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LEGALIZAÇÃO DE DROGAS E A SAÚDE PÚBLICA

Introdução

A intensidade do debate sobre legalização de drogas no Brasil mostra que o assunto “drogas” produz efeitos nas pessoas, que se sentem levadas a ter muitas certezas e a ficar de um lado ou de outro da questão. Mostra também que o debate é profundamente ideológico e que após ouvirmos o lado favorável à legalização e o lado da proibição pura e simples, não ficamos mais esclarecidos a respeito da melhor política a ser seguida. Quando somente um dos aspectos de uma política de drogas, como a que discute apenas o status legal de uma delas, se torna o assunto principal do debate, é como se o rabo estivesse abanando o cachorro e não o contrário.

O objetivo deste artigo para debate é: (1) avaliar a racionalidade e a oportunidade desse debate; (2) tentar estabelecer pontes com drogas lícitas; (3) avaliar os dados disponíveis sobre o efeito da legalização; (4) propor uma alternativa de política de drogas que seja baseada em objetivos claros a serem alcançados; (5) descrever o exemplo da Suécia: restrição às drogas como cuidado social; e (6) algumas conclusões.

 

Racionalidade da legalização de uma droga

Com a intensidade que o debate sobre as drogas gera, poderíamos imaginar que a sociedade sempre tenha reagido de forma eficiente ao tema, ao longo do tempo. Entretanto, historicamente, a sociedade não tem avaliado muito bem os riscos do uso de uma nova droga ou uma nova forma de uso de uma velha droga. Por exemplo, a partir do começo do século XX, inovações tecnológicas tornaram a produção de cigarros mais fácil, tornando a absorção da nicotina muito mais eficaz do que ocorria anteriormente. Além disso, o preço do cigarro caiu dramaticamente. Progressivamente, houve aumento no número de fumantes em todo o mundo e, por muitos anos, os danos físicos associados ao cigarro não foram identificados. Muitos governos chegaram a estimular o consumo, pelos ganhos com impostos. Levou-se mais de quarenta anos para que os países desenvolvidos identificassem os males causados pelo fumo e outros vinte anos para que implementassem políticas de reversão da situação. Essa lentidão em reconhecer danos em algumas situações sociais faz que mudanças no status de qualquer droga, e principalmente quando um aumento de consumo é uma das possibilidades, sejam encaradas com cuidado.

Um dos motivos que dificulta a ação da sociedade é o excesso de retórica sobre o problema: cada droga produz sua própria retórica. Por exemplo, no caso recente da maconha, no Brasil tem sido comum utilizar-se uma retórica na qual o uso da substância estaria relacionado com a liberdade e os direitos do cidadão. Já o cigarro inspira outro tipo de retórica, que busca estimular uma ação estatal para controlar o abuso das companhias produtoras. A retórica pode mudar de país para país, de acordo com o momento histórico.

Tanto a intensidade do debate quanto o clima ideológico sobre as drogas advém do fato de quase não haver informação objetiva para avaliar as políticas que tratam da questão. Nesse sentido, é importante ter alguns referenciais teóricos que ajudem na tomada de decisões. A Figura 1 mostra os três modelos que, de forma explícita ou não, acabam prevalecendo. Os que defendem a proibição total do uso de drogas acreditam que a curva a-b representa o controle ideal, significando que a proibição total é a melhor opção, pois não causa nenhum dano social. Ao contrário, os que estão do lado b da curva, ou seja, da legalização das drogas, consideram que, com a proibição, o dano social aumenta. O argumento geralmente usado é a histórica Lei Seca americana, que produziu aumento considerável da violência promovida pelo crime organizado. Muito tem sido escrito sobre este período e os autores, em geral, enfatizam seu custo social. No entanto, do ponto de vista do consumo de álcool, a lei foi um sucesso, pois diminuiu consideravelmente o consumo global. Entretanto, houve aumento do consumo de álcool de péssima qualidade e um número considerável de pessoas teve problemas sérios de saúde. De qualquer forma, uma simples análise de custo-benefício mostra que essa foi uma experiência que nenhum país ocidental quer repetir, embora os islâmicos ainda adotem tal controle rígido.

