Getúlio lança a Petrobrás: “no petróleo, o controle nacional é imprescindível”

Em dezembro de 1951, quando enviou ao Congresso o projeto de criação da Petrobrás, na mensagem que o acompanhou, considerava o presidente Getúlio Vargas:

“É fora de dúvida, como o demonstra a experiência internacional, que, em matéria de petróleo, o controle nacional é imprescindível. O Governo e o povo brasileiros desejam a cooperação da iniciativa estrangeira no desenvolvimento econômico do País, mas preferem reservar à iniciativa nacional o campo do petróleo, sabido que a tendência monopolística internacional dessa indústria é de molde a criar focos de atritos entre povos e entre governos. (…) será essa empresa genuinamente brasileira, com capital e administração nacionais”.

Os motivos desta opção, além do que já foi dito, são demonstrados nesse mesmo documento – uma obra para ser não apenas lida, mas estudada – com fundamentação perfeitamente atual. Nele, também, Getúlio descreve a situação do Brasil, diante do problema do petróleo, naquela época. Trata-se de algo que seria angustiante, se não soubéssemos, até pela mera experiência cotidiana, que conseguimos superar àquela situação dificílima, exatamente devido à Petrobrás. Ao invés de se intimidar perante as dificuldades, Getúlio colocou o país no caminho de sua superação.

No entanto, hoje, quando a situação, com a descoberta do pré-sal, nunca foi tão fácil, reaparecem aqueles que não conseguem apreender as lições de mais de 60 anos atrás, colocadas em evidência – mais ainda – pelo contraste que foi o desastre tucano-entreguista na área do petróleo.

Por essa razão, achamos de bom alvitre seguir a sugestão de uma leitora – a ex-vereadora paulistana Lídia Correa – e publicar a mensagem em que Getúlio expôs a necessidade da Petrobrás. É um texto longo, mas, com exceção de alguns parágrafos referentes à relação da empresa com o Conselho Nacional do Petróleo, preferimos reproduzi-la na íntegra. O leitor perceberá por quê.

 

C.L.

 

GETÚLIO VARGAS

 

Senhores Membros do Congresso Nacional:

Tenho a honra de submeter à consideração de Vossas Excelências o anexo projeto de lei destinado a criar a sociedade por ações Petróleo Brasileiro S. A., para levar a efeito a pesquisa, a extração, o refino, o transporte de petróleo e seus derivados, bem como quaisquer atividades correlatas ou afins, através de empreendimentos à altura das necessidades nacionais de combustíveis líquidos.

Em complemento a esse projeto, submeto separadamente um outro, relativo aos recursos tributários essenciais ao programa nacional de combustíveis líquidos e lubrificantes, no qual se asseguram também recursos para a ampliação do Fundo Rodoviário Nacional. Constituem os dois uma unidade, mas ao Governo pareceu de bom aviso separá-los, para facilitar o trabalho legislativo, possibilitando, sem risco de dilações na discussão de questões novas, a aprovação, no menor prazo possível, do projeto que reajusta tributos já existentes e constantes do orçamento.

A análise da situação internacional e de todo o problema do suprimento regular de derivados do petróleo, de que dependem o desenvolvimento econômico e a segurança da Nação, levou o Governo a concluir que se impõe um grande esforço no sentido de acelerar e ampliar os empreendimentos nacionais, nesse setor de atividade. A base da experiência já adquirida no trato dessa questão e mantendo as linhas mestras da legislação cm vigor, cumpre empreender e levar a termo as tarefas que a política nacional de combustíveis líquidos reclama e as próprias circunstâncias internacionais tornam inadiáveis.

Ao Poder Executivo afigurou-se imperioso, em face dos interesses nacionais, apelar para os recursos financeiros e humanos da Nação, com o fim de reduzir, em prazo relativamente curto, o grau de dependência em que se encontra o País, quanto ao seu suprimento de derivados do petróleo. Esse o objetivo a alcançar com a execução das leis que ora solicito ao Congresso.

 

O PROBLEMA

O consumo nacional de derivados do petróleo acusa uma ascensão regular, que traduz o desenvolvimento das atividades do País, não só quanto ao transporte mas também quanto à indústria.

No entanto, como é ainda incipiente a produção nacional de petróleo, essa ascensão constante do consumo implica necessariamente num aumento das importações, com dispêndios crescentes de divisas, que poderão ser empregadas na compra de outras utilidades estrangeiras, quando o permitir a produção brasileira de óleo mineral. O crescimento das importações de derivados de petróleo processa-se, aliás, quanto a volume e valor, em ritmo mais acelerado do que o das outras mercadorias que adquirimos no exterior. A percentagem das divisas despendidas com a sua cobertura tende a aumentar, no tempo, de forma a causar apreensões em relação à regularidade futura de suprimento, ao País, de tais produtos.

De fato, a valor das importações de petróleo e derivados que, em 1939, correspondeu a 7% do valor da totalidade de nossas aquisições externas, em 1946 representou 7,6% e, em 1930, 11,3%.

No ano em curso, essa relação deverá ultrapassar 13%, apesar do aumento considerável das importações globais, aproximando-se de Cr$ 4,0 bilhões as compras externas do petróleo e derivados. Para todo o quinquênio 1951-1955, as previsões são de ordem de Cr$ 27 bilhões, à base dos preços atuais.

Em volume, o consumo nacional de derivados do petróleo, quase totalmente suprido através das importações, cresceu em média de 6,4% de ano para ano, no decênio de 1931 a 1940. No decênio seguinte, 1941-1950, o crescimento médio anual foi de 11,9%. Desde o término da II Grande Guerra, porém, o aumento do consumo entrou a acelerar-se, ainda mais, acusando a média de 19,5% de ano para ano, no quinquênio 1946-1950. De 1949 para 1950, esse aumento atingiu 22,3%, havendo indício, entretanto, de que se atenuará de forma a situar-se em menos de 20% nos próximos anos. Esse ritmo de aumento de consumo é, por um lado, alarmante, embora, por outro, altamente auspicioso.

O estudo do problema permite prever a duplicação do consumo nacional de derivados do petróleo de 1950 para 1955. O consumo, expresso na unidade comumente usada, atingiu no ano passado a cifra de 100 mil barris por dia, devendo alcançar ou ultrapassar 200 mil barris ao findar o quinquênio 1951-1955.

Esses algarismos mostram que as refinarias em construção ou concedidas, até agora, não bastarão para industrializar sequer 50% do petróleo necessário ao consumo do País em 1955. Quanto à frota de petroleiros, já adquirida, tem capacidade para suprir, nas distâncias médias em que os transportes deverão processar-se, somente cerca de 20% dos volumes a serem então consumidos. A produção atual do óleo bruto, na única província petrolífera em exploração, corresponde, apenas, a 2,5% do consumo interno, embora sua capacidade seja maior e considerável sua importância para o nosso suprimento, dada a qualidade do óleo bruto baiano.

É evidente, portanto, que o problema apresenta-se como de suma gravidade, em face das perspectivas de perturbação no comércio internacional de petróleo e da própria limitação da capacidade de pagamento do Brasil, mesmo que haja disponibilidade do produto no exterior. Não podemos desprezar os reflexos da crise anglo-iraniana e de toda a conjuntura internacional, sobre o suprimento de combustíveis do nosso País.

Na realidade, portanto, o problema não comporta solução à base exclusiva da importação da matéria-prima em bruto, para ser refinada no País. Já os preços do petróleo bruto, atualmente vigentes no mercado internacional, limitam os lucros da industrialização e, assim, reduzem em pouco o dispêndio de divisas com o refino da matéria-prima importada. Somente a produção interna, em volumes compatíveis com o consumo, permitirá assegurar o desenvolvimento da economia nacional naquilo que dependa dos combustíveis líquidos. Para esse fim torna-se indispensável adotar medidas econômicas de amplitude correspondente à extensão e à complexidade do problema.

Cabe acentuar que o problema nacional do petróleo não se limita ao atendimento da demanda atual ou da prevista, conforme as linhas acima, até 1955: a produção do petróleo, dentro das possibilidades que tivermos, está entre aquelas produções básicas que, voltadas para as necessidades nacionais, marcarão o compasso do nosso desenvolvimento geral.

Nossa indústria, ainda incipiente quanto às possibilidades a curto prazo, mas já com uma elevada taxa de crescimento, e as condições geográficas do País, que impõem a expansão do tráfego rodoviário e aéreo, além do emprego de combustíveis líquidos em navios e locomotivas, tendem a agravar cada vez mais a nossa dependência em relação ao petróleo.

Para podermos acelerar o progresso do País, desenvolvendo os transportes rodoviários, aeroviários, a dieselificação das ferrovias, a navegação, a mecanização da agricultura e as indústrias básicas e de consumo, numa taxa maior do que se verifica presentemente, o consumo de derivados do petróleo deverá aumentar ainda mais. As rodovias dependem do petróleo para a pavimentação de suas pistas e para os seus veículos. A solução do próprio problema da casa popular está intimamente relacionada com a produção de cimento e de outros materiais de construção, que implicam em alto consumo de combustíveis. Muitas indústrias de alimentação também dependem em alta escala do petróleo. Poderíamos multiplicar exemplos.

Cabe ainda não esquecer a polimorfa contribuição do petróleo e seus derivados para o desenvolvimento da indústria química e as novas perspectivas abertas pela produção de sintéticos, estreitamente vinculada à técnica da industrialização do óleo mineral.

Os índices do consumo nacional de petróleo são ainda muito baixos, em comparação com os de outros países. Esse consumo em 1950 foi, per capita, de 0,6 de barril por ano, enquanto, com base nos dados de 1947-1948, esse índice foi na Argentina de 2,9, no Uruguai de 1,5, na média da América do Sul de 1,6 e nos Estados Unidos de 14 barris. No balanço energético do País, a contribuição do petróleo está em cerca de 100/0, enquanto que a lenha ainda contribui com 80%. Nos Estados Unidos, aquela percentagem é de 42%, ficando 46% para o carvão mineral.

Dessa forma, é o petróleo um fator básico para a emancipação econômica e o bem-estar social do nosso povo.

Não podemos, portanto, mostrar fraqueza ou retardo na verificação e aproveitamento das nossas jazidas de óleo mineral, em escala compatível com os recursos financeiros e técnicos que pudermos mobilizar, sob perfeito controle, e devidamente considerada a expansão dos outros ramos da economia do País. E devemos pensar até na produção de excedentes para exportação, melhorando assim nossa capacidade de importar outros bens essenciais à produção e ao consumo. Nessas condições, a produção do petróleo influirá decisivamente na posição internacional do Brasil.

 

EMPREENDIMENTOS

Tendo em vista as necessidades mais urgentes e as possibilidades de captação de recursos financeiros para inversão em empreendimentos relativos ao petróleo, determinei a elaboração de um programa para a atuação do poder público, de 1952 a 1956, com o fim de lançar essa indústria, através da empresa cuja criação ora é proposta, em bases tais que lhe assegurem condições para se consolidar e desenvolver, em curto prazo e na escala suficiente.

Visa-se, essencialmente, intensificar a pesquisa nas áreas potencialmente petrolíferas, avaliar as jazidas já descobertas na Bahia, desenvolver a produção nessas jazidas e nas que forem identificadas noutras regiões, como resultado dos trabalhos de pesquisa; enfim, realizar os empreendimentos necessários à extração do petróleo bruto nas áreas reconhecidas como potencialmente produtoras. Os depósitos já identificados na Bahia avaliam-se em cerca de 50 milhões de barris de óleo bruto, ou seja, o equivalente a pouco mais de um ano de consumo atual do País. Há necessidade urgente de delimitar e avaliar toda a província petrolífera, para fundamentação da política de refino a ser seguida, à base do óleo parafínico baiano. No Maranhão, na Amazônia e na bacia do Paraná, os trabalhos de pesquisa mal se iniciaram e precisam adquirir um ritmo capaz de possibilitar a revelação pronta da existência, ou não, de óleo mineral em quantidades comerciais.

Ao lado desse programa de pesquisa e exploração dos recursos petrolíferos da Nação, é desejável, com o fim de poupar divisas, ampliar a rede de refinarias em construção ou concedidas, para que disponhamos, até fins de 1956, de uma capacidade aproximada de refino superior, em cerca de 100 mil barris diários, à prevista atualmente. Dessa forma, as diversas regiões consumidoras irão sendo dotadas de instalações de desdobro do óleo bruto importado ou produzido no País, encaminhando-se o problema para a solução adequada, à base da exploração das jazidas nacionais.

A ampliação da frota petroleira, para que se tenha assegurado o transporte de uma parte substancial do óleo bruto e dos derivados consumidos no País, é um terceiro ponto do programa elaborado. Caso se inicie e se desenvolva a produção nacional, reduzir-se-á a expansão necessária na tonelagem marítima em confronto com a que seria reclamada pelo carreamento dos produtos importados do exterior. É de presumir que a própria operação dessa frota proporcione recursos para a sua manutenção e ampliação.

Além dos três pontos assinalados, a programação dos empreendimentos relativos a petróleo abrange a intensificação das pesquisas e a industrialização do xisto betuminoso.

Para a progressiva execução do conjunto do programa exposto, irá sendo preparado pessoal técnico de nível superior, mediante estágios nos países em que a indústria do petróleo se acha mais desenvolvida, bem como operariado qualificado nacional.

O trabalhador brasileiro tem revelado, nos trabalhos de campo e de refinação de petróleo, confirmando aliás o que se tem verificado em outras indústrias, capacidade de apreender rapidamente as técnicas modernas. Promover-se-á ainda a pronta ampliação dos quadros, mediante contrato e fixação de elementos técnicos, o que permitirá intensificar a preparação do pessoal nacional.

O conjunto desses empreendimentos, para ser levado a efeito, exige recursos financeiros de vulto, que se torna indispensável captar e aplicar, de forma adequada e em tempo hábil.

 

INVESTIMENTOS

Numa estimativa preliminar das inversões a serem realizadas, durante os próximos anos, chegou o Governo à conclusão de que são necessários, pelo menos, Cr$ 8 bilhões de novos recursos líquidos, para os empreendimentos programados e com perfeita possibilidade de execução. Essa estimativa compreende inversões em refino num montante aproximado de Cr$ 2 bilhões, de cerca de Cr$ 1 bilhão em equipamentos de transporte e de cerca de Cr$ 5 bilhões em pesquisas e produção, ou seja, para este último setor de atividades, Cr$ 1 bilhão, em média anual, de 1952 a 1956.

O programa básico é moderado, face à magnitude e importância do problema, conquanto as cifras globais se afigurem de grande vulto; é que os dispêndios se estenderão por todo um quinquênio, compreendendo mesmo o primeiro ano do próximo período governamental, de forma a assegurar o pleno desenvolvimento dos planos iniciais e possibilitar a formulação, pelo novo Governo, com tempo suficiente, do programa ulterior. O Governo, porém, se empenhará em ampliar e antecipar a realização do programa, contando com os recursos extraordinários possíveis e previstos no projeto de lei, inclusive os resultantes das aplicações imediatamente rentáveis.

Evidentemente, a aplicação dos recursos deverá processar-se de maneira flexível, conforme a marcha da execução do programa, que poderá reclamar a concentração de esforços numa nova província petrolífera descoberta. Nesse caso, os recursos financeiros mobilizados poderão apresentar-se até mesmo insuficientes; mas tal será o significado econômico da descoberta, que a captação de recursos financeiros adicionais poderá ser levada a efeito em bases diferentes daquelas agora propostas.

 

RECURSOS

Na busca de fontes onde obter os recursos de que o Brasil necessita, para empreender e levar a cabo o programa de trabalhos acima expostos, o Governo teve em vista ligar aos empreendimentos estatais referentes a petróleo aquelas atividades econômicas ou parcelas da população que não podem prescindir dos derivados do óleo mineral, e, do mesmo passo, recorrer a fontes de financiamento que não impliquem em desviar capitais necessários a outros empreendimentos públicos e privados de importância para a economia nacional.

A tarefa da conquista do petróleo pelo nosso povo, sob a direção do Governo nacional, torna indispensável não só um considerável esforço técnico, mas um vigoroso esforço financeiro do País.

Os cidadãos são convocados a participar da solução do problema dos combustíveis líquidos minerais, mediante captação tributária e subscrição de títulos da Petróleo Brasileiro S. A. – que será o eficaz instrumento para enfrentar decisivamente o problema.

Os recursos próprios da Sociedade terão a seguinte origem:

1 – bens da União pertinentes a petróleo e incorporados ao capital;

2 – receita federal sobre parte do imposto de combustíveis líquidos e sobre a importação e o consumo de automóveis, cujas taxas deverão ser elevadas, bem como sobre a parte não vinculada ao Fundo Naval do imposto vigente sobre remessa de valores para o estrangeiro, destinado ao pagamento de automóveis e acessórios;

3 – indiretamente, do produto de uma taxação sobre artigos de luxo;

4 – parte da receita estadual e municipal do imposto sobre combustíveis líquidos, com opção, por essas entidades, de seu emprego em empresas petrolíferas subsidiárias;

5 – tomada compulsória de títulos pelos proprietários de automóveis e afins;

6 – subscrição voluntária pelos particulares e entidades públicas.

Pretendeu o Governo, na medida do possível, que a participação dos cidadãos se fizesse através de uma tributação suave e da subscrição voluntária de títulos.

