O dragão da maldade não brinca em serviço

As produções americanas de cinema detêm 95% de seu mercado natural. Cerca de 1.500.000.000 espectadores/ano assistem filmes americanos nas mais de 35.000 salas de exibição existentes naquele país, deixando nas bilheterias a bagatela de U$ 10 bilhões de dólares/ano.

São números deveras impressionantes, se comparados aos 5.210.000 espectadores que assistiram no Brasil a filmes nacionais, de janeiro a julho de 2007, nas 1.900 salas aqui existentes.

Neste período, que corresponde a todo o primeiro semestre de 2007, o cinema brasileiro atingiu um dos mais baixos índices de ocupação do mercado interno registrados em sua história: 9,7%.

Para uma cinematografia que foi vista por 60.000.000 de espectadores no Brasil, em 1978, e chegou a ocupar 50% de seu mercado natural em 1982 e 1984, cair abaixo dos 10% é uma verdadeira calamidade.

Se considerarmos que em 2003, primeiro ano do governo Lula, a taxa de ocupação do mercado interno pelo filme brasileiro foi de 21,4% (22.055.249 espectadores), cair a 9,7% em três anos e meio é um sintoma mais do que evidente de que as políticas adotadas pelo Minc e pela Ancine não estão ajudando em nada ao cinema nacional.

O curioso é que a produção tem crescido. O governo federal tem deixado de arrecadar mais de 100 milhões de reais por ano, para que as empresas doem à produção cinematográfica uma parcela dos impostos a ele devidos.

Sem dúvida é uma quantia modesta, porém nada desprezível. Pode-se dizer que os critérios para sua distribuição não são os mais adequados, que a média dos filmes produzidos no Brasil tornou-se morna, um tanto insossa e pouco sintonizada com a realidade brasileira, que boa parte dos realizadores andam deslumbrados com os respectivos umbigos, ou com a reprodução em tela grande dos clichês televisivos, porém errado estará quem quiser ver na produção a causa principal de uma crise que é essencialmente de mercado. Mais precisamente, uma crise gerada pela perversa e inadmissível monopolização do mercado de distribuição de filmes e do mercado de exibição cinematográfica no Brasil por empresas norte-americanas.

Nos tempos de Glauber Rocha, quando o governo resolveu criar um fundo para a produção nacional com recursos obtidos através da taxação dos filmes importados, os cineastas disseram: melhor usar esses recursos para criar uma distribuidora, a nossa maior dificuldade não é produzir os filmes, mas fazer com que eles cheguem às telas.

Passar pelo gargalo das distribuidoras estrangeiras, que dominavam o mercado, para chegar aos exibidores, era o problema, pois no caso do cinema as distribuidoras têm um papel decisivo, já que são elas que assumem a responsabilidade pelos investimentos em cópias e divulgação.

Nasceu a Embrafilme. Com as rendas obtidas através da distribuição, a estatal em pouco tempo entrou também no terreno da produção.

A Embrafilme e a cota de tela (obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais por um determinado número de dias no ano) levaram o cinema brasileiro a uma ocupação de 50% do seu mercado natural.

Depois que Collor liquidou a Embrafilme e o cinema brasileiro despencou literalmente a zero, nossos cineastas, no desespero, fizeram exatamente aquilo a que se haviam recusado quando a ditadura lhes ofereceu recursos para produzirem seus filmes. Dessa vez pensaram: se a produção estiver garantida, o mercado cuidará do resto (distribuição e exibição). E assim mergulharam no reino encantado das leis de incentivo fiscal, ignorando os lúcidos alertas emitidos por nosso companheiro Denoy de Oliveira em vários artigos aqui no HP.

Escapou-lhes um detalhe para o qual Glauber, assim como Denoy, sempre estiveram atentos.

Apesar de ocupar 95% do seu mercado natural, Hollywood é um dragão insaciável: 65% do faturamento da indústria cinematográfica americana vêm da exploração de seus filmes no mercado externo e não no seu próprio mercado.

Sem o mercado externo, Hollywood e toda a sua parafernália simplesmente não existem. Não é de estranhar, portanto, a voracidade e a virulência com que se lançam sobre os mercados alheios, os quais devem inclusive passar a ser considerados, conforme seus critérios, como uma extensão natural de seu próprio mercado.

A partir da década de 90, o tradicional controle dos mercados externos pela distribuição já não lhes parecia suficientemente seguro. Expandiram então suas redes de exibição pelo mundo.

A Cinemark, que possui 2.265 salas de projeção nos EUA, se gaba em seu site de ter chegado em nossa praça no ano de 1997, tendo rapidamente se convertido na “maior rede de cinemas do Brasil, hoje operando mais de 350 salas distribuídas em 26 cidades brasileiras. A empresa, desde o início de suas operações, já vendeu mais de 160 milhões de ingressos, faturou mais de 300 milhões de reais só em 2006 e deve alcançar um faturamento acima de 330 milhões em 2007”.

Isso significa que, de acordo com os seus dados, a Cinemark sozinha já açambarca cerca de 40% do público e do faturamento das bilheterias de cinema no Brasil.

O site da empresa diz ainda que: “A Cinemark é líder do setor de exibição cinematográfica na América Latina e terceira empresa do setor norte-americano, operando hoje mais de 3.900 salas de cinema entre Estados Unidos, Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras, Nicarágua, México, Peru, Panamá e Taiwan”.

Não diz, no entanto, que 8,9% desse latifúndio foi construído no Brasil, em 10 anos, às custas de muitos financiamentos do BNDES, feitos à sombra de um governo neoliberal e estranhamente mantidos no atual governo sem que uma autoridade sequer do Minc ou da Ancine desconfie de que o objetivo de tamanha agressividade empresarial do monopólio americano está a serviço de uma causa: passar os filmes deles e não os nossos.

Mais discreta, a UCI, pertencente ao National Amusements Inc, cujo modus operandi é semelhante ao da Cinemark, já atingiu no Brasil um número de salas que corresponde a um terço das 350 criadas por sua co-irmã.

Como se não bastasse, há ainda a Hoyts, cujo site traz as seguintes informações: “Em outubro de 1999, duas grandes empresas internacionais de entretenimento, a norte-americana General Cinema Companies e a australiana Hoyts Cinemas Limited, decidiram juntar forças e criar um multiplex [15 salas] com tecnologia e modernidade sem precedentes no Brasil. Utilizando o know-how adquirido em seus países de origem e em outros que atuam na América do Sul, como Argentina, Uruguai e Chile, elas construíram um inovador e gigantesco complexo de exibição de filmes, o multiplex Hoyts General Cinema”.

Na Argentina eles já dispõem de cinco complexos, no Uruguai de três e no Chile de seis. Vão se expandir aqui também.

Espremidos num canto, os exibidores nacionais que já chegaram a controlar 100% do mercado e hoje pagam os seus pecados pela falta de visão estratégica, deixando-se embalar pelo vício de considerar que “filme estrangeiro é que traz dinheiro”, estão sob ameaça de extinção.

Diante dessa ocupação crescente, acelerada, predatória e abusiva do nosso mercado de exibição cinematográfica, o que fazem o Minc e a Ancine? Reduzem gradualmente a cota de tela para projeção obrigatória de filmes brasileiros, que já era quase simbólica em 2004 – 63 dias por ano -, para um índice que vai de 28 a 42 dias, conforme o tipo de sala, em 2007.

Pior que a redução é o brilhante raciocínio que a engendrou: se a procura do público por filmes brasileiros está caindo, a cota deve acompanhar a queda.

O resultado não poderia ser outro. Chegamos a 9,7% de ocupação do nosso próprio mercado.

Não basta – e sob muitos aspectos é inclusive contraproducente – distribuir dinheiro a fundo perdido para a produção. É preciso ter política para a distribuição e para a exibição.

O cinema brasileiro está longe das telas e não aparece na televisão, assim como a música brasileira – a que presta – está cada vez mais distante das rádios e tevês, sejam elas privadas ou públicas.

Quem quiser acabar com o cinema brasileiro, com a música brasileira, com as atividades culturais que impliquem em processos industriais, que siga apoiando a política libertária do Minc: a de oferecer irrestrita liberdade para que os monopólios manietem e manipulem o mercado a seu bel prazer.

Quem não quiser deve tomar consciência de que a mudança necessária não é tópica.

Se há um setor onde o imperialismo não brinca em serviço é o da cultura – “entertainment”, dizem eles para encobrir o caráter ideológico que impregna toda e qualquer produção cultural. Dentro deste setor o carro chefe, ao qual eles dispensam maiores cuidados, é o cinema.