 

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Há pessoas que defendem a legalização total das drogas. A curva c-d ilustra este modelo, em que a proibição total levaria a elevado nível de dano, principalmente pelo crime que estaria associado com seu uso ilegal, maior corrupção social, nível mais impuro da substância no mercado negro e dificuldade das pessoas buscarem ajuda para se tratar da adicção. O argumento é que a proibição total causa mais dano do que a legalização total. A grande fraqueza desse tipo de raciocínio é que não leva em consideração que a legalização produz maior oferta e, portanto, expõe um número maior de pessoas ao consumo e a suas complicações. Esses defensores enfatizam em demasia o comportamento individual e não consideram o nível agregado do dano. Por exemplo, se legalizássemos completamente a maconha, uma das possibilidades seria maior consumo global da droga e, possivelmente, maior consumo na população mais jovem, pois é isto que ocorre com o álcool e o cigarro. Portanto, com a legalização, teríamos talvez menor número de crimes violentos, mas a população mais jovem teria maiores complicações na escola e até poderia aumentar um tipo de criminalidade menos violenta por parte dos usuários a fim de conseguirem dinheiro para consumo.

O terceiro modelo, intermediário, baseia-se na curva c-e, que tem recebido grande suporte em termos de pesquisa. Nessa curva, podemos perceber que a proibição total de uma droga produz dano e, à medida que ela progride na escala de legalidade, aumentam sua disponibilidade social, o número de usuários e o nível global do dano. As drogas lícitas oferecem evidências para esse modelo. No caso do álcool, centenas de pesquisas mostram que quanto menor o preço e maior a disponibilidade, maior é o número de pessoas com problemas relacionados ao uso. A consequência de adotar a curva c-e como modelo de política de drogas é, em primeiro lugar, diminuir o consumo global de todas as drogas. A estratégia para atingir essa diminuição pode variar de droga para droga e depende do momento histórico.

A tendência mundial é, por exemplo, tornar progressivamente o álcool e o fumo mais próximos da proibição ou de controles sociais rígidos, através de leis e restrições ao uso. No caso da maconha, não existe uma tendência mundial nítida. Alguns países adotam penas leves ou um grau maior de tolerância com os usuários, mas em nenhum lugar existe a legalização aberta. No caso das drogas mais pesadas, como heroína e cocaína, a tendência é marcante em relação à proibição. O fato de existir políticas diferentes para drogas diferentes é muitas vezes apontado como hipocrisia social. Na realidade, essa deveria ser uma atitude pragmática numa sociedade que busque responder ao problema com foco em resultados e não em retórica e debate ideológico. Tal proposta deveria ser julgada pelo seu efeito na diminuição do custo social de todas as drogas e não somente de uma droga específica.

 

As drogas lícitas podem nos ensinar algo?

O álcool é a substância com maior potencial para ensinar como estabelecer uma verdadeira política de drogas baseada em resultados. Em 2003, a Organização Mundial de Saúde produziu um livro1 em que os maiores especialistas do mundo propuseram medidas a ser implementadas em todos os países, buscando diminuir o custo social relacionado a essa substância. A conclusão geral é que todos os países deveriam diminuir o consumo global de álcool. A Figura 2 ilustra o modelo a ser seguido. O consumo de álcool de qualquer população segue uma curva normal, que nesta figura seria a curva X onde, para melhor visualização, foi excluída a população que não bebe. Temos, portanto, uma parte da população que bebe um pouco, grande parte que bebe dentro da média e uma parte de bebedores pesados. Inicialmente, se pensa que o foco seria diminuir o número de bebedores pesados, mantendo-se a média de ingestão da população. No entanto, essa diretriz poderia, quando muito, produzir um pequeno efeito quando implementada, como mostra a curva Y. Quando as orientações são no sentido de diminuir o consumo global, como na curva Z, decrescendo a média de consumo populacional, existe um impacto muito maior, pois um número menor de pessoas beberá, um número menor ficará dependente e, portanto, haverá menor custo social global. Esse efeito tem sido chamado do “paradoxo preventivo”, pois se orienta para diminuir substancialmente a quantidade de pessoas dependentes e o consumo global de toda a população.