Não faltaria para isso a consciência pública da magnitude e urgência do problema. Mas as possibilidades de tributação são limitadas, num país de economia ainda incipiente, com enormes encargos de desenvolvimento e com um aparelhamento tributário que muito deixa a desejar. Ao lado disso, a insipiência do mercado de títulos e as dificuldades práticas desse meio limitariam muito as possibilidades de a subscrição voluntária aglutinar os recursos necessários.

 

PARTICIPAÇÃO

Assim, embora o Governo apele para a subscrição voluntária de títulos da empresa mista, e apoie financeiramente o programa nacional do petróleo, sobretudo no esquema tributário, que é o objeto do programa complementar, em bases equilibradas, justas e suaves insuscetíveis de causar dano à economia nacional – não pode fugir de convocar ainda, à subscrição compulsória de ações ou obrigações, os proprietários de veículos automóveis e outros dotados de motores, que têm interesse direto no problema, assegurando assim a participação, na grande empresa nacional, de uma massa que poderá atingir a centenas de milhares. Realiza-se sua participação através da tomada de títulos, embora sob a forma de poupança e investimento compulsórios, como o impõe a urgência do problema, tão clara na consciência de todos.

Dessa maneira, apesar de alguns inconvenientes práticos imediatos, que seriam afastados pela simples tributação, o Governo associa, como acionista, ao êxito dessa empresa um grande número de cidadãos. Dá-se assim autêntico caráter nacional a esse empreendimento, que não se confunde, pelo seu cunho e envergadura, nem mesmo com os mais audaciosos projetos industriais do Estado noutros setores.

A subscrição de ações da Sociedade não é somente um ato de patriotismo. Para maior garantia dos demais subscritores do capital, o Governo Federal abre mão da participação nos dividendos, enquanto aqueles não auferirem 8% sobre o capital que integralizarem. Dessa maneira, o risco da pesquisa recairá praticamente sobre o capital integralizado pela União.

A própria pesquisa, num amplo programa distribuído por várias zonas com probabilidades de produzir óleo, e utilizando os métodos mais modernos, terá o seu risco específico bastante diminuído. As demais aplicações deverão produzir lucros consideráveis aos preços atuais.

Dada a expectativa do êxito financeiro da empresa, os títulos constituirão fonte de renda para os seus tomadores. Estes poderão, ademais, negociá-los, dentro das limitações estabelecidas no projeto de lei.

A integralização do capital da empresa, pelos particulares, além da subscrição voluntária, deverá processar-se mediante pagamentos parcelados feitos pelos proprietários de veículos a motor, segundo uma tabela progressiva, baseada na capacidade de contribuir.

Estabelece-se, entretanto, limite para a subscrição de ações ordinárias, com voto. Acima desse limite, os subscritores voluntários, as entidades de direito público e os proprietários de automóveis participarão da formação dos recursos da Sociedade mediante a tomada de ações preferenciais sem voto ou de obrigações, estas a juros fixos e com prazo certo de resgate. Trata-se, ademais, de títulos negociáveis, nos casos previstos no projeto de lei.

Houve o cuidado de conceder o máximo de opção, entre três títulos diferentes, aos subscritores, voluntários ou não.

Uma participação adequada na Diretoria e no Conselho Fiscal constitui também um dos traços da nova empresa industrial mista, na qual, embora sob o controle oficial, o Governo deseja imprimir o estilo das organizações privadas.

Dessa forma, dentro do sistema elaborado no projeto de lei, fica assegurada a participação do público no grande empreendimento nacional, possibilitada a obtenção de um complemento importante aos recursos de fonte tributária, e preservado, o quanto conveniente, o caráter de empresa privada na organização mista, sem que, de um lado, sejam necessárias as restrições extremas que são essenciais em empresas comuns concessionárias ou autorizadas a operar na produção petroleira, e, de outro, possa prevalecer sequer o receio quanto a controle ou influência nociva ou estranha ao interesse nacional.

 

PODER PÚBLICO

O Governo Federal deverá deter um mínimo de 51 % das ações com direito a voto.

Os bens pertencentes ao Governo Federal e peculiares à atividade da empresa, como refinarias, petroleiros, oleodutos, material de pesquisa e produção, jazidas de petróleo e de gases naturais já descobertas, etc, são estimados preliminarmente em cerca de Cr$ 2,5 bilhões, mas sua avaliação para incorporação ao capital social estará sujeita às normas legais.

Das fontes tributárias previstas, estarão assegurados os recursos necessários não só para a imediata integralização, pela União, do capital inicial de Cr$ 4,0 bilhões, mas para a elevação deste, até 1956, ao nível mínimo de Cr$ 10,0 bilhões, como requer o programa do petróleo. Fica assegurada, assim, desde já, a realização do programa básico.

Além das fontes indicadas expressamente, uma vez acrescida a receita prevista para o plano nacional de reaparelhamento econômico com a contribuição de 3% sobre os lucros retidos, o Governo poderá destinar a parte respectiva à subscrição de capital da Petróleo Brasileiro S. A.

Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão no capital da Sociedade, como é de esperar, a quota do imposto sobre combustíveis líquidos, que o projeto de meios destina a petróleo. Espera-se que a subscrição dessa fonte ultrapasse Cr$ 2,0 bilhões, embora sejam também acrescidas as respectivas quotas do Fundo Rodoviário. Dessa maneira, ficará consideravelmente ampliado o patrimônio dos Governos locais.

É de prever ainda a tomada de títulos da Sociedade pelas autarquias federais e estaduais.

 

GESTÃO

Para que a captação e a aplicação desses recursos se façam com a flexibilidade indispensável à realização dos empreendimentos programados é que o Governo propõe a organização de uma empresa, nos moldes do projeto, e que agirá diretamente, ou através de subsidiárias, como o impõem a gestão de grandes recursos e a complexidade da indústria.

Com os parcos recursos com que tem contado, o Conselho Nacional do Petróleo realizou uma obra considerável, não obstante as dificuldades que lhe antepõe o regime de gestão das verbas orçamentárias, mesmo dentro das normas fixadas pelo Decreto-Lei nº 538, de 1938. Empreendimentos como a Refinaria de Mataripe, em operação, e a de Cubatão, que está sendo construída, ou como a Frota Nacional de Petroleiros, para proporcionarem pleno rendimento, necessitam ser administrados como entidades industriais. A medida que novos empreendimentos forem sendo lançados e concluídos, a direção harmônica do conjunto das entidades e a administração de cada uma delas em particular terão de ser conduzidas necessariamente dentro de normas e com objetivos de natureza econômica que reclamam maior utilidade de ação do que é possível aos serviços públicos comuns.

A Sociedade por ações preconizadas no projeto de lei atenderá, por certo, a essa necessidade, haja vista a experiência da Companhia Siderúrgica Nacional, criada em 1940, e cujos benefícios para a economia do País e sucesso financeiro são incontestáveis.

Depende o êxito da empresa, obviamente, não só dos responsáveis pela sua direção, mas também da própria natureza da atividade a que ela se dedicará. O empreendimento visa principalmente à pesquisa e à produção de óleo mineral no território brasileiro. É, portanto, uma empresa de risco; mas o risco decorrente da própria pesquisa de jazidas minerais perde de significado, em parte, diante da envergadura do empreendimento, que possibilita levar a sua atividade a grandes e variadas áreas potencialmente petrolíferas, como as formações sedimentares do Nordeste, do Meio-Norte, da Amazônia e da bacia do Paraná.

Na Bahia, a existência do petróleo já é comprovada; na Amazônia há sedimentos de espessuras consideráveis, em que se encontraram amostras de óleo e gás; no Sul, a ocorrência de arenitos betuminosos prova a presença de petróleo, que a pesquisa e a perfuração trarão provavelmente para o âmbito comercial.

Incorporados à Sociedade, deverão organizar-se, ademais, empreendimentos imediatamente rentáveis, como os destinados à exploração das indústrias do transporte e do refino. Convenientemente orientados, esses empreendimentos assegurarão lucro às empresas associadas à Sociedade, ainda que demorem, acaso, as descobertas de novos campos de petróleo.

Cabe, porém, conciliar o instrumento flexível de execução do programa nacional do petróleo com a plena segurança de sua operação, indene de perigos. É fora de dúvida, como o demonstra a experiência internacional, que, em matéria de petróleo, o controle nacional é imprescindível. O Governo e o povo brasileiros desejam a cooperação da iniciativa estrangeira no desenvolvimento econômico do País, mas preferem reservar à iniciativa nacional o campo do petróleo, sabido que a tendência monopolística internacional dessa indústria é de molde a criar focos de atritos entre povos e entre governos. Fiel, pois, ao espírito nacionalista da vigente legislação do petróleo, será essa empresa genuinamente brasileira, com capital e administração nacionais.

O real perigo a evitar seria o de que, através da participação do capital privado, agissem grupos monopólicos de fonte estrangeira ou mesmo nacional. Tal possibilidade foi, no entanto, tecnicamente anulada no projeto, seja pelo sistema de limitação na subscrição de ações com voto, seja pela limitação de diretores eleitos pelo capital privado, bem como através da escolha, pelo Presidente da República, do presidente da Sociedade, com direito a veto, e dos demais diretores-executivos, e ainda pela necessidade de decreto para homologar qualquer reforma de estatutos; sem mencionar a esmagadora maioria dos poderes públicos no capital social, o próprio controle inicial da sua totalidade, e, finalmente, enorme difusão da parcela do capital, percentualmente limitada, em poder do público.

Com essas medidas, parece ao Governo que a gestão dos recursos financeiros a serem captados, conforme os projetos de lei, poderá processar-se da forma mais adequada à consecução dos objetivos em vista, através da Petróleo Brasileiro S. A., como projetada.

 

COORDENAÇÃO

Para enfrentar, em todos os aspectos e fases essenciais, problema tão vasto e complexo como o do petróleo, não há fugir à mobilização de meios – em recursos financeiros e organização – em escala proporcional à amplitude e extensão do próprio problema. Qualquer alternativa mais restrita seria inócua ou contraproducente.

Consciente dessa necessidade está o Governo, no entanto, alertado para as dificuldades de ordem técnica que um empreendimento dessa magnitude apresentará, praticamente, como problema de administração. Mas essas dificuldades são superáveis – outros países e outras empresas as enfrentaram com sucesso -, e embora não tenhamos ainda, realmente, experiência administrativa de direção e gerência de organizações congêneres desse porte não há por que duvidar da nossa capacidade de dirigir grandes empreendimentos industriais ou comerciais, sem deixá-los cair, fatalmente, nos males do gigantismo burocrático. Ainda que para evitar esses males, muito dependa o empreendimento dos homens que o dirigirem, as suas próprias bases, estrutura e diretrizes já foram concebidas com esse propósito. Para impor flexibilidade de atuação, foram previstas entidades subsidiárias e a possível articulação com empresas privadas, de modo a impedir que a Sociedade se torne demasiado compacta ou rígida, desenvolvendo-se, antes, com o caráter de uma estrutura de coordenação.

O próprio poder da direção da empresa, e, em particular, de seu presidente, está sujeito a um sistema de freios e contrapesos que, sem tornar sua autoridade menor que a responsabilidade, limita-a e equilibra-a, harmonicamente, com a do Conselho Nacional do Petróleo. A estrutura da empresa preconizada imprime unidade ao conjunto dos empreendimentos em marcha ou a serem por ela iniciados, de forma a assegurar a integração das atividades econômicas peculiares aos vários setores da indústria. Todas as grandes empresas de petróleo, privadas ou estatais, existentes nos outros países, mantêm sob direção unificada os serviços de pesquisa, produção, refino e transporte.

Dessa forma, a gestão coordenada das empresas industriais pertinentes ao petróleo, em que o poder público tenha participação preponderante, ficará assegurada com a execução da lei ora submetida, em projeto, à consideração do Congresso. Restará regular, porém, de modo geral, a gestão coordenada de outras empresas industriais do Estado ou paraestatais, instituindo normas condizentes com a sua finalidade econômica e dispondo sobre o seu funcionamento harmônico, inclusive em relação aos empreendimentos privados.

Com efeito, a indústria do petróleo, lançada em bases amplas, como o preconiza o projeto de lei, deve articular-se não só dentro de seu campo específico, mas também com outros setores da economia nacional. Ao Governo não escapou a necessidade dessa articulação e medidas já vêm sendo tomadas no sentido de estimular as atividades industriais relacionadas com as do petróleo, como as de produção de aço laminado, de tubos, de cimento, etc. O programa pertinente aos combustíveis líquidos minerais não se chocará, portanto, com os planos de inversões públicas em outros empreendimentos de natureza econômica; ao contrário, os completará, como urgia.

Por outro lado, de modo algum o programa contrariará a vigente política de estabilização do valor da moeda. Este ponto é de excepcional importância em face do vulto do empreendimento planejado, que se lançará justamente no momento em que o Governo está considerando planos para o reequipamento econômico do País, planos esses que exigirão esforços e sacrifícios, a fim de serem executados dentro de um regime de relativa estabilidade monetária.

O presente projeto consistirá essencialmente no aproveitamento de recursos de receita ordinária e na transferência, para investimentos de fundamental interesse nacional, de fundos relativamente improdutivos, em termos de benefícios para a Nação. Esse deslocamento da aplicação de fundos seria inevitável, pois é irrealístico supor que um empreendimento com as características do proposto possa realizar-se somente com a utilização de recursos ociosos. Para a existência de grande massa de fundos inativos seria necessária uma renda per capita mais alta, que exigisse menores oportunidades para investimentos especulativos e maiores incentivos para poupar do que existem atualmente. Por outro lado, dadas as características e tendências das classes que serão chamadas a prestar o seu concurso ao empreendimento, esses fundos, se permanecessem em seu poder, seriam, na sua quase totalidade, provavelmente utilizados na compra de artigos de consumo suntuário ou em atividades virtualmente improdutivas para o bem-estar coletivo. Assim, uma vez canalizadas essas disponibilidades para investimentos de alta produtividade potencial, seu efeito inflacionário a curto prazo ficará muito reduzido, enquanto, ao contrário, deverão constituir-se, no período subsequente, num fator de estabilização monetária, mediante o aumento direto e indireto da produção.

 

MAGNITUDE

Ao submeter à consideração do Congresso Nacional o projeto de lei assim fundamentado, cumpre-me reiterar a importância do problema de que ele se ocupa e cuja solução deve ser procurada com a mais enérgica diligência, para que não se comprometam a segurança e o desenvolvimento econômicos da Nação, em futuro próximo. Sem o firme propósito de levar a termo empreendimentos de vulto, mediante a aplicação de recursos financeiros consideráveis, o País poderá, dentro de um decênio, defrontar-se com sérios embaraços à defesa nacional e com a contingência de racionar o consumo de derivados do petróleo, em face da impossibilidade de adquirir no exterior os volumes de que necessita, cerceando, dessa maneira, seu desenvolvimento.

Como é sabido, a inelasticidade característica da procura internacional dos produtos primários e gêneros alimentícios, que constituem a massa das exportações brasileiras, conduz a um grave círculo vicioso. De um lado, em curto prazo, o simples aumento de volume das nossas exportações, a partir de certo ponto, poderá provocar uma queda dos seus preços proporcionalmente maior do que o aumento do volume, com uma redução total das receitas de exportação; por outro lado, se bem que a redução do volume deva, dentro de certos limites, produzir um aumento mais do que proporcional de preços, a partir desses limites, que são relativamente restritos, qualquer diminuição de volume reduzirá o valor total das exportações.

Essa característica da procura internacional de produtos primários em geral constitui, assim, empecilho de difícil transposição para o aumento de nosso poder de compra no exterior.

Considerando-se a elevada taxa de crescimento do consumo de produtos de petróleo no Brasil e a existência desse teto relativamente baixo para o aumento das exportações dos nossos produtos clássicos, somos obrigados a concluir que encontraremos brevemente grandes dificuldades em atender ao aumento das nossas importações daqueles produtos. Além dessas dificuldades, outras poderão sobrevir em virtude de déficits da produção estrangeira, quer resultantes do consumo mundial em ascensão, quer de perturbações de ordem política internacional.

No entanto, mesmo com otimismo e afastando estas duas últimas hipóteses, parece óbvio que estamos caminhando certamente para um impasse, devido à desproporção existente entre a possibilidade de aumento do nosso poder de compra no exterior e do aumento substancialmente maior do valor dos produtos de petróleo consumidos no Brasil. A não ser que tomemos agora as providências indispensáveis, nas dimensões adequadas, terá o País que considerar em futuro não muito afastado a necessidade do racionamento de combustíveis líquidos e do uso de substitutivos, voltando possivelmente a experiências penosas, como as que, numa menor escala de consumo, fomos compelidos a adotar durante a guerra passada. Em qualquer caso, para que o desenvolvimento econômico do País não se interrompa ou se reduza, a pesquisa e a extração do óleo mineral se afiguram como a medida lógica e mais promissora para a solução do problema.

Qualquer cooperação a ser pedida nos próximos anos ao público consumidor dos produtos do petróleo redundará, em última análise, em seu proveito, pois os pequenos sacrifícios agora exigidos não se poderão de forma alguma comparar com os que advirão se tivermos de voltar permanentemente ao sistema de racionamento.