Sem patriotismo, consciência nacional, coragem e ousadia das autoridades públicas e da laboriosa comunidade cinematográfica não há santo guerreiro capaz de tirar o nosso cinema do gueto onde ele está sendo meticulosamente estrangulado.

 

Sérgio Rubens de Araújo de A. Torres

Texto extraído da Hora do Povo – 05/09/2007

Civita recebe R$ 1 bilhão para se tornar laranja da Telefónica na TVA

O relatório de Plínio de Aguiar Júnior, conselheiro diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), sobre a anuência prévia para a venda da TVA (Grupo Abril) para a Telefónica (Telecomunicações de São Paulo S.A), demonstra claramente a violação da Lei do Cabo, que estabelece um limite de 49% de ações com direito a voto (ordinárias) para estrangeiros. Para burlar a legislação, a Abril e a Telefónica estabeleceram no Acordo de Acionistas da Comercial Cabo e da TVA Sul que todas as deliberações do Conselho de Administração e da Assembléia Geral dependerão da aprovação de uma “Reunião Prévia”, na qual participam e votam todos os acionistas, inclusive os detentores de ações preferenciais.

A decisão da Anatel, tomada na reunião do dia 18 de julho por 3 votos a 2, foi para se adequar à Lei do Cabo. Mas, por esse artifício, é a Reunião Prévia que tem o poder de mando, mostrando quem terá o controle independente dos percentuais das ações ordinárias, uma vez que todos votam na referida reunião: a Telefónica, com 86,7% do capital total da Comercial Cabo e 91,5% da TVA Sul, o que torna o Civita um simples laranja da empresa oficialmente espanhola, mas que tem por trás fundos de pensão e bancos norte-americanos.

Sinteticamente: a Telefónica (Telesp S.A.), através da Navytree, ficou com 86,7% do capital total da Comercial Cabo (TV a Cabo em São Paulo), com 19,9% das ações com direito a voto (ordinárias), e 91,5% do capital total da TVA Sul (TV a Cabo em Curitiba, Foz do Iguaçu, Florianópolis e Camboriú), com 49% das ações com direito a voto – além de 100% da Lightree, prestadora de serviços de MMDS (microondas).

Formalmente essa distribuição estaria dentro da lei, porém, como observou o conselheiro, “além das participações societárias devem ser observadas, contudo, outros aspectos para a verificação efetiva do controle”. E assim, demonstra Plínio Aguiar, que a existência e a finalidade da Reunião Prévia é inequívoca para a definição das decisões. Diz o item 4.1 do Acordo de Acionistas da Comercial Cabo acertado entre Telefónica e grupo Abril: “Os Acionistas concordam em sempre comparecer às assembleias gerais da Companhia e a exercer os direitos de voto inerente às suas Ações de modo uniforme”.

Ainda no mesmo item, “a Holding Cabo SP se compromete a fazer com que os membros do Conselho de Administração da Companhia por ela indicados sempre compareçam e votem nas reuniões do referido órgão no tocante aos Assuntos Materiais do Conselho (conforme definido na Cláusula 4.3) de acordo com o que for determinado em reuniões realizadas previamente a cada uma das assembleias gerais e/ou reuniões do Conselho de Administração da Companhia (“Reunião Prévia”) em que sejam deliberados os Assuntos Materiais do Conselho ou da Assembleia, conforme o caso”.

Estabelecida a Reunião Prévia como instância responsável pelas decisões, o item 4.3 do Acordo de Acionistas define quem vota: “A aprovação das matérias submetidas à Reunião Prévia e que sejam relacionadas a questões patrimoniais e de investimentos da Companhia, de acordo com o disposto nas Cláusulas 6.4 e 7.4 deste Acordo (“Assuntos Materiais do Conselho” e “Assunto Materiais da Assembleia”, respectivamente e, em conjunto, “Assuntos Materiais”) deverá contar com o voto favorável de cada um dos acionistas da Companhia e de cada um dos Acionistas da Holding Cabo SP”. Com isso, fica patente que a aprovação das matérias depende da anuência da Telefónica. Ou seja, no dizer de Plínio Aguiar, “o art. 7º da Lei nº 8.977, de 6 e janeiro de 1995 (Lei do Serviço de TV a cabo) não estaria sendo observado, uma vez que o seu objeto é assegurar que as decisões em concessionárias de TV a Cabo sejam tomadas exclusivamente por brasileiros, o que não ocorrerá no presente caso”.

Cabe destacar do Acordo que “as decisões tomadas nas Reuniões Prévias servirão como orientação de voto para todos os efeitos legais e vincularão os votos de todos os Acionistas nas assembleias gerais da Companhia, bem como os votos dos membros do Conselho de Administração eleitos nas reuniões respectivas”, inclusive entre as questões patrimoniais de investimentos, como “aprovação e modificação do Plano Anual de Negócios e do Orçamento Anual da Companhia”. Caso não defina uma posição na Reunião Prévia, os acionistas se comprometem a “realizar uma nova Reunião Prévia para dirimir o impasse”. Isto é, mais uma vez fica evidente a subordinação do Conselho de Administração e da Assembleia Geral da Holding Cabo SP às decisões da Reunião Prévia.

O conselheiro sublinha que sob a ótica do Regulamento para Apuração do Controle e de Transferência de Controle Acionário em Empresas Prestadoras de Serviços de Telecomunicações, fica claro quem terá o controle, conceituado como “poder de dirigir, de forma direta ou indireta, interna ou externa, de fato ou de direito, individualmente ou por acordo, as atividades sociais ou o funcionamento da empresa”. Para Plínio Aguiar, “a Telesp [Telefónica] possuirá 86,7% do capital total da prestadora. A Telesp será, portanto, a grande fonte de recursos financeiros da prestadora, inclusive nas situações de necessidade de aporte de capital”.

Sobre este Regulamento, no item sobre o “uso comum de recursos, sejam eles materiais, tecnológicos ou humanos”, ele frisou que o Acordo de Acionistas estabelece que a operação e o gerenciamento da parte de telecomunicações ficarão a cargo da Telefónica: “A Holding Geral é concessionária de serviços de telefonia fixa comutada na área de São Paulo e uma das maiores empresas de telecomunicações do país, contando portanto com alto nível de experiência no gerenciamento e operação de redes de comunicação, bem como de infra-estrutura de comunicação”.

No Regulamento para apuração de controle é citado a “adoção de marca ou estratégia mercadológica ou publicitária comum”. Conforme o conselheiro, “já existe acordo firmado entre a Telesp e a TVA para comercialização conjunta de produtos”. De fato, a estratégia mercadológica comum já vinha ocorrendo muito antes da anuência prévia da Anatel. A esse respeito, em entrevista ao HP, em março, o diretor-executivo da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), Alexandre Annenberg, declarou: “Isso já está acontecendo e a gente percebe inclusive pela propaganda comercial que está sendo feita. Você abre os jornais e vê as propagandas conjuntas, sendo oferecido ao consumidor que ele pode ter como provedor de internet o Speedy, da Telefónica, ou o Ajato, da TVA. A Telefónica já está oferecendo pacotes de TV por assinatura, o que mostra que a operação comercial já está em andamento”.

As questões que foram abordadas referem-se ao controle acionário da Comercial Cabo (TV a Cabo em São Paulo). No caso da TVA Sul, formalmente, há uma diferença por estar fora da área de concessão da Telefónica (Telesp). Contudo, segundo Plínio Aguiar, “observa-se que no Acordo de Acionistas da TVA Sul (fls. 277 a 298, do Processo) as cláusulas 4.1 a 4.5, 5.3, 6.4 e 7.4 são semelhantes às cláusulas de mesmo número da Comercial Cabo, já comentadas”.

A transação, anunciada desde outubro do ano passado, rendeu R$ 922 milhões para os cofres do grupo Abril.

Meses antes, em maio, o grupo já havia repassado 30% do seu capital para o conglomerado de mídia nazi-africâner Naspers, por US$ 422 milhões (cerca de R$ 820 milhões, em câmbio atual).

 

Valdo Albuquerque

Texto extraído da Hora do Povo – 15/08/2007

Creative Commons é renúncia irrevogável do direito do autor

 

Em seminário durante o Festival do Rio 2006 de cinema, o mineiro Fernado Brant, autor de clássicos como “Travessia” e presidente da União Brasileira de Compositores, afirmou que, ao defender a “flexibilização” do direito dos autores, o ministro Gil “não está ao lado dos criadores brasileiros de cultura”. Na palestra, que hoje reproduzimos na íntegra, Brant denuncia que “flexibilizar é, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome”.

 

FERNANDO BRANT

 

Sou apenas um compositor brasileiro. É dura a vida de um compositor popular em nosso país.

