O Romanceiro da Inconfidência

CECÍLIA MEIRELES

(trechos)

 

A obra, escrita por Cecília Meireles em 1940 e publicada em 1953, apresenta-se estruturada em 85 romances, além de outros poemas, como os que retratam os cenários. Total de 95 textos.

Caracteriza-se como uma obra lírica, de reflexão, mas com um contexto épico, narrativo, firmemente apoiado no fato histórico.

O tema é a primeira tentativa de libertação do Brasil, ocorrida em Minas Gerais – contada dos inícios da colonização no século 17 até a Inconfidência Mineira no século 18.

 

ROMANCE XXIV OU DA BANDEIRA DA INCONFIDÊNCIA

Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras:

olhos colados aos vidros,

mulheres e homens à espreita,

caras disformes de insônia

vigiando as ações alheias.

Pelas gretas das janelas,

pelas frestas das esteiras,

agudas setas atiram

a inveja e a maledicência.

Palavras conjeturadas

oscilam no ar de surpresas,

como peludas aranhas

na gosma das teias densas,

rápidas e envenenadas,

engenhosas, sorrateiras.

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

brilham fardas e casacas,

junto com batinas pretas.

E há finas mãos pensativas,

entre galões, sedas, rendas,

e há grossas mãos vigorosas,

de unhas fortes, duras veias,

e há mãos de púlpito e altares,

de Evangelhos, cruzes, bênçãos.

Uns são reinóis, uns, mazombos;

e pensam de mil maneiras;

mas citam Vergílio e Horácio

e refletem, e argumentam,

falam de minas e impostos,

de lavras e de fazendas,

de ministros e rainhas

e das colônias inglesas.

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

uns sugerem, uns recusam,

uns ouvem, uns aconselham.

 

Se a derrama for lançada,

há levante, com certeza.

Corre-se por essas ruas?

Corta-se alguma cabeça?

Do cimo de alguma escada,

profere-se alguma arenga?

Que bandeira se desdobra?

Com que figura ou legenda?

Coisas da Maçonaria,

do Paganismo ou da Igreja?

A Santíssima Trindade?

Um gênio a quebrar algemas?

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

entre sigilo e espionagem,

acontece a Inconfidência.

E diz o Vigário ao Poeta:

“Escreva-me aquela letra

do versinho de Vergílio…

E dá-lhe o papel e a pena.

E diz o Poeta ao Vigário,

com dramática prudência:

“Tenha meus dedos cortados,

antes que tal verso escrevam…

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,

ouve-se em redor da mesa.

E a bandeira já está viva,

e sobe, na noite imensa.

E os seus tristes inventores

já são réus – pois se atreveram

a falar em Liberdade

(que ninguém sabe o que seja).

 

Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras.

“Que estão fazendo, tão tarde?

Que escrevem, conversam, pensam?

Mostram livros proibidos?

Lêem notícias nas Gazetas?

Terão recebido cartas

de potências estrangeiras?”

(Antiguidades de Nimes

em Vila Rica suspensas!

 

Cavalo de La Fayette

saltando vastas fronteiras!

Ó vitórias, festas, flores

das lutas da Independência!

Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda!)

 

E a vizinhança não dorme:

murmura, imagina, inventa.

Não fica bandeira escrita,

mas fica escrita a sentença.

 

ROMANCE XXVIII OU DA DENÚNCIA DE JOAQUIM SILVÉRIO

 No Palácio da Cachoeira,

com pena bem aparada,

começa Joaquim Silvério

a redigir sua carta.

De boca já disse tudo

quanto soube e imaginava.

 

Ai, que o traiçoeiro invejoso

junta às ambições a astúcia.

Vede a pena como enrola

arabescos de volúpia,

entre as palavras sinistras

desta carta de denúncia!

 

Que letras extravagantes,

com falsos intuitos de arte!

Tortos ganchos de malícia,

grandes borrões de vaidade.

Quando a aranha estende a teia,

não se encontra asa que escape.

 

Vede como está contente,

pelos horrores escritos,

esse impostor caloteiro

que em tremendos labirintos

prende os homens indefesos

e beija os pés aos ministros!

 

As terras de que era dono,

valiam mais que um ducado.

Com presentes e lisonjas,

arrematava contratos.

E delatar um levante

pode dar lucro bem alto!

 

Como pavões presunçosos,

suas letras se perfilam.

Cada recurvo penacho

é um erro de ortografia.

Pena que assim se retorce

deixa a verdade torcida.

 

(No grande espelho do tempo,

cada vida se retrata:

os heróis, em seus degredos

ou mortos em plena praça;

– os delatores, cobrando

o preço das suas cartas…)

 

ROMANCE XXXI OU DE MAIS TROPEIROS

 Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

que reformava este mundo

de cima da montaria.

 

Tinha um machinho rosilho.

Tinha um machinho castanho.

Dizia: “Não se conhece

país tamanho!”

 

“Do Caeté a Vila Rica,

tudo ouro e cobre!

O que é nosso, vão levando..

E o povo aqui sempre pobre!”

 

Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

que não passava de Alferes

de cavalaria!

 

“Quando eu voltar – afirmava –

outro haverá que comande.

Tudo isto vai levar volta,

e eu serei grande!”

 

“Faremos a mesma coisa

que fez a América Inglesa!”

E bradava: “Há de ser nossa

tanta riqueza!”

 

Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

“Liberdade ainda que tarde”

nos prometia.

 

E cavalgava o machinho.

E a marcha era tão segura

que uns diziam: “Que coragem!”

E outros: “Que loucura!”

 

Lá se foi por esses montes

o homem de olhos espantados,

a derramar esperanças

por todos os lados.

 

Por aqui passava um homem…

– e como o povo se ria! –

Ele, na frente, falava,

e, atrás, a sorte corria…

 

Dizem que agora foi preso,

não se sabe onde.

(Por umas cartas entregues

ao Vice-Rei e ao Visconde.)

 

Pois parecia loucura,

mas era mesmo verdade.

Quem pode ser verdadeiro,

sem que desagrade?

 

Por aqui passava um homem…

– e como o povo se ria! –

No entanto, à sua passagem,

tudo era como alegria.

 

Mas ninguém mais se está rindo

pois talvez ainda aconteça

que ele por aqui não volte,

ou que volte sem cabeça…

 

(Pobre daquele que sonha

fazer bem – grande ousadia –

quando não passa de Alferes

de cavalaria!)

 

Por aqui passava um homem…

– e o povo todo se ria.

 

ROMANCE XXXIV OU DE JOAQUIM SILVÉRIO

Melhor negócio que Judas

fazes tu, Joaquim Silvério:

que ele traiu Jesus Cristo,

tu trais um simples Alferes.

Recebeu trinta dinheiros..

– e tu muitas coisas pedes:

pensão para toda a vida,

perdão para quanto deves,

comenda para o pescoço,

honras, glórias, privilégios.

E andas tão bem na cobrança

que quase tudo recebes!

 

Melhor negócio que Judas

fazes tu, Joaquim Silvério!

Pois ele encontra remorso,

coisa que não te acomete.

Ele topa uma figueira,

tu calmamente envelheces,

orgulhoso e impenitente,

com teus sombrios mistérios.

(Pelos caminhos do mundo,

nenhum destino se perde:

Há os grandes sonhos dos homens,

e a surda força dos vermes.)

 

ROMANCE LIX OU DA REFLEXÃO DOS JUSTOS

Foi trabalhar para todos…

– e vede o que lhe acontece!

Daqueles a quem servia,

já nenhum mais o conhece.

Quando a desgraça é profunda,

que amigo se compadece?

 

Tanta serra cavalgada!

Tanto palude vencido!

Tanta ronda perigosa,

em sertão desconhecido!

– E agora é um simples Alferes

louco, – sozinho e perdido.

 

Talvez chore na masmorra.

Que o chorar não é fraqueza.

Talvez se lembre dos sócios

dessa malograda empresa.

Por eles, principalmente,

suspirará de tristeza.

 

Sábios, ilustres, ardentes,

quando tudo era esperança…

E, agora, tão deslembrados

até da sua aliança!

Também a memória sofre,

e o heroísmo também cansa.

 

Não choram somente os fracos.

O mais destemido e forte,

um dia, também pergunta,

contemplando a humana sorte,

se aqueles por quem morremos

merecerão nossa morte.

 

Foi trabalhar para todos..

Mas, por ele, quem trabalha?

Tombado fica seu corpo,

nessa esquisita batalha.

Suas ações e seu nome,

por onde a glória os espalha?

 

Ambição gera injustiça.

Injustiça, covardia.

Dos heróis martirizados

nunca se esquece a agonia.

Por horror ao sofrimento,

ao valor se renuncia.

 

E, à sombra de exemplos graves,

nascem gerações opressas.

Quem se mata em sonho, esforço,

mistérios, vigílias, pressas?

Quem confia nos amigos?

Quem acredita em promessas?

 

Que tempos medonhos chegam,

depois de tão dura prova?

Quem vai saber, no futuro

o que se aprova ou reprova?

De que alma é que vai ser feita

essa humanidade nova?

 

ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS

 Ó grandes oportunistas,

sobre o papel debruçados,

que calculais mundo e vida

em contos, doblas, cruzados,

que traçais vastas rubricas

e sinais entrelaçados,

com altas penas esguias

embebidas em pecados!

 

Ó personagens solenes

que arrastais os apelidos

como pavões auriverdes

seus rutilantes vestidos,

– todo esse poder que tendes

confunde os vossos sentidos:

a glória, que amais, é desses

que por vós são perseguidos.

 

Levantai-vos dessas mesas,

saí das vossas molduras;

vede que masmorras negras,

que fortalezas seguras,

que duro peso de algemas,

que profundas sepulturas

nascidas de vossas penas,

de vossas assinaturas!

 

Considerai no mistério

dos humanos desatinos,

e no pólo sempre incerto

dos homens e dos destinos!

Por sentenças, por decretos,

pareceríeis divinos:

e hoje sois, no tempo eterno,

como ilustres assassinos.

 

Ó soberbos titulares,

tão desdenhosos e altivos!

Por fictícia austeridade,

vãs razões, falsos motivos,

inutilmente matastes:

– vossos mortos são mais vivos;

e, sobre vós, de longe, abrem

grandes olhos pensativos.

O Instinto de Nacionalidade

Os leitores mais veteranos do HP sabem que não é a primeira vez que publicamos este artigo de Machado de Assis. Na verdade, nos últimos 19 anos, é a terceira vez que publicamos o principal ensaio crítico de nosso maior escritor. O motivo é que, no correr dos anos, novos leitores se somam aos antigos (ou nem tanto assim…), e não é justo que sejam privados desta obra, em geral pouco conhecida da maioria de nós. Muitos, por exemplo, relembrarão a frase: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”. Mas, é verdade, somente poucos serão capazes de identificar nesta consideração um dos trechos de “Notícia da literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade”, do então jovem crítico – 34 anos – Machado de Assis.

A responsabilidade pelo relativo desconhecimento da obra crítica de Machado, no entanto, não cabe aos leitores. Sete anos depois deste artigo, o autor, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pela “Revista Brasileira”, iniciaria uma série de romances que elevaram a literatura brasileira ao mesmo patamar de literaturas bem mais antigas, romances – e contos – tão extraordinários que ofuscariam, com raras exceções, todo o resto de sua obra.

Machado começara sua vida literária como poeta, com a publicação, em 1855, do poema “A Palmeira”, pela revista “Marmota Fluminense”; mas sua notoriedade veio em 1858, com o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, também publicado pela “Marmota” (edições de 9 e 23 de abril).

Em 1868, José de Alencar, em sua casa da Tijuca, recebeu a visita de um jovem poeta – tinha apenas 21 anos – e percebeu nele um grande talento. Nessa época, Alencar, em conflito com o imperador, enfrentava o que chamou de “conspiração de silêncio”, por parte da imprensa. É ao crítico Machado de Assis que ele recomenda Castro Alves. E Machado faz um primeiro julgamento que se tornaria definitivo, mas não devia ser fácil naquela época, sobretudo considerando os temas, politicamente incômodos, sempre escolhidos pelo poeta – a escravidão e a revolução de Tiradentes e Gonzaga, uma revolução contra a bisavó do imperador. No entanto, diz o crítico Machado de Assis:

“… [Castro Alves é] uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. (…) A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. (…) Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. (…) o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico; a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; (…) É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas”.

Porém, o “estro” (isto é, o gênio) de Castro Alves não teria muito tempo. Faleceu três anos depois desse juízo crítico de Machado, aos 24 anos, mas realizou, no pouco tempo que teve, “as promessas do futuro”.

Em 1873, quando escreveu (para a “Novo Mundo”, uma revista em português editada em Nova Iorque!) “Instinto de Nacionalidade”, ele já havia publicado seu primeiro romance (“Ressurreição”, 1872), algumas críticas teatrais, uma coletânea de poemas (“Crisálidas”, 1864) e uma peça teatral, (“Desencantos”, 1861). Seu primeiro livro, no mesmo ano dessa peça, foi uma obra bastante peculiar.

Na época, num país de analfabetos e senhores de escravos (entre os quais havia autores, mas muito poucos leitores de romances, contos, poemas ou ensaios), o público principal da literatura eram as mulheres. A “Marmota”, revista de um amigo de Machado, Paula Britto, dirigia-se a esse público, e foi para ela que Machado escreveu um pequeno livro de 44 páginas, intitulado “Queda Que As Mulheres Têm Para Os Tolos”, também publicado pela “Typographia de F. Paula Britto” (há uma edição digitalizada do original na coleção Brasiliana, da USP).

Prudentemente, ele não assinou como autor esse primeiro livro, apresentando-se como tradutor (não se sabe de quem ou de que língua, pois nada há na edição de 1861 que esclareça tais detalhes…). Pode-se imaginar o escândalo que seria um mulato, numa sociedade escravagista, publicar um livro que tem como última frase: “Sim, sim, é de mister ousar tudo para com as mulheres”.