O programa de trabalhos pertinentes ao petróleo constitui, portanto, um conjunto de medidas da maior importância para a solução dos problemas básicos do País. Surge depois do Plano do Carvão Nacional, ora em estudo no Congresso, e deverá completar-se com outros projetos de leis pertinentes aos demais setores do aproveitamento das fontes de energia de que dispõe o País. Nos termos da minha primeira Mensagem anual ao Congresso, o Governo promoverá as medidas legislativas necessárias não só ao aproveitamento desses recursos, mas também à coordenação da política oficial de energia, com o fim de assegurar o desenvolvimento harmônico das atividades dependentes do balanço energético nacional. Parece ao Governo indispensável a aprovação do projeto referente às fontes tributárias, bem como a do referente à criação da sociedade mista Petróleo Brasileiro S.A., no menor tempo possível, como é imperioso face à conjuntura internacional e às necessidades do País, naturalmente sem prejuízo do valioso concurso com que, para sua maior eficiência, contribuirão os debates no Congresso Nacional.

 

Texto publicado na Hora do Povo – Edições 3.189, 3.190, 3.191

Euzébio: a derrota dos entreguistas na luta pela criação da Petrobrás

Publicamos abaixo, entrevista feita com Euzébio Rocha, deputado autor da lei 2.004, que criou a Petrobrás instituindo o monopólio estatal do petróleo.

Euzébio participou do premiado documentário “Pega Ladrão”, produzido pelo CPC-UMES.

Os entrevistadores são Plínio de Abreu Ramos e Margareth Guimarães Martins, e o artigo foi publicado na Hora do Povo, edições 3.198 e 3.199. Confira o artigo abaixo:

 

Nos últimos dias, estamos vendo alguns fenômenos espantosos.

Alguns, na mídia, chegaram à conclusão de que a Petrobrás está sendo terrivelmente sacrificada por ter, pela lei, uma participação mínima de 30% no pré-sal e ser a operadora única. Zelosos pelo destino de nossa empresa, querem retirar dela esse sacrifício para dar-lhe mais saúde, terrivelmente afetada pelas imensas reservas de petróleo que descobriu. O remédio, dizem eles, não pode ser outro, senão entregar o petróleo que a nossa empresa descobriu às multinacionais. Aí, sim, a Petrobrás será um titã de tanta saúde.

É o primeiro caso de uma companhia de petróleo que tem a sua saúde afetada porque achou uma cornucópia de petróleo. Por que será que isso só acontece no Brasil.

Um elemento – que outrora jactava-se de nacionalista, agora rebaixado à prostituição entreguista mais rampeira – declarou que foi muito justo proteger nosso petróleo do cartel das petro-multinacionais no passado, quando não havia petróleo nem Petrobrás, ou quando esta não havia ainda descoberto reservas consideráveis. Agora, que a Petrobrás é uma da maiores companhias da Terra e já descobriu mais de 60 bilhões de barris em reservas, é hora de entregar o petróleo para o cartel.

Realmente, antes não havia o que entregar. Por isso é que o elemento era a favor de proteger o que não havia…

Outros fazem cálculos e mais cálculos para provar que vamos ficar com 70%, 75%, 80% ou 85% (percentagens muito rigorosas, como o leitor pode constatar) “da renda” de Libra (seja lá o que isso queira dizer) através de entregarmos a maior parte do lucro em óleo às companhias estrangeiras. Dentro em breve esses calculistas receberão a medalha Fields – apelidada “o prêmio Nobel da matemática” – pelas sensacionais descobertas que revolucionaram a tabuada e provaram que 70% é igual a 85% (ou, mais sensacional ainda, que 41,65% de 45% pode ser qualquer coisa menos 18,74%, resultado a que somente os sectários das quatro operações podem chegar).

Paremos por aqui, leitores, porque essas novas descobertas não são tão novas assim.

Com a palavra, o criador da lei 2004, que instituiu o monopólio estatal do petróleo. O depoimento de Euzébio Rocha que condensamos, nesta e na próxima edição, não é o mesmo que citamos na edição passada: em 1987, Euzébio concedeu uma segunda entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Diferente da primeira, de 1984, que teve como tema a política em geral durante a vigência da Constituinte de 1946, esta foi centrada especificamente na campanha pelo controle nacional do nosso petróleo – pela criação da Petrobrás – pois fazia parte do Projeto Memória da Petrobras.

Os excelentes entrevistadores foram Plínio de Abreu Ramos e Margareth Guimarães Martins. Mantivemos a forma de perguntas e respostas, embora tenhamos resumido tanto as primeiras quanto as segundas.

 

C.L.

 

P – Eusébio, como se deu inicialmente o seu envolvimento com o problema brasileiro do petróleo?

Euzébio Rocha – Meu envolvimento com a questão do petróleo se deu mais ou menos quando cheguei na Constituinte. Eleito deputado federal e bastante jovem, o que foi há muito tempo, consequentemente…

 

P – Você era o mais novo constituinte.

E.R. – É, estava com 26 anos. Comecei a examinar o problema energético e fiquei horrorizado ao verificar que mais ou menos toda a base das fontes energéticas do país era lenha, que contribuía com cerca de 78%. Então me pareceu imediatamente que o país não teria condições de se desenvolver sem resolver o problema energético. Daí eu me voltei para a questão energética.

O interessante é que minha primeira preocupação não foi diretamente com o petróleo. Minha primeira preocupação foi com o problema das areias monazíticas, que eu sabia que continham o tório, porque havia feito estudos a respeito. Então fiz um projeto proibindo a exportação de areias monazíticas, que deu um show internacional: o Departamento de Estado mandou um pedido de informação, porque o projeto, proibindo a exportação de areias monazíticas, comprometia a utilização de tório, o que prejudicava a política internacional dos Estados Unidos. Cheguei até a receber um adido da embaixada para o setor de minério, que veio me dizer que o meu projeto acabava tendo o sentido de uma dificuldade para o mundo ocidental, porque só os Estados Unidos tinham condições de desenvolvimento da energia nuclear.

Foi quando esclareci a ele que não, que eu achava que os Estados Unidos não podiam assumir sozinhos a responsabilidade da defesa da democracia, que o Brasil deveria participar disso. Então eu tinha aberto uma válvula do meu projeto, que era a permissão da exportação em troca de absorção de tecnologia nuclear, porque achava que o país devia dominar também a tecnologia nuclear como condição para resolver o problema energético. Tive um convite para ir aos Estados Unidos, mas parece que depois, como fiquei muito intransigente no projeto, que acabou aprovado, eu não fui aos Estados Unidos. Mas o projeto foi aprovado. [risos]

Contei surpreendentemente com o apoio de um destacado líder industrial, que era o Simonsen, o bom, evidente, Simonsen, o bom; o Roberto Simonsen, que chegou a ser senador. Sem confusões de nomes, porque ele era um homem íntegro, nacionalista. [risos] Vamos deixar sem confusão nenhuma: era Simonsen, o bom. Ele me deu uma cobertura muito grande, e eu encontrei também no Estado-Maior do Exército um apoio muito grande.

 

P – Naquelas eleições de 1944 no Clube Militar, o problema do petróleo já foi ventilado durante a campanha?

E.R. – É evidente que já. A questão do petróleo já se colocava sobretudo pela ação do general Horta Barbosa junto com o general Góis Monteiro e com outros generais…

 

P – Estevão Leitão de Carvalho.

E.R. – Leitão de Carvalho e outros generais já colocavam o problema do petróleo como fundamental para a segurança nacional e para o desenvolvimento do país. Eu não tenho dúvida que quem levou o problema para dentro das Forças Armadas foi o general Horta Barbosa, que conseguiu imediatamente o apoio do Góis Monteiro e do Dutra. O Dutra se ligava a este grupo que considerava que o Brasil não deveria fazer concessões sobre o petróleo. Indiscutivelmente.

 

P – A coisa explodiu de fato dentro da Constituinte?

E.R. – É, explodiu dentro da Constituinte, e depois com o Estatuto do Petróleo. Evidentemente, havia na Constituinte um conflito de tendências. Homens como o presidente Artur Bernardes, como [Domingos] Velasco, eu e outros representávamos um grupo que achava que minério não dá segunda safra e que considerava fundamental uma política prudente de minério, em que as exportações não comprometessem nem no presente nem no futuro o interesse industrial do país. E esse grupo lutou de uma maneira muito intensa.

Entretanto, houve um lobby muito importante, que foi o lobby do Schoppel. Paul Schoppel hospedou-se aqui no hotel Glória, e do hotel Glória ele tinha telefone direto com a embaixada americana e com vários deputados. E representava realmente um desejo norte-americano de abrir a questão aos grupos estrangeiros. Aí é que realmente se deu uma luta muito intensa, uma luta muito grande em torno da tese de que a exploração de petróleo deveria ser feita só por brasileiros ou por empresas constituídas por brasileiros.

Entretanto, um deputado de quem eu vou dar somente as iniciais, por uma questão de elegância, um deputado da UDN, Ernâni Sátiro [risos], apresentou – acho que por coincidência ou por influência de sessão espírita, não sei, ele apresentou coincidentemente uma emenda que era exatamente a emenda que Schoppel desejava: uma emenda que alterava aquela linha nacionalista anterior do presidente Getúlio Vargas.

 

P – O artigo 153.

E.R. – O artigo 153, exatamente. A emenda transformou-se no artigo 153 da Constituição de 46. E isto foi de uma importância decisiva na colocação do problema da participação das empresas organizadas no Brasil. O problema básico foi realmente esse: o da emenda das sociedades organizadas no Brasil.

 

P – Ou empresas organizadas no país.

E.R. – Ou empresas organizadas no país, diz textualmente isso. A emenda foi apresentada por Ernâni Sátiro e denunciada depois pelo presidente Bernardes, pelo [senador Domingos] Velasco e por mim como uma intromissão de grupos estrangeiros na elaboração da Carta constitucional. E abria realmente aos grupos estrangeiros a exploração das riquezas minerais do país.

 

P – Nós fizemos uma entrevista com o Drault Ernanny e ele nos contou esse episódio um pouco diferente. Disse ele que a expressão “ou empresas organizadas no país” foi acrescentada, no final, quando a emenda tinha chegado na Comissão de Redação da Câmara, e ninguém sabe realmente quem foi que acrescentou.

E.R. – Foi o Ernâni Sátiro. Eu me lembro bem, eu me recordo bem disso: a emenda foi do Ernâni Sátiro, não tenho dúvida nenhuma. Foi realmente uma posição do Ernâni Sátiro.

 

P – O Drault Ernanny nos contou também que o Melo Viana reuniu os líderes dos partidos para pedir que silenciassem a respeito do assunto e o Bernardes disse que não silenciaria.

E. R. – É lógico. O Bernardes teve uma posição muito clara nesse sentido, uma posição muito correta, uma posição muito corajosa. Acho que isso foi indiscutível.

 

P – O senhor falou do lobby do capital estrangeiro. Esse lobby chegou a procurar pessoalmente algum dos deputados do grupo nacionalista?

E.R. – Acho que não. Eles eram bastante inteligentes para saber que era uma perda de tempo e até um comprometimento.

 

P – Agora, esse dispositivo não é novo, porque ele repetiu o texto da Constituição de 34.

E.R. – Repetiu o texto da Constituição de 34, mas contrariou a de 37. A Carta de 37 estabelecia nesse sentido a participação de empresas constituídas por brasileiros. Então mantinha realmente a tese nacionalista na sua pureza e na sua exatidão.

 

P – Quer dizer que o senhor considera que houve um retrocesso em relação à Carta de 37?

E.R. – Houve indiscutivelmente um retrocesso nesse sentido. Houve um grande retrocesso. E o surpreendente é que o sr. Schoppel acabou condecorado com a Cruz do Cruzeiro do Sul em 5 de novembro de 1946, por sugestão do sr. João Neves da Fontoura. [risos] Mas a emenda do Ernâni Sátiro é exatamente a seguinte: “As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros” – acho que o patriotismo está completamente satisfeito – “ou empresas organizadas no país, assegurada ao proprietário preferência quanto à exploração”. Esta redação prevaleceu na Constituição de 1946 e equivaleu ao artigo 119 da Constituição de 1934.

 

P – O senhor se lembra qual era a diferença entre autorização e concessão?

E.R. – Bom, eu tenho a impressão que o problema de autorização e concessão é tão somente uma questão de um estrutura de direito. A autorização é mais incondicional, quer dizer, você autoriza, e evidentemente essa autorização fica um pouco ao arbítrio da autoridade. Ao passo que a concessão, não. Você entrega a concessão por 30, 20, 25 anos. Acho que essa é a grande diferença.

 

P – O clima foi muito agitado?

E.R. – Ah, foi. Disso você não tenha dúvida. Porque o mínimo que se disse foi que isso era uma traição ao país, e que ofendia a todos os constituintes, ofendia a todos os brasileiros o fato de haver um constituinte estrangeiro, por interesse do lobby das empresas petrolíferas, redigindo a Constituição brasileira.

Na fase do grande trabalho do Horta Barbosa dentro do Exército, quando o dr. Getúlio baixou dois decretos-leis fundamentais, um deles, o Decreto-lei 366, de 11 de abril de 1938, que tornou a atividade privativa de brasileiro nato. Isso é de muita importância, porque nesse momento a Venezuela abria o seu petróleo aos grupos estrangeiros, os ditadores latino-americanos entregavam as suas riquezas aos grupos internacionais, e o presidente Getúlio Vargas, mostrando uma formação de estadista, tornava privativa de brasileiro nato a exploração de petróleo, impossibilitando a participação estrangeira. E em seguida ao Decreto 366, em 29 de abril de 1938 ele criou o Conselho Nacional do Petróleo, cujo primeiro presidente foi realmente o Horta Barbosa.

Então temos esta fase e chegamos em 45; Getúlio caiu e Linhares assumiu. A queda do Getúlio, em 45, a gente fica sem entender. Porque em 1930 o Brasil era um país superendividado, sem dinheiro para importar o mínimo necessário. E exatamente em 45, o Brasil tinha uma estabilidade monetária muito grande, tinha uma das moedas mais fortes do mundo, tinha-se conseguido o início de Volta Redonda, quer dizer, o país tinha toda essa estrutura.

É verdade que tinha ferido os interesses da United States Steel e de vários grupos americanos.

Mas exatamente nessa ocasião Getúlio foi destituído. E um dos primeiros atos do Linhares foi exatamente revogar a lei anti-truste, a lei malaia, como chamavam, e abrir a perspectiva para as refinarias particulares.

Foi quando o Dutra fez o Decreto 9.881 criando a Refinaria Nacional de Petróleo de Mataripe, que produzia dois mil barris diários, mas que teve uma importância muito grande. Com essa medida do Dutra, pode-se sentir a alternância dos problemas, porque quem estava no Conselho Nacional nessa ocasião era o Barreto…

 

P – João Carlos Barreto.

E.R. – … que sustentava a participação de grupos estrangeiros no setor petrolífero. Então eles fecharam os olhos completamente a essa participação. Tenho a impressão que isto é o que eu poderia dar a vocês de elementos básicos para a luta que nós travamos nessa parte toda até 48.

Depois veio a proposta do Dutra. Veja você a questão do Estatuto do Petróleo: a mensagem nº 61, de 31 de janeiro de 1948, e a nº 62, de 4 de fevereiro de 1948. O presidente Dutra mandou o Estatuto do Petróleo mais ou menos como Pilatos, porque na mensagem ele dizia: “Significativas correntes nacionais consideram importante a participação do capital estrangeiro. Assunto de tamanha relevância não devo resolver sozinho. Torna-se necessário a participação do Congresso brasileiro para tal decisão”. E mandou o Estatuto.

Foi aí que, pela primeira vez, eu, que tinha apoiado o Dutra para a Presidência da República logo de início, fiz um discurso contra ele. E recebi um telefonema do Gabriel Monteiro da Silva reclamando: “Mas, como? Você é amigo do Dutra e faz um discurso contra ele!”. Eu disse: “Não, eu não fiz contra ele. Fiz contra o Estatuto do Petróleo”. “Mas ele ficou muito sentido”, essa questão toda.

O Mário Bittencourt Sampaio conseguiu introduzir-se – ele era muito amigo do Dutra, tanto que foi presidente do Plano Salte, e era um homem de muito boa formação nacionalista. Eu sei que pouco a pouco o Dutra foi-se convencendo que o Estatuto não convinha aos interesses nacionais. O fato é que o Estatuto ficou congelado e acabou arquivado.

 

P – Mas a maioria dutrista, o PSD e tal e os partidos coligados, não pediam à mesa a inclusão na ordem do dia?

E.R. – Pedir, eles tentavam pedir, mas nós criávamos as maiores dificuldades. Eu mesmo levei o projeto para minha casa e fiquei com ele três meses. Nós criávamos todas as dificuldades. Até que chegou o momento em que o próprio Dutra mandou, através do Plano Salte, a construção da Refinaria de Cubatão.

 

P – Mas o Estatuto chegou a passar pela Comissão de Constituição e Justiça e pela…

E.R. – Passou, passou por várias comissões. Mas foi passando, foi passando e passou.

 

P – O relator era o Costa Neto.

E.R. – Exatamente, o relator era o Costa Neto, de São Paulo. O fato é que a Refinaria de Cubatão foi uma grande vitória nossa, porque 45 mil barris diários eram realmente alguma coisa séria. E nisto há um fato muito interessante: o Mário Bittencourt Sampaio foi mandado à França para utilizar os nossos recursos congelados lá na construção da refinaria.