Posso falar de meu caso, pois ele se aplica a muitos que têm algum talento musical ou literário e se aventuram na arte de criar melodias e harmonias, juntá-las às palavras e criar uma canção.

A canção move o mundo.

Ao lado do trabalho e da criatividade, o autor necessita de sorte, persistência. Tem de estar disposto a enfrentar muita incompreensão. Precisa ser original no que faz e sagaz na relação com a indústria cultural, com o mercado editorial e de comunicação.

Com 20 anos de idade, estudante ainda, fiz minha primeira letra para uma canção. A obra, em parceria com Milton Nascimento, abriu um deslumbrante horizonte para nós. Ingênuos, no entanto, assinamos um contrato de edição e, sem querer, arranjamos um parceiro indesejado que nos acompanha até hoje. A satisfação do menino letrista assinando o seu primeiro contrato se dissolveria no tempo, permanecendo, porém, um incômodo que ainda o acompanha.

Mas que, por não ser irrevogável, pode ser solucionado.

Esse fato serviu, no entanto, para que ele adquirisse a consciência da importância de manter a sua obra sob seu controle. É o que ele fez, o que eu fiz, daí em diante. Eu sou o meu editor.

Volto a dizer: é dura a vida de um compositor brasileiro.

Tendo sua obra sob seu controle, nem por isso os problemas foram todos resolvidos.

Donos de emissoras de rádio não queriam pagar direitos autorais, pois estavam, segundo eles, divulgando a obra. Inútil dizer-lhes que divulgação não paga comida, escola, aluguel, taxas e impostos. Ou alertá-los para o fato de que estariam, sem autorização, lucrando com o trabalho alheio.

As emissoras de televisão também não concordavam em pagar pelo uso de música. E os exibidores de cinema. E as prefeituras, os governos em geral.

Depois de muita luta, de muitos anos de esclarecimento sobre o que ocorria em todo mundo, a situação foi melhorando. Nossos direitos passaram a ser reconhecidos. Muitos começaram a observar os direitos dos autores musicais. Mas a cada um que respeita os criadores e as leis, surge um outro disposto a burlar, piratear, usar sem autorização o que não lhe pertence. Brigar pelos direitos autorais é uma batalha sem fim.

Há alguns anos, ouvi de um dirigente de bolsa de valores o seguinte raciocínio. Segundo o simpático financista, a música só deveria render para o autor durante, no máximo, cinco anos. Depois ela seria de todos. Argumentei com ele que até concordaria com sua tese se ele também considerasse que todos os seus bens – imóveis, ações e carros – seriam igualmente de todos ao fim do mesmo período. Socialista com a minha propriedade, ele era radicalmente capitalista com o que era seu.

Este é um conceito que deve ficar claro: o direito autoral é um direito de propriedade. A obra original, criada por alguém, pertence a seu criador e é protegida moral e materialmente.

Em termos de legislação estamos bem. Nossa Constituição define com exatidão a questão: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Ninguém pode utilizar uma obra de criação sem que o autor autorize.

O juiz da Corte Internacional de Haia, Francisco Resek, em congresso realizado em São Paulo, frisou a importância da proteção da propriedade intelectual no mundo contemporâneo, lembrando que ela nasceu da Declaração Universal dos Direitos do Homem que, em seu artigo 27, determina que “todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.”

Aqui eu abro um parêntese para falar aos criadores do cinema nacional. Cresci vendo filmes. Sonhei, como muitos de minha geração, em ser cineasta. Andava pelas ruas de minha cidade com meu olhar-câmera desvendando e recriando o mundo. Aprendi muito com todos os cinemas: americano, europeu, latino, asiático e, sobretudo, amei e torci e torço profundamente pelo cinema brasileiro. A arte cinematográfica sempre foi uma de minhas paixões. Aprendi muito vendo filmes e ouvindo suas trilhas sonoras. O cinema brasileiro sempre caminhou junto com a música. Por essas razões, não consigo entender algumas manifestações equivocadas de criadores brasileiros de cinema que, ao contrário de reconhecer nos músicos e compositores seus parceiros, se movimentam para negar os direitos autorais musicais.

Mas vamos em frente.

A chegada de um novo meio de comunicação não significa que os direitos e obrigações existentes possam ser desrespeitados ou devam ser abolidos.

O que vale para o cinema, a televisão, o rádio e toda espécie de comunicação ao público de uma obra, continua valendo para a internet e o que mais seja criado.

Da mesma forma que crimes como o assalto às contas bancárias, a distribuição de pornografia e/ou pedofilia ou as calúnias são punidas quando ocorrem no mundo digital, o mesmo se aplica para os direitos autorais.

O avanço tecnológico cria um grau maior de dificuldade para o controle do uso e circulação das músicas, dos filmes, das obras artísticas em geral.

Essa situação cria a ilusão de que não é mais possível controlar os direitos autorais no âmbito digital. Isso não é verdade. A mesma tecnologia que facilita a distribuição oferece mecanismos de controle.

Para o presidente da Associação Brasileira de Direitos Autorais (ABDA), Manoel Joaquim Pereira dos Santos, “a solução para este problema não está em flexibilizar os direitos do autor, mas sim em aprimorar os mecanismos de controle legal. A resposta está no direito autoral, não fora dele.”

Se for para flexibilizar os direitos de autor, por que, então, não flexibilizar também os demais direitos de propriedade e trabalho. Se a Fundação Getúlio Vargas advoga o fim de nossos direitos, nós poderíamos sustentar que eles, da mesma forma, trabalhem sem remuneração. E que todos os produtos das indústrias e do comércio, tudo que é negociado em nosso dia a dia, fiquem disponíveis para todos, de graça. Por que socializar apenas o nosso direito?

Quando se fala em flexibilização, o que quer dizer mesmo é estatização. Pelo menos no que refere ao Ministério da Cultura, que mostrou suas garras autoritárias no episódio da ANCINAV. Ali se quis transferir os direitos autorais das músicas para aquele órgão.

Tenho receio – um pouco de pavor, confesso – quando tenho conhecimento de anteprojetos de assessorias, circulando pelos corredores do ministério, propondo intervenção estatal nos direitos autorais. Tenho lembrança da ditadura e não aprecio seus quitutes. O Ministro, em entrevista recente, a propósito, lamenta que a questão autoral seja de direito privado e não público.

Vejam a declaração que o Ministro fez à revista “BACK STAGE”: “não vemos com bons olhos a aplicação de medidas tecnológicas de proteção de direitos autorais para o ambiente digital”.

Como se todos os autores estivessem com a vida ganha e não devessem se defender e serem remunerados pelo uso de suas obras.

Mas vamos ao Creative Commons, esse sistema de licenciamento, idealizado pelo professor de Direito da Universidade de Stanford, Lawrence Lessig, como um sistema alternativo ao direito autoral. Segundo a revista Forbes, “Lessig não é amigo verdadeiro de nenhum autor”.

Emma Pike, diretora-geral dos direitos britânicos da música, recomendou que os autores estejam absolutamente esclarecidos antes de assinarem uma licença do creative commons.

“Não oferece nenhuma remuneração, funciona para sempre, se aplica no mundo inteiro e não pode ser revogado”. Só amadores, só desavisados ou artistas milionários aceitariam essa renúncia, irrevogável, aos seus direitos.

Para a maioria absoluta dos autores, o Creative Commons não oferece nenhum benefício real e impede o exercício de seus direitos básicos à proteção, à distribuição e à remuneração apropriadas de seus trabalhos.

Michel Sukin adverte: creative commons são uma ferramenta para amadores e não para profissionais. Qualquer um que queira fazer sua vida com suas criações deve ter cuidado antes de se juntar a essas licenças.

O Creative Commons, dizem seus incentivadores, quer aproximar a noção de que “todos os direitos são reservados” da ideia de que “alguns direitos são reservados”. O autor doa seu trabalho para “a utilização comum” e recebe os créditos como autor de sua obra.

É a mesma ideia dos donos de rádio de antigamente e de alguns dos dias de hoje: você não ganha nada mas tem seu trabalho e seu nome divulgados, promovidos. Você não vai poder comer, morar, se educar, mas terá muito prestígio.

Flexibilizar os direitos autorais é um retrocesso, não um avanço. É voltar ao tempo da barbárie sob verniz tecnológico.

É, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome.

Essas são as características essenciais da licença do creative commons: é irrevogável e concedida perpetuamente (ou para o período completo do direito autoral, o que dá no mesmo).

O autor, assim, desiste, de fato, de todas as possibilidades de ganhar dinheiro do trabalho sujeito a tal licença, mesmo se ele reservar o direito de explorá-lo comercialmente, pois não é razoável que alguém possa ser convencido a pagar por um trabalho que já está disponível.