Mas como o autor era supostamente estrangeiro, não houve maiores problemas… Os registros da época mostram que as leitoras gostaram do livro.

O mais estranho, em “Queda Que As Mulheres Têm Para Os Tolos”, é que sua estrutura lembra àquela que apareceria 18 anos depois em “Memórias Póstumas” – que provocaria em Capistrano de Abreu a indagação: “As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?” (no prólogo à terceira edição do livro, Machado lembrou que o próprio Brás Cubas já respondera “que sim e que não, que era romance para uns e não o era para outros”).

Apesar disso, nenhuma das obras anteriores parecia anunciar o escritor que surgiria com esse romance de 1880. Para isso, ele teria de ajustar contas com a literatura brasileira anterior – e com a visão de sociedade que o romance anterior (mas não a poesia de Gonçalves Dias e Castro Alves) ainda conservava.

O “Instinto de Nacionalidade” é o texto onde Machado faz esse ajuste de contas, esse balanço. Há citações de autores que hoje estão justamente esquecidos (há até um J. Serra, mediocridade triturada sem contemplações pelo crítico) – e de outros que, ao contrário, como Alencar, Gonçalves Dias e Castro Alves, fazem parte do cabedal imperecível da nossa literatura. Entre uns e outros há autores que merecem lembrança e leitura, apesar de, hoje, não se revelarem imprescindíveis – Bernardo Guimarães (hoje conhecido apenas por “A Escrava Isaura”), Franklin Távora (o precursor do romance nordestino), e, inclusive, Macedo (que não escreveu apenas “A Moreninha”).

Do ponto de vista da nossa historiografia, é curioso como Machado trata desfavoravelmente o reacionário bajulador Francisco Adolfo de Varnhagen, então na crista da onda (acabara de receber o título de barão, depois promovido a visconde de Porto Seguro) como historiador laureado do Império, em comparação com seu oponente plebeu, João Francisco Lisboa. A História daria razão a Machado (e a Lisboa).

Optamos por não incluir notas explicativas, que poderiam esclarecer tal ou qual questão, mas dificultariam a leitura do conjunto do artigo. A pontuação usada por Machado foi mantida inalterada, pois essa é uma das características mais evidentes de seu estilo. Apenas em quatro casos, todos de evidente erro tipográfico, houve alguma mudança em relação ao original. O texto foi extraído da Obra Completa de Machado, Nova Aguillar, 1986, vol. III, cotejado com fac-símile da edição original. O artigo foi publicado na “Novo Mundo” de 24 de março de 1873.

 

CARLOS LOPES 

 

 

MACHADO DE ASSIS

 

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.

Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda, restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores da poesia brasileira. A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto que outros Gonzaga por exemplo, respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora, e nisto há mais erro que acerto.

Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo quando entre a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.

Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária, esta investigação (ponto de divergência entre literatos), além de superior às minhas forças, daria em resultado levar-me longe dos limites deste escrito. Meu principal objeto é atestar o fato atual; ora, o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais independente.

A aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a história e os costumes indianos. Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos, vencidas há muito pela civilização, foi estudada nas memórias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-lhes todos alguma coisa, qual um idílio, qual um canto épico.

Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava toda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade, — e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existência da raça extinta, tão diferente da raça triunfante, — o que parece um erro.

É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país, esses podem logicamente excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que, depois das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta exclusão. As tribos indígenas, cujos usos e costumes João Francisco Lisboa cotejava com o livro de Tácito e os achava tão semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, é certo, da região que por tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora que as frequentou colheu informações preciosas e nô-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos. A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regiões, consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.

Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais os vemos n’Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado, tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito dos quais citarei, por exemplo, a Iracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e brilhante escritor.

Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana cuja magnificência e esplendor naturalmente desafiam a poetas e prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invenção, a que devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães, que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora, e alguns mais.

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura. Gonçalves Dias, por exemplo, com poesias próprias seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros poemas americanos, e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado. O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial.

Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência quotidiana e profunda que deveriam exercer. A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam. 

 

O ROMANCE

De todas as formas várias as mais cultivadas atualmente no Brasil são o romance e a poesia lírica; a mais apreciada é o romance, como aliás acontece em toda a parte, creio eu. São fáceis de perceber as causas desta preferência da opinião, e por isso não me demoro em apontá-las. Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de linguística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. O romance pode-se dizer que domina quase exclusivamente. Não há nisto motivo de admiração nem de censura, tratando-se de um país que apenas entra na primeira mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos. Isto não é desmerecer o romance, obra d’arte como qualquer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota.

Aqui o romance, como tive ocasião de dizer, busca sempre a cor local. A substância, não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de algumas cidades, muito mais chegados à influência europeia, trazem já uma feição mista e ademanes diferentes. Por outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada, alguns há de mérito real.

Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará muita página instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência literária.

O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita coisa interessante, muita realmente bela. O espetáculo da natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo deste escrito, que é indicar as excelências e os defeitos do conjunto, sem me demorar em pormenores. Há boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor a este recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais.

Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são a partilha do maior número.

As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão de princípio a fim irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que é já notável mérito. As obras de que falo, foram aqui bem-vindas e festejadas, como hóspedes, mas não se aliaram à família nem tomaram o governo da casa. Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico, os escritores que se vão buscar para fazer comparações com os nossos, — porque há aqui muito amor a essas comparações — são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Vítor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals.

Isento por esse lado o romance brasileiro, não menos o está de tendências políticas, e geralmente de todas as questões sociais, — o que não digo por fazer elogio, nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta de obras, conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. Seus principais elementos são, como disse, a pintura dos costumes, e luta das paixões, os quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres; com esses elementos, que são fecundíssimos, possuímos já uma galeria numerosa e a muitos respeitos notável.

No gênero dos contos, à maneira de Henri Murger, ou à de Trueba, ou à de Ch. Dickens, que tão diversos são entre si, têm havido tentativas mais ou menos felizes, porém raras, cumprindo citar, entre outros, o nome do Sr. Luís Guimarães Júnior, igualmente folhetinista elegante e jovial. É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.

Em resumo, o romance, forma extremamente apreciada e já cultivada com alguma extensão, é um dos títulos da presente geração literária. Nem todos os livros, repito, deixam de se prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a houvéssemos em condições regulares creio que os defeitos se corrigiriam, e as boas qualidades adquiririam maior realce. Há geralmente viva imaginação, instinto do belo, ingênua admiração da natureza, amor às coisas pátrias, e além de tudo isto agudeza e observação. Boa e fecunda terra, já deu frutos excelentes e os há de dar em muito maior escala. 

 

A POESIA

A ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que apareceram no decênio de 1850 a 1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos anos, como Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, cujos nomes excitam na nossa mocidade legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de não menor porte. Os que sobreviveram calaram as liras; e se uns voltaram as suas atenções para outro gênero literário, como Bernardo Guimarães, outros vivem dos louros colhidos, se é que não preparam obras de maior tomo, como se diz de Varela, poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste último prazo outras vocações apareceram e numerosas, e basta citar um Crespo, um Serra, um Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís Guimarães, um Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para mostrar que a poesia contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como Castro Alves, pertence à eternidade, seus versos podem servir e servem de incentivo às vocações nascentes.

Competindo-me dizer o que acho da atual poesia, atenho-me só aos poetas de recentíssima data, melhor direi a uma escola agora dominante, cujos defeitos me parecem graves, cujos dotes — valiosos e que poderá dar muito de si, no caso de adotar a necessária emenda.

Não faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente ardentes e trazem o cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima disse, todas as formas a revelam com mais ou menos brilhante resultado, bastando-me citar neste caso as outras duas recentes obras, asMiniaturas de Gonçalves Crespo e os Quadros de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou assinalar. Acrescentarei que também não falta à poesia atual o sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então? Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto, peca na intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens, na obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na alta poesia lírica, — na ode, diria eu, se ainda subsistisse a antiga poética; na poesia íntima e elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado no dizer e no sentir, o que tudo mostra na poesia contemporânea grave doença, que é força combater.

Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de vegetação, — não há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que são grandes, devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade. Ambas essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem modelos, que aí estão, para só citar três nomes, os versos de Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de Azevedo. Um único exemplo bastará para mostrar que a oportunidade e a simplicidade são cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande ideia. N’Os Timbiras, há uma passagem em que o velho Ogib ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos outros guerreiros e vive só. A fala do ancião começa com estes primorosos versos:

 

“São torpes os anuns, que em bandos folgam.

São maus os caititus que em varas pascem:

Somente o sabiá geme sozinho,

E sozinho o condor aos céus remonta.”

 

Nada mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não exprimiria a ideia com tão simples meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse, imaginação; mas esta tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é porque as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.

Indiquei os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por exemplo, a antítese, creio que por imitação de Vítor Hugo. Nem por isso acho menos condenável o abuso de uma figura que, se nas mãos do grande poeta produz grandes efeitos, não pode constituir objeto de imitação, nem sobretudo elementos de escola.

Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto. Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho por incorrigíveis; a crítica os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às vocações as melhores leis. Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande vocação poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons elementos entrariam em melhor caminho, e à poesia nacional restariam as tradições do período romântico. 

 

O TEATRO

Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?

E todavia a continuar o teatro, teriam as vocações novas alguns exemplos não remotos, que muito as haviam de animar. Não falo das comédias do Pena, talento sincero e original, a quem só faltou viver mais para aperfeiçoar-se e empreender obras de maior vulto; nem também das tragédias de Magalhães e dos dramas de Gonçalves Dias, Porto Alegre e Agrário. Mais recentemente, nestes últimos doze ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento. Apareceram então os dramas e comédias do Sr. J. de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola realista e cujas obras Demônio Familiar e Mãe são de notável merecimento. Logo em seguida apareceram várias outras composições dignas do aplauso que tiveram tais como os dramas dos Srs. Pinheiro Guimarães, Quintino Bocaiúva e alguns mais, mas nada disso foi adiante. Os autores cedo se enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos hoje, que é nada.

A província ainda não foi de todo invadida pelos espetáculos de feira; ainda lá se representa o drama e a comédia, — mas não aparece, que me conste, nenhuma obra nova e original. E com estas poucas linhas fica liquidado este ponto. 

 

A LÍNGUA

Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem. Não é raro ver intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum, defeito grave, a que se junta o da excessiva influência da língua francesa. Este ponto é objeto de divergência entre os nossos escritores. Divergência digo, porque, se alguns caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros há que os adotam por princípio, ou antes por uma exageração de princípio.

Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade.

Mas se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o principio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma. A influência popular tem um limite, e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.

Feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no Brasil. Entre as exceções poderia eu citar até alguns escritores cuja opinião é diversa da minha neste ponto, mas que sabem perfeitamente os clássicos. Em geral, porém, não se leem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, — não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.

Outra coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem neste caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias, para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.

Aqui termino esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro.

 

Artigo extraído da Hora do Povo – Edições 2.882 e 2.883 de 2010 

O Analfabeto Político

(Bertolt Brecht)

 

O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão,

do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio

dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha

e estufa o peito dizendo que odeia a política.

Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta,

o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

 

Nada é impossível de Mudar
“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. 
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. 
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de 
hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem 
sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, 
de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural 
nada deve parecer impossível de mudar.” 
Privatizado
“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. 
É da empresa privada o seu passo em frente, 
seu pão e seu salário. E agora não contente querem 
privatizar o conhecimento, a sabedoria, 
o pensamento, que só à humanidade pertence.”

O operário em construção

(Vinicius de Moraes)

 

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:

– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.

E Jesus, respondendo, disse-lhe:

– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.

 

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão:

Não sabia, por exemplo

Que a casa de um homem é um templo

Um templo sem religião

Como tampouco sabia

Que a casa que ele fazia

Sendo a sua liberdade

Era a sua escravidão.

 

De fato, como podia

Um operário em construção

Compreender por que um tijolo

Valia mais do que um pão?

Tijolos ele empilhava

Com pá, cimento e esquadria

Quanto ao pão, ele o comia…

Mas fosse comer tijolo!

E assim o operário ia

Com suor e com cimento

Erguendo uma casa aqui

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente

Um quartel e uma prisão:

Prisão de que sofreria

Não fosse, eventualmente

Um operário em construção.

 

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

– Garrafa, prato, facão –

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.

 

Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.

 

Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

– Exercer a profissão –

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.

 

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

 

E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:

 

Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.

 

E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.

 

Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

– “Convençam-no” do contrário –

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.

 

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!

 

Em vão sofrera o operário

Sua primeira agressão

Muitas outras se seguiram

Muitas outras seguirão.

Porém, por imprescindível

Ao edifício em construção

Seu trabalho prosseguia

E todo o seu sofrimento

Misturava-se ao cimento

Da construção que crescia.

 

Sentindo que a violência

Não dobraria o operário

Um dia tentou o patrão

Dobrá-lo de modo vário.

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

 

Disse, e fitou o operário

Que olhava e que refletia

Mas o que via o operário

O patrão nunca veria.

O operário via as casas

E dentro das estruturas

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas.

Via tudo o que fazia

O lucro do seu patrão

E em cada coisa que via

Misteriosamente havia

A marca de sua mão.

E o operário disse: Não!

 

– Loucura! – gritou o patrão

Não vês o que te dou eu?

– Mentira! – disse o operário

Não podes dar-me o que é meu.

 

E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.

 

Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

O operário em construção.