 

 

São várias as diretrizes políticas que visam a diminuir o consumo global de álcool:

(1) Políticas de preço e taxação são ações com maior impacto social imediato. Estudos mostram que o preço do álcool segue o padrão de qualquer mercadoria e, quanto maior, menor o consumo. Existe uma elasticidade no consumo, que no caso do álcool é diferente de outras mercadorias. Mas para cada aumento de 100% do preço, existe cerca de 30% de queda de consumo global. Mesmo os bebedores pesados diminuem o consumo nesse caso. Este tipo de política pode ser muito útil no Brasil, onde o preço do álcool é um dos mais baixos do mundo ocidental, cerca de U$ 1,5 por um litro de pinga.

(2) Políticas que diminuam o acesso físico ao álcool. Está demonstrado que, quanto menor o número de locais vendendo álcool, maior o respeito ao limite de idade. Maior a consistência das leis do beber e dirigir, menor é o consumo global de uma população.

(3) Políticas de proibição da propaganda nos meios de comunicação. O objetivo da propaganda do álcool não é só buscar preferência por determinada bebida, mas criar um clima social de tolerância e estímulo ao álcool, visando nitidamente a aumentar o consumo global. A proibição da propaganda tem sido consistentemente mostrada em pesquisas como fator importante na diminuição do consumo.

(4) Campanhas na mídia e nas escolas visando a informar melhor os efeitos de álcool. O efeito das campanhas quando feitas desacompanhadas das demais diretrizes é muito pequeno. De nada adianta a professora informar ao aluno sobre álcool e outras drogas, se a televisão continua mostrando a alegria e a descontração associada à bebida e, sobretudo, essa droga transformada em “paixão nacional”.

Em resumo, o álcool apresenta as formas de controles sociais mais estudados e de políticas eficazes para diminuir seu uso global. Os princípios citados podem muito bem ser usados em relação às demais drogas, visando a diminuir o acesso e o consumo.

 

As leis influenciam o consumo das drogas?

Uma pergunta importante é: se os controles sociais são efetivos, por que tornar ilegais somente algumas das drogas? Como já salientado, estratégias diferentes deveriam ser usadas para o controle dos vários tipos de drogas e as evidências mostram que muito pouco benefício traz transformar drogas ilegais em legais, pois há forte tendência no aumento do consumo. Há uma questão que permanece: as leis efetivamente influenciam o comportamento de consumo de drogas?

No caso do álcool, tem sido demonstrado por inúmeros trabalhos que a proibição da venda para menores diminui significantemente o consumo. Em vários estados americanos, quando foram colocadas em prática leis proibindo a venda de bebidas, houve diminuição substancial no número de acidentes de carro entre menores. O grande problema, ao responder o quanto as leis impedem o consumo é que não existem muitos dados sobre as drogas que sempre foram ilegais. Em artigo recente, MacCoun2 analisou a escassa literatura baseando-se também no efeito das leis em deter outros comportamentos antissociais. Esse autor mostrou que leis e controles informais têm o poder de conter o consumo de drogas através de vários mecanismos: disponibilidade da substância, estigmatização do uso, medo das consequências de praticar atividades ilegais, efeito do fruto proibido e efeito simbólico geral da proibição. A abolição das leis proibindo o consumo teria um efeito dramático em vários desses citados fatores, diminuindo, portanto, uma série de impedimentos para o consumo.

O mais importante nesse estudo são as evidências de que a abolição das leis teria um efeito maior nas pessoas que comumente não consomem drogas, potencialmente levando um maior número a experimentar e a se tornar usuário regular ou esporádico. Por isso, MacCoun2 ressalta que qualquer efeito dramático no status legal de uma droga é desaconselhável, pois as consequências são imprevisíveis em relação ao aumento do consumo, por falta de controles sociais disponíveis e ausência de leis claras. Outros estudos mostram que, quanto maior o envolvimento com drogas, menor é o impacto das leis em deter o consumo.

 

Como construir uma política de resultados em relação às drogas? 

O desafio de formular e por em prática uma política de drogas é buscar o balanço para cada uma, sempre visando a uma diminuição global do consumo. A melhor atitude social seria de uma tolerância contrariada, sem fervor ideológico, mas com pragmatismo afiado e persistente. No Brasil, por exemplo, corremos o risco de que o debate sobre a legalização oculte as reais questões que devem pautar uma política baseada em exemplos e experiências eficazes. O risco é ficar num debate ideológico improdutivo a favor ou contra, com grande paixão e pouca informação, como é o caso do debate ideológico sobre drogas injetáveis e a infecção pelo HIV. Passamos todos esses anos discutindo se seria válido trocar seringas e agulhas dos usuários de drogas injetáveis e se isto seria ou não um estímulo ao consumo. Chegamos em 1996 com mais de 50% dos usuários de drogas contaminados pelo HIV e milhares de usuários, suas esposas e filhos mortos. A Inglaterra, por exemplo, começou a discutir esse assunto em 1984 e implementou, rapidamente, políticas realistas, apresentando somente 1% dos usuários contaminados. Os ingleses buscaram uma política de resultados, em que a prioridade fosse manter vivos os usuários.