A lei brasileira, que não é de direito de cópia e sim de direito autoral (com suas implicações morais e materiais) já permite que o autor libere o uso de sua obra quando quiser.

Recebo mais pedidos de liberação sem ônus do que com pagamento. E muitas e muitas vezes, em casos de entidades beneficentes, escolas e intérpretes iniciantes, entre outros exemplos, eu autorizo o uso, gratuitamente.

É muito mais racional os autores conservarem o domínio sobre suas obras (editando eles mesmos os seus catálogos) do que entregá-las aos discípulos de Lawrence Lessig.

Nosso querido Gilberto Gil nos deixa em situação embaraçosa.

Sentimos uma certa timidez em contestar publicamente um colega e um democrata que admiramos. Mas hoje, quando ele fala, não se vê apenas o grande artista, o compositor brasileiro admirável. Seu discurso nos chega como a palavra do Governo em termos de Cultura.

O autor Gilberto Gil ceder para os Creative Commons uma de suas mais de quinhentas composições é uma coisa. É apenas uma canção entre centenas que ele criou. Mas, sendo ele também o Ministro da Cultura, é grande o estardalhaço.

Por que ele não cede as outras, cuja maioria tem sob seu controle? Certamente por que ele, o autor, não tem tanta certeza quanto o ministro, que diz que o “creative commons é mais um movimento bem sucedido de implementação de licenças alternativas que vem ao encontro da política de acesso à cultura do Ministério da Cultura”.

“O Ministério, continua Gilberto Gil, tem apoiado a Fundação Getúlio Vargas na implantação desse projeto no Brasil, desde seu lançamento”.

Quer dizer o seguinte: o ministério que cuida da cultura não está ao lado dos criadores brasileiros de cultura.

Pois, na realidade, o Creative Commons mina o valor dos trabalhos criativos e a administração coletiva do direito autoral. Vem para confundir e tornar mais difícil, para o criador, fixar a proteção, o controle e a remuneração de suas criações; remove o incentivo econômico tradicionalmente associado ao direito autoral e lesa, ao contrário do que se afirma, a diversidade cultural. Quem vai querer trabalhar com cultura se dela não pode viver?

Assinando uma licença creative commons o autor não recebe nada em troca. O Creative Commons não se responsabiliza por nada. É textual no contrato de licenciamento: “o Creative Commons não dá qualquer garantia quanto às informações fornecidas e se exonera de qualquer responsabilidade por danos resultantes de seu uso”.

Por outro lado, no sistema de gestão coletiva de direitos autorais os autores são mais fortes do que quando agem individualmente. As licenças abertas do Creative Commons passam por cima do sistema de administração coletiva dos direitos e enfraquecem a todos os autores, a toda a comunidade autoral.

E as licenças do Creative Commons, desrespeitando a nossa lei e os fundamentos do direito brasileiro, atropelam os direitos morais do autor.

Enfim, os Creative Commons foram inventados a partir de uma confusão entre software livre, que gerou o LINUX, uma ótima ideia, e os direitos autorais, que não tinham entrado e nem queriam entrar nessa história.

Melhor negócio faz o autor que, conservando o controle sobre sua obra, mas tendo dificuldade de divulgá-la, cria seu sítio (site) na internet. Colocando ali sua obra, promovendo-a no mundo digital e, ao mesmo tempo, conservando todos os seus direitos.

Creative Commons é um engodo. A quem ele serve?

 

Texto extraído da Hora do Povo – 06/12/2006

De olho na canela do Tio Sam

Apesar de rios de grana despejados pelas multinacionais do disco para emplacar música de baixa qualidade e abafar nossa mais bem sucedida realização cultural – a música brasileira – o samba vai bem, obrigado!

E não é só o samba, também em outras frentes as aves de rapina da cultura popular têm sido contidas.

Por exemplo, a tentativa de vender o “breganejo” como música regional sofreu contraposição das forças vivas da nossa cultura em diversos momentos ao longo dos últimos anos: isto aconteceu quando uma artista como Dona Selma do Coco furou o cerco, quando o I Campeonato Brasileiro de Poetas Repentistas, realizado em São Paulo, pelo CPC -UMES, em 1997, fez estrondoso sucesso de participação, público e crítica, quando casos como o das três irmãs cegas Maroca, Pororoca e Indaiá, que ganham a vida cantando coco e tocando ganzá em Campina Grande e Juazeiro, chegam às telas do cinema, quando as gravadoras independentes lançam centenas de títulos de autêntica música regional, revelando a força e a diversidade da nossa cultura musical, e quando surge recentemente em Pernambuco a “Sociedade dos Forrozeiros Pé de Serra e Ai”, em defesa do forró e do xote, que tendo a frente Chiquinha Gonzaga e mais de 40 sanfoneiros levou uma multidão às ruas do centro do Recife.

Contra o samba já tentaram tudo. Lançaram o irmão siamês do “breganejo”, o “pagode sabonete”, tentando pegar carona no embalo ganho pelo samba com a explosão do pagode de fundo de quintal. Mas erraram na dose. O que tem ficado de sua versão caricata é um ritmo recheado de letras artificialmente melosas, cantadas em falsete por figuras masculinas de cabelo descolorido e traseiros rebolativos. Na verdade, o que conseguiram mesmo foi fazer com que os sambistas mais experientes passassem a evitar precavidamente a denominação “pagodeiro”.

Mas não é só isso, a infiltração do “funk” nas favelas também é mais uma tentativa de alienar e embrutecer o povo afastando-o de suas raízes culturais.

Para atrair a juventude temperaram-no com certo ar de marginalidade e contestação que, no entanto, não se sustenta e se exaure na sua própria temática, um palavrório muito próximo ao que é encontrado nas paredes de qualquer mictório público. É a “arte mictória” característica da decadência capitalista.

Aliás, observa-se em torno do “funk” um conluio de multinacionais que querem exportar o seu ritmo a qualquer preço; os traficantes que o escolheram como ritmo preferido para propagar suas bravatas, e o oportunismo demagógico da grande mídia que insiste em dedicar-lhe espaço “nobre” na sua programação (basta assistir alguns programas do Faustão nas tardes de domingo) e propagandear-lhe “grandes” feitos na Europa, o que se fosse verdade demonstraria apenas que o Velho Mundo andaria mal das pernas na área cultural.

A expansão do “funk” esgotou-se na sua própria estética grotesca, copiada de uma sub-arte norte-americana, rejeitada pela parcela, como o do pau-brasil, da cana-de-açúcar, da mineração, do café; resgata como nenhum gênero nossos heróis como Zumbi, Tiradentes, João Cândido, Getúlio; nossas grandes e pequenas lutas como a Expulsão dos Holandeses, a Conjuração Mineira, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República, a Revolta da Chibata, a República Nova, “O Petróleo é Nosso”, a luta contra a Ditadura, a luta pela Anistia, pelas Diretas, contra as mazelas e o entreguismo do governo FHC; os feitos nas ciências de Santos Dumont, Oswaldo Cruz e César Lattes; nossos homens de letras como Machado, Castro Alves e Drummond. Ou seja, não é exagero nenhum dizer que ao samba diz respeito tudo que é humano e brasileiro.

Desse modo, associar a esta exuberância rítmica e temática a monocórdia melódica e a temática rala do “hip hop” é jogar água no moinho dos que querem corromper nossa matriz cultural.

Para desespero de nossos oponentes tudo no Brasil é motivo para samba, até comer feijoada.

Não é por outro motivo que este fenômeno prolifera no Rio de Janeiro. Roda de Samba com feijoada. Tem para todos os gostos, em toda a cidade. No Centro, zona sul e no subúrbio.

É muito bom ver as famílias reunirem-se aos domingos em torno da nobre iguaria. Idosos, jovens, casais, crianças e às vezes até bebês em carrinhos.

Estas rodas de samba estão, cada vez mais, cumprindo o papel de fazer chegar até o povo a boa música que lhe é sonegada pelos meios de comunicação. São em sua maioria espetáculos de ótima qualidade, com bons músicos e frequentadas por grandes artistas da nossa música popular como Monarco, Wilson Moreira, Luiz Carlos da Vila, Dorina e uma infinidade de bons sambistas, alguns ainda iniciando, mas que nestes encontros têm a oportunidade de integrar-se e mostrar suas criações e suas qualidades, pois o espírito e a prática coletiva estão na raiz do samba, e é assim que ele nasce.

É a resposta do povo. Se para eles vale tudo para destruir nossa cultura, para nós vale qualquer coisa para defendê-la, inclusive botar o feijão no fogo aos domingos e reunir o pessoal em torno, o que para nós não é nenhum sacrifício.