Vulnerabilidade Ideológica e Hegemonia Cultural

SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES*

 

A sociedade brasileira se caracteriza por crônica vulnerabilidade externa com facetas econômica (a mais debatida), política, tecnológica, militar e ideológica. A mais importante, pois influencia todas as políticas e atitudes do Estado e da sociedade brasileira (empresas, associações, partidos, ONGs, igrejas, indivíduos etc.) que agravam aquelas outras facetas da vulnerabilidade, é a de natureza ideológica. É ela que, através de diversos mecanismos, mantém e aprofunda a “consciência colonizada” das elites dirigentes e até de segmentos das oposições políticas, intelectuais, econômicas, burocráticas. A consciência colonizada se expressa em uma atitude mental timorata e subserviente, que alimenta sentimentos de impotência na população, ao atribuir as mazelas brasileiras à “escassez de poder” do Brasil, à “incompetência” brasileira, ao nosso “caipirismo”, ao “arcaísmo” social, à “xenofobia”, enfim, à nossa inferioridade como sociedade. A vulnerabilidade ideológica está estreitamente relacionada com a crescente hegemonia cultural americana na sociedade brasileira, que se exerce em especial através do produto audiovisual, veiculado pela televisão e pelo cinema, articulado com a imprensa, o disco e o rádio.

A vulnerabilidade ideológica é de tal ordem que a opinião de um sociólogo francês ou de um economista americano ou os aplausos estrangeiros a um dirigente brasileiro ou a opinião de uma agência de análise de risco, ou de um organismo internacional, têm enorme impacto positivo ou negativo sobre a visão das elites sobre a situação e as perspectivas do Brasil, gerando manifestações auto-congratulatórias ou protestos de repulsa e lamentos de decepção. A sociedade brasileira é vulnerável ideologicamente porque parte majoritária de suas elites, ao invés de procurarem governar para o povo, preferem governar para os interesses internacionais de toda a ordem. Desejam essas elites serem “aceitas” como representantes de um “país normal”, de uma “sociedade jovem, mas civilizada”, que não “confronta” os interesses das Grandes Potências e com elas “colabora”. As opiniões sobre o Brasil de intelectuais, políticos ou empresários estrangeiros são recebidas com maior respeito, admiração e concordância do que aquelas emitidas por brasileiros (a não ser quando esses refletem a opinião estrangeira), por setores importantes da mídia, a qual repercute tais julgamentos, e pelas elites nativas de mentalidade colonial.

A vulnerabilidade ideológica faz com que as elites intelectuais e dirigentes procurem ver sempre em modelos estrangeiros as soluções para o subdesenvolvimento econômico, para o “atraso” cultural, para o “autoritarismo” político, para o “arcaísmo” institucional brasileiro. Vão elas buscar modelos institucionais no exterior (por exemplo, agências reguladoras, Banco Central autônomo etc.), estratégias econômicas (por exemplo, câmbio “fixo” e sobrevalorizado e agora as metas de inflação etc.), teorias militares (por exemplo, segurança cooperativa etc.), modelos educacionais (por exemplo, o currículo escolar, o sistema de créditos na universidade etc.). Esquecem que esses modelos e teorias foram desenvolvidos com base na experiência histórica de sociedades que tiveram evolução e características distintas da brasileira. Assim, esses modelos e teorias “transplantados” para o Brasil definham ou degeneram, para desespero de seus propugnadores colonizados. Há hoje juristas e intelectuais que defendem, por exemplo, a adoção pelo Brasil dos princípios da “common law” e das práticas de arbitragem, inclusive internacional, anglo-americana para organizar e reformar o sistema jurídico brasileiro, que seria, segundo eles, arcaico e moroso, por se basear no direito romano e germânico. E, assim por diante, os exemplos dessa mentalidade e atitude mimética são inúmeros.

A questão da vulnerabilidade ideológica é fundamental, pois ela se refere diretamente à coesão ou desintegração social, à construção ou fragmentação nacional, à autoestima ou auto-rejeição e à própria possibilidade de êxito de uma política de desenvolvimento econômico (não apenas de crescimento desigual), democrático (não oligárquico e não plutocrático) e social (cultural e espiritual) da sociedade brasileira.

A vulnerabilidade ideológica afeta a identidade cultural brasileira. Esta identidade é fundamental quando se admite que a sociedade brasileira se desenvolveu em um território geográfico específico, com uma composição étnica e religiosa distinta, com uma experiência histórica, política e econômica única. A consciência disto é essencial para que a sociedade possa encontrar soluções próprias para seus próprios desafios. A vulnerabilidade ideológica e a hegemonia cultural estrangeira impedem, dificultam e confundem os distintos segmentos da sociedade brasileira e tendem a eliminar a consciência de suas características específicas e da própria evolução dessas características, que é a sua história.

A consciência que a sociedade adquire de si mesma, isto é, a consciência de cada cidadão e dos grupos sociais sobre as características da sociedade em que vivem depende de uma representação ideológica, que depende, por sua vez, de manifestações culturais as mais distintas que interpretam e criam o imaginário nacional do seu passado, de seu presente e de seu futuro.

Essa criação do imaginário, dessa visão do passado, do presente e do futuro, é, em sua quase totalidade, alheia à experiência direta dos indivíduos. Quanto ao passado e ao futuro, porque não o “viveram” nem o “viverão”. E quanto ao presente, porque não podem dele participar, ter a experiência direta de todas as situações sociais pela impossibilidade da ubiquidade. Assim, a esmagadora maioria dos fatos e das interpretações que conhecemos sobre o passado do próprio Brasil e do mundo depende da elaboração intelectual e cultural de historiadores e artistas, em especial os criadores de obras audiovisuais e literárias, por mais que sejam elas consideradas como obras de ficção. Muito daquilo que um brasileiro imagina a respeito de situações e valores individuais e sociais é uma construção cultural/ literária/audiovisual/noticiosa, muitas vezes repleta de preconceitos e estereótipos. Tudo o que sabemos sobre a história da sociedade brasileira não foi vivido “por nós”, mas sim “elaborado” por terceiros.

A vulnerabilidade ideológica se acentua com a crescente hegemonia cultural norte-americana no Brasil. Na medida em que a elaboração, produção e difusão cultural brasileira, audiovisual ou não, está sujeita à hegemonia cultural estrangeira, a formação do imaginário nacional acaba se realizando de forma fragmentada e claudicante. As “interpretações” da realidade mundial elaborada pelas manifestações culturais hegemônicas norte-americanas passam a predominar, refletindo os preconceitos e os estereótipos daquela cultura e os interesses daquela sociedade. Daí as distorções decorrentes da hegemonia cultural estrangeira, no caso do Brasil, americana, a vulnerabilidade ideológica e suas consequências negativas para o Brasil.

A construção da identidade cultural decorre da produção de manifestações culturais que abrangem desde as atividades da imprensa à elaboração científica e artística, mas, em especial, devido ao seu extraordinário alcance, às manifestações audiovisuais (documentários, filmes de ficção, séries e noticiários de toda ordem). A construção desta identidade não se contrapõe à necessidade de diversidade cultural e muito menos ao diálogo com a cultura estrangeira. Contrapõe-se, isto sim, à hegemonia das manifestações culturais estrangeiras sobre a cultura brasileira no próprio território brasileiro. O estímulo e o acesso à diversidade das manifestações culturais permitiria à sociedade brasileira ter acesso a distintas e, muitas vezes, contraditórias visões do mundo, das relações interpessoais, das questões existenciais. A questão estratégica é, pois, imaginar mecanismos que ampliem o acesso de todos, sejam eles artistas, intelectuais, políticos ou simples brasileiros, à miríade de manifestações culturais brasileiras e de todas as sociedades que constituem a diversidade cultural planetária e fortaleçam e enriqueçam a nossa própria identidade, combatendo a hegemonia cultural de qualquer origem no Brasil. Trata-se de definir uma política cultural, de comunicação e de educação, não-assistencialista, integrada e voltada para o projeto de construção da sociedade brasileira. E para isto é indispensável discutir a questão cultural também em seus aspectos econômicos, políticos e sociais.

 

Cultura, comunicação e educação: compreensão

A cultura pode ser definida em sentido estrito como o conjunto de atividades humanas, de natureza não utilitária, que expressam e reproduzem a experiência individual ou coletiva, a disseminam no presente e a transmitem no tempo, de geração em geração.

Sendo a experiência humana variável no espaço, devido a circunstâncias geográficas, étnicas, políticas e econômicas distintas, há naturalmente culturas nacionais específicas que, todavia, não sendo estanques, se influenciam umas às outras. Não há culturas nacionais superiores, assim como não há raças superiores, mas pode haver um maior grau de elaboração das manifestações culturais em decorrência de circunstâncias históricas, do grau de acumulação de riqueza e de conhecimento técnico/artístico em determinadas sociedades e pode haver, por razões econômicas e políticas, maior capacidade de difusão e penetração social global de certas culturas.

A cultura corresponde a um conjunto de manifestações das diversas artes tradicionais, tais como a música, a escultura, a pintura, a literatura, a arquitetura, a dança, o teatro, o cinema, e de outras formas, como a gravura e a fotografia. As artes e as manifestações artísticas não se identificam com o seu suporte físico nem com o seu veículo de difusão, ainda que veículos e suportes específicos afetem a obra de arte e de certa forma alterem o seu conteúdo e o seu impacto social, econômico e político, e passem assim a ser de grande relevância para a definição e execução de uma política cultural eficaz.

A cultura popular se expressa igualmente através de manifestações das mesmas artes, porém de forma intuitiva, artesanal, sem o mesmo domínio do conhecimento técnico e sem a aplicação estrita de “regras” eurocêntricas que correspondem tradicionalmente a cada arte. Não se trata de discutir ou decidir se a cultura erudita é superior à cultura popular, pois elas se influenciam e têm funções sociais semelhantes. Um artista popular pode ser capaz de refletir de forma extraordinária a experiência humana, de um certo momento e meio social, enquanto que um artista erudito pode falhar nesse propósito, apesar de seu maior domínio, digamos, das técnicas tradicionais eurocêntricas. As características da obra de arte, da manifestação cultural e seu impacto dependem do nível técnico com que se realizam, mas também da criatividade individual do artista e do alcance do veículo de difusão.

Sendo as manifestações culturais o modo como a experiência humana, que se verifica em uma certa dimensão geográfica, se transmite no tempo, a questão da cultura, da produção e da difusão cultural, está estreitamente vinculada à formação e à permanência da nação como conjunto de indivíduos, que em geral habitam um mesmo território, que compartilham uma experiência histórica comum e que têm a aspiração de construir um futuro comum, ainda que as visões sobre este futuro possam ser distintas.

A nação, a sociedade, se organiza como Estado, que pode ser definido como um conjunto de instituições que elaboram normas, as executam e as sancionam, com o objetivo de disciplinar as relações de toda ordem entre seus integrantes, para que sejam pacíficas e consensuais, e de defender e promover seus interesses e direitos em suas relações com as demais sociedades e Estados. O enfraquecimento da produção cultural de uma nação leva ao enfraquecimento dos laços que vinculam seus integrantes, de sua memória do passado, da experiência comum e de sua aspiração de construção de um futuro compartilhado. Naturalmente que o enfraquecimento da cultura nacional diante da hegemonia de outras manifestações culturais de outras sociedades, que são necessariamente distintas e que não correspondem às experiências daquela nação em sua trajetória histórica, corrói sua autoestima e enfraquece a capacidade do Estado de promover e defender os interesses nacionais.

A maior parte das imagens que os indivíduos formam sobre as experiências humanas individuais e coletivas e que constituem a base para suas ações não decorre de sua experiência direta, mas sim são o resultado de informações que se transmitem pela mídia escrita e audiovisual e que utilizam recursos artísticos, culturais. A maior parte dos valores sociais é construída, elaborada, transformada e destruída através da influência de um fluxo contínuo de manifestações culturais transmitidas pelos meios de comunicação e difundidas socialmente.

Assim ocorre com a obra literária, que inclui o jornalismo, com a música, com as manifestações audiovisuais em suas distintas formas, tais como o teatro e o cinema, transmitidas pelos instrumentos da mídia que constituem uma indústria que recolhe, produz, distribui e divulga as manifestações culturais. Seus diferentes setores são constituídos pelas editoras, as empresas jornalísticas, as rádios, as companhias de teatro, as produtoras e distribuidoras de filmes para cinema e TV, as redes de televisão aberta e a cabo etc. A obra do escritor, do músico, do diretor de cinema não tem impacto e função social (e nem mesmo cultural) se ela não chega ao público, à sociedade. Para que isto ocorra, é necessário que se transforme em um produto, o mais importante da atividade humana, pois alimenta o processo contínuo de reconstrução do passado, de tempos que os indivíduos que formam a sociedade atual não viveram; de interpretação do vastíssimo presente do qual os indivíduos conhecem diretamente apenas ínfima parcela; e de formação de visões do futuro, cuja forma concreta que vier a assumir dependerá desde já do que se pensa que ele será ou que poderá ser.

Assim, a manifestação cultural tem de ser transformada em produto econômico, isto é, em resultado de processos específicos de produção e de distribuição física lato sensu, para que venha a ter impacto social e político.

 

Política Cultural: reflexões

A maior parte dos produtos de consumo, tais como geladeiras, sapatos e automóveis, tem efeito político e social diminuto sobre o consumidor e seu valor social corresponde ao de seu suporte físico, que resulta do seu processo produtivo, que empregou fatores de produção e gerou renda. O suporte físico do produto cultural, ao contrário, tem um valor infinitamente inferior ao seu valor cultural e a seu valor econômico. Basta comparar o valor do papel em que está impressa uma obra literária ou o valor da película onde está registrado um filme para se constatar esta divergência. O valor social do produto cultural não se esgota com o seu consumo individual, mas se reproduz no tempo, enquanto o valor social de um produto comum se esgota com o seu consumo.