O Mário foi para a França, conversou com o ministro francês e o ministro disse a ele: “Olha, realmente nós temos os recursos, estamos devendo ao Brasil e vamos pagar. Mas infelizmente não podemos fazê-lo dando assistência à construção de uma refinaria. Porque o embaixador americano disse que se a França já está tão forte que pode ajudar o Brasil a construir refinarias para estabelecer concorrência com as empresas americanas, então não está precisando mais de ajuda do Plano Marshall”. Em virtude disso, foi vetado o fornecimento desses recursos à refinaria.

O Mário Bittencourt Sampaio pediu então ao embaixador que fizesse um coquetel de despedida. E, nesse coquetel, o embaixador americano perguntou diretamente a ele: “o senhor então viaja amanhã para o Brasil?”. Ele disse: “não, amanhã eu vou para a Tchecoslováquia. Tenho ordens do presidente Dutra de que o Brasil tem que construir a sua refinaria de petróleo, e a Tchecoslováquia tem condições técnicas de nos oferecer a construção da refinaria. Então eu vou para a Tchecoslováquia”.

Surpreendentemente, no dia seguinte, o ministro francês telefonou dizendo que tinha havido uma reconsideração e que a França ia oferecer recursos para construirmos. Você vê que diferença dos homens, dos Delfins Netos atuais, etc., etc.

 

P – Em 1947, quando o Centro Acadêmico 11 de Agosto lançou as primeiras torres de petróleo no Largo de são Francisco, em apoio à tese Horta Barbosa, você já estava ligado às campanhas de rua?

EUZÉBIO ROCHA – Já.

 

P – Nessa época você já se ligava às campanhas populares?

E.R. – Já, e até anteriormente. Logo que o Estatuto [do Petróleo] chegou, nós iniciamos dentro da Câmara uma luta contra ele, que precedeu a luta de rua. Imediatamente depois, o [general] Horta começa a tomar posição no Clube Militar, e houve as duas grandes conferências: a primeira foi do Juarez [Távora] defendendo a participação dos grupos estrangeiros, e depois a do Horta, combatendo. Então a luta veio do Clube Militar e depois se projetou para a União Nacional dos Estudantes, para os trabalhadores e até para setores de federações de indústrias. A de Minas, por exemplo, teve uma posição muito boa logo no início, favorável ao monopólio estatal do petróleo. Isso foi criando uma consciência nacional.

 

P – Do Congresso é que extrapolou para a área militar e a área estudantil.

E.R. – Exatamente isso. Assim que o Estatuto chegou, recebeu o combate de vários deputados. O presidente Bernardes, eu, [Domingos] Velasco, e outros, combatemos. E o Horta Barbosa fez o grande discurso no Clube Militar, praticamente em resposta ao Juarez Távora. De modo que o Congresso teve realmente uma participação muito importante no combate ao Estatuto do Petróleo.

 

P – Como se dava o relacionamento entre a área parlamentar e a área militar?

E.R. – Eu tive um contato muito grande com a área militar mais moça, porque fui aluno do Colégio Militar no Rio de Janeiro, e o pessoal todo que seguiu a carreira manteve muita amizade comigo. Depois passei a ter um grande contato com o Horta Barbosa, de quem me tornei muito amigo. O entrosamento era tão grande que eu fiz duas conferências no Clube Militar defendendo o monopólio estatal do petróleo.

Ao longo da minha vida, tenho tido que combater alguns militares. Mas quando combato o general Geisel, combato pelos erros cometidos na Petrobrás e na Presidência da República. Eu combato o general fulano de tal, mas não a instituição militar, porque ela apresenta em si muitos elementos identificados… Como a sociedade civil. Vamos dizer que a sociedade civil não tem um Roberto Campos? Então, dentro da área militar pode haver alguns Robertos Campos! O grupo nacionalista do Exército cresceu muito e se entrosou com o grupo nacionalista [civil]. Lógico que com divergências muito grandes, mas nós fizemos da luta pelo monopólio estatal do petróleo o denominador comum! “É em torno disto que nós estamos. O resto, depois a gente discorda, segue outros rumos. Nós vamos lutar por isso. Isto é o fundamental”.

 

P – Não houve conflito de convivência entre o meio político, o meio estudantil e o meio militar em torno desse denominador comum a que você se refere?

E.R. – Não, não houve. Houve discordâncias. Por exemplo: evidentemente eu não concordava com o Juarez Távora. [risos] Tive discordâncias violentas com o Juarez Távora. Eu me recordo de um programa de rádio… Era habitual de quando em quando a gente ir para o rádio discordar, dávamos aqueles socos na mesa, aquelas coisas todas, e eu levava sempre muito argumento. Uma vez eu fiquei surpreendido, porque quando abri o Jornal do Brasil tinha uma página toda em que estava escrito o seguinte: “O petróleo debaixo da terra não traz benefícios a povo nenhum”. [No] Estado de S. Paulo, a mesma coisa. [No] Correio da Manhã, que ainda existia, uma página inteira! Eu digo: “Então o debate de hoje tem outro sentido. Acho que os trustes querem realmente fazer disso um negócio muito sério”.

Procurei apressadamente reunir dados – resolvi pegar dados estatísticos da ONU sobre a Venezuela. E tive um grande debate com o general Juarez Távora a respeito. E a tantas, eu disse ao general Juarez Távora: “General, a Venezuela é um grande país, não é? Felizmente seu povo vive uma vida boa, razoável”.

Então ele deu um daqueles seus socos típicos na mesa e disse: “Deputado, o senhor esta completamente errado! Eu estive na Venezuela! O povo vive numa miséria absoluta!”.

“Então, general, quer dizer que o petróleo debaixo da terra e na mão da Standard não traz benefício a povo nenhum!” [risos]

No dia seguinte os jornais não deram quase noticia do nosso debate. [risos]

 

P – Mas há um detalhe importante nesse processo todo, que é o seguinte: inicialmente o truste insistia na inexistência de petróleo no Brasil.

E.R. – Exatamente isso.

 

P – Depois, numa segunda etapa, ele passou para essa posição que você está falando: o petróleo debaixo da terra não serve a ninguém. Então, como não tínhamos recursos, na suposição deles, e eles tinham…

E. R. – Como não tínhamos tecnologia, segundo diziam Juarez e os trustes…

 

P – Pois é, mas há uma mudança de estratégia muito grande: primeiro, não existia; depois, passou a existir, mas havia falta de tecnologia, havia falta de recursos, que só eles tinham, então só eles podiam tirar. Como se processou essa passagem de uma fase estratégica para outra?

E.R. – Muito fácil! Porque depois que surgiu o petróleo na Bahia, depois que os poços começaram a ser perfurados pelo Conselho Nacional do Petróleo, finalmente, quando o Conselho Nacional terminou, atingimos mais ou menos uma produção de 2.500 ou 2.700 barris diários, se não me engano, em torno disso. Quer dizer, se estávamos produzindo 2.500 barris, não era possível continuar com a mesma tese de que não havia petróleo! Os trustes são safados, mas não são burros. São desonestos, mas não são burros. Então compreenderam que a estratégia tinha que ser mudada. Não podiam dizer: “Não há petróleo no Brasil” – como tentaram fazer sempre. Passaram a dizer: “Há petróleo mas… vocês não têm recursos, vocês não têm tecnologia” – era o argumento deles. Eles não eram sociedades beneméritas e só aplicavam com muitas vantagens. E estas vantagens poderiam ficar para o nosso povo lutar contra a miséria.

 

P – Os defensores do Estatuto usavam o argumento da importância da transferência de tecnologia devido à nossa defasagem em relação aos países estrangeiros. O que os nacionalistas previam fazer para diminuir a defasagem?

E.R. – Primeiro: quando se conseguiu fazer a refinaria de Mataripe, que se pagou no primeiro ano, nós provamos ao Brasil que a atividade petrolífera era autofinanciável. E com relação à questão da tecnologia, nós mostrávamos que havia no mercado mundial inúmeros técnicos de geologia que, se nós pagássemos bem, deixariam os seus empregos, porque eles têm uma formação capitalista, estão onde pagam melhor. Então, teríamos esses elementos que formariam técnicos nacionais. Nós mostrávamos a evidência de que podíamos resolver o problema de uma forma absolutamente nacional! Eu achei que isso foi muito importante. Nós evoluímos e conseguimos convencer. Tanto que a tendência, pode ver qual foi: acabou se fazendo a refinaria de Cubatão.

 

P – Era aquela tese do general Horta Barbosa, então, de que os lucros de uma refinaria seriam aplicados na pesquisa, que essa era a maneira mais prática de se explorar o petróleo de uma forma autônoma, não é isso?

E.R. – Exatamente, lógico. A atividade petrolífera é indiscutivelmente autofinanciável e, além de ser autofinanciável, gera grandes excedentes econômicos.

Vejam o seguinte: as recentes ocorrências de Marlim e daquela área próxima dão como reservas recuperáveis em torno de três milhões e meio de barris. Quer dizer, mais do que nossas reservas atuais. A Petrobrás gastou para localizar esse número de barris 250 milhões de dólares. Então é uma mentira se dizer que a atividade petrolífera é de grande risco. Porque hoje, através dos processos de magnometria, sismometria, geofísica, geologia, você tem condições de localização muito maiores. De modo que é por isso que a gente mostra que não é verdade. E se você acha petróleo… petróleo é dólar! Localizado o petróleo, você não tem mais problema financeiro.

 

P – E a respeito da criação do Centro do Petróleo?

E.R. – O Centro de Defesa…

 

P – Centro de Estudos e Defesa do Petróleo.

E.R. – … e da Economia Nacional, depois foi acrescentado, exerceu uma função fundamental. Dentro da campanha, eu citaria o Jornal de Debates, que teve uma função histórica muito importante, porque concentrava realmente as informações. E tínhamos um jornal que exerceu uma influência muito grande, que foi o Diário de Notícias. O Diário de Notícias tinha uma posição nacionalista. Eu me lembro que uma vez, almoçando com o Dantas [Orlando Ribeiro Dantas, dono do “Diário de Notícias”] e com o jornalista que escrevia sempre…

 

P. – O Rafael.

E. R. – … o Rafael Correia de Oliveira, o Rafael brincou com o Dantas e disse: “Quando é que você vai me dar aumento?”. O Dantas respondeu: “Você é o jornalista mais bem pago do Brasil. Porque por sua culpa eu perdi toda a publicidade da embaixada americana.” [risos] Eu realmente me lembro bem disso. E recordo mais ainda: quando houve aquela luta contra a Última Hora, que foi feita aquela campanha contra a Última Hora e foi instituída uma comissão parlamentar de inquérito, o dr. Getúlio me chamou e lembrou que a Última Hora era o único jornal que o defendia. E eu então disse ao dr. Getúlio que gostaria de pensar um pouco para lhe dar uma resposta. E sustentei que, em vez de tentar fazer qualquer defesa da Última Hora, era melhor que eu fizesse uma emenda, ao projeto da criação da comissão parlamentar de inquérito, propondo que se apurasse não só as relações do governo com a Última Hora, mas também a relação de toda a imprensa com grupos econômicos internacionais.

A minha proposta deu um editorial do Dantas congratulando-se comigo, dizendo que separava-se de mim por um abismo, porque eu era amigo do ditador e ele inimigo irreconciliável, mas que dessa vez eu tinha razão [risos]. Era preciso distinguir realmente a imprensa livre, como o Diário de Noticias, que tinha sido prejudicado, essa questão toda, e a outra imprensa que se vendia aos grupos internacionais e defendia os interesses antinacionais. De modo que é muito interessante essa contribuição do Dantas, mostrando o problema da luta ao nível da imprensa e a importância que o Diário de Notícias e o Centro de Defesa do Petróleo exerceram.

Houve, inclusive, o grande congresso realizado na ABI, que deu talvez o maior impacto da Campanha do Petróleo. Porque, com a maior das boas vontades e pureza, ao encerrar o congresso, alguém sugeriu que levássemos as flores que ornamentavam a mesa ao marechal Floriano Peixoto, que havia dito que receberia a esquadra inglesa à bala.

Muita gente acha que isso foi prosopopeia do Floriano Peixoto. Eu acho que não foi. Hoje as ilhas Malvinas estão ocupadas pela Inglaterra, e a nossa ilha não foi ocupada. Por quê? Será que foi só a frase dele? Não. Ele soube o que fez! Eu presumo que ele agiu como estadista. Porque é evidente que a esquadra inglesa poderia facilmente derrotar o Brasil, mas ocupar o Brasil, não. E os interesses financeiros que a Inglaterra iria perder com uma guerra dessas? Não compensava ocupar a ilha! Então a resistência de Floriano salvou o Brasil de ter um problema como a Argentina tem hoje. Consequentemente, é preciso que se faça justiça ao presidente Floriano! Eu não tenho visto uma análise dentro desse prisma, que eu acho fundamental que se faça! É daí que nós vamos criar uma consciência nacional e vamos mostrar que este país não é quintal de ninguém, que temos condições de criar realmente uma nação livre, uma nação liberta, uma nação que possa construir um destino não só para si, como para o Terceiro Mundo, e que possa ser a nação líder de uma luta de renovação.

Por isso mesmo nós fomos depositar as flores. Mas os grupos econômicos internacionais, que não vêm carimbados, manipularam a polícia, e a polícia começou a espancar os trabalhadores que estavam depositando as flores. Só não espancaram os deputados nem os generais, porque seria mais humilhante. E houve realmente incidentes. Eu mesmo tive que advertir um delegado, que puxou um revólver para mim, mas não teve coragem de atirar. Repelimos violentamente esta situação, até que o capitão Horta Barbosa, filho do general, trouxe o pessoal do Exército e pôs a polícia para correr. Eu estava inclusive com os olhos vermelhos do gás lacrimogêneo e com um galo enorme. Mas mesmo assim fui ao pronto-socorro, onde estava sendo atendida gente que queriam prender em seguida. Foi quando telefonei para o [ministro da Justiça] Adroaldo Mesquita – aliás, foi a senhora dele que atendeu – às três horas da manhã e consegui que afastassem a polícia. No dia seguinte, o fato sacudiu a Câmara. Então a Campanha do Petróleo galvanizou o país de Norte a Sul, em parte por causa desse incidente, no qual houve uma participação do Centro de Defesa do Petróleo.

 

P – O senhor falou sobre uma coisa interessante, que foram as manifestações públicas organizadas pelo Centro. Existia alguma composição? Eram manifestações de trabalhadores, estudantes…? Qual era a composição?

E.R. – Eu tenho a impressão que a campanha foi crescendo e empolgando vários setores. Evidentemente tinha uma base grande de trabalhadores. Mas uma base estudantil imensa! Uma base estudantil muito grande!

 

P – Era predominante?

E.R. – Era. Havia uma base estudantil muito grande. Tínhamos até manifestações de federações de indústrias apoiando o monopólio estatal do petróleo. E de guarnições militares! Oitenta e cinco por cento da guarnição militar do Rio de Janeiro manifestaram-se pelo monopólio estatal do petróleo em telegrama ao general Horta Barbosa! De modo que foi um movimento que, pouco a pouco, foi empolgando a nação toda. Não poderíamos dizer que era só trabalhador, só de estudante. Realmente a nação foi-se empolgando, se empolgando, e foi isso que fez o Estatuto ficar arquivado. Foi essa pressão. Porque só o povo mobilizado e organizado constitui uma força capaz de conter as pressões externas dos trustes.

 

P – Há uma outra particularidade muito interessante: a quantidade imensa de câmaras municipais que se manifestaram a favor do monopólio estatal.

E.R. – Exatamente isso! eu, por exemplo, adotei por critério, sempre que fazia um pronunciamento, mandava-o para todas as câmaras municipais do Brasil, porque tínhamos franquia postal. O único sacrifício era o sacrifício da impressão, que não ficava cara porque, ao falar na Câmara, já estava impresso. Então eu utilizava aquela impressão feita no Diário [Oficial] para imprimir milhares de pronunciamentos e mandar para todas as câmaras municipais, para vários sindicatos etc. Eu adotava muito, em minha estrutura de participação, todos os meus companheiros, amigos, que faziam trabalhos de várias naturezas: um datilografava, outro ajudava, outro ia ao correio… Tínhamos, assim, uma equipe que fazia isso sistematicamente. Tenho a impressão que o Centro muitas vezes também fez isso. Então acho que isso criou uma situação, porque eu me lembro que muito deputado chegava perto de mim e dizia: “Olha que interessante, Euzébio. Eu estive em tal município, leram lá o seu discurso e todo mundo lá é nacionalista, também está com o petróleo! Eu também estou com vocês, ouviram?”. Quem ia ficar contra os vereadores? Isso era um argumento muito convincente e criou realmente uma estrutura de nós esmagarmos o Estatuto do Petróleo.

 

P – O problema petrolífero em si teve alguma influência, alguma determinação no resultado das eleições de 50?

E.R. – Creio que sim. Eu não diria que foi ele que elegeu o Getúlio, de jeito nenhum. O dr. Getúlio tinha por tradição uma luta nacionalista – Volta Redonda, Lei de Remessa de Lucros, denúncia do esmagamento dos interesses nacionais, posição corajosa quando a United States Steel, procurou impedir a construção de Volta Redonda, que ele foi para o navio capitânia do Brasil e deu aquela entrevista, que o Sumner Wells [subsecretário de Estado de Roosevelt] achou que ele ia virar a mão para o lado da direita fascista e disse: “Que quer o enigma do Sul?”. E Roosevelt, muito mais inteligente que Sumner Wells, no dia seguinte, considerou a construção de Volta Redonda prioridade dos Estados Unidos. E aí conciliaram-se os interesses, o Brasil tomou posição na guerra e as tropas saíram de Natal para vencer.