Portanto, acho que muito pouco benefício nos trará ficar adulando esse tal “hip hop” que eles querem nos empurrar como fazem com pneus usados, tecnologia obsoleta outros mais. Alguns o fazem caindo no canto da sereia de que terão mais espaço na “grande mídia”, mas se refletirem verão que este preço não compensa.

Justiça seja feita, esta alienação hoje já atinge inclusive figuras do primeiro escalão da República que, acoelhadas, capitulam diante do poder das multinacionais, especificamente na área da cultura onde o Ministro, ao invés de advogar a defesa dos direitos autorais dos nossos compositores, faz o inverso, além do equívoco de patrocinar com recursos públicos a ida ao exterior de pseudo “representações artísticas” que são a negação da cultura brasileira. Fatos que demonstram a necessidade de “nacionalizar” o Ministério da Cultura.

Enquanto isso não acontece, prefiro ficar com a irreverência e o espírito prático dos tamoios.

No livro precursor “Samba”, publicado em 1933, Orestes Barbosa, compositor de “Chão de Estrelas”, conta, procurando mostrar a origem da musicalidade dos cariocas, que os tamoios, que habitaram a Cidade do Rio de Janeiro, em seus primórdios, eram extremamente musicais e “viviam voltados para os seus instrumentos rudes, exímios tocadores de inúbia – uma flauta feita do osso das pernas dos inimigos”. Prossegue o autor: “Há um pequeno baú de folhas na igreja dos Barbadinhos, que guarda os despojos de Estácio de Sá. Mas falta lá um osso da perna esquerda do invasor. Possivelmente a canela desse lusitano, flechado na Praia do Flamengo, acabou na boca de algum Pixinguinha do tempo…”.

Os Tamoios deram exemplo e não temos porquê não segui-lo. A ordem é resistir até que chegue o dia de tomarmos emprestado uma das canelas do Tio Sam para fazer uma flauta.

 

Irapuan Santos

Texto extraído da Hora do Povo – 01/07/2005

MULTIS USAM JABÁ PARA CENSURAR A PRODUÇÃO MUSICAL BRASILEIRA

 

De janeiro a junho de 2004, a Warner lançou sete CDs de música brasileira (incluindo pop/rock cantado em português): Kelly Key (Ao Vivo), Os Travessos (Ao Vivo), Catedral (O Sonho Não Acabou), Detonautas (Roque Marciano), O Rappa (O Silêncio que Precede o Esporro), Gino e Geno (Os Sucessos), Nana, Dori e Danilo (Para Caymmi). O faturamento anual da Warner Music Brasil é da ordem de R$ 170 milhões.

No mesmo período, a gravadora CPC-UMES, cujo faturamento anual é cerca de quatrocentas vezes menor, também lançou a mesma quantidade de CDs: Brazilian Trombone Ensemble (Um Pouquinho de Brasil), Céline Imbert e Marcelo Ghelfi (Vinícius, Sem Mais Saudade), Claudia Savaget (Caminhando), Gesta (A Chave de Ouro do Reino do Vai-Não-Volta), Vésper (Ser Tão Paulista), Estação Caixa-Prego (Brasileirando), Mário Eugênio (Sonoridade). Não vamos falar de qualidade musical e consistência cultural. Com exceção da família Caymmi, os outros seis discos lançados pela primeira dificilmente passariam nos critérios de seleção da segunda. Os sete CDs da CPC-UMES apresentam o melhor grupo de trombones do mundo, a maior diva do nosso canto lírico, a intérprete preferida de Cartola, um conjunto armorial apresentado por Ariano Suassuna, um vocal avalizado pela presença ao vivo e a cores de Chico Buarque numa das faixas, uma alegre incursão pelos ritmos nordestinos, um violão de suavidade comparável a do saudoso Paulinho Nogueira. O fato mais significativo é que no plano quantitativo a produção (de música brasileira) de uma pequena gravadora nacional tenha atingido o mesmo patamar de uma das cinco mega-corporações multinacionais que assolam o nosso mercado.

Alguém poderia pensar que a CPC-UMES se constitui numa exceção entre as gravadoras nacionais e que a performance da Warner não é representativa do desempenho de suas co-irmãs. Fixemo-nos então na Universal, a maior das cinco, tanto no Brasil quanto no mundo, empresa que inclusive apresenta-se como “um raro caso de vitalidade cultural na indústria fonográfica”.

Consultando a relação de integrantes de seu cast, encontraremos pérolas de inquestionável raridade: Babado Novo, É o Tchan, Carla Xibombom Cristina, as apresentadoras de televisão Babi e Gabi, Netinho, Paulo Ricardo, Kid Abelha, Nando Reis… Quanto à “vitalidade cultural”, não há, portanto, diferença perceptível entre Universal e Warner.

De janeiro a junho de 2004, a Universal lançou doze CDs de música brasileira. A Biscoito Fino, gravadora nacional, criada há menos de cinco anos, lançou dezenove: Joyce, Sérgio Santos, Paulo Moura, João Carlos Assis Brasil… e até Michel Legrand, interpretando Luis Eça, só para humilhar a oponente.

Restam Sony, BMG e Emi. Juntas, lançaram, sempre de janeiro a junho de 2004, vinte e nove CDs. Confrontemos esse número com a produção das seguintes gravadoras nacionais: Kuarup, Indie, Velas, Eldorado, Rob Digital, Dubas, Lua, Movie Play, Trama, Camerati, Núcleo Contemporâneo, Jam, Som da Maritaca, Marari, Atração, Acari, Carioca, Rádio MEC, Revivendo, Cid, Zabumba, Lumiar, YB, MCD, Visom, Palavra Cantada, Albatroz, Elo, Sonhos e Sons, Minas, Lapa, Pôr do Som, Maianga, Net, Reco-Head, Natasha, Nikita, Dabliú, Fina Flor, Pantanal, Galpão Crioulo, Sapucay, Zan, Paradoxx, Candeeiro, Baratos Afins, Paulus, Deck, Chororó, Barulhinho, Acit, Quitanda, Terreiro, Aconchego, Chita, Outros Discos, Top Tape, Villa Biguá, Play Art, Azul, Pau Brasil. Chegaremos facilmente a 150 CDs, contra 29 das três majors.

Acrescentemos, ainda, meia centena de CDs lançados por gravadoras nacionais não relacionadas na lista, e outra meia centena produzida por artistas independentes, sem o concurso de qualquer gravadora. Teremos 276 novos lançamentos, contra 48 das cinco majors.

Para que o mapa fique completo, é necessário situarmos a produção da Som Livre. Ao contrário das demais gravadoras nacionais, o braço musical das Organizações Globo possui grande poderio econômico e fácil acesso à mídia, porém encontra-se hoje limitado quase exclusivamente ao lançamento de trilhas de novelas produzidas a partir de fonogramas cedidos pelas megaconcorrentes.

Vê-se que as gravadoras nacionais e artistas independentes alcançaram uma produção que, tomada em conjunto, é significativamente superior a das cinco multinacionais, em termos de qualidade e quantidade. No entanto, a situação se inverte quando comparamos as respectivas participações nos mercados de execução pública e venda de CDs. Warner, Universal, Sony, BMG e Emi monopolizam 85% de ambos. Sem a Som Livre, gravadoras nacionais e artistas independentes, somados, não passam de 3%.