A manifestação cultural transformada em produto cultural tem um custo de produção e, portanto, gera emprego e renda, e tem um mercado onde se confrontam as empresas que o comercializam e onde se encontra com o seu público. Os mercados para os diversos produtos culturais têm características muito distintas e podem vir a ser, com maior ou menor intensidade, oligopolizados e a sofrer distorções decorrentes de práticas de concorrência desleal, e, assim, permitirem margens de lucro extremas. Sem a compreensão do produto cultural como um fenômeno cultural/econômico/político complexo, não é possível a definição de uma política cultural que leve em consideração o extraordinário potencial de geração de emprego, de lucro e de divisas da produção e da distribuição cultural, mas também seu papel político fundamental de formação do imaginário social, da vitalidade da Nação e do poder do Estado.

A produção cultural tem importância fundamental na política internacional. Nem mesmo os principais dirigentes e intelectuais da nação mais poderosa do mundo têm conhecimento direto de mais do que uma parcela ínfima da miríade de eventos que ocorrem a cada dia em cada sociedade. Todas as decisões desses dirigentes que afetam profundamente a realidade são tomadas a partir de informações e de elaborações culturais que interpretam eventos e que os transmitem através de manifestações culturais sob a forma de livros, filmes, notícias, relatos, fotografias, e que vão formar o seu imaginário em confronto com sua experiência pessoal limitada e sua capacidade teórica de processar informações e de encaixá-las em uma “visão de mundo”.

Assim, as imagens dos países, inclusive de seu próprio, das sociedades, dos Estados e de seu poder são formadas através de um vasto e contínuo processo multifacetado de elaboração cultural que gera nos diferentes setores sociais essas imagens. A ausência de imagem própria, ou a existência de imagem distorcida, fragmentada ou incompleta, afeta não somente as decisões de dirigentes de terceiros Estados em suas relações com o Estado cuja imagem é fraca, mas também a própria sociedade desse Estado, com efeitos sobre sua autoestima, sua capacidade de apoiar seus dirigentes e a capacidade desses dirigentes de agir para enfrentar os seus desafios internos e externos.

Daí a importância que as grandes potências, e em especial os Estados Unidos, conferem a sua indústria cultural lato sensu e a prioridade que atribuem ao objetivo de garantir o livre acesso de seus produtos culturais aos mercados culturais de todos os países, isto é, o acesso a todas as estruturas e meios de produção e de difusão de produtos culturais e de formação do imaginário das sociedades de terceiros países, com objetivos de natureza cultural, econômica e também política.

Nos mercados culturais, a estrutura dos mercados e suas características específicas de produção e distribuição fazem com que as dimensões das empresas tenham, como em mercados de produtos “normais”, enorme importância. Assim como nos mercados de produtos de consumo, cabe ao Estado impedir a monopolização, a oligopolização, a formação de cartéis e a prática de concorrência desleal, no interesse de proteger o consumidor individual de preços abusivos e a sociedade da geração de lucros excessivos. Com maior razão, cabe a ação do Estado nos mercados culturais onde os produtos, além de sua importância econômica, têm uma importância política fundamental.

Cabe ao Estado garantir a livre competição em cada mercado cultural com muito mais rigor do que nos mercados de produtos “comuns” de consumo, tendo em vista os efeitos sociais e políticos dos produtos culturais sobre a sociedade, com os objetivos de evitar a hegemonia cultural de outras sociedades; de estimular a mais ampla e diversificada troca de informações culturais com o exterior; de promover a produção cultural doméstica, única capaz de fortalecer e articular o conhecimento da sociedade de si mesma, o qual é indispensável para a formulação de um projeto de futuro e para definir a estratégia e os meios físicos e políticos para implementá-lo, em especial em grandes Estados de periferia, como o Brasil.

A sociedade brasileira se encontra hoje sob a hegemonia cultural estrangeira, em especial da produção cultural norte-americana, que decorre das estruturas de mercado que se criaram ao longo do tempo, devido à incompreensão, miopia e omissão dos governos em relação à política cultural, de comunicação e de educação. Esta omissão de política cultural, ou melhor, esta miopia da função política da cultura e das inter-relações entre produção cultural, estruturas econômicas de produção e de comercialização cultural fizeram que, em nome da liberdade de expressão e de manifestação cultural, se condenasse a ação corretora do Estado e se permitisse a formação e a ação de estruturas oligopolísticas. Ao mesmo tempo, mantinha-se viva, porém em estado de asfixia, a produção cultural brasileira, sem criar os instrumentos que permitissem sua competição com a produção cultural estrangeira que, ao se realizar e se difundir através de mega-empresas multinacionais, oligopoliza o mercado consumidor pelo exercício de controle e influência sobre as estruturas de difusão cultural, tais como editoras, gravadoras, exibidoras e redes de televisão.

O Estado brasileiro tem limitado sua ação a um modesto apoio assistencialista, colonizado e envergonhado à produção cultural de elite ou de pequeno impacto social, através de isenções fiscais, sem se preocupar em promover e garantir a livre competição nos mercados culturais de massa, onde se forma o imaginário social, essência da própria existência da Nação brasileira e da possibilidade de esta se organizar para enfrentar seus extraordinários desafios e realizar seu potencial.

A questão do imaginário social e, portanto, da política cultural e de comunicação está profundamente vinculada à questão do sistema educacional. Este sistema tem sido articulado pelo governo como um processo de formação de indivíduos como produtores de maior ou menor qualificação técnica, e não como um processo de formação de cidadãos. Os valores transmitidos pelo sistema educacional são os valores da produção material e da maximização do consumo individual, do ser humano como unidade de trabalho, e não como cidadão político solidário, digno de uma vida espiritual superior, para além dos programas degradantes e idiotizantes de televisão, atividade que consome em média mais de quatro horas diárias do cidadão brasileiro. Se deduzirmos o tempo médio de trabalho, de transporte, de alimentação e de repouso, essas quatro horas significam mais de 70% de seu tempo diário, digamos, livre. Este é o tempo de que pode dispor para seu aperfeiçoamento como cidadão, como trabalhador e como ser humano. Esse tempo foi “capturado” pela televisão, que os Estados e os governos têm tratado como uma atividade econômica “normal”, e não como um veículo com influência extraordinária sobre a sociedade e seu imaginário. A situação se agravou com a emenda constitucional que permitiu a participação do capital estrangeiro na propriedade dos veículos de comunicação e com a ausência de regulamentação do artigo 221 da Constituição federal que se refere à programação das emissoras de rádio e televisão.

Por outro lado, quaisquer que sejam os métodos, a qualidade e os esforços utilizados para aperfeiçoar o sistema educacional formal, são eles frustrados, pois as crianças e os jovens utilizam grande parte de seu tempo fora das salas de aula em frente à TV de programação mais ou menos comercial, mas onde há um permanente, ainda que difuso, processo de transmissão de um imaginário estrangeiro, além de estímulos ao consumo conspícuo, ao individualismo, à violência, à banalidade, ao culto do corpo.

Assim, a escola tem de ser reconstruída como o veículo de transmissão de valores culturais brasileiros, enquanto a televisão e os meios de comunicação em geral podem e devem ser estimulados a diversificar sua programação de modo a ampliar a gama de influências culturais brasileiras e estrangeiras a que deve ter acesso a sociedade brasileira, e assim ampliar sua margem de escolha e de reflexão sobre os valores sociais. Os recursos da coletividade, que são arrecadados através de impostos, devem estar a serviço de uma política cultural que amplie a competição entre produtos culturais de diferentes origens, estimule a produção cultural brasileira e diversifique as influências culturais. Aquelas empresas de produção e difusão cultural que não desejem diversificar a origem dos produtos culturais com que trabalham e que desejem privilegiar a produção cultural estrangeira podem, têm o direito de fazê-lo, mas com seus próprios recursos e não com os recursos da coletividade.

É necessário distinguir, na elaboração de uma política cultural, os aspectos de preservação do patrimônio material e imaterial, de apoio e estímulo à produção cultural dos artistas, da ação junto às empresas de produção e difusão cultural de massa para estimular a diversidade cultural e impedir a hegemonia de manifestações culturais de uma origem específica sobre a manifestação cultural brasileira em cada setor. Os estímulos à preservação do patrimônio e à produção cultural individual não terão impactos sociais, políticos e econômicos se não forem conjugados com a possibilidade de sua difusão através dos veículos econômicos. A atual legislação de concessão de isenções fiscais a empresas para investimentos em atividades culturais (as leis Sarney, Rouanet, a legislação audiovisual) possibilitam modestos recursos sociais à produção cultural, mas não garantem sua difusão e, portanto, o cumprimento de sua função social.

A distinção entre manifestações culturais de público restrito e as manifestações culturais de massa não pode ser feita de forma absoluta, pois não somente as manifestações culturais se influenciam umas às outras de forma muito importante, como às vezes se combinam ou servem umas de matéria-prima para outras. Assim, a manifestação cultural de público restrito, como, por exemplo, uma obra literária, pode servir de matéria prima para manifestações culturais de massa, como o filme e a novela de televisão.

Uma política cultural eficaz deve estar articulada com as políticas de comunicação e educação e deve ter como seu objetivo estratégico permanente a redução da hegemonia cultural de qualquer manifestação estrangeira face à produção cultural brasileira e a ampliação da diversidade de oferta cultural à disposição da sociedade brasileira. Além das diversas medidas e da legislação hoje existente, que devem ser aperfeiçoadas, podem ser imaginadas diversas ações na área da difusão cultural.

A legislação pode e deve estabelecer tratamento fiscal diferenciado e mais favorável às empresas produtoras e às empresas difusoras de produtos culturais que em suas atividades e programação ampliassem a participação das manifestações culturais brasileiras.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos maiores bancos de investimentos do mundo, pode e deve estabelecer linhas de crédito especiais para financiar investimentos e a operação de empresas que assumam o compromisso de diversificar sua atividade de produção e difusão cultural e de garantir a igualdade de participação do produto cultural brasileiro face ao produto cultural de qualquer outra origem.

A legislação pode e deve estabelecer limite máximo de ocupação do mercado para produtos audiovisuais quando há situações de oligopólio e integração vertical com risco não só de hegemonia cultural como de exclusão do produto cultural brasileiro. O limite do número de cópias por lançamento de filme é um exemplo desse tipo de medida.

Na área da educação, a legislação deve ampliar gradativamente o número de horas de permanência dos estudantes na escola, para reduzir sua exposição à TV, assim como incluir entre as atividades escolares obrigatórias a programação cultural brasileira e fornecer os meios a cada escola pública e privada de ter acesso a videotecas, a discotecas e a bibliotecas básicas. A instituição de concursos públicos, nos diversos níveis de ensino, sobre temas culturais brasileiros, com prêmios para professores e alunos, e a difusão por meios de comunicação de massa de seus resultados estimulariam o uso daquele material. O ato de prestigiar de forma sistemática os produtores e difusores culturais brasileiros com a presença das mais altas autoridades brasileiras a eventos culturais significativos, assim como hoje prestigiam atletas, teria grande importância simbólica.

Na esfera internacional, a organização de concursos internacionais de música e literatura, com prêmios significativos, sobre temas, autores e compositores brasileiros, teria importante impacto para o conhecimento da cultura brasileira, dentro e fora do Brasil, com consequências relevantes para a formação da imagem do Brasil.

Finalmente, toda a atenção deve ser prestada para evitar a participação do Brasil em acordos internacionais, regionais ou multilaterais, de cunho aparente apenas econômico, cuja consequência seja limitar ou eliminar a possibilidade de o Estado ter instrumentos de política para promover a diversidade cultural a que deve ter acesso a sociedade brasileira e estimular as manifestações culturais brasileiras e, portanto, a formação do imaginário social e a autoestima brasileira, indispensáveis a um projeto de desenvolvimento econômico, político e social mais justo e mais duradouro.

 

*Embaixador, Samuel Pinheiro Guimarães foi Secretário-Geral das Relações Exteriores, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, foi Alto Comissário do MERCOSUL de janeiro de 2011 a junho de 2012 e ministro de Assuntos Estratégicos.

 

Publicado originalmente em capítulos pelo semanário brasileiro Correio da Cidadania.

 

Fonte: http://resistir.info.

Creative Commons advoga cultura do autor sem direitos

O deputado Paulo Teixeira (PT/SP) acaba de ser guindado ao posto de líder do PT na Câmara dos Deputados. Precisa dar-se conta de que, quando se chega a um posto tão importante, é preciso manter os olhos bem abertos. Vai aparecer muita casca de banana no caminho do nobre parlamentar. Causas que, abaixo de uma fina – e falsa – embalagem libertária, escondem interesses tão escusos quanto poderosos. Preste atenção, deputado, pois o senhor já deu a primeira escorregada.

Trata-se do episódio recente em que a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, retirou do site do MinC a acintosa propaganda de uma ONG norte-americana abertamente financiada pelos monopólios da indústria da internet (Google, Yahoo!, Facebook, entre outros) e por fundações para lá de suspeitas (Ford, Rockefeller, Soros, etc.). Um ato de soberania e de respeito às leis do país.

Mas eis que o deputado deu uma entrevista à Agência Carta Maior questionando a atitude da ministra. Vamos rapidamente esclarecê-lo, pois não pega bem o líder do partido da presidenta afirmar coisas que não têm a mínima sintonia com a realidade.

Comecemos pela afirmação de que “A licença Creative Commons está dentro de uma política de governo”, que abre a entrevista. Não, deputado, felizmente não está. Aliás, se os ditames de uma ONG suspeita fossem inseridos em políticas de governo, não passaríamos de uma república de bananas. E muito menos tem respaldo na política do Itamaraty, que foi conduzida nos últimos oito anos por dois profundos conhecedores das questões culturais: o ministro Celso Amorim e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Pelo contrário, longe de criticar a Lei Brasileira de Direitos Autorais, nossa política externa, entre outras coisas, foi defensora intransigente da Convenção da Diversidade Cultural da UNESCO, que tem como um de seus pilares principais a proteção à criatividade dos povos e à figura dos criadores.