Quer dizer, Getúlio era um patriota. E essa imagem de Getúlio nacionalista-patriota casou-se com a Campanha do Petróleo. Se tivesse havido um conflito, não sei o que poderia acontecer. O campo das hipóteses, eu tenho muito medo de ficar nele. Mas posso garantir que, como havia um casamento, desse casamento proliferou a vontade nacional. Eu acho que a Campanha do Petróleo foi um coeficiente, porque Getúlio era favorável ao monopólio estatal do petróleo. E Eduardo Gomes, ao contrário; o estatuto da UDN era textualmente favorável à participação de grupos estrangeiros na exploração do petróleo.

O Romanceiro da Inconfidência

CECÍLIA MEIRELES

(trechos)

 

A obra, escrita por Cecília Meireles em 1940 e publicada em 1953, apresenta-se estruturada em 85 romances, além de outros poemas, como os que retratam os cenários. Total de 95 textos.

Caracteriza-se como uma obra lírica, de reflexão, mas com um contexto épico, narrativo, firmemente apoiado no fato histórico.

O tema é a primeira tentativa de libertação do Brasil, ocorrida em Minas Gerais – contada dos inícios da colonização no século 17 até a Inconfidência Mineira no século 18.

 

ROMANCE XXIV OU DA BANDEIRA DA INCONFIDÊNCIA

Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras:

olhos colados aos vidros,

mulheres e homens à espreita,

caras disformes de insônia

vigiando as ações alheias.

Pelas gretas das janelas,

pelas frestas das esteiras,

agudas setas atiram

a inveja e a maledicência.

Palavras conjeturadas

oscilam no ar de surpresas,

como peludas aranhas

na gosma das teias densas,

rápidas e envenenadas,

engenhosas, sorrateiras.

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

brilham fardas e casacas,

junto com batinas pretas.

E há finas mãos pensativas,

entre galões, sedas, rendas,

e há grossas mãos vigorosas,

de unhas fortes, duras veias,

e há mãos de púlpito e altares,

de Evangelhos, cruzes, bênçãos.

Uns são reinóis, uns, mazombos;

e pensam de mil maneiras;

mas citam Vergílio e Horácio

e refletem, e argumentam,

falam de minas e impostos,

de lavras e de fazendas,

de ministros e rainhas

e das colônias inglesas.

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

uns sugerem, uns recusam,

uns ouvem, uns aconselham.

 

Se a derrama for lançada,

há levante, com certeza.

Corre-se por essas ruas?

Corta-se alguma cabeça?

Do cimo de alguma escada,

profere-se alguma arenga?

Que bandeira se desdobra?

Com que figura ou legenda?

Coisas da Maçonaria,

do Paganismo ou da Igreja?

A Santíssima Trindade?

Um gênio a quebrar algemas?

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

entre sigilo e espionagem,

acontece a Inconfidência.

E diz o Vigário ao Poeta:

“Escreva-me aquela letra

do versinho de Vergílio…

E dá-lhe o papel e a pena.

E diz o Poeta ao Vigário,

com dramática prudência:

“Tenha meus dedos cortados,

antes que tal verso escrevam…

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,

ouve-se em redor da mesa.

E a bandeira já está viva,

e sobe, na noite imensa.

E os seus tristes inventores

já são réus – pois se atreveram

a falar em Liberdade

(que ninguém sabe o que seja).

 

Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras.

“Que estão fazendo, tão tarde?

Que escrevem, conversam, pensam?

Mostram livros proibidos?

Lêem notícias nas Gazetas?

Terão recebido cartas

de potências estrangeiras?”

(Antiguidades de Nimes

em Vila Rica suspensas!

 

Cavalo de La Fayette

saltando vastas fronteiras!

Ó vitórias, festas, flores

das lutas da Independência!

Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda!)

 

E a vizinhança não dorme:

murmura, imagina, inventa.

Não fica bandeira escrita,

mas fica escrita a sentença.

 

ROMANCE XXVIII OU DA DENÚNCIA DE JOAQUIM SILVÉRIO

 No Palácio da Cachoeira,

com pena bem aparada,

começa Joaquim Silvério

a redigir sua carta.

De boca já disse tudo

quanto soube e imaginava.

 

Ai, que o traiçoeiro invejoso

junta às ambições a astúcia.

Vede a pena como enrola

arabescos de volúpia,

entre as palavras sinistras

desta carta de denúncia!

 

Que letras extravagantes,

com falsos intuitos de arte!

Tortos ganchos de malícia,

grandes borrões de vaidade.

Quando a aranha estende a teia,

não se encontra asa que escape.

 

Vede como está contente,

pelos horrores escritos,

esse impostor caloteiro

que em tremendos labirintos

prende os homens indefesos

e beija os pés aos ministros!

 

As terras de que era dono,

valiam mais que um ducado.

Com presentes e lisonjas,

arrematava contratos.

E delatar um levante

pode dar lucro bem alto!

 

Como pavões presunçosos,

suas letras se perfilam.

Cada recurvo penacho

é um erro de ortografia.

Pena que assim se retorce

deixa a verdade torcida.

 

(No grande espelho do tempo,

cada vida se retrata:

os heróis, em seus degredos

ou mortos em plena praça;

– os delatores, cobrando

o preço das suas cartas…)

 

ROMANCE XXXI OU DE MAIS TROPEIROS

 Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

que reformava este mundo

de cima da montaria.

 

Tinha um machinho rosilho.

Tinha um machinho castanho.

Dizia: “Não se conhece

país tamanho!”

 

“Do Caeté a Vila Rica,

tudo ouro e cobre!

O que é nosso, vão levando..

E o povo aqui sempre pobre!”

 

Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

que não passava de Alferes

de cavalaria!

 

“Quando eu voltar – afirmava –

outro haverá que comande.

Tudo isto vai levar volta,

e eu serei grande!”

 

“Faremos a mesma coisa

que fez a América Inglesa!”

E bradava: “Há de ser nossa

tanta riqueza!”

 

Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

“Liberdade ainda que tarde”

nos prometia.

 

E cavalgava o machinho.

E a marcha era tão segura

que uns diziam: “Que coragem!”

E outros: “Que loucura!”

 

Lá se foi por esses montes

o homem de olhos espantados,

a derramar esperanças

por todos os lados.

 

Por aqui passava um homem…

– e como o povo se ria! –

Ele, na frente, falava,

e, atrás, a sorte corria…

 

Dizem que agora foi preso,

não se sabe onde.

(Por umas cartas entregues

ao Vice-Rei e ao Visconde.)

 

Pois parecia loucura,

mas era mesmo verdade.

Quem pode ser verdadeiro,

sem que desagrade?

 

Por aqui passava um homem…

– e como o povo se ria! –

No entanto, à sua passagem,

tudo era como alegria.

 

Mas ninguém mais se está rindo

pois talvez ainda aconteça

que ele por aqui não volte,

ou que volte sem cabeça…

 

(Pobre daquele que sonha

fazer bem – grande ousadia –

quando não passa de Alferes

de cavalaria!)

 

Por aqui passava um homem…

– e o povo todo se ria.

 

ROMANCE XXXIV OU DE JOAQUIM SILVÉRIO

Melhor negócio que Judas

fazes tu, Joaquim Silvério:

que ele traiu Jesus Cristo,

tu trais um simples Alferes.

Recebeu trinta dinheiros..

– e tu muitas coisas pedes:

pensão para toda a vida,

perdão para quanto deves,

comenda para o pescoço,

honras, glórias, privilégios.

E andas tão bem na cobrança

que quase tudo recebes!

 

Melhor negócio que Judas

fazes tu, Joaquim Silvério!

Pois ele encontra remorso,

coisa que não te acomete.

Ele topa uma figueira,

tu calmamente envelheces,

orgulhoso e impenitente,

com teus sombrios mistérios.

(Pelos caminhos do mundo,

nenhum destino se perde:

Há os grandes sonhos dos homens,

e a surda força dos vermes.)

 

ROMANCE LIX OU DA REFLEXÃO DOS JUSTOS

Foi trabalhar para todos…

– e vede o que lhe acontece!

Daqueles a quem servia,

já nenhum mais o conhece.

Quando a desgraça é profunda,

que amigo se compadece?

 

Tanta serra cavalgada!

Tanto palude vencido!

Tanta ronda perigosa,

em sertão desconhecido!

– E agora é um simples Alferes

louco, – sozinho e perdido.

 

Talvez chore na masmorra.

Que o chorar não é fraqueza.

Talvez se lembre dos sócios

dessa malograda empresa.

Por eles, principalmente,

suspirará de tristeza.

 

Sábios, ilustres, ardentes,

quando tudo era esperança…

E, agora, tão deslembrados

até da sua aliança!

Também a memória sofre,

e o heroísmo também cansa.

 

Não choram somente os fracos.

O mais destemido e forte,

um dia, também pergunta,

contemplando a humana sorte,

se aqueles por quem morremos

merecerão nossa morte.

 

Foi trabalhar para todos..

Mas, por ele, quem trabalha?

Tombado fica seu corpo,

nessa esquisita batalha.

Suas ações e seu nome,

por onde a glória os espalha?

 

Ambição gera injustiça.

Injustiça, covardia.

Dos heróis martirizados

nunca se esquece a agonia.

Por horror ao sofrimento,

ao valor se renuncia.

 

E, à sombra de exemplos graves,

nascem gerações opressas.

Quem se mata em sonho, esforço,

mistérios, vigílias, pressas?

Quem confia nos amigos?

Quem acredita em promessas?

 

Que tempos medonhos chegam,

depois de tão dura prova?

Quem vai saber, no futuro

o que se aprova ou reprova?

De que alma é que vai ser feita

essa humanidade nova?

 

ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS

 Ó grandes oportunistas,

sobre o papel debruçados,

que calculais mundo e vida

em contos, doblas, cruzados,

que traçais vastas rubricas

e sinais entrelaçados,

com altas penas esguias

embebidas em pecados!

 

Ó personagens solenes

que arrastais os apelidos

como pavões auriverdes

seus rutilantes vestidos,

– todo esse poder que tendes

confunde os vossos sentidos:

a glória, que amais, é desses

que por vós são perseguidos.

 

Levantai-vos dessas mesas,

saí das vossas molduras;

vede que masmorras negras,

que fortalezas seguras,

que duro peso de algemas,

que profundas sepulturas

nascidas de vossas penas,

de vossas assinaturas!

 

Considerai no mistério

dos humanos desatinos,

e no pólo sempre incerto

dos homens e dos destinos!

Por sentenças, por decretos,

pareceríeis divinos:

e hoje sois, no tempo eterno,

como ilustres assassinos.

 

Ó soberbos titulares,

tão desdenhosos e altivos!

Por fictícia austeridade,

vãs razões, falsos motivos,

inutilmente matastes:

– vossos mortos são mais vivos;

e, sobre vós, de longe, abrem

grandes olhos pensativos.

Que a universidade se pinte de negro, de mulato, de operário, de camponês

CHE GUEVARA

 

Queridos companheiros, novos colegas docentes e velhos colegas da luta pela liberdade de Cuba.

Tenho que assinalar, iniciando estas palavras, que somente aceito o título que hoje me conferiram como uma homenagem geral ao nosso exército do povo. Não poderia aceitá-lo individualmente pela simples razão de que tudo que não tenha um conteúdo que se adapte somente ao que se quer dizer não tem valor na Cuba nova.

E como poderia aceitar eu pessoalmente, em nome de Ernesto Guevara, o grau de Doutor Honoris causa da Faculdade de Pedagogia, se toda a pedagogia que pratiquei tem sido a pedagogia dos acampamentos guerreiros, dos palavrões, do exemplo feroz, e acredito que isto não se possa converter de forma alguma em uma beca. Por isso continuo com meu uniforme de Exercito Rebelde, embora possa vir a me sentar aqui em nome do nosso exército, junto ao corpo de professores. Mas, ao aceitar esta designação, que é uma honra para todos nós, queria também prestar a nossa homenagem, nossa mensagem do exército do povo e do exército vitorioso.

Uma vez prometi aos alunos deste centro uma breve palestra, na qual expusesse minhas idéias sobre a função da Universidade. O trabalho, o acúmulo de acontecimentos, nunca me permitiu fazê-lo, mas hoje vou fazê-lo apoiado agora na condição de Professor Honoris Causa.

E o que tenho para dizer à Universidade como artigo primeiro, como função essencial de sua vida nesta nova Cuba?

Tenho que dizer que se pinte de negro, que se pinte de mulato. Não só entre os alunos, mas também entre professores. Que se pinte de operário e camponês, que se pinte de povo, porque a Universidade não é patrimônio de ninguém e pertence ao povo de Cuba.

E se este povo que hoje está aqui, e cujos representantes estão em todos os postos do governo, se levantou em armas e rompeu o dique da reação, não foi porque esses diques não foram elásticos, não tiveram a inteligência primordial de ser elástico para poder brecar com esta elasticidade o impulso do povo.

E o povo que triunfou, que está até mal acostumado com o triunfo, que conhece sua força e sabe-se que é avassaladora, está hoje às portas da universidade, e a universidade deve ser flexível, pintar-se de negro, de mulato, de operário, de camponês ou ficar sem portas. E o povo a arrebentará e pintará a Universidade com as cores que melhor lhe pareça.

Esta é a primeira mensagem, a mensagem que quis transmitir nos primeiros dias depois da vitória nas três universidades do país, mas que somente pude fazê-lo na universidade de Santiago. E se me pedissem um conselho a guisa de povo, de Exército rebelde e professor de pedagogia, eu diria que para se chegar ao povo é preciso sentir-se povo, é preciso saber o que é que ele quer, do que é que necessita e o que é que sente o povo.

É preciso fazer um pouquinho de análise interior e de estatística universitária e perguntar quantos operários, quantos camponeses, quantos homens, que tem de suar oito horas diárias a camisa, estão aqui nesta Universidade. E depois de se perguntar isso é preciso que se pergunte também recorrendo à autoanálise, se este Governo que hoje tem Cuba representa ou não representa a vontade do povo. Teria que perguntar-se também: onde está e o que faz este governo que representa a vontade do povo nesta universidade? E então veríamos que desgraçadamente o governo que hoje representa a maioria quase total do povo de Cuba não tem voz nas universidades cubanas para dar seu grito de alerta, para dar sua palavra orientadora e para expressar a vontade, os desejos e a sensibilidade do povo.

A Universidade Central de Las Villas deu um passo à frente para melhorar as condições, e quando foi realizado seu fórum sobre a industrialização recorreu, sim, aos industriais cubanos, mas recorreu ao governo também. Perguntou nossa opinião e a opinião de todos os técnicos dos organismos estatais.

Porque nós estamos fazendo, podemos dizê-lo sem vaidade neste primeiro ano da libertação, muito mais do que fizeram os outros governos, mas, além disso, muito mais do que isso que pomposamente chama a “Livre Empresa” e por isso, como Governo, temos o direito de dizer que a industrialização de Cuba, que é conseqüência direta da reforma agrária, se fará sob a orientação do Governo Revolucionário; que a empresa privada terá, naturalmente, uma participação considerável nesta etapa de crescimento do país, mas quem determinará as pautas será o Governo, e o será por méritos próprios. O será porque levantou esta bandeira respondendo, talvez, ao impulso mais ínfimo das massas, mas não respondendo à pressão violenta dos setores industriais do país.

A industrialização e o esforço que acarreta são filhos diretos do Governo Revolucionário, por isso a orientará e a planificará. Daqui desapareceram para sempre os empréstimos ruinosos do chamado banco de desenvolvimento, por exemplo, que emprestava 16 milhões a um industrial e este entrava com 400 mil pesos. E estes são dados exatos. Estes 400 mil pesos não saíam tampouco de seu bolso. Saíam dos dez por cento da comissão que lhe davam os vendedores pelas compras de máquinas, e este senhor que possuía 400 mil pesos, quando o governo havia posto 16 milhões, era o dono absoluto desta empresa e, como devedor do Governo, pagava com prazos cômodos e como lhe convinha.

O Governo interveio e se nega a reconhecer este estado de coisas, reclama para si esta empresa que se formou com o dinheiro do povo e deixa bem claro que se a “Livre Empresa” consiste em que alguns aproveitadores usem todo o dinheiro da nação Cubana, este governo está contra a “Livre Empresa”, sempre que esteja sujeita a uma planificação estatal, e como já entramos neste escabroso terreno de planificação, ninguém mais que o Governo Revolucionário, que planifica o desenvolvimento industrial do país de um extremo a outro, tem o direito de fixar as características e a quantidade dos técnicos de que necessitará em um futuro para atender as necessidades da nação.

Pelo menos, deve se ouvir o Governo Revolucionário, quando diz que necessita de nada mais que um determinado número de advogados ou de médicos, mas que necessita de 5 mil engenheiros e 15 mil técnicos industriais de todo o tipo, e se terá que formá-los, e buscá-los, porque é a garantia do nosso desenvolvimento futuro.