Trata-se de uma situação inteiramente absurda, insustentável, mantida de forma criminosa pelo jabá que as multinacionais pagam para que suas gravações sejam executadas até a exaustão nas emissoras de rádio e televisão. O uso e abuso dessa modalidade de suborno faz com que, cada vez mais, qualidade e diversidade, marcas registradas da música brasileira, sejam banidas dos meios de comunicação e, consequentemente, das prateleiras das lojas. Para se aquilatar o nível atingido por essa deformidade, destaquemos alguns artistas que estão fora dos casts das cinco multinacionais: Paulinho da Viola, Alceu Valença, Gal Costa, Toquinho, Bethânia, Erasmo Carlos, Lobão, Edu Lobo, Geraldo Azevedo, Elomar, Inezita Barroso, Beth Carvalho, Nei Lopes, Alcione, Luiz Carlos da Vila, Jair Rodrigues, Theo de Barros, Fagner, Belchior, Lecy Brandão, Sérgio Reis, Renato Teixeira, Almir Satter, Monarco, Ivone Lara, Almir Guinetto, Jane Duboc, Leny Andrade, Cristina, Oswaldo Montenegro, Francis Hime, Marcus Vinicius, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Fátima Guedes, Tavinho Moura, Elza Soares, Ataulfo Alves Jr., João Donato, Joyce, Dominguinhos, Tom Zé, Tetê Espíndola, Vânia Bastos, Eduardo Gudin, Carlinhos Vergueiro, Zizi Possi, Walter Franco, Johnny Alf, Claudete Soares, Elton Medeiros, Claudio Nucci, Zé Renato, Alaíde Costa, Emílio Santiago, Moraes Moreira, Carlos Lira, Germano Mathias, Amelinha, MPB-4, Quarteto em Cy, Olívia Hime, Olívia Byington, Fafá de Belém, Miucha, Kleiton e Kledir, Sá e Guarabyra, Guilherme Arantes, Cida Moreira, Ednardo, Luiz Melodia, Duardo Dusek, Anastácia, Nando Cordel, Cátia de França, Gerônimo, Marinês, Demônios da Garoa, Lula Barboza, Reinaldo, Wilson Moreira, Sueli Costa, Paulo César Pinheiro, Célia, Pery Ribeiro, Luiz Vieira, Carmélia Alves, Irmãs Galvão, Cauby Peixoto, Angela Maria, Paulinho Tapajós, Mestre Ambrósio, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura, Sivuca, Turíbio Santos, Sebastião Tapajós, João Carlos Assis Brasil, Nelson Freire, Mário Zan, Wagner Tiso, Egberto Gismonti, Toninho Horta, César Camargo Mariano, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal, Nonato Luiz, Armandinho, Izaías Bueno de Almeida, Déo Rian, Altamiro Carrilho, Carlos Poyares, Maurício Einhorn, Naná Vasconcelos, Quinteto Violado, Antônio Adolfo, Borghetti, Orquestra Tabajara e toda e qualquer orquestra.

Poderíamos continuar citando mais duzentos ou trezentos nomes de primeira grandeza que já integraram os casts das multinacionais, mas foram excluídos ou se retiraram em consequência da estratégia monopolista que ganhou terreno nos anos 70 e consolidou-se na década de 90: vender o máximo de cópias do mínimo de títulos, através do uso generalizado do jabá.

Djavan seria um bom nome para encabeçar a lista, pois lança em julho seu novo CD pela Luanda Recordas. Mas, para que não fique a impressão de que a música brasileira vive uma crise de renovação, preferimos prosseguir destacando alguns artistas cujas discografias foram construídas, desde o início, dentro das pequenas gravadoras nacionais e da produção independente: Antônio Nóbrega, A Barca, Quinteto em Branco e Preto, Yamandu Costa, Mônica Salmaso, Vanessa da Mata, Dorina, Ceumar, Xangai, Paulo Simões, Ná Ozzetti, Moacyr Luz, Guinga, Celso Viáfora, Tom da Terra, Flor Amorosa, Vésper, Comadre Florzinha, Renato Motha, Titane, Zé Geraldo, Neto Fagundes, Filó Machado, Rosa Passos, Márcia Salomon, Carmen Queiróz, Fábio Paes, Pedro Osmar, Maricenne Costa, Arrigo Barnabé, Rumo, Vital Farias, Paulinho Pedra Azul, Sérgio Santos, Ana de Holanda, Gereba, Jussara Silveira, Marlui Miranda, Vicente Barreto, Dércio Marques, Josias Sobrinho, Suzana Salles, Selmma Carvalho, Vange Milliet, Simone Guimarães, Nilson Chaves, Passoca, Glória Gadelha, Walter Alfaiate, Délcio Carvalho, Noca da Portela, Luis Tatit, Pedro Camargo Mariano, Bule-Bule, Oliveira de Panelas, Celso Machado, João de Aquino, Maurício Carrilho, Túlio Mourão, Cristóvão Bastos, Banda Mantiqueira, Nelson Ayres, Laércio de Freitas, Banda de Pífanos de Caruaru, Dinho Nascimento, Antônio Madureira, Papete, Osvaldinho da Cuíca, Paulo Freire, Roberto Correia, Milton Edilberto, Duofel, Radegundis Feitosa, JP Sax, Quarteto Maogani, Caíto Marcondes, Hamilton de Holanda, Nó Em Pingo D’ Água, Aquilo Del Nisso, Pagode Jazz Sardinha’s, Cézar do Acordeon, Luis Carlos Borges, Oswaldinho, Quarteto de Cordas da Paraíba, Madeira de Vento, Choro de Varanda, Jota Gê, Bocato, Uakty, Rodoldo Stroeter, Paulo Bellinati, Benjamin Taubkin, Ulisses Rocha, Teco Cardoso, Jazz Sinfônica. Neste item, poderíamos relacionar também mais cem ou duzentos artistas de primeira linha.

Somando os casts atuais da Warner, Universal, Sony, BMG e Emi, não encontraremos mais que trinta e cinco artistas desse nível.

O caudal de criatividade e diversidade que nutre as gravadoras nacionais e a produção independente, e mantém viva a música brasileira, vem sendo posto cada vez mais longe da mídia e do público pela praga do jabá. Segundo informações fornecidas pelo sr. André Midani, alto executivo da indústria fonográfica, por mais de 40 anos, a despesa anual das cinco majors com jabá, no Brasil, fica entre R$ 71 milhões a R$ 95 milhões.

O resultado dessa política foi a crise do mercado. O faturamento da indústria fonográfica caiu de R$ 1,4 bilhões para R$ 1 bilhão, entre 1998 e 2002 – os dados de 2003 ainda não foram divulgados pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores Discográficos). Embora as majors tenham posado de vítimas, atribuindo a crise à pirataria, é fácil verificar que a venda de CDs falsificados é apenas uma das consequências – e não a mais grave – da estratégia criminosa de corromper os meios de comunicação para manipular a demanda e concentrá-la sobre um número cada vez mais reduzido de lançamentos.

Poderia parecer que Warner, Universal, Sony, BMG e Emi mudariam de estratégia ao contabilizarem os prejuízos e avaliarem os riscos impostos à galinha dos ovos de ouro.

Como isso não ocorreu, é de se supor que estejam sendo tangidos pela crença de que o desfibramento da música brasileira lhes possibilitará, finalmente, ganhar o mercado para o pop internacional – sonho seguidamente frustrado pela obstinada resistência do povo a consumir prioritariamente música cantada em inglês.

Miopia ou sabotagem, o fato é que o principal papel cumprido pelo jabá tem sido o de impedir que o público tenha acesso à maior parcela do que de melhor se produz em termos de música brasileira. Mais do que um meio imoral e ilegal de promover as vendas, o jabá converteu-se numa forma intolerável de censura.

Na abertura do Fórum Cultural Mundial, o presidente Lula sublinhou a necessidade de não nos rendermos à constatação de que “a produção cultural no mundo é dominada por uns poucos oligopólios”. O Brasil é um exemplo de como essa dominação é exercida: reduzindo drasticamente as gravações de música brasileira e usando o jabá para impedir que a produção feita à sua revelia chegue ao público.

O patrimônio musical brasileiro, apesar de vasto, não é inesgotável. Sem que o povo tenha acesso aos seus melhores frutos, através do rádio e da televisão, mais cedo ou mais tarde ele acabará sofrendo uma atrofia de graves proporções.

O Ministério da Cultura pode continuar fingindo que isso não é de sua conta. Talvez o ministro sinta-se até constrangido por ser um dos últimos sobreviventes do cast da Warner, condição que certamente não facilita a intervenção isenta do ministério na questão. Mas sem uma ação governamental firme, que obrigue as multinacionais a praticarem a concorrência, como determinam as leis vigentes, os prejuízos à cultura e à economia nacionais tornar-se-ão incalculáveis. Ao contrário de outros prestigiosos setores da cultura brasileira, o que as gravadoras nacionais e artistas independentes cobram do Estado não é dinheiro para a produção. O que o setor pretende é que sua produção, que é maior e melhor que a das multinacionais, não continue sendo impedida de circular pela prática imoral e criminosa do jabá.

 

Sérgio Rubens de A. Torres

Texto extraído do Jornal Hora do Povo – Julho de 2004

A CULTURA NAS ESCOLAS E OS ESTUDANTES FAZENDO CULTURA

Eu gostaria de saudar a todos e a todas e de agradecer à UBES pela oportunidade de estar aqui, conversando com lideranças secundaristas de todo o Brasil, neste evento tão importante que é o Coneg. E de salientar também a sensibilidade da diretoria em colocar na pauta um tema tão importante quanto a cultura, muitas vezes esquecida – injustamente – diante do conjunto de problemas que afligem a educação brasileira.

