e sem quitar durante esse período sequer o primeiro desses empréstimos. O próprio jornal de Lacerda, insignificante quanto à tiragem, era devedor do BB.

O próximo alvo foi o Ministério do Trabalho, encabeçado por João Goulart. A 8 de março de 1953, o “The New York Times” iniciou, em editorial, a campanha contra Jango, mais jovem ministro da História da República, logo copiada pela imprensa golpista interna. Em seu primeiro ano de governo, Getúlio havia aumentado o salário mínimo – que ficara sem nem ao menos reajuste durante oito anos – de 380 cruzeiros para 1.200 cruzeiros. Agora, na iminência de outro aumento, a ser concedido em maio de 1954, foi inventada uma peculiar teoria, segundo a qual o aumento não poderia ultrapassar a inflação, isto é, não poderia haver aumento real, sob pena do empresariado ir à falência.

Diante da gritaria que conseguiu envolver setores do empresariado e alguns militares de prestígio – o chamado “manifesto dos coronéis” -, Jango resolveu demitir-se para privar a conspiração de um alvo e impedir que o governo fosse paralisado. Mas o aumento de 100% foi decretado no dia 1º de maio de 1954 – e nenhuma empresa faliu por causa dele. Pelo contrário, representou a expansão do mercado interno para essas empresas.

Nesse primeiro de maio, olhando para algumas décadas mais tarde, Getúlio afirmou:
  “Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo às vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.

 

CARLOS LOPES

 

CARTA-TESTAMENTO

 

“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.

 

GETÚLIO VARGAS

 

Texto estraído da Hora do Povo – Edição 2.893 de 2010

0 respostas

Deixe uma resposta

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe um comentário