O desafio do debate das drogas no Brasil não é se devemos afrouxar as leis da maconha, mas apresentar dados e informações e produzir uma política passível de ser avaliada constantemente. A implementação dessa política não ocorre espontaneamente, mas como uma ação determinada de governo. Talvez seja inútil esperar por uma grande política nacional de drogas. Os estados e municípios poderiam se envolver nessas ações com a ajuda comunitária. A sociedade civil já está bastante mobilizada sobre o assunto álcool e drogas. É necessário que os governos democraticamente eleitos mostrem a sua capacidade de organizar uma resposta adequada a esse problema, que afeta milhões de brasileiros.

Cada vez mais o custo social, econômico e emocional das drogas aumenta e na sua proporção existe a tendência de buscar soluções mágicas e simples como a de legalização de todas. Os proponentes dessa solução não apresentam uma clara operacionalização de como isso deveria ocorrer, mas aportam argumentos a favor. Primeiro, dizem que a quantidade de crimes associados ao uso de drogas diminuiria na medida em que fosse retirado o lucro dos traficantes. O segundo argumento é que, tornando as drogas disponíveis legalmente, haveria uma série de benefícios para a saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas e agulhas limpas poderiam prevenir doenças como hepatite e aids, por exemplo. Tais argumentos têm apelo somente no nível superficial. Quando olhados em detalhes, eles desabam. A ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela venha a ser usada novamente. As drogas que produzem dependência ativam os circuitos cerebrais que são normalmente acionados por reforçadores naturais como fome e sexo. A ativação desses circuitos está na raiz do aprendizado, que ocorre no começo do processo de dependência química.

A idéia de que a legalização diminuiria o crime não tem sido discutida com o devido rigor, mesmo quando o argumento caminha para os eventuais benefícios de aumento da arrecadação do governo com a venda das drogas e que isso poderia ser revertido para a sociedade na forma de tratamento ou prevenção. Essa análise de custo/benefício ignora pelo menos dois fatores. Primeiro, subestima o custo da dependência para os indivíduos e suas famílias. A menos que as drogas sejam fornecidas de graça, os usuários deveriam pagar por ela. Como a maioria dos usuários de drogas não tem empregos fixos e estáveis, existe razão para acreditar que muitos continuariam roubando para sustentar o consumo. Além disso, muitos dos criminosos começaram a sua carreira no crime muito antes de usar qualquer droga. Uma suposta fonte legal de suprimento, eventualmente coordenada pelo governo, é muito improvável que não mude os determinantes comportamentais e sociais das pessoas envolvidas no crime. Portanto, qualquer análise de custo/benefício é complexa e exige que muitas variáveis sejam levadas em conta.

Ainda sobre a legalização, mesmo que o custo/benefício pudesse ser demonstrado, ninguém até hoje apresentou um plano operacional para isso. Um aspecto fundamental dessa operacionalização é: quem receberia essas drogas legais? Deveríamos restringir o acesso aos dependentes químicos? Assumindo que tivéssemos uma boa definição de quem seja um dependente, restringir a essa população o acesso significa que o mercado negro das drogas continuaria, pois boa parte dos usuários não preenche os critérios de dependência. Na realidade, com a oferta pública de drogas, ainda teríamos o risco de que parcela dessas fosse criminalmente desviada para o mercado negro.

Consideremos a venda de drogas apenas para adultos. Como já mencionado, essa facilitação do acesso levaria a um aumento de consumo, mesmo entre eles. Mas examinemos um pouco mais fundo essa possibilidade. Se alguém que comprou a droga de uma fonte pública machucar outra pessoa sob o efeito dela, quem seria o responsável? Como garantir que uma fração das drogas não seja repassada para crianças? Uma parte dos adultos não-dependentes poderia ter como motivação comprá-las para revender a crianças, tornando o acesso a esse grupo ainda mais fácil do que já é nos dias de hoje.