Em segundo lugar é importante salientar que embolar software livre com Direito Autoral e com Lei de Patentes apenas gera uma grande confusão que só beneficia os tipos que financiam ONG’s como a CC. A decisão do governo brasileiro em apostar no software livre é correta. Ao invés de depender de alguns grandes oligopólios estrangeiros, investe-se em formar profissionais brasileiros, criar tecnologia nacional. Em lugar de gastar milhões de dólares anualmente em licenças de enlatados gringos, investir no desenvolvimento, por parte do próprio governo, de programas de computador que atendam mais adequadamente as nossas necessidades. Até aí tudo bem.

Mas o deputado deveria dar-se conta de que a Lei que rege a “proteção de propriedade intelectual de programa de computador” é uma, a dos Direitos Autorais é outra. Ou seja, a Lei brasileira reconhece que o tipo de conhecimento plasmado em um programa de computador e a criação artística são coisas absolutamente distintas. É por isso que existe uma Lei do Software e outra de Direitos Autorais. No primeiro caso justamente o que some é a figura do criador – da mesma maneira que no caso das patentes, também citado pelo deputado. Tanto nos softwares quanto nos medicamentos quem detém direitos não são os autores, mas os encomendantes. Pouco interessa se trezentos técnicos estiveram envolvidos na criação do último produto da Microsoft ou da Apple: os donos do produto serão o Bill Gates e o Steve Jobs. Não importa se milhares de cientistas foram os responsáveis pelo desenvolvimento de um novo medicamento: a patente será do laboratório. Já no campo dos direitos autorais a conversa é outra: independente de produtores, o criador é quem deterá os direitos. Investir no Software Livre significa retirar receita de monopólios como a Microsoft e a IBM. Atentar contra os Direitos Autorais é retirar dos autores a justa remuneração por seu trabalho e permitir que gigantes como a Google, o Facebook, a Telefónica, o YouTube, entre outros, ganhem fortunas com o tráfego de conteúdo que não lhes pertence a custo zero.

Promover tal confusão só faz bem aos patrões do Sr. Lessig. É uma visão que rebaixa o artista criador. Será que o deputado precisa de um singelo exemplo para entender? Vamos lá. O pacote para escritório da Microsoft lançado em 2007 – menos de quatro anos atrás, portanto – custava uma boa grana. Com todas as suas proteções, bloqueios e patentes, batia na casa dos R$ 1.200,00. Foram milhões de dólares gastos em seu desenvolvimento, centenas de técnicos trabalhando. Hoje não vale nada. Nem sequer é comercializado. O Copyright ainda existe, mas ninguém dá bola para ele, nem a própria companhia detentora. Existe, é claro, uma nova versão, custando cerca de R$ 1.400,00. Já “Garota de Ipanema” foi composta em 1962. Trabalharam nela apenas duas pessoas, e o investimento foi zero (salvo, talvez, o custo de algumas doses de “cão engarrafado”). Quase cinquenta anos depois continua sendo uma das músicas mais tocadas do mundo, tem centenas de novas gravações a cada ano: artisticamente, não perdeu nada de seu valor em cinco décadas. Financeiramente, ganhou.

Tentar fazer com que as duas coisas se equivalham interessa a quem? Única e exclusivamente a quem não consegue enxergar Garota de Ipanema como uma obra de arte, como fruto da mais elevada forma de expressão humana. Só a quem quer transformá-la em uma mercadoria, quer considerá-la como bytes a serem transmitidos em alguma rede privada. A legislação brasileira – como a da maioria dos países – reconhece cada obra como singular, como “extensão da personalidade de seu autor”, para usar os termos da UNESCO. E é por isso que as licenças de uso são dadas caso a caso e exclusivamente pelo autor ou por quem ele determinar como procurador. Entre a propriedade industrial do Windows, a patente do Viagra e o Direito Autoral de Tom Jobim e Vinícius de Moraes não há nada em comum, a não ser a entrevista do deputado e os argumentos de alguns desqualificados.

E não adianta vir com a falsa argumentação de que a Lei brasileira criminaliza quem baixa uma música ou a copia para seu aparelho de MP3, ou ainda quem copia trechos de um livro para uso próprio. Sendo advogado, o deputado deveria ler a Lei, especialmente em seu Título VII – “Das Sanções às Violações ao Direito Autoral”. Verá, sem dificuldade, que há uma série de penalidades cabíveis a quem violar os Direitos Autorais na execução pública e com o intuito de lucro. Nem uma linha ou referência à punição de fãs que, domesticamente, copiam obras, ou a estudantes dedicados. Não bastasse isso, o Capítulo IV da Lei exclui da cobrança de direitos autorais as cópias em um só exemplar e para uso próprio e o uso de obras “no recesso familiar”. Para completar, o deputado poderia consultar a jurisprudência: não existe na história dos tribunais brasileiros um só caso de processo e muito menos de condenação por cópia privada. Se for um pouquinho mais curioso verá a profusão de empresas que ganham dinheiro transmitindo conteúdo alheio sem remunerá-lo entre os patrocinadores da ONG do Sr. Lessing. Empresas, aliás, que pelo volume de recursos que aportam ao CC tem inclusive o direito de indicar os membros da diretoria…

Aliás, para esclarecer o congressista em definitivo, precisamos dizer que a livre circulação de conteúdo na internet é possível sem alteração da lei e sem prejuízo dos autores. E que a “flexibilização à tucana” dos Direitos Autorais não significará maior acesso ao conhecimento. O deputado deve saber que para ouvir rádio ou para assistir à televisão ninguém paga Direitos Autorais. O responsável pelo pagamento (ainda que muitos dêem calote) é quem transmite. O consumidor final não paga nada. E assim deve ser também na internet. Dois terços do conteúdo “grátis” – e sem remuneração aos autores – disponível na internet (o que corresponde a 75% dos downloads) são colocados no ar por 100 usuários. Ou seja, 100 empresas que, através da cobrança de assinaturas ou da venda de publicidade vendem o que é dos outros e embolsam todo o lucro. O espírito de “livre circulação da cultura” na internet é uma falácia. Salvo raras exceções o que existe é um negócio – espúrio – que rouba o patrimônio dos autores para vendê-lo a terceiros. Por isso deve ser estabelecida no Brasil não a liberação dos direitos, mas a taxação dos provedores de acesso e conteúdo.

Mas é importante dizer que, por si só, a liberação das músicas mediante remuneração não garante a plena circulação de nossa cultura. Voltemos ao exemplo das rádios. Mesmo tendo o direito de – assumido o compromisso de remuneração – tocar qualquer uma das 1,75 milhões de obras registradas no ECAD, só tocam meia-dúzia. Ou, mais exatamente, cerca de 200 por mês. E qual o motivo? Pela criminosa associação entre os monopólios da indústria cultural e os radioteledifusores. Compram escancaradamente o espaço nas rádios e TV’s e colocam lá apenas o que lhes interessa. É por isso que o deputado Paulo Teixeira deveria dedicar seu precioso tempo a pensar no que é possível fazer para regular o monopólio das comunicações, ao invés de fazer-lhe o favor de atacar os Direitos Autorais.

Restam ainda algumas outras escorregadas do deputado em sua curta entrevista. Alega ele que o governo poderia, a partir da mudança da Lei, “contratar autores para produzirem obras didáticas e colocá-las à disposição de todos os professores brasileiros e da população em geral”. Poderia não, deputado, pode. Se o MEC não faz isso hoje em dia o senhor deveria perguntar ao ministro Haddad a razão. Não há nenhum impeditivo legal. Provavelmente os autores ficariam mais satisfeitos do que estão hoje, quando vivem submetidos ao tacão da Editora Abril, maior vendedora de livros didáticos do país. Aliás, fale com seu colega de Congresso, o senador Requião. Ele fez isso quando era governador do Paraná e não infringiu nenhuma lei.

Tampouco faz algum sentido dizer que o Estado está “atirando no próprio pé”, pois coloca dinheiro público em obras protegidas. O deputado deveria descobrir quanto de dinheiro público foi investido para que Vinícius de Moraes compusesse sua obra. Ou em Tom Jobim? Quais recursos públicos alavancaram a produção teatral de Plínio Marcos? Que verbas do MinC transformaram João Cabral em poeta? Nem um só centavo. Ou que artista enriqueceu graças aos incentivos públicos. Isso é papo de quem acha que a cultura profissional deve ser entregue ao mercado e que só amadores merecem o subsídio público.

Finalmente, comentemos a última das estultices repetidas à exaustão por alguns inimigos da cultura nacional e reproduzida pelo deputado: o papel do ECAD. Há tempos que o nome do escritório vem sendo transformado em palavrão. Qualquer notícia desfavorável é transformada em escândalo pela mídia – que não se conforma em ter de pagar o ECAD. E qualquer notícia favorável também é motivo de escarcéu. Ou seja, donos de meios de comunicação – principalmente rádios e TV’s – gostariam de não pagar pelo uso de músicas e fazem sistemática campanha contra o órgão encarregado pelos autores de fazer a cobrança. Mas vamos às afirmações do nobre congressista.

Em primeiro lugar ele considera que o ECAD é uma “instituição pública não estatal”. Não discutiremos aqui este conceito mais do que reacionário de “público não estatal”. Já foi diversas vezes espinafrado e desmascarado aqui no HP. Mas o fato é que o ECAD é uma instituição privada, assim definida por lei e estatuto. As relações por ele regidas – empresas majoritariamente privadas usuárias de obras produzidas por pessoas físicas – são de caráter absolutamente privado. Não há nenhum interesse difuso envolvido aí: há interesses econômicos concretos. Não há interferência do ECAD “na produção e na distribuição de bens culturais”. Só há cobrança por parte dele de obras já produzidas e distribuídas. Em momento algum o ECAD estabelece relação com os consumidores finais de alguma obra. A sua relação é com as empresas que se utilizam das músicas para ganhar dinheiro. O difícil papel de cobrar de quem acha que pode sustentar o seu banquete roubando o pão alheio.

O que o deputado no fundo ataca, mesmo que sem saber, é o conceito de Gestão Coletiva. Como o parlamentar conhece bem o movimento sindical, vamos propor um paralelo, para que ele entenda. Durante os anos do tucanato foi muito difundida a tese de que a regulação trabalhista era um entulho. Para que o trabalhador precisaria de uma série de leis e de entidades para protegê-lo? Muito melhor seria a “livre negociação”. Ou seja, um empregado do Bradesco, ao invés de juntar-se com todos os seus colegas e contar com a força do sindicato nas negociações, deveria é negociar sozinho com o seu patrão. Qualquer idiota é capaz de ver que, valendo a tese dos tucanos, férias, fundo de garantia, 13º salário e outras conquistas teriam virado coisa do passado.

Pois a tese do Creative Commons é a mesma. Ao invés de existir um único órgão de cobrança – o ECAD – onde todos os autores juntam sua força para negociar com os conglomerados de comunicação, o mais correto é registrar-se no site de uma ONG estrangeira. Se alguém quiser usar a música, pode negociar diretamente com o autor, sem passar por “intermediários”. Sem muito esforço é possível ver que, se cada autor for confrontado diretamente com os patrões da área, receberá muito menos. Não é à toa que em todos os países existem estruturas centrais de arrecadação e que elas nunca são controladas pelo Estado, mas pelos próprios autores. Na França, a Sacem; na Espanha, a Sgae; em Portugal, a SPA; na Alemanha, a Gema; nos EUA, a Ascap; na Inglaterra, a PRS; no Canadá, a Socan, etc.

Finalmente, algumas palavras sobre transparência. O deputado Paulo Teixeira deveria fazer uma pesquisa rápida na internet. Verá, no site do ECAD, todos os balanços da entidade desde 2004. Encontrará também todo o regulamento de Arrecadação e uma detalhada explicação dos mecanismos de distribuição. Também terá acesso ao ranking das músicas mais tocadas, dos autores mais executados, tudo isso dividido por região do Brasil. Terá também acesso ao banco de dados com todas as obras lá registradas e com os respectivos titulares. Anualmente o ECAD é auditado interna e externamente e precisa ter as suas contas aprovadas pelas dez associações autorais que o compõe. Pode também fazer uma visitinha rápida ao site do CC. Dá para encontrar os patrocinadores. Nenhum balanço ou auditoria. Dá para ver que os diretores são indicados pelos “supporters”, mas não para saber como a grana é gasta. A bem da verdade não dá nem para descobrir direito quem está registrado lá: a busca deve ser feita pelo Google, não por acaso um dos maiores benfeitores da ONG. Quem tem mais transparência? Quem esconde o jogo?

O deputado deve lembrar que há pouco tempo o Congresso Nacional aprovou a lei que regulamentava as centrais sindicais. A direita mais reacionária incluiu um artigo que previa a fiscalização do dinheiro das entidades sindicais pelo Ministério Público. Foi preciso que o presidente Lula tivesse a coragem de vetar o esdrúxulo artigo. Quem deve fiscalizar o dinheiro dos sindicatos são os trabalhadores, disse ele. Aqui vale a mesma coisa: quem deve fiscalizar o dinheiro dos autores, decidir como ele será distribuído são eles mesmos.

A esta altura com certeza o líder do PT já compreendeu que existem dois lados na questão. De um lado está a ministra Ana de Hollanda e os criadores da música que o mundo inteiro admira. Estão, entre outros, Hermínio Bello de Carvalho, Fernando Brant, Aldir Blanc, Carlos Lyra, Roberto Carlos, Antonio Adolfo, Marcus Vinícius, Nei Lopes e outros tantos que prestaram imediata solidariedade a ela. Do outro estão o Sr. Lessig, com seu séquito de twitteiros e blogueiros, que em sua imensa maioria não toca, não canta, não cria. De um lado estão organizações que há décadas lutam pelos direitos dos criadores e reúnem entre seus filiados centenas de milhares de compositores. Do outro está um tal de Ronaldo Lemos, defendendo a mesada que ganha da Fundação Ford para manter o CC no Brasil. De um lado está, enfim, a cultura brasileira. Do outro o Google, a Microsoft, o Yahoo!. Certamente um deputado que o partido da presidenta Dilma escolheu para ser seu líder saberá escolher o lado certo na batalha.