Hoje estamos trabalhando com todo o esforço para fazer de Cuba uma Cuba diferente, mas este professor de pedagogia que está aqui não se engana e sabe que de professor de pedagogia tem tanto como Presidente do Banco Central, e que se tem que realizar uma e outra tarefa é porque as necessidades do povo o exigem.

E isso não se faz sem sofrimento, mesmo para o povo, porque terá que aprender em cada caso, terá que se trabalhar, aprendendo. Ao povo caberá apagar o erro, está em um posto novo, e não é infalível, e não nasceu sabendo, e como este professor que está aqui foi um dia médico e por exigência das circunstâncias teve que apanhar o fuzil, e se graduou depois de dois anos como comandante guerrilheiro, e terá logo que se graduar como presidente de Banco ou Diretor da Industrialização do país, ou ainda, talvez professor de pedagogia, que este médico, comandante presidente e professor de pedagogia, que se prepare a juventude estudantil do país, para que cada um, em um futuro imediato, tome o posto que lhe seja destinado.

E o tome sem vacilações e sem necessidade de aprender pelo caminho, mas este professor que está aqui também quer, filho do povo, criado pelo povo, que seja este mesmo povo que tenha direito também aos benefícios do ensino, que se derrubamos muros do ensino, que o ensino não seja simplesmente o privilégio dos que têm algum dinheiro, para poder fazer que seus filhos estudem, que o ensino não seja o pão de todos os dias do povo de Cuba.

E é lógico: não me ocorria exigir que os senhores professores ou os senhores alunos atuais da Universidade Las Villas realizassem o milagre de fazer com que as massas operárias e camponesas ingressassem na Universidade. Necessita-se de um longo caminho, de um processo que todos vocês têm vivido, de longos anos de estudos preparatórios.

O que pretendo, sim, apoiado nesta pequena história de revolucionário e de comandante rebelde, é que os estudantes da Universidade Las Villas de hoje compreendam que o estudo não é patrimônio de ninguém. Pertence a todo o povo de Cuba, e ao povo o darão ou o povo o tomará. E quisera que assim fosse, porque iniciei todo este ciclo em idas e voltas de minha carreira como universitário, como membro da classe média, como médico que tinha os mesmo horizontes, as mesmas aspirações que têm vocês. E porque mudei o curso da luta, porque me convenci da necessidade imperiosa da Revolução e da imensa justiça da causa do povo, por isso vocês, hoje donos da Universidade, a entregam ao povo.

Não o digo como ameaça, para que amanhã não a tome, não. Digo-o simplesmente porque seria um exemplo a mais, dos tantos belos exemplos que estão sendo dados em Cuba, que os donos da Universidade Central de Las Villas, os estudantes, a entregassem ao povo através de seu Governo Revolucionário.

E aos senhores professores, meu colegas, tenho que dizer lhes algo parecido: há que se pintar de negro, de mulato, de operário, de camponês; há que se descer até o povo, há que se vibrar com o povo, isto é, todas as necessidades de Cuba inteira. Quando isto for alcançado, ninguém perderá, todos terão ganhado e Cuba poderá seguir sua marcha rumo ao futuro com um passo mais vigoroso e não terá a necessidade de incluir no seu corpo este médico, comandante, presidente de Banco e hoje professor de Pedagogia, que se despede de todos.

 

Discurso na Universidade de Las Villas, em 28 de dezembro de 1959

O Instinto de Nacionalidade

Os leitores mais veteranos do HP sabem que não é a primeira vez que publicamos este artigo de Machado de Assis. Na verdade, nos últimos 19 anos, é a terceira vez que publicamos o principal ensaio crítico de nosso maior escritor. O motivo é que, no correr dos anos, novos leitores se somam aos antigos (ou nem tanto assim…), e não é justo que sejam privados desta obra, em geral pouco conhecida da maioria de nós. Muitos, por exemplo, relembrarão a frase: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”. Mas, é verdade, somente poucos serão capazes de identificar nesta consideração um dos trechos de “Notícia da literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade”, do então jovem crítico – 34 anos – Machado de Assis.

A responsabilidade pelo relativo desconhecimento da obra crítica de Machado, no entanto, não cabe aos leitores. Sete anos depois deste artigo, o autor, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pela “Revista Brasileira”, iniciaria uma série de romances que elevaram a literatura brasileira ao mesmo patamar de literaturas bem mais antigas, romances – e contos – tão extraordinários que ofuscariam, com raras exceções, todo o resto de sua obra.

Machado começara sua vida literária como poeta, com a publicação, em 1855, do poema “A Palmeira”, pela revista “Marmota Fluminense”; mas sua notoriedade veio em 1858, com o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, também publicado pela “Marmota” (edições de 9 e 23 de abril).

Em 1868, José de Alencar, em sua casa da Tijuca, recebeu a visita de um jovem poeta – tinha apenas 21 anos – e percebeu nele um grande talento. Nessa época, Alencar, em conflito com o imperador, enfrentava o que chamou de “conspiração de silêncio”, por parte da imprensa. É ao crítico Machado de Assis que ele recomenda Castro Alves. E Machado faz um primeiro julgamento que se tornaria definitivo, mas não devia ser fácil naquela época, sobretudo considerando os temas, politicamente incômodos, sempre escolhidos pelo poeta – a escravidão e a revolução de Tiradentes e Gonzaga, uma revolução contra a bisavó do imperador. No entanto, diz o crítico Machado de Assis:

“… [Castro Alves é] uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. (…) A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. (…) Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. (…) o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; (…) É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas”.

Porém, o “estro” (isto é, o gênio) de Castro Alves não teria muito tempo. Faleceu três anos depois desse juízo crítico de Machado, aos 24 anos, mas realizou, no pouco tempo que teve, “as promessas do futuro”.

Em 1873, quando escreveu (para a “Novo Mundo”, uma revista em português editada em Nova Iorque!) “Instinto de Nacionalidade”, ele já havia publicado seu primeiro romance (“Ressurreição”, 1872), algumas críticas teatrais, uma coletânea de poemas (“Crisálidas”, 1864) e uma peça teatral, (“Desencantos”, 1861). Seu primeiro livro, no mesmo ano dessa peça, foi uma obra bastante peculiar.

Na época, num país de analfabetos e senhores de escravos (entre os quais havia autores, mas muito poucos leitores de romances, contos, poemas ou ensaios), o público principal da literatura eram as mulheres. A “Marmota”, revista de um amigo de Machado, Paula Britto, dirigia-se a esse público, e foi para ela que Machado escreveu um pequeno livro de 44 páginas, intitulado “Queda Que As Mulheres Têm Para Os Tolos”, também publicado pela “Typographia de F. Paula Britto” (há uma edição digitalizada do original na coleção Brasiliana, da USP).

Prudentemente, ele não assinou como autor esse primeiro livro, apresentando-se como tradutor (não se sabe de quem ou de que língua, pois nada há na edição de 1861 que esclareça tais detalhes…). Pode-se imaginar o escândalo que seria um mulato, numa sociedade escravagista, publicar um livro que tem como última frase: “Sim, sim, é de mister ousar tudo para com as mulheres”.

Mas como o autor era supostamente estrangeiro, não houve maiores problemas… Os registros da época mostram que as leitoras gostaram do livro.

O mais estranho, em “Queda Que As Mulheres Têm Para Os Tolos”, é que sua estrutura lembra àquela que apareceria 18 anos depois em “Memórias Póstumas” – que provocaria em Capistrano de Abreu a indagação: “As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?” (no prólogo à terceira edição do livro, Machado lembrou que o próprio Brás Cubas já respondera “que sim e que não, que era romance para uns e não o era para outros”).

Apesar disso, nenhuma das obras anteriores parecia anunciar o escritor que surgiria com esse romance de 1880. Para isso, ele teria de ajustar contas com a literatura brasileira anterior – e com a visão de sociedade que o romance anterior (mas não a poesia de Gonçalves Dias e Castro Alves) ainda conservava.

O “Instinto de Nacionalidade” é o texto onde Machado faz esse ajuste de contas, esse balanço. Há citações de autores que hoje estão justamente esquecidos (há até um J. Serra, mediocridade triturada sem contemplações pelo crítico) – e de outros que, ao contrário, como Alencar, Gonçalves Dias e Castro Alves, fazem parte do cabedal imperecível da nossa literatura. Entre uns e outros há autores que merecem lembrança e leitura, apesar de, hoje, não se revelarem imprescindíveis – Bernardo Guimarães (hoje conhecido apenas por “A Escrava Isaura”), Franklin Távora (o precursor do romance nordestino), e, inclusive, Macedo (que não escreveu apenas “A Moreninha”).

Do ponto de vista da nossa historiografia, é curioso como Machado trata desfavoravelmente o reacionário bajulador Francisco Adolfo de Varnhagen, então na crista da onda (acabara de receber o título de barão, depois promovido a visconde de Porto Seguro) como historiador laureado do Império, em comparação com seu oponente plebeu, João Francisco Lisboa. A História daria razão a Machado (e a Lisboa).

Optamos por não incluir notas explicativas, que poderiam esclarecer tal ou qual questão, mas dificultariam a leitura do conjunto do artigo. A pontuação usada por Machado foi mantida inalterada, pois essa é uma das características mais evidentes de seu estilo. Apenas em quatro casos, todos de evidente erro tipográfico, houve alguma mudança em relação ao original. O texto foi extraído da Obra Completa de Machado, Nova Aguillar, 1986, vol. III, cotejado com fac-símile da edição original. O artigo foi publicado na “Novo Mundo” de 24 de março de 1873.

 

CARLOS LOPES 

 

 

MACHADO DE ASSIS

 

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.

Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda, restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores da poesia brasileira. A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto que outros Gonzaga por exemplo, respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora, e nisto há mais erro que acerto.

Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo quando entre a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.

Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária, esta investigação (ponto de divergência entre literatos), além de superior às minhas forças, daria em resultado levar-me longe dos limites deste escrito. Meu principal objeto é atestar o fato atual; ora, o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais independente.

A aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a história e os costumes indianos. Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos, vencidas há muito pela civilização, foi estudada nas memórias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-lhes todos alguma coisa, qual um idílio, qual um canto épico.

Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava toda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade, — e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existência da raça extinta, tão diferente da raça triunfante, — o que parece um erro.

É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país, esses podem logicamente excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que, depois das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta exclusão. As tribos indígenas, cujos usos e costumes João Francisco Lisboa cotejava com o livro de Tácito e os achava tão semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, é certo, da região que por tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora que as frequentou colheu informações preciosas e nô-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos. A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regiões, consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.

Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais os vemos n’Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado, tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito dos quais citarei, por exemplo, a Iracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e brilhante escritor.

Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana cuja magnificência e esplendor naturalmente desafiam a poetas e prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invenção, a que devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães, que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora, e alguns mais.

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura. Gonçalves Dias, por exemplo, com poesias próprias seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros poemas americanos, e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado. O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial.

Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência quotidiana e profunda que deveriam exercer. A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam. 

 

O ROMANCE

De todas as formas várias as mais cultivadas atualmente no Brasil são o romance e a poesia lírica; a mais apreciada é o romance, como aliás acontece em toda a parte, creio eu. São fáceis de perceber as causas desta preferência da opinião, e por isso não me demoro em apontá-las. Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de linguística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. O romance pode-se dizer que domina quase exclusivamente. Não há nisto motivo de admiração nem de censura, tratando-se de um país que apenas entra na primeira mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos. Isto não é desmerecer o romance, obra d’arte como qualquer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota.

Aqui o romance, como tive ocasião de dizer, busca sempre a cor local. A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de algumas cidades, muito mais chegados à influência europeia, trazem já uma feição mista e ademanes diferentes. Por outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real.

Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará muita página instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência literária.

O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita coisa interessante, muita realmente bela. O espetáculo da natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo deste escrito, que é indicar as excelências e os defeitos do conjunto, sem me demorar em pormenores. Há boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor a este recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais.

Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são a partilha do maior número.

As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão de princípio a fim irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que é já notável mérito. As obras de que falo, foram aqui bem-vindas e festejadas, como hóspedes, mas não se aliaram à família nem tomaram o governo da casa. Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico, os escritores que se vão buscar para fazer comparações com os nossos, — porque há aqui muito amor a essas comparações — são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Vítor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals.

Isento por esse lado o romance brasileiro, não menos o está de tendências políticas, e geralmente de todas as questões sociais, — o que não digo por fazer elogio, nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta de obras, conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. Seus principais elementos são, como disse, a pintura dos costumes, e luta das paixões, os quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres; com esses elementos, que são fecundíssimos, possuímos já uma galeria numerosa e a muitos respeitos notável.

No gênero dos contos, à maneira de Henri Murger, ou à de Trueba, ou à de Ch. Dickens, que tão diversos são entre si, têm havido tentativas mais ou menos felizes, porém raras, cumprindo citar, entre outros, o nome do Sr. Luís Guimarães Júnior, igualmente folhetinista elegante e jovial. É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.

Em resumo, o romance, forma extremamente apreciada e já cultivada com alguma extensão, é um dos títulos da presente geração literária. Nem todos os livros, repito, deixam de se prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a houvéssemos em condições regulares creio que os defeitos se corrigiriam, e as boas qualidades adquiririam maior realce. Há geralmente viva imaginação, instinto do belo, ingênua admiração da natureza, amor às coisas pátrias, e além de tudo isto agudeza e observação. Boa e fecunda terra, já deu frutos excelentes e os há de dar em muito maior escala. 

 

A POESIA

A ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que apareceram no decênio de 1850 a 1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos anos, como Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, cujos nomes excitam na nossa mocidade legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de não menor porte. Os que sobreviveram calaram as liras; e se uns voltaram as suas atenções para outro gênero literário, como Bernardo Guimarães, outros vivem dos louros colhidos, se é que não preparam obras de maior tomo, como se diz de Varela, poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste último prazo outras vocações apareceram e numerosas, e basta citar um Crespo, um Serra, um Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís Guimarães, um Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para mostrar que a poesia contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como Castro Alves, pertence à eternidade, seus versos podem servir e servem de incentivo às vocações nascentes.

Competindo-me dizer o que acho da atual poesia, atenho-me só aos poetas de recentíssima data, melhor direi a uma escola agora dominante, cujos defeitos me parecem graves, cujos dotes — valiosos e que poderá dar muito de si, no caso de adotar a necessária emenda.

Não faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente ardentes e trazem o cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima disse, todas as formas a revelam com mais ou menos brilhante resultado, bastando-me citar neste caso as outras duas recentes obras, asMiniaturas de Gonçalves Crespo e os Quadros de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou assinalar. Acrescentarei que também não falta à poesia atual o sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então? Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto, peca na intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens, na obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na alta poesia lírica, — na ode, diria eu, se ainda subsistisse a antiga poética; na poesia íntima e elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado no dizer e no sentir, o que tudo mostra na poesia contemporânea grave doença, que é força combater.

Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de vegetação, — não há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que são grandes, devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade. Ambas essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem modelos, que aí estão, para só citar três nomes, os versos de Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de Azevedo. Um único exemplo bastará para mostrar que a oportunidade e a simplicidade são cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande ideia. N’Os Timbiras, há uma passagem em que o velho Ogib ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos outros guerreiros e vive só. A fala do ancião começa com estes primorosos versos:

 

“São torpes os anuns, que em bandos folgam.

São maus os caititus que em varas pascem:

Somente o sabiá geme sozinho,

E sozinho o condor aos céus remonta.”

 

Nada mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não exprimiria a ideia com tão simples meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse, imaginação; mas esta tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é porque as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.

Indiquei os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por exemplo, a antítese, creio que por imitação de Vítor Hugo. Nem por isso acho menos condenável o abuso de uma figura que, se nas mãos do grande poeta produz grandes efeitos, não pode constituir objeto de imitação, nem sobretudo elementos de escola.

Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto. Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho por incorrigíveis; a crítica os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às vocações as melhores leis. Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande vocação poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons elementos entrariam em melhor caminho, e à poesia nacional restariam as tradições do período romântico. 

 

O TEATRO

Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?

E todavia a continuar o teatro, teriam as vocações novas alguns exemplos não remotos, que muito as haviam de animar. Não falo das comédias do Pena, talento sincero e original, a quem só faltou viver mais para aperfeiçoar-se e empreender obras de maior vulto; nem também das tragédias de Magalhães e dos dramas de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Agrário. Mais recentemente, nestes últimos doze ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento. Apareceram então os dramas e comédias do Sr. J. de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola realista e cujas obras Demônio Familiar e Mãe são de notável merecimento. Logo em seguida apareceram várias outras composições dignas do aplauso que tiveram tais como os dramas dos Srs. Pinheiro Guimarães, Quintino Bocaiúva e alguns mais, mas nada disso foi adiante. Os autores cedo se enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos hoje, que é nada.

A província ainda não foi de todo invadida pelos espetáculos de feira; ainda lá se representa o drama e a comédia, — mas não aparece, que me conste, nenhuma obra nova e original. E com estas poucas linhas fica liquidado este ponto. 

 

A LÍNGUA

Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem. Não é raro ver intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum, defeito grave, a que se junta o da excessiva influência da língua francesa. Este ponto é objeto de divergência entre os nossos escritores. Divergência digo, porque, se alguns caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros há que os adotam por princípio, ou antes por uma exageração de princípio.

Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade.