Gostaria de começar fazendo um breve resumo do trabalho do Centro Popular de Cultura, mais conhecido como CPC-UMES (cujo nome, é uma homenagem ao CPC da UNE), e, em seguida, contar um pouco de sua história e dos motivos que nos levaram a tratar deste tema junto com a UMES de São Paulo.

O Centro Popular de Cultura tem mais ou menos 11 anos de existência como entidade autônoma, e, anteriormente, mais três anos trabalhando como braço cultural da UMES. Foram dois os motivos nos levaram a constituir uma entidade autônoma. Em primeiro lugar o fato de boa parte dos profissionais do trabalho cultural não serem – há muito tempo – secundaristas (o exemplo principal era o do cineasta Denoy de Oliveira, nosso fundador, falecido em 1998 e antigo integrante do CPC da UNE). Vimos que a autonomia faria bem às duas entidades. O outro era a possibilidade de trabalhar com outras entidades, ampliar o alcance de nossa ação. Hoje nós mantemos um teatro na sede da UMES (Teatro Denoy de Oliveira), uma gravadora, uma editora, um balé, trabalhamos na área de cinema e vídeo e de formação de artistas. Nesse período, de mais ou menos 14 anos, nossas realizações foram as seguintes:

– Mais de 600 shows musicais (Projeto Umes Cantarena, com compositores, Projeto Serenata na UMES, com intérpretes, Mostra Secundarista de Música, de novos talentos, Projeto A Fina Flor do Samba, que é uma homenagem ao projeto homônimo do Teatro Opinião, 1° e 2° Campeonatos Brasileiros de Poetas Repentistas, 1° Campeonato Paulista de Poetas Repentistas);

– Teatro: mais de 1.000 apresentações, 4 montagens de rua, 10 montagens no teatro, com mais de 100.000 espectadores (hoje o teatro tem como grupo residente o Forte Casa Teatro);

– Balé de Arte Negra da UMES: 2 espetáculos, com mais de 100 apresentações;

– Cursos: Dança, Música, Teatro, Dramaturgia, Produção, Cinema, com mais de 750 alunos (hoje abrigamos um Ponto de Cultura, em convênio com o Minc);

– Livros: 13 títulos dos Cadernos do CPC, mais 5 títulos sobre cultura popular;

– Audiovisual: 4 vídeos, dois médias metragens, dois curta-metragens (co-produção), dois longa-metragens (co-produção);

– Gravadora CPC-UMES – mais de 100 discos produzidos;

– Bloco UMES/Caras-Pintadas – desfilando desde 1993 pelas ruas do Bixiga;

– Cineclube da UMES – entrando no 4° ano;

– Resumo: mais de 120 atividades por ano, mais de 1 milhão de espectadores, dezenas de prêmios (prêmio Shell de Teatro, Prêmio Tim de Música, Festivais de Brasília, Gramado, É Tudo Verdade).

Feitas as apresentações, gostaria de voltar ao tema proposto para o debate: “A cultura na escola e os estudantes produzindo cultura”.

Para isso é preciso saber exatamente o que quer dizer “educação escolar” e “cultura”. Quanto à educação escolar, não vou me deter. É a especialidade de vocês, que conhecem bem a sua importância e as suas mazelas. Já quanto à cultura, vale a pena demorar um pouco mais para detalhar seu conceito.

 

CULTURA

A palavra cultura vem do Latim, de um verbo (colo) que quer dizer, ao mesmo tempo, cultivar, habitar, morar em, cuidar de, tratar, preparar, honrar, venerar, respeitar. É o mesmo verbo que dá origem às palavras cultivo (no sentido de cultivar plantas), colono (aquele que cuida da terra), domicílio, culto (no sentido religioso) e vários outros termos que designam o oposto daquilo que é dado pela natureza, ou seja, o que é trabalhado, construído pela ação humana, tanto no campo material (como na agricultura) quanto no simbólico e no do pensamento. Modernamente a palavra cultura designa o conjunto de valores, sejam eles materiais ou espirituais, de saberes, de crenças e hábitos, que a humanidade cria através de suas práticas sócio-históricas, e que caracterizam cad sociedade e cada momento histórico.

Assim, poderíamos dizer que o nosso idioma, a nossa arte em geral (música, dança, teatro, literatura, artes plásticas, cinema, etc.) e também nossa culinária, os saberes populares (lendas, mitos, práticas da medicina popular), as crenças e manifestações religiosas, as tradições, nossa maneira de tratar com os outros, os hábitos, os esportes, os valores morais, tudo isso integra a nossa cultura. É o que nos faz brasileiros do século XXI, é o que nos permite viver o presente, ter um passado, almejar um futuro.

O que nos fez homens, diziam Marx e Engels, foi o trabalho, a capacidade de transformar a natureza em nosso benefício, ao invés de nos submetermos a ela. E o resultado deste “cultivo” (remete ao sentido latino da palavra), que a humanidade em geral, e cada povo em particular, vem fazendo ao longo dos séculos, é o que chamamos cultura.

Ela é a consolidação de todo o desenvolvimento do ser humano, a possibilidade de que as gerações futuras aprendam com as passadas e tornem-se melhores. É o que nos torna semelhantes ao ser humano que habita o outro lado do planeta e, ao mesmo tempo nos torna, com os nossos saberes particulares, únicos e especiais. Voltando ao verbo latino que originou a palavra cultura: é o que deve ser cuidado e venerado (nossa tradição), trabalhado constantemente, é o habitat essencial do ser humano.

 

ARTE

É bom que façamos aqui uma pequena distinção entre cultura e arte. O conceito de cultura é mais abrangente. Como disse antes, inclui o conjunto dos valores e saberes de um povo. O conceito de arte é um pouco mais restrito, mas mantém uma relação direta com a cultura. A arte é um tipo específico de consciência social, um produto da altíssima capacidade humana de refletir a realidade objetiva de uma maneira não diretamente racional, mas estética. Ou seja, uma maneira de posicionar-se diante do mundo, de manifestar sentimentos, de descortinar horizontes, de revelar o mundo e a realidade que transcende ao discurso lógico.

Dentro do que chamamos genericamente de cultura, a arte é, talvez, a manifestação mais importante do grau de desenvolvimento da consciência de um povo e da humanidade. Nela os homens conseguem expressar de maneira estética os seus valores mais elevados.

Diante disso, fica óbvia a ligação entre educação e cultura. O papel de escola não é apenas ensinar a ler, escrever e fazer contas. É ajudar a colocar o cidadão em contato com o mundo, propiciar a integração de quem está chegando com a história e a tradição, permitir a criação de identidades próprias, que bebam do passado e construam o futuro.

Também não é novidade para ninguém que a escola que conhecemos não faz isso. Apesar do esforço sobre-humano de alguns bons profissionais e das lutas dos movimentos populares, a escola, falando genericamente, mal consegue transmitir alguns conteúdos, frequentemente defasados. Este foi, inclusive, o principal motivo para o começo do nosso trabalho junto à UMES: suprir esta carência fundamental da escola, de produzir cultura com e para os estudantes.

Mas não devemos achar que a escola não cumpre este papel apenas por incompetência ou despreparo de seus profissionais ou por falta de consciência dos governos. O problema é muito mais grave. Existem interesses poderosos que trabalham para sufocar a nossa cultura em todos os aspectos, e o sistema educacional não foge à regra.

 

TRANSFORMAÇÃO

O poeta Ferreira Gullar, em um livro chamado “Cultura Posta em Questão”, ressalta que “a cultura tanto pode ser instrumento de conservação como de transformação social”. O campo cultural concentra, de maneira extraordinária, a luta ideológica que existe entre a nação e o imperialismo e entre explorados e exploradores.

Como não anda exatamente no mesmo ritmo das relações sociais, a cultura tem a capacidade de ajudar a avançar – ou a retardar – a luta pela libertação dos povos. Vejamos alguns exemplos históricos, tanto de uma coisa como de outra.

Já no Império Romano podemos notar um pouco disso: a liberalidade com que os romanos tratavam a sua própria religião e idioma – incorporando deuses dos vencidos e palavras de seus idiomas – contrasta com a brutalidade de sua dominação armada. Parece que eles sabiam que, quanto menos os dominados se sentissem diferentes dos dominadores, mais fácil seria manter a dominação. Mas este exemplo é muito antigo, e não existe nenhum registro da época que confirme a hipótese.

O exemplo Japonês, também de dominação, é mais atual e mais brutal. Quando da invasão da Coréia pelo exército imperial japonês, proibiu-se qualquer prática da cultura anterior. As pessoas eram impedidas de batizar seus filhos com nomes coreanos, as escolas não podiam ensinar o idioma e as pessoas eram proibidas até de conversar em público no idioma de seu país. Tentaram, pela força, impedir que os conquistados tivessem uma identidade própria, pudessem diferenciar-se de seus conquistadores.