Existe também o problema da dose. Quanto deixar as pessoas comprar? Se o objetivo é suprir o dependente químico da sua necessidade para eliminar o mercado negro, teríamos que fornecer a quantidade solicitada, o que, em muitas situações, é uma grande dose, pois vários dependentes desenvolvem tolerância e usam uma quantidade que para outras pessoas significaria risco certo de overdose. Mas se devêssemos fornecer a todos os adultos qualquer dose, o risco de desvio de boa parte das drogas aumentaria ainda mais. Se fornecêssemos uma dose pequena, não eliminaríamos o mercado negro. A experiência inglesa, que durante muito tempo prescreveu a heroína para os dependentes, mostrou que além do uso regular, os usuários buscam-na também em fonte ilegal.

Esses argumentos são distantes de uma perspectiva puramente moral. O que argumentamos é que também do ponto de vista da saúde pública é errado legalizar as drogas. A solução é promover a prevenção e o tratamento baseados em evidências e não em ideologia. Novas pesquisas com suficiente financiamento deveriam buscar o que realmente funciona na área de prevenção. Ainda sabemos pouco sobre os reais fatores de risco e proteção nesse particular. Na área de tratamento, as pesquisas já avançaram muito nos últimos anos e temos condições de fornecer um sistema efetivo e eficaz para a doença chamada dependência química. No entanto, o acesso a um tratamento de qualidade para a maioria da população ainda é um sonho de consumo distante.

Existem muitas dificuldades práticas para uma política adequada em relação às drogas. A humanidade ingere substâncias psicoativas por mais de dez mil anos. E somente nos últimos duzentos anos temos tentado controlar a produção, a distribuição e o uso dessas substâncias. Poucas ações tiveram sucesso. É bem possível que tenhamos igual número de sucessos do que de insucessos. No século XVII, após os europeus levarem o tabaco da América Latina, vários países tentaram proibir o seu uso, mas em seguida desistiram. Entre 1920 e 1933, o álcool foi proibido nos Estados Unidos, mas em seguida também a lei foi revogada.

Para algumas questões, a ciência tem respostas claras e válidas. Na farmacologia, sabemos muito bem os mecanismos de ação da maioria das drogas. Para cada droga, podemos prever a ação imediata e de uso crônico. Os epidemiologistas já são capazes de mostrar o impacto do uso, do abuso, da dependência e o custo social de cada uma das drogas.

No entanto, vários assuntos relacionados à política das drogas permanecem controvertidos. Como controlar as substâncias que afetam a mente? A posse e a venda deveriam ser controladas por lei criminal? A qual droga o acesso deveria ser permitido? As leis produzem mais danos do que benefícios? Como medir uma política em relação às outras? As penalidades por uso deveriam ser mais duras ou mais leves? Todo mundo tem a sua opinião, muitas vezes simplistas para um problema tão complexo. Somente teremos uma boa política quando houver estratégias tão complexas quanto o tamanho do problema.

Teoricamente, é possível criar um tipo de regulação que possa evitar os danos da proibição às drogas ilícitas, mas a experiência sugere que existem grandes dificuldades em se manter esse tipo de controle. Se não somos capazes de evitar a promoção de álcool para menores de idade, como seríamos capazes de evitá-la em relação à maconha, por exemplo?

A experiência holandesa serve para alguma coisa? Houve duas fases nesse país na forma de tratar a questão das drogas. Inicialmente, na década de setenta, houve uma decisão de tolerar a posse de pequenas quantidades de maconha, com o argumento de priorizar a repressão às drogas mais pesadas. Durante esse período, não ocorreu aumento significativo do consumo de maconha. Entretanto, de 1980 a 1988 – numa segunda fase -, houve tolerância em relação à venda de maconha nos coffee shops, e um aumento de mais de dez vezes no número desses estabelecimentos, com o correspondente aumento no consumo da droga. Se, em 1984, 15% dos jovens holandeses consumiam maconha, em 1992 esse número dobrou para 30% e se mantém nesse nível até os dias de hoje. No entanto, a experiência holandesa e de outros lugares como Austrália e do próprio Estados Unidos mostra que remover penalidades criminais em relação ao uso de maconha não aumenta necessariamente o consumo. Isso porque remover somente a penalidade do uso sem a promoção comercial não produz grande estímulo ao consumo. Vale ressaltar, porém, que a descriminalização, ou a despenalização, não oferece grandes vantagens, pois deixa intacto o submundo do tráfico e todas as condições para a permanência dos problemas relacionados ao uso.