 

Valério Bemfica

Texto extraído da Hora do Povo – 09/02/2011

O conteúdo de “Santa Joana” está mais presente do que nunca

Em entrevista ao HP, o diretor José Renato fala sobre sua recente montagem de Brecht, a peça “Santa Joana dos Matadouros”, de sua admiração pelos textos do autor, do qual é um dos maiores encenadores do país, e das características de confraternização e enriquecimento que o teatro proporciona.

(Nathaniel Braia)

 

HORA DO POVO– Fale sobre esse trabalho, quer dizer, dessa convivência com o Brecht.

JOSÉ RENATO – Eu gosto muito de Brecht. Quando estive na Europa em 58 e 59, travei conhecimento com os textos do Brecht, voltei de navio lendo todos os textos do Brecht. Eu me interessava muito por ele.

Talvez eu tenha sido o diretor no Brasil que mais fez Brecht. Fiz duas versões de “Os Fuzis da Senhora Carrar”, uma versão no Rio de Janeiro, com Tereza Raquel, no Teatro da Praça, e uma versão no Teatro de Arena, com Dira Lisboa e Lima Duarte.

Fiz duas versões da “Ópera dos Três Vinténs”, uma em São Paulo, inaugurando o Teatro da Ruth Escobar em 64 e depois, no Rio, uma versão completamente diferente, em 69, na sala Cecília Meireles.

Depois fiz, em 63, “O Circulo de Giz Caucasiano”, no Teatro Nacional de Comédia no Rio de Janeiro. Depois veio “A Exceção e a Regra”, que foram duas versões também. “Turandot”, na inauguração do Teatro Denoy de Oliveira, e agora “Santa Joana dos Matadouros”, então é uma convivência boa e difícil, porque ele exige muito.

Além disso, acho que Brecht escreveu para um tempo determinado, para uma cultura determinada, embora tenha uma riqueza de sugestões, de interpretações, que aumentam o seu raio de ação, tornado-o ao mesmo tempo atual.

Quando ele escreveu, os problemas estavam fervendo na Alemanha na época, e a busca de um estímulo para enfrentar estes problemas, de uma análise do que ocorria, era baseada muito no momento que o Brecht vivia lá em Berlim, com toda a sua análise da situação social do país, da vida social e das lutas operárias. São peças datadas, sem dúvida, mas, apesar disso, se consegue perfeitamente abrir um leque de interpretação e aprofundar mais, numa análise de uma concepção atual, porque sem dúvida nenhuma a profundidade da análise dele, a clareza com que ele coloca, a expressividade com que ele busca os exemplos nas peças dele, são muito ricos, são muito bonitos, são muito bons.

 

HP– Li há algum tempo uma crítica que dizia que os efeitos que Brecht criou naquela época causaram impacto, e hoje, já não seriam mais de tanta eficácia. Você concorda com isso?

JR – Acho que não. O processo dele é muito inteligente. O que aconteceu foi que quando Brecht apareceu, as pessoas interpretaram erradamente as lições dele. Diziam que, por exemplo, Brecht ignorava o teatro realista, o teatro psicológico, e fazia só – através do distanciamento – a análise crítica das situações. Isso não é verdade. Brecht não deixa de lado em momento algum o estudo do psicológico, ele entra na psicologia, passa através da psicologia, e alcança os seus resultados porque ele consegue passar por aí e ir muito além disso. E vai chegar, aí sim, à análise, ao distanciamento que é determinado pela análise, pela passagem pelo interior da psicologia. Ele não renega, portanto, absolutamente o realismo, ele passa através dele para chegar às suas concepções de teatro.

 

HP– Quando Brecht faz uma peça, ele faz notas sobre a peça. Aquilo amarra a peça, ou permite que se trabalhe em cima daquilo para chegar a novos ensaios. Como é que isso funciona?

JR – Existem muitos problemas ligados às teorias de Brecht. Existem os textos de Brecht onde ele procura através da estrutura desses textos mostrar o que ele pensa. Quando ele escreve comentários sobre as peças, ele amarra a um tempo determinado. É claro que temos que respeitar as notas escritas por ele. Mas não devem ser seguidas rigorosamente. Os personagens e a estrutura em que ele colocou os personagens, isso é que dá o mecanismo, o material para que a gente trabalhe em profundidade, para entender a sua mensagem e para levar sua mensagem, e tentar atualizar o mais possível a mensagem dele.

 

HP– Fale sobre a atualidade do texto.

JR – O que se passa na peça – a crise de 1929 – está acontecendo agora de novo. Está totalmente no ar. Os conteúdos dessa peça estão mais presentes do que nunca. É impressionante, você abre os jornais diariamente, e vê. Na Europa agora, o temor está crescendo. É impressionante que diante da crise causada pelos bancos, ainda se diga muitas vezes que a saída é cortar direitos dos trabalhadores, dos aposentados… é impressionante.

 

HP– Houve muita leitura do texto com o grupo. O que você diz sobre isso?

JR – As leituras eram fundamentais. Lemos muitas coisas que tivemos que abandonar depois. Na adaptação, o texto foi um pouco cortado, o texto original tem três horas e pouco de duração. Nós fizemos um espetáculo com duas horas. Mas a substância, o cerne da questão, está lá.

A cena mais importante para mim é a cena em que a Joana e o Pierpoint se encontram, e ele fala sobre o sistema que ele segue, o sistema de vida dele. Ele fala sobre o que ele é. Ele faz uma análise tão bonita, tão perfeita do que é melhor para as pessoas. Ele fala sobre a utilidade do dinheiro, a importância do dinheiro na vida das pessoas. Ele coloca o ponto de vista dele de uma maneira muito forte, e é incrível como existe cinismo na colocação. O cinismo, uma malícia tão forte, tão importante, em que Brecht conseguiu uma síntese perfeita dessa questão.

 

HP– Com a morte de Abigail, com a Joana ganhando consciência no momento de sua morte, você vê a peça como pessimista?

JR – Não acho não. A peça é realista. Ela só pode ser vista como pessimista se alguém analisa a Joana sob o ponto de vista carinhoso, se você se enche de ternura pela Joana… Mas a Joana é uma ingênua, uma beata ingênua que é usada pelas pessoas como acontece por aí a torto e a direito. O exemplo de Joanas por aí é impressionante…

 

HP– Nesse processo todo que você fez de teatro nesses vários anos, o que você procurou aprender em cada situação? O que você procurou aprender do que estava acontecendo e da própria situação que acontece em torno dessa arte?

JR – Procurei desenvolver uma ideia, que eu sempre respeitei, que eu sempre acreditei, que o espetáculo teatral tem que ter um caráter de festa e confraternização. Uma festa de encontro, onde as pessoas tenham a oportunidade de aprender. De se divertir e aprender, de se compreender, de crescer. Então eu acho que o espetáculo teatral tem a obrigação de fazer com que as pessoas saiam dele enriquecidas. A minha preocupação sempre foi essa, fazer um teatro que significasse uma grande confraternização, uma grande festa, um grande encontro, onde tudo era discutido abertamente, onde as ideias ficassem no ar e que cada um tivesse a liberdade de optar por esta ou aquela direção.

Nunca pretendi fazer teatro engajado, só por ser engajado. Mas um teatro engajado na discussão das verdades e sendo verdadeira a sua posição, sempre deixando margem para que as pessoas escolham seus caminhos, sem nenhuma imposição de direção, sem nenhuma imposição de caminho útil. A gente mostra o caminho possível, mas a escolha é de cada um. A escolha está na mão de cada um, está na consciência de cada um.

Eu acredito nesse teatro, um teatro que realiza essa confraternização, eixo fundamental para o desenvolvimento do teatro em todos os tempos. Aprendi essas coisas com Jean Villar, na França. Ele pensava exatamente assim.

Brecht, apesar de sua preocupação didática, também coloca isso. Ele diz que a principal função do teatro é o entretenimento.

Acredito que através do entretenimento inteligente é possível discutir todas as questões com inteligência, com clareza, sem que, por outro lado, ninguém se veja obrigado a discutir. Há um sentido indireto, mas sem perda de profundidade. Ele dizia que a própria estrutura das peças é que traz a verdade.

 

HP– E essa foi uma característica sua desde o Teatro de Arena…

JR – Quando tomei esse caminho de inovar, eu e meus amigos fomos descobrindo coisas e tendo certezas cada vez mais profundas. A partir de 58, decidimos fazer só textos brasileiros. Invertemos uma maneira de ver teatro no Brasil que perdura até hoje. Quando demos início ao Arena, 80% a 85% do repertório dos grupos de teatro brasileiros era composto de textos estrangeiros. Depois de 58, 60, quando a gente começou a fazer sucesso com peças brasileiras, essa percentagem se inverteu. Atualmente você vê que o repertório que está aí exposto é de 75% a 80% de peças brasileiras. Foi uma grande conquista e sem dúvida um dos méritos do nosso Teatro de Arena. Pretendo continuar isso, fazer com que o teatro exista através de descobertas de dramaturgia. Os 20 anos de ditadura deram uma cacetada no desenvolvimento disso no país. Todos os grandes autores da época, ou morreram ou aderiram à TV, foram pensar na sobrevivência e deixaram de trabalhar no caminho que estávamos traçando. Então, a partir de 1990, começou a surgir gente nova. E agora, no novo milênio, acredito que o teatro de novo está se desenvolvendo no Brasil através da dramaturgia, através de uma dramaturgia séria, engajada, competente.

 

HP– Senti vendo a peça que quando derruba-se o cenário parece que o palco cresce…

JR – A demolição do cenário é a demolição das estruturas que estão aí. São estruturas montadas pelo sistema. E, depois, o reerguimento disso vem através de outras questões que são levantadas, de conluios, conchavos terríveis, concentração em monopólios…

 

Texto extraído da Hora do Povo – 16/06/2010

Vianinha: a geração que revolucionou a nossa cultura

No dia 10 de abril, o Cine Clube UMES apresentou o documentário “Vianinha”, autor cuja obra é um marco no desenvolvimento da estética nacional-popular em nosso país. No debate que se seguiu com o diretor Gilmar Candeias, tomei, por assim dizer, a liberdade de pedir-lhe um texto que desse uma panorâmica sobre a vida e a obra de Oduvaldo Vianna Filho, em conexão com o momento de sua criação. Ele, generosamente, nos enviou este artigo.

(Caio Plessmann)

 

GILMAR CANDEIAS*

 

Aproveitei o convite para escrever este artigo e reli alguns textos de Vianinha que havia pesquisado e com os quais tive contato mais profundo em 1984, quando, com Jorge Achôa, fizemos um documentário sobre sua vida, obra e participação política, reunindo um grupo de profissionais amigos que deram à produção qualidade e camaradagem: Roberto Santos Filho, Vanderlei Klein, Fernando Peixoto, Ana de Holanda e principalmente Reinaldo Maia.

Lembro que nos chamou a atenção a qualidade e a quantidade da produção de Vianinha. O mesmo pode-se dizer dessa geração, que, com esforço coletivo, ideias e ideais, promoveu uma transformação profunda na produção cultural e social.

Vianinha escreveu para teatro, show e televisão. Também foi ator — ganhou vários prêmios, dentre os quais cinco “Molière”.

Brincando, ele dizia que lamentava ser um autor premiado, mas não encenado, por força da censura da ditadura militar.

Em 38 anos de vida, participou como ator em “Gente como a gente”, de Roberto Freire (1959), em “Revolução na América do Sul”, de Augusto Boal (1960), no episódio “Escola de Samba Alegria de Viver” dirigido por Carlos Diegues em “Cinco vezes favela” (1962) e em “O desafio”, de Paulo César Saraceni (1965), entre outros. E escreveu “Bilbao via Copacabana” (1957), “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (1960), “Quatro quadras de terra” e “Os Azeredos mais os Benevides” (1962), “Meia volta vou ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “Allegro desbum” (1972) e “Rasga coração” (1974), entre outros.

Estamos perto do aniversário de sua morte — 16 de julho —, um bom pretexto para homenagear, revisitar ou conhecer sua obra e, no caso deste artigo, mostrar um pouco da trajetória seguida para produzi-la.

Oduvaldo Viana Filho, mais conhecido como Vianinha, nasceu em 1936. Herdou do pai o nome, a profissão e a paixão pela vida e pela política: foram ambos militantes do Partido Comunista. Podemos dizer que nasceu em cena, pois, aos três meses de idade, participou como figurante no filme “Bonequinha de seda”, dirigido por seu pai.

Risonho, brincalhão e irônico, estudioso e idealista, com o pé em sua época e o olho na história, Vianinha criou e defendeu uma dramaturgia brasileira comprometida com as transformações sociais.

No teatro, na década de 50, vigorava a estética do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), com autores estrangeiros encenados em palco italiano, onde se dava grande importância ao guarda-roupa e a plateia de colunáveis por vezes era mais importante do que o próprio espetáculo.

 

“É preciso um teatro de criação e não de imitação do real, um teatro otimista, direto, violento, sátiro e revoltado, como precisa ser o povo brasileiro” (Vianinha).

 

Em 1954, Vianinha entra para o Teatro Paulista de Estudante junto com o também estudante Gianfrancesco Guarnieri; depois, eles se reencontram no Teatro de Arena. Com Augusto Boal, começam a trabalhar temas da atualidade, fatos sociais e do cotidiano, para criar uma dramaturgia mais próxima da realidade brasileira. Nesse contexto, o fenômeno do futebol é apresentado por Vianinha sob condicionantes sociais, com destaque para as tramas do poder e da traição, na peça “Chapetuba Futebol Clube”.

Vianinha e Guarnieri vão para o Rio de Janeiro e, em 1961, com Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman, participam da fundação do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), cuja proposta é a atuação nos parâmetros das ideias do “nacional e popular”, levando cultura para as massas por meio de diversas formas de arte. Propuseram e criaram um teatro feito para ser encenado sem grandes recursos cênicos, mais direto e de agitação, nas ruas, em cima de caminhões. E fizeram mais.

A atuação engajada conduz à necessidade de informação e reflexão sobre conceitos que balizavam a ação — um teatro didático. Segundo Chico de Assis, surgiu a ideia de escrever um trabalho a seis mãos. Entretanto, Vianinha “não brincava em serviço” e escreveu inteira “A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, em que um conjunto de pequenas tramas do cotidiano era apresentado à luz do conceito marxista de mais-valia. A peça foi montada na Faculdade de Arquitetura do Rio de Janeiro; em mais uma mostra de integração, os cenários foram feitos pelos alunos da faculdade.

O final da década de 50 e os anos 60 são marcados pela efervescência dos ideais e dos desejos — anos das vanguardas política e cultural. Vianinha, entre outros, não separava uma coisa da outra, o que provocou embate de ideias, principalmente, com aqueles que acreditavam em uma arte sem a influência da política mais comprometida com uma estética ou, como se dizia então, uma “arte pela arte”. Debatia-se tudo, além de política e a arte — educação, psicanálise, imprensa, etc. —, o que resultou, na época, em uma visão ampla e multifacetada do desafio brasileiro, do homem e da sociedade.

As apresentações das peças no CPC eram feitas junto com projeções de cinema, debates, shows musicais, exposições de artes plásticas, ao mesmo tempo em que serviam de pontos de venda e circulação de tabloides e cordéis “rodados” em mimeógrafos. O teatro, em particular, alcançava lugar de destaque na cultura urbana, e sobressaíram o Teatro Oficina e o Teatro Opinião.

As artes se integravam, a estética se afinava e o debate pela transformação social e política se aprofundava no seio de uma geração que acreditava em um Brasil progressista, inteligente e com menos diferenças sociais.

Uma geração que deve ser saudada, parafraseando Vinícius de Moraes e Baden Powell no “Samda da benção”: Saravá, Vianinha, Paulo Pontes, Guarnieri, Boal, Armando Costa, Zé Celso, Zé Renato e Antunes Filho! Saravá, Glauber Rocha, Cacá Diegues e Denoy de Oliveira! Saravá, Hélio Oiticica, Hélio Pelegrino e Sérgio Ricardo! Saravá, Nara Leão, João do Vale, Zé Kéti, Chico Buarque, Vandré, Caetano e tanto outros.

 

“Nessa avenida colorida…” (Lendas e mistérios da Amazônia, de Catoni, Jabolô e Waltenir).

 

Em 1964, os militares entram na contramão. O discurso de Jango Goulart na Central do Brasil serve de pretexto para que militares e conservadores organizem a “Marcha da família com Deus pela liberdade”… e “pelo golpe”. A sociedade civil engrossa a Passeata dos Cem Mil, que percorre as ruas do Rio. Não deu. Deu ditadura. A UNE é destruída e seus militantes vão para a clandestinidade; o prédio do CPC é incendiado. O Teatro Oficina, onde estava sendo encenada a peça Roda-Viva, é invadido e os atores e técnicos são espancados e presos. E com o Ato Institucional nº 5, o regime institucionaliza a censura e todos os atos de exceção.

 

 “Quando um muro separa, uma ponte une…” (Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro).

 

Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes escrevem o show “Opinião”; o espetáculo se torna símbolo da resistência cultural. Manifestações contra a censura são organizadas a cada ato da censura. A título de ilustração: dona Diocélia, mãe de Vianinha, conta que foi com Nelson Rodrigues, grande autor teatral considerado reacionário, em um dos atos de protesto, na escadaria do Teatro Municipal do Rio, e ele reclamava para ela: “Só o Vianinha… Só o Vianinha pra me pôr aqui. Imagina eu fazendo greve…”

Em 1968, usando um tema da época, Vianinha escreve “Papa Highirte”, a história do ditador deposto de um país fictício (Alhambra) que planeja no exílio a volta ao poder. A certa altura da peça, Vianinha monta um diálogo entre dois pontos de vista, o do povo e o do ditador, que, entre outras coisas, reclama do povo brasileiro, o qual não inventou a máquina de calcular e, sim, o vilão, e que, portanto, não sabe prever nem planejar e perde todo o seu tempo cantando “nas eternas esquinas e madrugadas”; por fim, conclama: “Ao trabalho, povo de Alhambra!”. Mais uma obra censurada.

Manguari Pistolão, homem comum e personagem da peça “Rasga coração”, sintetiza uma questão central do nosso herói do cotidiano: “A Revolução sou eu! Revolução pra mim já foi uma coisa pirotécnica, agora é todo dia, lá no mundo, ardendo, usando as palavras, os gestos, a esperança desse mundo”.

A saída para autores e atores sobreviverem foi a televisão. Vianinha foi convidado pela TV Globo a escrever os capítulos de uma série que já estava no ar e com baixa audiência. Aceitou e, com Armando Costa e também “palpites” de Paulo Pontes, entrou para “A grande família”, promovendo mudanças: mudou a família do Leblon e a levou para morar no subúrbio carioca. Usou seu conhecimento de teatro e sua afinada observação do universo popular e criou um “microcosmo” para desenvolver tramas com temas como a carestia, o feminismo, a sexualidade, a participação social, inclusive com o personagem Junior, filho politizado do casal de classe média. A série foi retomada hoje sem esse personagem.

Vianinha morreu em 1974. Morreu trabalhando, ditando para sua mãe as ultimas cenas de “Rasga coração”, que não chegou a ver encenada. Pode-se dizer que cada vez que um pano de cena se abre e um texto é encenado, é uma conquista. Vemos um pouco do Vianinha e de nossa história de luta e criação.

 

* GILMAR CANDEIAS, cineasta.

São Paulo, 29 de abril de 2010.

 

ODUVALDO VIANA FILHO (1936-1974)

Vianinha viveu apenas 38 anos, mas de intensa atividade.

Foi um dos fundadores do Teatro de Arena (1955), com José Renato e Gianfrancesco Guarnieri. Junto com eles participou da revolução estética produzida pela montagem da peça “Eles não usam black-tie” (1958), escrita por Guarnieri, com direção da José Renato e músicas de Adoniran Barbosa.

No Rio de Janeiro, criou o Centro Popular de Cultura da UNE (1960-1964) e foi se destacando como um autor de peças sintonizadas com a realidade brasileira, que tiveram importante significado no desenvolvimento da estética nacional-popular.

Em 1964, foi criador do Grupo Opinião, com Paulo Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira, João das Neves, Ferreira Gullar e Teresa Aragão.

Também trabalhou como ator de teatro, cinema e como autor de televisão – onde fez sucesso com a série “A grande família”, na Rede Globo (1973).

Entre suas peças encontram-se “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (1960), “Auto dos 99%” (1962), “Quatro quadras de terra” (1962), “Os Azeredos mais os Benevides” (1962), “Opinião” (1964), “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” (1965), “Moço em Estado de Sítio” (1965), “Mão na Luva” (1966), “Meia volta vou ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “A longa noite de cristal” (1971), “Corpo a corpo” (1971), “Em família” (1972), “Allegro desbum” (1973) e “Rasga coração” (1974). (14/05/2010)

 

Texto extraído da Hora do Povo

 

 

De como a CIA patrocinou os abstracionistas na Guerra Fria

No início da década de 50, menciona de passagem Frances Stonor Saunders em seu livro “Quem Pagou a Conta? A CIA na guerra fria da cultura”, alguns dos maiores pintores norte-americanos – inclusive aquele que foi o maior pintor dos EUA no século XX, Edward Hopper – assinaram um manifesto atacando o monopólio do abstracionismo nas instituições culturais do país, especialmente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o badalado MoMa. Para esses pintores, o MoMa havia imposto um “dogma” que excluía o realismo – e era seguido pelos outros museus e galerias dos EUA (pág. 289 do livro citado, trad. de Vera Ribeiro, Ed. Record, 2008).

Nenhum dos pintores que protestaram contra o monopólio abstracionista sabia que seu grande incentivador era a CIA, que tentava opor o chamado “expressionismo abstrato” norte-americano ao realismo socialista da escola soviética. Sobre isso, o livro de Frances Stonor Saunders é irretorquível em sua profusão de fatos e dados. No entanto, a situação das artes dentro dos EUA, quando isso se deu, parece-nos pouco claro no relato da autora.

Os EUA tinham uma poderosa escola realista em pintura. As assinaturas do manifesto que citamos (conhecido como “Manifesto da Realidade”) chegam a meia centena de pintores. E, entre eles, Hopper, nessa época, provavelmente, o maior pintor realista do Ocidente. Portanto, o monopólio abstracionista abafava dentro dos EUA e nos países para os quais o “expressionismo asbstrato” foi exportado, não apenas os pintores soviéticos e desses outros países, mas também os realistas norte americanos.

Em suma, não se tratava de uma operação encoberta da CIA apenas contra o realismo socialista, mas contra o realismo em geral.

O problema, naturalmente, era o sentido crítico da pintura realista. A luz fria que banha a solidão das figuras de Hopper, seus quadros de pequenas cidades desertas, os flagrantes de escritório, hotel, cinema, balcão de café, não eram adequados, certamente, aos objetivos da CIA e do establishment. Não era esse os EUA da propaganda anti-comunista. Portanto, só restava aos propagandistas a ruptura com a realidade – não somente em sua propaganda, mas também na arte que queriam opor ao realismo socialista. Isso explica porque o “expressionismo abstrato” foi escolhido como arte oficial dos EUA na Guerra Fria, contra a melhor pintura que os norte-americanos produziam. 
A segunda questão diz respeito à situação dos artistas norte-americanos dentro dos EUA.

Em 1943, em meio à II Guerra Mundial, foi suspensa a política de incentivos públicos à cultura do governo Roosevelt, que incluía o Projeto Federal da Arte (FAP – “Federal Art Project”), o Projeto Federal da Música (FMP – “Federal Music Project”), o Projeto Federal do Teatro (FTP – “Federal Theatre Project”), o Projeto Federal dos Escritores (FWP – “Federal Writers’ Project”), a Seção de Pintura e Escultura (“Section of Painting and Sculpture”) e o Projeto de Arte em Obras Públicas (“Public Works of Art Project”).

Esses projetos, que haviam reunido alguns dos artistas mais importantes do país, não foram retomados após a II Guerra, em meio à reação macartista que começou no governo Truman. Pelo contrário: algumas das obras dos artistas que participaram dos projetos do governo Roosevelt – por exemplo, o quadro “Welcome Home”, de Jack Levine – se tornaram assunto do Comitê para Atividades Anti-americanas da Câmara, que tinha o deputado republicano Richard Nixon como principal cão-de-fila.

A política cultural do país, na ausência de uma ação pública, governamental, ficou à mercê de instituições privadas – a principal delas, justamente, o MoMa, fundado pela família Rockefeller, que determinava a tendência do “mercado” de arte, do qual os artistas se tornaram dependentes. O que garantia a independência da arte americana era a política e os fundos públicos. Na ausência deles, o Rockefeller Brothers Fund e o MoMa, dirigido pelo próprio Nelson Rockefeller, se tornaram os ditadores da arte norte-americana.

Nas palavras de Frances Stonor Saunders: “Seu presidente [do MoMa], durante a maior parte das décadas de 1940 e 1950, foi Nelson Rockefeller, cuja mãe, Abby Aldrich Rockefeller, fora co-fundadora do museu em 1929 (Nelson Rockefeller chamava-o de ‘Museu da mamãe’). Nelson era um defensor entusiástico do expressionismo abstrato, ao qual se referia como a ‘pintura da livre empresa’. Ao longo dos anos, só a sua coleção particular acumulou 2.500 obras. Milhares de outras cobriam as entradas e paredes dos prédios que pertenciam ao Chase Manhattan Bank, de propriedade de Rockefeller” (pág. 281).

Mas o que eram os “expressionistas abstratos”? Um grupo de pintores de Nova Iorque cujo único ponto de coesão era a rejeição ao realismo. Todos eles, sem exceção, tinham, no final da década de 40 e início da década de 50, uma posição política “à esquerda”, ou assim acreditavam. Alguns deles haviam sido filiados ao Partido Comunista e o principal pintor do grupo, Jackson Pollock, “na década de 1930, estivera envolvido no seminário comunista do muralista mexicano David Alfaro Siqueiros”. Foi o quanto bastou para que os macartistas, com sua costumeira truculência, os considerassem agentes de Moscou. Um deles, relata Saunders, chegou a argumentar que “os quadros abstratos eram, na verdade, mapas que assinalavam fortificações estratégicas dos Estados Unidos. ‘A arte moderna é, na realidade, um meio de espionagem’, acusou um adversário. ‘Se você souber lê-los, os quadros modernos revelarão os pontos fracos das fortificações dos Estados Unidos e de construções cruciais, como a represa de Boulder’”.

No entanto, os macartistas eram apenas as SA do fascismo norte-americano, isto é, os seus bate-paus. Outro era o coturno do diretor da CIA, Allen Dulles, e, naturalmente, de Nelson Rockefeller – que controlava a própria CIA (oficialmente, inclusive, a partir de 1954, nomeado por Eisenhower como encarregado das operações encobertas dos EUA): “para eles, o expressionismo revelava especificamente uma ideologia anticomunista, a ideologia da liberdade, da livre iniciativa. Sendo não figurativo e politicamente silencioso, ele era a própria antítese do realismo socialista”.

Como se viu logo em seguida, o abstracionismo não tinha nada de “silencioso” do ponto de vista político – nesse sentido, era, ele próprio, uma espécie de operação encoberta, até mesmo de seus pintores.

O “expressionismo abstrato” havia sido, até o final dos anos 40, um fracasso de público e de crítica. De repente, a mídia o transformou em autêntica e original contribuição dos EUA à cultura mundial e na única escola válida em pintura. Henry Luce, o dono do grupo Time-Life, tornou-se propagandista do abstracionismo e “em agosto de 1949, a revista Life dedicou sua página central dupla a Jackson Pollock, colocando o pintor e sua obra em todas as mesinhas de centro dos Estados Unidos”.

Luce havia sido convertido ao novo credo artístico por Alfred Barr, nomeado, por Abby Rockefeller, primeiro diretor do MoMa. O argumento que convenceu Luce não era propriamente estético: “[Barr] convenceu Henry Luce, da Time-Life, a alterar sua política editorial para com a nova pintura, dizendo-lhe numa carta que ela deveria ser especialmente protegida, e não criticada como na União Soviética, porque, afinal, essa era a ‘livre iniciativa artística’”.

Em resumo, enquanto a propaganda anti-comunista acusava o realismo socialista de ser uma arte dirigida pelo Partido e pelo Estado soviéticos, a arte que era apresentada como alternativa era dirigida clandestinamente pela CIA, sob o patrocínio dos Rockefellers.

Saunders mostra como o staff do MoMa parecia uma sucursal da CIA – afinal, o chefe era o mesmo.

Assim, a mídia, um punhado de críticos e o establishment norte-americano se puseram em campo pelo “expressionismo abstrato”. O passo mais ridículo, provavelmente, foi um discurso de Eisenhower em defesa do abstracionismo. Ao contrário de Truman, um conhecedor de Rembrandt e demais mestres flamengos – e admirador declarado da pintura realista – Eisenhower era um paiol de ignorância nessas questões. O que não o impediu de fazer a apologia do abstracionismo, concluindo que “isso é muito diferente na tirania. Quando se faz dos artistas escravos e instrumentos do Estado, quando os artistas se tornam os grandes propagandistas de uma causa, o progresso é bloqueado e a criação e o talento são destruídos”. Realmente, ele preferia que os artistas fossem instrumentos da CIA, isto é, do Estado imperialista norte-americano e dos monopolistas que o dominam.

Saunders cita Eva Cockroft, que “em 1974, num artigo seminal para a revista Artforum, intitulado ‘Expressionismo abstrato: arma da Guerra Fria’, concluiu: ‘Os elos entre a política da guerra fria cultural e o sucesso do expressionismo abstrato nada têm de coincidentes (…). Foram conscientemente forjados, na época, por algumas das figuras mais influentes que controlavam a política dos museus e defendiam uma tática esclarecida de guerra fria, destinada a atrair intelectuais europeus’. Além disso, asseverou Cockroft, ‘em termos de propaganda cultural, as funções do aparelho cultural da CIA e dos programas internacionais do MoMA eram similares e, na verdade, apoiavam-se mutuamente’”.

Na CIA, além de Allen Dulles, um dos mais entusiasmados patrocinadores do abstracionismo foi Thomas Braden, o chefe da Divisão de Organizações Internacionais – o mesmo que, como revelou a Comissão Church do Congresso dos EUA, foi um dos organizadores do suborno de jornalistas dentro dos EUA pela CIA, conhecido como “Operação Mockingbird”.

Braden, posteriormente, comparou o papel da CIA no patrocínio do abstracionismo ao do papa durante a Renascença: “Esqueci qual foi o papa que encomendou a Capela Sistina, mas imagino que, se isso tivesse sido submetido à aprovação do povo italiano, teria havido inúmeras reações negativas: ‘Ele está nu’, ou ‘Não era assim que eu imaginava Deus’, ou qualquer coisa parecida. Não creio que a capela fosse aprovada pelo parlamento italiano, se este existisse na época. É preciso um papa, ou alguém com muito dinheiro, para reconhecer a arte e apoiá-la. E, passados muitos séculos, as pessoas dizem: ‘Olhem! A Capela Sistina, a mais bela criação da Terra!’ Esse é um problema que a civilização tem enfrentado desde o primeiro artista e o primeiro multimilionário – ou papa – que o patrocinou; no entanto, se não fossem os multimilionários e os papas, não teríamos a arte. Você sempre tem que combater os ignorantes, ou, para dizê-lo de maneira mais polida, as pessoas que simplesmente não entendem”.

Além de esquecer o papa que encomendou a Capela Sistina, Braden esqueceu que: 1) a função da CIA não é, como a do papa, representar Deus na Terra; 2) nenhum papa patrocinou artistas clandestinamente com objetivos políticos; 3) o interesse dos papas não era escantear artistas em prol de outros; 4) Pollock e seus colegas não eram exatamente Michelangelo e Rafael.

Assim, o “expressionismo abstrato” foi exportado para a Europa com dinheiro da CIA e do Rockefeller Brothers Fund. O monopólio abstracionista acabou por empobrecer os museus americanos e transformar-se num mero negócio, algo que acabou por escandalizar até mesmo Peggy Guggenheim, famosa pelo patrocínio de qualquer “vanguardista” que lhe chegasse perto.

Porém, aqui, uma pergunta se impõe: e os pintores, que achavam que estavam contestando o sistema. Como reagiram eles diante do inesperado – e, na verdade, inexplicável – sucesso?

A medida que os dólares enchiam suas contas, boa parte dos pintores fizeram um cavalo de pau ideológico: “Motherwell era membro do Comitê Norte-Americano pela Liberdade Cultural [uma fachada da CIA]. O mesmo se aplicava a Baziotes, Calder e Pollock (embora este último estivesse totalmente embriagado ao ingressar na entidade). (….) Mark Rothko e Adolph Gottlieb, ex-simpatizantes do comunismo, tornaram-se anticomunistas engajados durante a Guerra Fria”.

Houve uma exceção:

“Ad Reinhardt foi o único expressionista abstrato que continuou a aderir à esquerda, e, nessa condição, foi praticamente ignorado pelo mundo artístico oficial até a década de 1960. (….) Reinhardt condenou cabalmente seus colegas pintores por sucumbirem às tentações da ambição e da ganância. Chamou Rothko de ‘fauvista de apartamento conjugado da revista Vogue’ e Pollock de ‘vagabundo da Harper’s Bazaar’. Barnett Newman era ‘o mascate-artesão e lojista educacional da vanguarda’ e ‘uma mescla de gritalhão fanático e explicador/recreador residente’ (comentário que lhe valeu um processo por parte de Newman). Reinhardt não parou por aí. Declarou que um museu devia ser ‘um tesouro e um túmulo, não um escritório de contabilidade ou um parque de diversões’. Comparou a crítica artística a ‘baboseiras de otários’ (….). Reinhardt foi o único expressionista abstrato a participar da passeata de Washington em favor dos direitos dos negros, em agosto de 1963″.

Porém, os colegas de Reinhardt pagaram o preço por vender a alma ao diabo sem nem ao menos perceber quem era o diabo:

“Jackson Pollock morreu num acidente de automóvel em 1956, ocasião em que Arshile Gorky já se havia enforcado. Franz Kline bebeu até morrer, no espaço de seis anos. Em 1965, o escultor David Smith faleceu em conseqüência de um desastre de automóvel. Em 1970, Mark Rothko cortou os pulsos e sangrou até morrer no chão de seu estúdio. Alguns amigos acharam que ele se havia suicidado, em parte, por não conseguir lidar com a contradição de ser cumulado de recompensas materiais por trabalhos que ‘berravam sua oposição ao materialismo burguês’“. 

 

Carlos Lopes, diretor de Redação da Hora do Povo

Texto extraído da Hora do Povo – 31/10/2008

Barreto: “A Embrafilme seria hoje a Petrobrás do audiovisual”

Na ativa desde 1961, Luiz Carlos Barreto já produziu mais de 70 filmes no Brasil, inclusive o recordista de bilheteria, com 12 milhões de espectadores, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” – produzido em 1976 e distribuído pela Embrafilme.

Nesta oportuna entrevista concedida a Beto Almeida, Barreto apresenta seus pontos de vista para reverter a melancólica situação do nosso mercado cinematográfico.

Desde o fim da Embrafilme, em 1990, o cinema brasileiro, sem o estímulo de qualquer política pública para a distribuição, não conseguiu recuperar o seu mercado natural.

O ponto máximo que atingiu nesse período foi no ano de 2003, quando chegou a 22.055.249 espectadores, correspondente a 21,4% do público que foi ao cinema naquele ano.

Depois foi despencando continuamente até chegar, no primeiro semestre de 2008, ao insignificante patamar de 3.510.187 espectadores.

Se o segundo semestre confirmar o primeiro, o que tem sido a tradição, todos os filmes brasileiros lançados em 2008 – mais de meia centena – totalizarão um número de espectadores pouco acima da metade do que foi alcançado por “Dona Flor”, há 30 anos.

 

CARLOS ALBERTO ALMEIDA*

 

“A Embrafilme seria hoje uma Petrobrás do audiovisual se não fosse extinta”. A declaração é de Luiz Carlos Barreto, um dos mais renomados produtores do cinema brasileiro (“O Quatrilho”, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, etc.), ao posicionar-se favoravelmente à reconstituição de uma empresa pública como a Embrafilme, capaz de alavancar a produção audiovisual brasileira, assegurar ao povo o acesso ao cinema brasileiro e proteger o setor da ocupação internacional. “A Embrafilme cumpriu um papel excepcional no passado e se não tivesse sido privatizada, destruída pelo furacão Collor hoje ela prometia ser uma empresa do porte de uma Petrobrás ou uma Vale do audiovisual, ela estava indo neste caminho”, exclamou.

Barretão, como é conhecido, lembra que a Embrafilme era uma empresa de economia mista que atuava eficientemente, de forma que naquele período o cinema brasileiro chegou a deter 44 por cento do mercado. “Depois da demolição da Embrafilme nós fomos a zero praticamente e hoje nós ainda não alcançamos nem 10 por cento do mercado cinematográfico. Temos que tirar a cultura e o cinema em particular do casulo das elites, pois só os frequentadores de shoppings, as elites, têm acesso aos bens culturais”, explicou.

Para o cineasta e produtor, o audiovisual é algo tão importante como o petróleo e a energia. “Informação e conhecimento, aliados ao espetáculo, pois através do espetáculo se pode democratizar didaticamente a informação e o conhecimento, itens estratégicos no mundo atual”, argumentou. Barretão acrescentou que no mundo atual há duas prioridades muito claras, os alimentos e as imagens, argumentando que  no audiovisual também estão envolvidas questões como  a conquista ou não da soberania nacional, a conformação de uma identidade cultural de nação, sem esquecer a geração de empregos.

 Luiz Carlos Barreto entende que o cinema brasileiro vive um processo crônico de dificuldades, mas avalia que o país possui todas as armas necessárias para superar esta fase e tornar o setor evoluído, em direção à auto-sustentabilidade do audiovisual. “Esta luta já poderia ter sido vencida. Nosso futuro está no passado, ou seja, nós já tivemos 44 por cento do controle do mercado do cinema para a produção nacional. Falta-nos um projeto estratégico”, sinaliza.

Para ele não basta estimular a produção, todas as leis de incentivo à cultura reduzem-se à produção, mas não incidem sobre o consumo dos bens culturais. Traçando uma radiografia do consumo da cultura no Brasil, Barreto se declara escandalizado com o fato de sermos um povo de 190 milhões de habitantes, dos quais apenas 10 milhões frequentam cinema, apenas 1 milhão compra discos, 100 mil compra livros, 300 mil frequentam teatro. “Isto não existe!”, protesta. Para ele, se estamos numa sociedade de consumo de massas, não se pode fazer cinema para um círculo restrito da elite e se sentir confortável com isto. Como alternativa, propõe que seja instituído o Vale-Cultura, similar ao Vale-Refeição, por meio do qual o trabalhador e sua família poderiam ter acesso ao consumo de bens culturais. Ele lamentou a queda-de-braço entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Fazenda, atrasando a implantação do mecanismo, em razão de uma discordância sobre a inclusão ou não no sistema das empresas de lucro presumido, além das de lucro real. “A sociedade é que está sendo prejudicada com este embate”, lamenta o veterano produtor.

Barreto critica a existência de um enorme contingente de burocratas nos órgãos de cultura, sem que haja gente realmente vinculada ao cinema. Contou com tristeza que recentemente o premiadíssimo cineasta Nelson Pereira dos Santos foi recebido numa Secretaria do Minc com a seguinte expressão “O senhor é de onde?”. Embora critique o inchaço de burocratas, Barreto faz questão de defender a presença do Estado como ferramenta indutora e executora de políticas públicas capazes de defender o audiovisual brasileiro, tal como se faz na França ou na Venezuela. “Se nós tivéssemos um público de 50 ou 60 milhões de pessoas com capacidade de consumir cultura tudo seria resolvido na disputa de fatias de mercado pelos empreendedores, mas, a realidade não é esta”, disse.

Declarou-se impressionado com o que viu em viagem recente à Venezuela onde visitou o projeto governamental chamado Villa Del Cine, cujo objetivo é dotar não apenas a Venezuela mas a América Latina de uma capacidade de produção de alto nível, uma espécie de Hollywood latino-americana. “Eu vi tecnologia de ponta à disposição de diretores, editores, montadores, produtores, não vi quase burocratas, mas gente com a mão na massa, realizando filmes sobre temáticas nacionais e latino-americanas. É assim que se aprende, fazendo, não apenas em teoria” relatou um entusiasmado Luiz Carlos Barreto, que, inspirado, lembrou do cineasta revolucionário italiano Roberto Rosselini, para quem educar-se é vivenciar. “Temos aqui o exemplo do Lula, que é um doutor em vida,  aprendeu vivendo, apanhando, superando, não na teoria”, declarou, sem esconder a satisfação de não ter visto no país caribenho inchaço de burocratas e de ver o cinema venezuelano levantando voo.

 

(*) Presidente da TV Comunitária de Brasília

 

Texto extraído da Hora do Povo – 03/09/2008