Mas se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o principio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma. A influência popular tem um limite, e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.

Feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no Brasil. Entre as exceções poderia eu citar até alguns escritores cuja opinião é diversa da minha neste ponto, mas que sabem perfeitamente os clássicos. Em geral, porém, não se leem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, — não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.

Outra coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem neste caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias, para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.

Aqui termino esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro.

 

Artigo extraído da Hora do Povo – Edições 2.882 e 2.883 de 2010 

O Analfabeto Político

(Bertolt Brecht)

 

O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão,

do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio

dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha

e estufa o peito dizendo que odeia a política.

Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta,

o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

 

Nada é impossível de Mudar
“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. 
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. 
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de 
hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem 
sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, 
de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural 
nada deve parecer impossível de mudar.” 
Privatizado
“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. 
É da empresa privada o seu passo em frente, 
seu pão e seu salário. E agora não contente querem 
privatizar o conhecimento, a sabedoria, 
o pensamento, que só à humanidade pertence.”

O operário em construção

(Vinicius de Moraes)

 

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.

 

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.

 

De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia…

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.

 

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

– Garrafa, prato, facão –

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.

 

Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.

 

Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

– Exercer a profissão –

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.

 

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

 

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:

 

Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.

 

E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.

 

Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

– “Convençam-no” do contrário –

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.

 

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!

 

Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.

 

Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

 

Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!

 

– Loucura! – gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

– Mentira! – disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.

 

E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.

 

Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.

Carta-Testamento – O maior libelo da história do Brasil

No início de agosto de 1954, tudo indicava que o governo do presidente Getúlio Vargas havia derrotado a conspiração golpista que começara antes mesmo de sua posse (a quatro meses das eleições presidenciais, Carlos Lacerda escreveu em seu jornal, a Tribuna da Imprensa: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Em junho, uma tentativa de impeachment não conseguira o apoio nem ao menos de toda a UDN – fora derrotada por 136 votos contra e 35 votos a favor. Mas, em 5 de agosto, os golpistas conseguiram um cadáver, o de um major que fazia a segurança de Lacerda – e uma farsa, a história de um suposto atentado contra Lacerda, hoje completamente insustentável, após o trabalho dos repórteres Palmério Dória e Hamilton Almeida Filho (“Mataram o Presidente!”, Editora Alfa-Omega, 1978) e do pesquisador Ronaldo Conde Aguiar (“Vitória na Derrota – A Morte de Getúlio Vargas”, Ed. Casa da Palavra, 2004). Para uma síntese, ver HP, 28/08/2005.

No dia 24 de agosto, o presidente Getúlio sacrificava sua vida – e sua carta-testamento se tornaria o documento mais importante, mais candente e mais profundo de toda a História do Brasil. É este texto que hoje republicamos. Getúlio havia explicitado a posição que posteriormente nortearia seu governo em maio de 1947, discursando no Senado. Disse ele:

“O que existe por parte de alguns homens em nosso país, arvorados em líderes da economia nacional, é apenas um acentuado complexo contra o trabalhador brasileiro. Acham que ele não deve ser operário nas fábricas, que o Brasil não deve ter indústria, que é indispensável destruir toda e qualquer possibilidade de trabalho fora dos campos. O Brasil, no conceito desses homens, deve ser uma nação essencialmente agrícola. O operário deve mudar de profissão, pelo que pretendem, ou então voltar ao regime de escravatura”.

Durante a campanha eleitoral, tornou mais nítidos os seus pontos de vista. Em 10 de agosto de 1950, discursaria em São Paulo:

“O que existe, defendida intransigentemente pelos velhos partidos, com novos rótulos, é a democracia política, baseada em leis que lhe asseguram o gozo de privilégios para oprimir e explorar o trabalho alheio. O trabalhismo brasileiro surgiu, assim, como uma afirmação contra a máquina montada em nome da liberdade política, com sacrifício da igualdade social”.

A questão fundamental era clara para ele há muito tempo. Em 1944, ao se referir às relações econômicas com os EUA no pós-guerra, havia enunciado:

“Não podemos admitir a hipótese de que terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica. (…) E nem vale a pena pensar em que desorganização caótica, de revoluções e perturbações, mergulhará o mundo de novo se não for ouvida a voz da razão e não nos convencermos de que não é possível a hegemonia de nenhum povo ou raça, isoladamente, sobre os demais”.

A eleição, além da vitória esmagadora de Getúlio, confinou a UDN a três governos estaduais – Alagoas, Mato Grosso e Paraná. Num quarto, o Pará, a UDN venceu em coligação com o PSP, de Ademar de Barros, que apoiava Getúlio.  Apesar disso, a campanha golpista começou logo em seguida – para isso, funcionava no Rio de Janeiro o “Escritório Monsen”, uma suposta empresa de advocacia pertencente à Standard Oil, que tinha como um de seus principais membros o genro do diretor da Hollerith, uma subsidiária da IBM.

A questão, confessada depois pelo próprio Lacerda e por Eugênio Gudin – o mais notório defensor da nossa suposta “vocação agrícola” – era impedir que a política de Getúlio se tornasse “permanente”, se consolidasse como o programa do Estado e da Nação brasileira naquela nova fase da nossa história. Para isso, a conspirata golpista seguiu por três lados: a tentativa de isolar o governo das Forças Armadas; a tentativa de privar Getúlio de qualquer órgão de comunicação com o povo; e a tentativa de isolá-lo do empresariado nacional.

O primeiro episódio não poderia ser mais claro sobre o caráter dos golpistas: a campanha contra o ministro da Guerra, general Newton Estillac Leal, por sua oposição a que o Brasil enviasse tropas para ajudar os EUA na agressão à Coreia. Em dezembro de 1951, o presidente decidiu, definitivamente, que o Exército Brasileiro não iria coadjuvar a agressão. No mesmo mês, Getúlio enviou ao Congresso o projeto inicial de criação da Petrobrás. Isso iniciaria dois anos de luta pela aprovação. Em 31 de dezembro de 1951, o presidente denunciou a escandalosa remessa de lucros das empresas estrangeiras. Logo em seguida, a 3 de janeiro de 1952, ele assinaria um decreto limitando em 10% dos lucros as remessas para o exterior. Os EUA, imediatamente, ameaçaram suspender todos os financiamentos ao Brasil. Mas o presidente manteve o decreto. Enquanto isso, a oposição dos militares brasileiros a que fossem morrer pelos norte-americanos na Coreia e seu apoio à Petrobrás foram tachados de “comunistas”. A questão era atrair, neutralizar e intimidar oficiais com essa cruzada, para fazer com que o Ministério da Guerra ficasse em mãos cada vez menos firmes – em 1952, Estillac Leal sai do ministério.

Era impossível, no entanto, derrubar o governo sem isolá-lo do povo, portanto, tentar destruir o único jornal com que Getúlio contava, a “Última Hora”, de Samuel Wainer. Em abril de 1953, Lacerda publicou uma acusação falsa, a de que Wainer não havia nascido no Brasil: a Constituição de 46 proibia a propriedade de órgãos de comunicação por estrangeiros ou brasileiros naturalizados. O serviçais do escritório da Standard Oil acusavam Wainer de ser… estrangeiro. Em seguida, a acusação passou a ser a de que o jornal tinha obtido créditos bancários para se viabilizar. Exigiam da empresa que fosse a única no mundo a sobreviver sem empréstimos. Por fim, acusavam o governo de favorecer o jornal. Com sua falta de escrúpulos, Lacerda inventou um crédito de Cr$ 300 mil que teria sido concedido pelo Banco do Brasil ao “Última Hora” sem que Wainer tivesse que pagá-lo. Além disso, um aval cambial para importação de papel de imprensa, que o BB estava, por lei, obrigado a conceder, foi chamado de “empréstimo”.

No entanto, a “Última Hora” era o jornal que devia menos ao BB – a dívida executável era de 8 mil cruzeiros. Já os “Diários Associados”, de Chateaubriand, deviam CR$ 162 milhões ao BB; “O Globo”, somente nos dois anos anteriores, tinha obtido US$ 1.022.211,00 do BB em sucessivos empréstimos, dando sempre como garantia uma mesma velha impressora, e sem quitar durante esse período sequer o primeiro desses empréstimos. O próprio jornal de Lacerda, insignificante quanto à tiragem, era devedor do BB.

O próximo alvo foi o Ministério do Trabalho, encabeçado por João Goulart. A 8 de março de 1953, o “The New York Times” iniciou, em editorial, a campanha contra Jango, mais jovem ministro da História da República, logo copiada pela imprensa golpista interna. Em seu primeiro ano de governo, Getúlio havia aumentado o salário mínimo – que ficara sem nem ao menos reajuste durante oito anos – de 380 cruzeiros para 1.200 cruzeiros. Agora, na iminência de outro aumento, a ser concedido em maio de 1954, foi inventada uma peculiar teoria, segundo a qual o aumento não poderia ultrapassar a inflação, isto é, não poderia haver aumento real, sob pena do empresariado ir à falência.

Diante da gritaria que conseguiu envolver setores do empresariado e alguns militares de prestígio – o chamado “manifesto dos coronéis” -, Jango resolveu demitir-se para privar a conspiração de um alvo e impedir que o governo fosse paralisado. Mas o aumento de 100% foi decretado no dia 1º de maio de 1954 – e nenhuma empresa faliu por causa dele. Pelo contrário, representou a expansão do mercado interno para essas empresas.

Nesse primeiro de maio, olhando para algumas décadas mais tarde, Getúlio afirmou:
  “Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo às vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.

 

CARLOS LOPES

 

CARTA-TESTAMENTO

 

“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.

 

GETÚLIO VARGAS

 

Texto estraído da Hora do Povo – Edição 2.893 de 2010

Professor Eduardo de Oliviera

O 13 de maio foi a vitória da luta de Zumbi dos Palmares

A revolução abolicionista-republicana foi o movimento que constituiu, definitivamente, o povo brasileiro. Nenhum outro foi tão importante para definir a fisionomia da Nação

 

Para Eduardo de Oliveira, herói sereno do nosso povo

 

Professor Eduardo de OlivieraO 13 de maio foi sempre uma das datas mais estimadas pelo povo brasileiro, somente comparável em popularidade à da própria Independência. Certamente, nós, brasileiros, temos toda razão em ter em tão alta conta a Abolição. O Brasil é, antes de tudo, um país e uma Nação construída pelos negros. Esta foi a base de toda a luta abolicionista, tal como observou, cinco anos antes do 13 de maio de 1888, Joaquim Nabuco: “a raça negra nos deu um povo. O que existe até hoje sobre o vasto território que se chama Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu o nosso país. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar… a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua”.

O 13 de maio foi a vitória da luta da qual Zumbi dos Palmares – assim como Tiradentes em relação à Independência – foi o protomártir. Nenhuma parte, nenhum setor da sociedade ficou fora dela – a cultura brasileira teve em Castro Alves o seu expoente máximo; os militares afirmaram a consciência nacional ao recusar-se a perseguir os escravos, declarando: “não somos capitães do mato”; a Abolição superou todas as divisões partidárias e, até mesmo, étnicas, de Luiz Gama e José do Patrocínio, negros e republicanos, a André Rebouças, negro e monarquista, Silva Jardim, branco e republicano, até Joaquim Nabuco, branco, monarquista e filho de um senhor de engenho.

Em suma, a revolução abolicionista-republicana foi o movimento que constituiu, definitivamente, o povo brasileiro. Nenhum outro foi tão importante para definir a fisionomia da nacionalidade. Neste sentido, a Revolução de 30 é um desenvolvimento de 1888 e 1889, de certa forma a retomada da revolução abolicionista após a derrubada da república oligárquica, aspecto presente até mesmo na formação de seu líder, Getúlio, filho direto do abolicionismo republicano.

Mas é certo que Abolição e República não foram bandeiras que cami-nharam sempre juntas, apesar de, já no século XVIII, Tiradentes as ter vinculado. Somente em 1887 o Partido Republicano iria assumir oficialmente a Abolição, com a adesão da última seção que ainda resistia, o Partido Republicano Paulista, que futuramente iria dominar a República Velha. Mas os principais propagandistas republicanos – como Silva Jardim – cresceram junto ao povo por serem os mais firmes agitadores da Abolição. Foi o abolicionismo que forjou a unidade nacional. Abolição e República tornaram-se, cada vez mais, convergentes. O primeiro a novamente vinculá-las foi um negro, Luiz Gama, na Convenção republicana de Itu.

Luiz Gama sabia, por experiência própria, do que falava quando denunciou: “Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”.

Nascido livre há exatos 170 anos, Luiz Gama foi separado aos sete anos da mãe, Luiza Mahin, líder da revolta dos malês, deportada para a África. Aos 10 anos foi vendido como escravo pelo próprio pai, um fidalgo português arruinado por dívidas de jogo. Revendido a um contrabandista, percorreu a pé, num grupo de cem outros negros, o caminho da Serra do Mar entre Santos e Campinas, para ser entregue ao novo “senhor”. Segundo seu próprio relato, enfrentou em São Paulo outro preconceito, por ser baiano – os escravos nascidos na Bahia eram então considerados os mais rebeldes, a ponto da palavra “baiano” ter-se tornado pejorativa para os escravocratas.

Aos 18 anos, Luiz Gama fugiu de seu último “senhor” e entrou no Exército. Advogado, foi defendendo um escravo diante do Tribunal do Júri que pronunciou a sentença de morte da escravidão: “aquele negro que mata alguém que deseja mantê-lo escravo, seja em qualquer circunstância for, mata em legítima defesa”. Não dizia isso por ódio, mas porque era verdade. Amigo – e colega na redação de um jornal – de Rui Barbosa, de Joaquim Nabuco e outras grandes personalidades da época, Luiz Gama foi a figura mais avançada da luta abolicionista.

No entanto, desde Tiradentes a Abolição já era a questão fundamental da luta pelo desenvolvimento, industrialização e emancipação do Brasil. A Independência, que se consolidou tendo como classe dominante os senhores de escravos e o Estado que os representava – a monarquia – a tinha colocado em questão na palavra de seu próprio Patriarca, José Bonifácio, dirigindo-se à Assembleia Constituinte, em 1823, na apresentação de seu maior projeto.

Como afirmou José Bonifácio, a escravidão era uma herança insuportável da colonização, a comprometer a unidade e a própria existência da nova Nação: “Se o antigo despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar”.

Assim, a Abolição era absolutamente imprescindível para que o novo país, então com apenas um ano de idade, se consolidasse e o povo brasileiro completasse a sua formação: “… é tempo que vamos acabando até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes… cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto”.

Respondendo ao cretino “argumento” dos escravagistas, segundo o qual a Abolição seria um atentado ao seu “direito de propriedade”, José Bonifácio fez, então, a maior denúncia da escravidão em sua época, colocando a propriedade no devido lugar, subordinada aos interesses sociais e nacionais: “Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém sem atacar os direitos da providência, que fez os homens livres, e não escravos… Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil”.

Antes de tudo, a Abolição correspondia aos interesses nacionais – a rigor, ela é o interesse nacional, não só o interesse da justiça, mas o interesse do país pelo progresso econômico e pelo avanço da industrialização, impossível com a escravidão que “só serve”, ressalta José Bonifácio, “para obstar a nossa indústria… basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia… as máquinas que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas”.

O abolicionismo era, portanto, a luta contra o atraso, a estagnação e a ignorância. O combate foi extremamente árduo. Não teve, nem de perto, um único traço de concessão, até porque é uma idéia ridícula a de conceber uma classe inteira de senhores de escravos dando a estes, como concessão, a liberdade.

As leis antiescravagistas foram sistematicamente desrespeitadas – como denunciaram os abolicionistas, a maior parte delas era pura encenação: proibiu-se o tráfico de escravos, mas não a propriedade de escravos contrabandeados; a lei dos sexagenários concedia liberdade aos escravos que completassem 62 anos, isto é, os mortos; a lei do ventre livre concedia liberdade à criança, mas não à mãe nem ao pai: onde iria viver essa criança “livre” senão na senzala, como escrava?

Os negros, os continuadores de Zumbi, estiveram todo o tempo, a exemplo de Luiz Gama, à frente desse movimento. Mais do que isso, manifestaram-se em massa. A própria declaração dos militares recusando-se a persegui-los foi uma resposta à tentativa do governo de usar o Exército para reprimir os quilombos formados pelos negros que saiam das fazendas. A tal ponto foram isolados os escravagistas que o próprio Estado que os representara desde a Independência foi obrigado a decretar a Abolição – e, com isso, como disse o inconformado Barão de Cotegipe, escravagista renitente, decretou também seu próprio fim.

É verdade que os vencedores do 13 de maio foram marginalizados durante a República Velha – mas exatamente porque a oligarquia, com seu servilismo aos banqueiros e especuladores ingleses, bloqueou o desenvolvimento e a industrialização do país, continuação natural da Abolição. Foi necessária a Revolução de 30 para que os negros e todo o povo brasileiro conquistassem outra vez o lugar que lhes cabe. Quando Getúlio decretou, entre outras inúmeras medidas, a lei estipulando que pelo menos dois terços dos trabalhadores das empresas teriam que ser brasileiros, começou a ser quebrada essa marginalização. Durante o período de Getúlio, o 13 de maio tornou-se festa nacional; o samba tornou-se a mais universal expressão cultural brasileira; as escolas de samba e seus enredos nacionais tornaram-se o ponto culminante do carnaval; e foram proscritas uma série de perseguições e discriminações contra os negros – entre elas, a que proibia a capoeira: a licença que Getúlio assinou para que o famoso mestre Bimba abrisse a primeira academia de capoeira do país é um símbolo imperecível dos ideais e da luta que o 13 de maio representa na consciência nacional.