O mesmo aconteceu no Timor Leste: quando a Indonésia invadiu a ex-colônia portuguesa uma das primeiras medidas foi proibir o uso do idioma português, o que quase o extinguiu no país.

 

RESISTÊNCIA

Mas nós podemos citar um exemplo mais próximo, onde se tentou usar a cultura como fator de dominação e ela acabou sendo um instrumento de resistência. É o exemplo dos africanos, trazidos como escravos ao Brasil. Na condição de escravos, eles não tinham direito a nada: não podiam falar seu idioma, cultuar seus deuses, fazer suas festas, nada. Partia-se do princípio de que aqueles homens e mulheres eram inferiores, que seus conhecimentos não valiam nada. Só passariam a valer alguma coisa se aprendessem a se comportar como os conquistadores, falar seu idioma, rezar para seus deuses. Foram cerca de três séculos até que o povo brasileiro conseguisse acabar com a vergonha da escravidão. E mais algumas décadas para que o negro começasse, na prática, a ser reconhecido como um cidadão com os mesmos direitos que os brancos.

Seria de se imaginar que a cultura africana tivesse sido totalmente apagada depois de tanta repressão. E o que temos hoje? O dicionário traz milhares de palavras de origem africana. Na culinária não apenas utilizamos ingredientes originários da África – o quiabo, o dendê – como nosso prato mais tradicional, a feijoada, era a comida dos escravos. Nossa festa popular mais importante, o carnaval, era, no início do século passado, uma festa tipicamente européia. Se olhamos para as fotos do carnaval do início do século XX isso fica bem claro: as famílias ricas, os corsos, confete e serpentina, pierrôs, colombinas, mas nenhum negro, nada de samba. E, poucas décadas depois da libertação, o samba já tinha tomado conta do carnaval, a cultura negra já tinha tomado conta da festa. A capoeira, que encanta o mundo inteiro, nada mais era do que uma maneira dos negros prepararem-se para lutar, fazendo de conta que estavam dançando. Na religião também: os negros eram obrigados a rezar para a branca Nossa Senhora, mas dirigiam suas preces à Iemanjá; olhavam para Santa Bárbara, mas pensavam em Iansã; falavam em São Jorge, mas dirigiam-se a Ogum. Para cada figura branca que lhes apresentavam, associavam um orixá. E mantiveram, assim, suas crenças.

Foi através de sua cultura que eles resistiram, foi de suas raízes e tradições que eles tiraram forças para enfrentar a escravidão. Foi assim que conseguiram construir uma identidade que lhes permitiu lutar contra a opressão. E, é claro, conseguiram muito mais: a luta dos negros contra a opressão transformou-se em luta de todos os que não concordavam com a injustiça. E a sua perseverança em manter as raízes criou uma cultura nova, riquíssima, que plasmou não apenas os seus valores, crenças e tradições como também incorporou os valores de todo o povo oprimido de nosso país.

 

ARSENAL

Os exploradores de todos os tempos, e o imperialismo contemporâneo em particular, sabem que não é fácil manter a dominação. É por isso que mantêm arsenais enormes e não hesitam um minuto em usá-los. Mas eles sabem que só pelas armas não conseguem manter-se para sempre. Precisam acabar com a cultura dos povos, com sua possibilidade de identificação. Precisam se passar por superiores, impor seus deuses, sua língua, sua música, apagar da memória dos oprimidos tudo aquilo que lembre que eles são diferentes, que eles são livres, que eles são na verdade superiores aos opressores. Acham que se conseguirem transformar nosso sonho de liberdade, de igualdade, de justiça em uma simples aspiração a tornar-se igual a eles, seu domínio estará garantido. E também usam todo um gigantesco arsenal – não bélico, mas cultural – para conseguir isso.

A forma de fazer isso é sufocar nossa cultura, pasteurizá-la, esvaziá-la de conteúdo, através do que chamamos de “indústria cultural”. Vou apenas lembrar alguns fatos sobre a ocupação cultural do nosso país.

Durante décadas a indústria fonográfica tentou impor a música americana no Brasil: compravam prateleiras nas lojas, faziam dumping, impediam as gravadoras nacionais de prensarem discos. Não adiantou nada: até hoje mais de 70% de toda a música que toca nas rádios é cantada em português. Resolveram então apelar para a transformação da nossa música em subproduto, boicotando os melhores artistas, produzindo nulidades, tentando transformar o sertanejo em country music, a música baiana em reggae, o forró em lambada, o samba em pagode.

Comprando espaço ilegalmente em rádios e TV’s ocupam a maioria do mercado, tentando sufocar os verdadeiros valores da música nacional. Mas ainda assim, não conseguiram vencer. As porcarias que eles produzem não conseguem se sustentar por muito tempo: cada vez gasta-se mais em marketing e menos em arte, cada vez mais rapidamente o “grande sucesso” de ontem cai no esquecimento e eles precisam inventar outro.

No cinema eles andam um pouco mais folgados, pois o cinema brasileiro ainda não conseguiu ter a mesma força que a música. Dominam praticamente todo o espaço de exibição. Ao final de 2007, apenas 10% do público que freqüentou cinema em nosso país terá assistido a filmes brasileiros. Para citar só um exemplo, houve um momento, no primeiro semestre, que apenas três filmes norte-americanos (Shrek 3, Homem Aranha 3 e Piratas do Caribe 3) ocuparam mais de 80% das salas de exibição no Brasil. Isso para não falar que apenas 4% das cidades brasileiras possuem salas de cinema e que as empresas americanas já dominam também este setor, através da Cinemark, UCI e outras redes que se expandiram nos últimos 10 anos à sombra da omissão governamental na defesa do nosso mercado.

No teatro a coisa é um pouco mais complicada, mas eles já estão mostrando as garras, trazendo para o Brasil espetáculos da Brodway, pagos com dinheiro público, via renúncia fiscal. De qualquer maneira, o que eles tentam fazer é sempre a mesma coisa: criar um “produto” único para o mundo inteiro, uma música (ou filme, livro, programa de TV) que possa vender no Brasil, na Índia, em Angola. O imperialismo não consegue trabalhar com a diversidade, precisa apelar para o emburrecimento, para a simplificação, para a massificação pasteurizada. É como o Mc Donald’s: o gosto de isopor da comida é igual no mundo inteiro. E o resultado em termos culturais é parecido com o que aquele filme, Supersize Me, mostra com relação à comida do Mc Donald’s: detona o cara!

 

TAREFA

Para finalizar, eu gostaria de apontar algumas soluções. Denunciar a ação dos inimigos da cultura brasileira é importante, mas é preciso construir soluções concretas. Uma delas é óbvia: radicalizar a luta pela qualidade da educação em todos os níveis. Outra, acreditamos, é a que estamos desenvolvendo: utilizar a estrutura das entidades estudantis para fazer cultura com e para a nossa juventude.

Enquanto não conseguimos construir a escola dos nossos sonhos, onde educação, cultura e arte sejam realmente transmitidas a todos os alunos, precisamos tomar em nossas mãos a tarefa de defender a nossa cultura, a nossa identidade, o nosso direito de escolha. E não faltam aliados no campo da cultura: com certeza os melhores artistas e as melhores figuras da cultura nacional estão dispostos a auxiliar nesta tarefa.

E uma terceira é a luta pela construção de uma rede de Rádios e TV’s públicas que ofereça uma programação condizente com a riqueza cultural de nosso país, que reflita o conjunto da cultura nacional e não que sirva como mera reprodutora da cultura enlatada e como fonte eterna de mentiras e de distorções da realidade como são as rádios e TV’s comerciais que estão aí.

Nossa tarefa é, portanto, fazer todo o inverso do que fazem os monopólios da indústria cultural: estimular a diversidade, fazer com que cada vez mais pessoas possam produzir cultura, possam ter acesso à cultura, elevar cada vez mais a consciência dos artistas e intelectuais brasileiros, difundir as melhores manifestações da cultura do nosso povo. É preciso que o nosso povo tenha plena consciência do valor de sua cultura, possa sonhar em português, possa amar a sua música, a sua comida, o seu teatro, o seu cinema, enfim, possa ter orgulho de ser brasileiro.

Vinícius de Moraes, no poema “Operário em Construção”, conta a história de um operário que vai se dando conta do quanto é explorado. Quando o personagem ganha consciência da exploração e assume a luta pela sua libertação, o poeta diz que ele atingiu “a dimensão da poesia”. É nossa tarefa fazer com que o povo brasileiro atinja a dimensão da poesia.

 

VALÉRIO BEMFICA

EM DEFESA DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA!