O dragão da maldade não brinca em serviço
As produções americanas de cinema detêm 95% de seu mercado natural. Cerca de 1.500.000.000 espectadores/ano assistem filmes americanos nas mais de 35.000 salas de exibição existentes naquele país, deixando nas bilheterias a bagatela de U$ 10 bilhões de dólares/ano.
São números deveras impressionantes, se comparados aos 5.210.000 espectadores que assistiram no Brasil a filmes nacionais, de janeiro a julho de 2007, nas 1.900 salas aqui existentes.
Neste período, que corresponde a todo o primeiro semestre de 2007, o cinema brasileiro atingiu um dos mais baixos índices de ocupação do mercado interno registrados em sua história: 9,7%.
Para uma cinematografia que foi vista por 60.000.000 de espectadores no Brasil, em 1978, e chegou a ocupar 50% de seu mercado natural em 1982 e 1984, cair abaixo dos 10% é uma verdadeira calamidade.
Se considerarmos que em 2003, primeiro ano do governo Lula, a taxa de ocupação do mercado interno pelo filme brasileiro foi de 21,4% (22.055.249 espectadores), cair a 9,7% em três anos e meio é um sintoma mais do que evidente de que as políticas adotadas pelo Minc e pela Ancine não estão ajudando em nada ao cinema nacional.
O curioso é que a produção tem crescido. O governo federal tem deixado de arrecadar mais de 100 milhões de reais por ano, para que as empresas doem à produção cinematográfica uma parcela dos impostos a ele devidos.
Sem dúvida é uma quantia modesta, porém nada desprezível. Pode-se dizer que os critérios para sua distribuição não são os mais adequados, que a média dos filmes produzidos no Brasil tornou-se morna, um tanto insossa e pouco sintonizada com a realidade brasileira, que boa parte dos realizadores andam deslumbrados com os respectivos umbigos, ou com a reprodução em tela grande dos clichês televisivos, porém errado estará quem quiser ver na produção a causa principal de uma crise que é essencialmente de mercado. Mais precisamente, uma crise gerada pela perversa e inadmissível monopolização do mercado de distribuição de filmes e do mercado de exibição cinematográfica no Brasil por empresas norte-americanas.
Nos tempos de Glauber Rocha, quando o governo resolveu criar um fundo para a produção nacional com recursos obtidos através da taxação dos filmes importados, os cineastas disseram: melhor usar esses recursos para criar uma distribuidora, a nossa maior dificuldade não é produzir os filmes, mas fazer com que eles cheguem às telas.
Passar pelo gargalo das distribuidoras estrangeiras, que dominavam o mercado, para chegar aos exibidores, era o problema, pois no caso do cinema as distribuidoras têm um papel decisivo, já que são elas que assumem a responsabilidade pelos investimentos em cópias e divulgação.
Nasceu a Embrafilme. Com as rendas obtidas através da distribuição, a estatal em pouco tempo entrou também no terreno da produção.
A Embrafilme e a cota de tela (obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais por um determinado número de dias no ano) levaram o cinema brasileiro a uma ocupação de 50% do seu mercado natural.
Depois que Collor liquidou a Embrafilme e o cinema brasileiro despencou literalmente a zero, nossos cineastas, no desespero, fizeram exatamente aquilo a que se haviam recusado quando a ditadura lhes ofereceu recursos para produzirem seus filmes. Dessa vez pensaram: se a produção estiver garantida, o mercado cuidará do resto (distribuição e exibição). E assim mergulharam no reino encantado das leis de incentivo fiscal, ignorando os lúcidos alertas emitidos por nosso companheiro Denoy de Oliveira em vários artigos aqui no HP.
Escapou-lhes um detalhe para o qual Glauber, assim como Denoy, sempre estiveram atentos.
Apesar de ocupar 95% do seu mercado natural, Hollywood é um dragão insaciável: 65% do faturamento da indústria cinematográfica americana vêm da exploração de seus filmes no mercado externo e não no seu próprio mercado.
Sem o mercado externo, Hollywood e toda a sua parafernália simplesmente não existem. Não é de estranhar, portanto, a voracidade e a virulência com que se lançam sobre os mercados alheios, os quais devem inclusive passar a ser considerados, conforme seus critérios, como uma extensão natural de seu próprio mercado.
A partir da década de 90, o tradicional controle dos mercados externos pela distribuição já não lhes parecia suficientemente seguro. Expandiram então suas redes de exibição pelo mundo.
A Cinemark, que possui 2.265 salas de projeção nos EUA, se gaba em seu site de ter chegado em nossa praça no ano de 1997, tendo rapidamente se convertido na “maior rede de cinemas do Brasil, hoje operando mais de 350 salas distribuídas em 26 cidades brasileiras. A empresa, desde o início de suas operações, já vendeu mais de 160 milhões de ingressos, faturou mais de 300 milhões de reais só em 2006 e deve alcançar um faturamento acima de 330 milhões em 2007”.
Isso significa que, de acordo com os seus dados, a Cinemark sozinha já açambarca cerca de 40% do público e do faturamento das bilheterias de cinema no Brasil.
O site da empresa diz ainda que: “A Cinemark é líder do setor de exibição cinematográfica na América Latina e terceira empresa do setor norte-americano, operando hoje mais de 3.900 salas de cinema entre Estados Unidos, Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras, Nicarágua, México, Peru, Panamá e Taiwan”.
Não diz, no entanto, que 8,9% desse latifúndio foi construído no Brasil, em 10 anos, às custas de muitos financiamentos do BNDES, feitos à sombra de um governo neoliberal e estranhamente mantidos no atual governo sem que uma autoridade sequer do Minc ou da Ancine desconfie de que o objetivo de tamanha agressividade empresarial do monopólio americano está a serviço de uma causa: passar os filmes deles e não os nossos.
Mais discreta, a UCI, pertencente ao National Amusements Inc, cujo modus operandi é semelhante ao da Cinemark, já atingiu no Brasil um número de salas que corresponde a um terço das 350 criadas por sua co-irmã.
Como se não bastasse, há ainda a Hoyts, cujo site traz as seguintes informações: “Em outubro de 1999, duas grandes empresas internacionais de entretenimento, a norte-americana General Cinema Companies e a australiana Hoyts Cinemas Limited, decidiram juntar forças e criar um multiplex [15 salas] com tecnologia e modernidade sem precedentes no Brasil. Utilizando o know-how adquirido em seus países de origem e em outros que atuam na América do Sul, como Argentina, Uruguai e Chile, elas construíram um inovador e gigantesco complexo de exibição de filmes, o multiplex Hoyts General Cinema”.
Na Argentina eles já dispõem de cinco complexos, no Uruguai de três e no Chile de seis. Vão se expandir aqui também.
Espremidos num canto, os exibidores nacionais que já chegaram a controlar 100% do mercado e hoje pagam os seus pecados pela falta de visão estratégica, deixando-se embalar pelo vício de considerar que “filme estrangeiro é que traz dinheiro”, estão sob ameaça de extinção.
Diante dessa ocupação crescente, acelerada, predatória e abusiva do nosso mercado de exibição cinematográfica, o que fazem o Minc e a Ancine? Reduzem gradualmente a cota de tela para projeção obrigatória de filmes brasileiros, que já era quase simbólica em 2004 – 63 dias por ano -, para um índice que vai de 28 a 42 dias, conforme o tipo de sala, em 2007.
Pior que a redução é o brilhante raciocínio que a engendrou: se a procura do público por filmes brasileiros está caindo, a cota deve acompanhar a queda.
O resultado não poderia ser outro. Chegamos a 9,7% de ocupação do nosso próprio mercado.
Não basta – e sob muitos aspectos é inclusive contraproducente – distribuir dinheiro a fundo perdido para a produção. É preciso ter política para a distribuição e para a exibição.
O cinema brasileiro está longe das telas e não aparece na televisão, assim como a música brasileira – a que presta – está cada vez mais distante das rádios e tevês, sejam elas privadas ou públicas.
Quem quiser acabar com o cinema brasileiro, com a música brasileira, com as atividades culturais que impliquem em processos industriais, que siga apoiando a política libertária do Minc: a de oferecer irrestrita liberdade para que os monopólios manietem e manipulem o mercado a seu bel prazer.
Quem não quiser deve tomar consciência de que a mudança necessária não é tópica.
Se há um setor onde o imperialismo não brinca em serviço é o da cultura – “entertainment”, dizem eles para encobrir o caráter ideológico que impregna toda e qualquer produção cultural. Dentro deste setor o carro chefe, ao qual eles dispensam maiores cuidados, é o cinema.
Sem patriotismo, consciência nacional, coragem e ousadia das autoridades públicas e da laboriosa comunidade cinematográfica não há santo guerreiro capaz de tirar o nosso cinema do gueto onde ele está sendo meticulosamente estrangulado.
Sérgio Rubens de Araújo de A. Torres
Texto extraído da Hora do Povo – 05/09/2007