Hoje, esse é o caminho que retomaremos – e já retomamos – para construir um Brasil livre e justo.

 

CARLOS LOPES

Texto extraído da Hora do Povo

A luta do alferes Tiradentes e as vitórias da Inconfidência Mineira

A presidenta Dilma Rousseff afirmou, recentemente, durante palestra realizada na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que os líderes da Inconfidência Mineira foram influenciados pelos textos dos escritores iluministas, bem como pelos ideais da Independência Americana. É verdade. Além de conhecerem bem as obras dos iluministas, os inconfidentes realmente fizeram contatos com os integrantes do movimento que culminou na Revolução Francesa e se reuniram também com Thomas Jefferson, um dos pais da nação americana. Jefferson, inclusive, teria feito chegar às mãos de Tiradentes um diário com detalhes da revolta americana contra os ingleses e um exemplar da constituição americana. A lembrança desses fatos pela presidenta, em Harvard, representa, sem dúvida, um importante resgate de nossa história. Ao falar sobre este tema, no entanto, ela sentiu a necessidade de lembrar aos presentes que o movimento mineiro foi “derrotado” pelas forças colonialistas.

Colocada a questão deste ponto de vista, eu gostaria, se me permite a nossa querida presidenta, de abrir uma pequena polêmica sobre esse assunto. Afinal, este é um tema tão importante para nós que, como dizem os mineiros, carece de “uns dois dedos de prosa” para que as coisas fiquem bem resolvidas e esclarecidas. Então vamos a eles.

Algumas análises superficiais sobre os acontecimentos ocorridos no Brasil entre 1789 e 1792 frequentemente costumam concluir que a Inconfidência Mineira foi derrotada. O movimento liderado por Tiradentes, segundo essa visão, teria fracassado em 1789 com a prisão do alferes e seus companheiros. O exílio de toda a direção e o enforcamento de seu líder maior em 1792 teria, segundo eles, selado a derrota.

Mas, um olhar mais detido sobre esses episódios, assim como sobre os seus desdobramentos de curto e longo prazo, nos traz, no mínimo, algumas questões para reflexão. A primeira é que a atitude heróica de Tiradentes nos momentos mais difíceis da luta golpeou profundamente a imagem do regime. Além disso, a amplitude do programa de libertação nacional elaborado por ele estimulou a luta e serviu de exemplo para praticamente todas as gerações de revolucionários brasileiros. O programa e o exemplo de Tiradentes influenciaram praticamente todos os patriotas que vieram depois dele e continuam a influenciar até hoje. Isso, do ponto de vista estratégico, por si só, já representaria uma grande vitória dos inconfidentes, mas, não foi só isso.

A violenta repressão que se abateu sobre os revoltosos após a traição, atingindo todos os envolvidos no movimento e, por fim, o covarde enforcamento e esquartejamento de seu principal líder, Tiradentes, não fortaleceu os portugueses como pensam alguns. Muito pelo contrário. Houve um imenso desgaste político na população que, sem dúvida, apressou o fim do domínio lusitano. Não é à toa que somente três décadas após a sentença de Tiradentes, o Brasil tornou-se independente. Do ponto de vista histórico, convenhamos, esse é um tempo bastante curto. Ou seja, estranha “derrota” essa que tem como desfecho a libertação do país do jugo colonial num espaço tão curto de tempo.

 

PROGRAMA INCONFIDENTE

O primeiro ponto do programa dos inconfidentes, a Independência, foi rapidamente posta em prática por José Bonifácio, em 1822. Os outros, como a República e a Abolição, vieram pelas mãos de Deodoro, Floriano, Rui Barbosa, Aristides Lobo, Luis Gama, Benjamim Constant e outros. Esta luta, não por acaso, elegeu Tiradentes como o seu patrono. A industrialização, a emancipação do povo e a implantação do ensino público e gratuito, pretendidas pelo alferes, também foram conduzidas com maestria pelo presidente Getúlio, após a revolução de 30. E a mudança da capital, outro ponto do programa dos inconfidentes, foi implantada por JK. Por fim, para a nossa geração, parece estar reservado o desafio de completar este programa de libertação nacional.

Uma outra questão foi o fato de que Portugal pretendia naquele momento intensificar o roubo ao país e à população com a “derrama”. Mas, o heroísmo de Tiradentes e de seus companheiros abortou a intenção de arrochar ainda mais o país. Para impedir a tomada do poder pelos revoltosos, Barbacena foi obrigado a suspendê-la. Isso provocou um prejuízo de cerca de 1.500 quilos de ouro para Portugal. Esse ouro acabou ficando no Brasil. Ou seja, uma outra vitória “de peso” da Inconfidência. Portanto, uma análise mais profunda mostra que a Inconfidência além de obter uma vitória política estratégica, influenciando gerações, obteve também vitórias imediatas da maior importância.

A própria presidenta Dilma demonstrou ter consciência deste fato quando fez a seguinte afirmação durante as comemorações do “21 de Abril” do ano passado, em Ouro Preto, reproduzidas em meu livro “Pátria Livre Ainda que Tardia”: “A liberdade, pela qual Tiradentes sacrificou a própria vida, triunfou. Pode não ser quando a gente espera, pode não ser quando a gente quer, pode ser tardia, mas a liberdade sempre vence”, disse ela.

São vários os regimes despóticos que ao prenderem e/ou assassinarem líderes políticos que lutavam para libertar seu país, pensavam que, com essa medida, obteriam grandes vitórias. Ledo engano. Mais cedo ou mais tarde, muitos desses regimes acabaram colhendo grandes dissabores. Foi assim com a revolta de Mangal Pandei e Mahatma Gandhi, na Índia, com Omar Mukhtar, na Líbia, com a prisão de Fidel, em Cuba e Nelson Mandela, na África do Sul, e muitos outros. Não seria diferente com Tiradentes. Sua morte heróica e seu comportamento exemplar nos três anos em que esteve preso no Rio de Janeiro desmoralizaram a coroa portuguesa, barraram a derrama e serviram de exemplo para todos os que o sucederam na luta pela libertação nacional.

 

CARTA RÉGIA

O movimento dos inconfidentes acirrou a crise revolucionária iniciada com a Carta Régia de 1785, que proibiu fábricas no Brasil. A proibição de fábricas de tecido, estopim e início da crise revolucionária, respondia a uma clara exigência da Inglaterra, que havia submetido Portugal com o Tratado de Methuen. Este tratado, que também ficou conhecido como “Tratado dos Panos e Vinhos”, foi assinado entre a Grã-Bretanha e Portugal, em 1703. Com ele os portugueses se comprometiam a comprar apenas os tecidos britânicos e, em contrapartida, os britânicos, os vinhos de Portugal. Portugal, com isso, abdicou de sua industrialização e de suas colônias. Ou melhor, Portugal abdicou de seu futuro. E a Inglaterra acabou subjugando o país e culminou até mesmo por comprar as empresas produtoras dos vinhos portugueses. Pela suas conseqüências para o Brasil, segue, no original, o texto do tratado que afundou Portugal:

“I. Sua Majestade ElRey de Portugal promete tanto em Seu proprio Nome, como no de Seus Sucessores, de admitir para sempre daqui em diante no Reyno de Portugal os Panos de lãa, e mais fábricas de lanificio de Inglaterra, como era costume até o tempo que forão proibidos pelas Leys, não obstante qualquer condição em contrário.

II. He estipulado que Sua Sagrada e Real Magestade Britanica, em seu proprio Nome e no de Seus Sucessores será obrigada para sempre daqui em diante, de admitir na Grã Bretanha os Vinhos do produto de Portugal, de sorte que em tempo algum (haja Paz ou Guerra entre os Reynos de Inglaterra e de França), não se poderá exigir de Direitos de Alfândega nestes Vinhos, ou debaixo de qualquer outro título, directa ou indirectamente, ou sejam transportados para Inglaterra em Pipas, Toneis ou qualquer outra vasilha que seja mais o que se costuma pedir para igual quantidade, ou de medida de Vinho de França, diminuindo ou abatendo uma terça parte do Direito do costume. Porem, se em qualquer tempo esta dedução, ou abatimento de direitos, que será feito, como acima he declarado, for por algum modo infringido e prejudicado, Sua Sagrada Magestade Portugueza poderá, justa e legitimamente, proibir os Panos de lã e todas as demais fabricas de lanifícios de Inglaterra”.

O auge da produção aurífera no Brasil já tinha se perdido no passado remoto por conta da voracidade do assalto às riquezas do país pelos colonizadores europeus. Desde a década de 70 do século XVIII, o país já caminhava para um esgotamento, fruto da extração desenfreada deste mineral. Quase metade de todo o ouro produzido no mundo saiu das Minas Gerais para a Europa. Dos primórdios da mineração até 1820 foram subtraídos ao Brasil em torno de 770 mil quilos e 7,5 milhões quilates de diamante.

 

CONTRADIÇÕES

As contradições com o colonialismo ficaram mais acirradas em Minas por conta dos conflitos sociais provocados pelo dinamismo da sociedade de um lado e de outro as restrições provocadas pela sangria externa. As forças sociais envolvidas na produção do ouro e diamante na região, diferentemente do que ocorrera no latifúndio canavieiro do Nordeste, tiveram maior mobilidade e dinamismo. Cresceu o número de homens livres e a população nas cidades. Surgiu no coração do Brasil um mercado interno pujante, o que propiciou o desenvolvimento das forças produtivas. Desenvolveu-se em paralelo uma intelectualidade ativa e contestatória.

Com a crise do ouro, várias pessoas deixaram a mineração e passaram a fabricar produtos para atender às necessidades crescentes dessa nova população urbana que surgia. Muitos foram para a produção agro/pecuária e outros passaram a fabricar tecidos, ferramentas e demais bens. Ao ceder às pressões da Inglaterra e proibir as fábricas, Portugal não avaliou corretamente a correlação de forças políticas e acabou provocando o início de sua queda. Ou seja, os brasileiros, liderados por Tiradentes, viram nesta medida uma limitação inaceitável ao potencial de desenvolvimento do país. A verdade é que eles adquiriram a consciência de que o Brasil não cabia mais camisa de força do colonialismo. Abriu-se, então, uma crise revolucionária que se agravou com a proximidade da revolta e só atingiu o seu desfecho em 1822.

A “carta instrução” – com 123 capítulos – entregue por Martinho de Melo e Castro, ministro dos Assuntos Ultramarinos de Portugal – na verdade o funcionário da Coroa responsável pelo assalto às riquezas do Brasil – ao Visconde de Barbacena, antes deste assumir o governo de Minas, é esclarecedora da voracidade com que a Coroa pretendia se atirar sobre as riquezas do Brasil naquele momento. O texto, cujos trechos reproduzimos a seguir, não deixa nada a desejar aos congêneres de hoje, fabricados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros antros de agiotas, com o objetivo de defender as corporações monopolistas e as “metrópoles” atuais do imperialismo. A carta dedica uma boa quantidade de tinta explicando como Barbacena deveria destruir a resistência política dos brasileiros – nesta época concentrada em Minas Gerais.

O documento, redigido em janeiro de 1788, inicia alertando o futuro governador para a importância das Minas Gerais para os cofres da Coroa. “A Capitania de Minas Gerais é, pela sua situação e pelas suas produções, uma das mais importantes de todas as capitanias de que compõem os domínios do Brasil”. “Consistem as principais produções da referida Capitania de Minas em ouro e diamante…”, prossegue. Em seguida Martinho orienta que o governador reprima a atuação de eclesiásticos, juristas, militares e povo em geral, com rigor. E chama a atenção de Barbacena: “Entre todos os povos de que se compõem as diferentes capitanias do Brasil, nenhuns talvez custaram mais a sujeitar e reduzir à devida obediência e submissão de vassalos ao seu soberano, como foram os de Minas Gerais”. Lembra ainda a revolta de 1720, onde foi enforcado Felipe dos Santos, homem que liderou a primeira revolta contra os quintos (20% de impostos sobre todo o ouro extraído) e os preços exorbitantes cobrados pelos comestíveis, instrumentos de trabalho e tecidos, monopolizados por portugueses e ingleses.

 

INDÚSTRIAS

No capítulo sobre as indústrias no Brasil, Martinho insiste na proibição, mas esconde o principal motivo para ela: a capitulação aos interesses industriais da Inglaterra. Os ingleses queriam enfiar seus produtos têxteis em todos os cantos do mundo e não admitiam qualquer concorrente, muito menos numa colônia. Aliás, o assassinato, muito tempo depois, do industrial brasileiro do setor têxtil, Delmiro Gouveia, no nordeste brasileiro, por ordem dos ingleses, mostra que eles seguiram agindo da mesma forma por muito tempo.

Martinho queria aumentar a extração do ouro – que já vinha em queda – mas, ele sabia também que o deslocamento de pessoas da mineração para a produção industrial era conseqüência, e não causa, da queda da produção de ouro. A proibição de fábricas não levou em conta essa situação. Ela atendia única e exclusivamente às exigências dos fabricantes ingleses. Preocupado em agradar seus amos ingleses, Martinho orienta Barbacena a intensificar a repressão e fechar todas as fábricas em Minas Gerais.

Além disso, havia também o pavor geral de que a colônia se tornasse independente economicamente. Isso fica claro num comunicado do governador de Minas do ano de 1775, D. Antônio de Noronha, a um ministro da Coroa portuguesa, lembrada por Martinho na instrução:

“Lembro-me que V. Exa. me falou a respeito das fábricas estabelecidas nesta capitania, as quais eu encontrei em um aumento considerável que, se continuasse nele, dentro de muito pouco tempo ficariam os habitantes desta Capitania independentes das desse reino, pela diversidade de gêneros que já nas suas fábricas se trabalhavam”, alerta o trecho da carta.

Um capítulo especial foi dedicado à repressão aos militares. A ordem era para que o governador providenciasse o desmantelamento das tropas auxiliares e a demissão de todos os oficiais de nacionalidade brasileira (suspeitos) nomeados para comandar essas tropas. Terminada a parte do documento dedicada a destruir a possibilidade da resistência ou contestação no Brasil, Martinho, então, orienta Barbacena a decretar a derrama. Esse seria o estopim para o levante liderado por Tiradentes. Como todos sabemos, uma traição abjeta, conduzida pelos interesses rasteiros e covardes de Silvério dos Reis, abortou o início do movimento.

As dívidas de Portugal com a Inglaterra e a total submissão da administração que substituiu o Marques de Pombal à Coroa inglesa, fez com que D. Maria tomasse um conjunto de medidas desastrosas em relação ao Brasil. Com isso começaram os estertores finais do regime colonial. A crise de dominação colonial mudou qualitativamente a partir da Carta Régia de 1785, proibindo as fábricas. Ela se agravou agudamente com a proximidade da decretação da derrama.

 

INDEPENDÊNCIA

Não há relatos, mas sabe-se que José Bonifácio, que retomou a luta pela independência algum tempo depois, teria participado da reunião secreta dos estudantes em Coimbra em 1788, que deu inicio às articulações internacionais para obter apoio à Inconfidência Mineira. Ele conduziria o processo de Independência Nacional. Não por acaso recebeu o título de Patriarca da Independência. Ele estudava em Coimbra na época da Inconfidência. Teria participado do “Pacto dos 12 estudantes”, reunião secreta de inconfidentes. Era, então, visto pelas autoridades portuguesas como um perigo para os interesses coloniais no Brasil. Foi de Martinho Melo e Castro a frase de que era melhor mandá-lo para outros países da Europa, “porque, se aqui ele já é um problema para nós, imagine se ele for para o Brasil”. Bonifácio, como sabemos, optou por uma linha política um pouco diferente daquela pretendida pelos Inconfidentes. Mas, a ação dos mineiros certamente fortaleceu e facilitou a luta posterior de Bonifácio e de outros.

Temos, portanto, que concordar com a afirmação da presidenta Dilma, feita no ano passado, de que a luta de Tiradentes pela liberdade triunfou. O que podemos concluir é que determinadas “derrotas” acabam cobrando um preço político tão alto aos ditos “vitoriosos”, que acabam apressando as suas quedas. Assim como, às vezes também, algumas “grandes vitórias”, quando não são seguidas das mudanças exigidas pelo povo, transformam-se rapidamente em verdadeiros fiascos. Esses são os fatos.

A luta difícil de Tiradentes acabou tornando-se um grande exemplo para todo o país. E também serviu para apressar a queda do regime e estancar o roubo do país. Mas, mesmo se assim não o fosse, a decisão dos inconfidentes era lutar. E eles assumiram isso. Apesar de todas as dificuldades, os revolucionários de Minas não compactuaram com o assalto e as injustiças contra o nosso povo. Esta, seguramente foi uma decisão dura naquelas circunstâncias, mas, com certeza, ela foi estimulada pelo nosso camarada Tiradentes

 

SÉRGIO CRUZ

Autor do livro “Liberdade Ainda que Tardia – A verdadeira história de Tiradentes”, redador da Hora do Povo e médico do Hospital Universitário da USP

Texto extraído do Horado Povo – Edição de 20 de abril de 2012