Escolher a melhor política não é tarefa fácil. Com uma eventual legalização, podemos até ter uma diminuição da violência individual, o que é uma coisa boa. No entanto, se houver um aumento geral no consumo, a violência global pode aumentar. O dano total à sociedade é o resultado da média de dano nos indivíduos pela quantidade de drogas consumida. Com uma política que resulte em muito mais usuários e talvez até mesmo de usuários mais pesados, o dano total à sociedade deve aumentar.

Existe uma grande dificuldade em transformar boas intenções em benefício social. As políticas não deveriam ser consistentes apenas do ponto de vista ideológico, mas também do ponto de vista prático; ou seja, diminuir o uso global das drogas. Quanto a isso, há uma briga de discursos, ou melhor, uma briga de significados que alguns sociólogos chamam de mensagem simbólica. Independente do que possa ocorrer na política de drogas, as pessoas, inicialmente, se preocupam em apresentar a mensagem correta.

Uma definição legalista define que algumas drogas são ilícitas. Por exemplo, no Brasil, a Política Nacional sobre Drogas abrange somente as drogas ilícitas, deixando de lado o álcool e o cigarro. Os legalistas aparentemente estão dizendo que o problema das drogas diz respeito à infração legal e não a um dano à sociedade. Assim, o uso de drogas proibidas é considerado um ato de rebelião à autoridade, o que ameaça à sociedade constituída.

Como disse o pesquisador americano Mark Kleiman, “qualquer política de drogas que omita o “álcool” (será que não se deveria incluir ‘tabaco’?) será como uma estratégia naval que omita o Oceano Atlântico e Pacífico” 3.

Por sua vez, o debate político partidário não oferece mais confiança, pois apresenta visões contraditórias. Por exemplo, alguns políticos conservadores são contra a legalização de drogas. No entanto, conservadores extremos, como Milton Friedman, defendem sua total legalização. Erich Goode, no seu livro “Between Politics and Reason: The drug legalization debate”4, propõe a seguinte classificação dos políticos em relação à política de drogas:

(1) conservadores culturais: acreditam nos valores tradicionais e denunciam que as pessoas se afastaram dos valores tradicionais, que deveríamos voltar aos valores religiosos e familiares, às práticas sexuais convencionais, à educação básica, aos laços comunitários, à moderação no consumo de álcool e à completa abstenção de drogas ilícitas. Esse grupo acredita que todos são responsáveis por suas ações que, em última instância, são escolhas morais. Traçam clara distinção entre álcool e drogas ilícitas. Sob essa ideologia, o abuso de drogas é imoral e degrada a vida humana.

(2) libertários do mercado livre: também estão no lado conservador no espectro político, mas discordam completamente em relação à legalização. Diferente dos conservadores, esse grupo considera que a distinção entre as drogas é artificial e deveria ser abandonada. Defendem que o governo deve ficar de fora e permitir o laissez-faire. Ninguém seria obrigado a usar drogas e nem forçado a parar de usá-las. As leis deveriam proteger apenas os menores de idade. Portanto, defendem a descriminalização completa. Thomas Szasz, no seu livro: “Our Right to Drugs. The Case for a Free Market5, faz a defesa da legalização de drogas, baseada em considerações político-filosóficas.

(3) construcionistas radicais: acreditam que a realidade é socialmente construída, que não existe um problema de drogas e sim os governos deixam parecer que existe para criar uma causa conveniente e desviar a atenção dos cidadãos de questões mais importantes. O pânico moral dispersaria o foco de outros problemas. As drogas são tratadas como efeito e não causas de problemas sociais. Nessa linha, consideram que só resolveremos o problema com a solução da pobreza e das injustiças sociais.

(4) legalizadores progressivos: defendem acabar com a distinção entre drogas licitas e ilícitas, que o Estado dispense as drogas para os dependentes e que as leis sobre drogas sejam problemas a serem solucionados pelo desaparecimento dessas próprias leis. Vêem o debate sobre drogas como problema de Direitos Humanos. Ou seja, a sociedade deveria parar de demonizar os usuários e de criminalizar a posse e uso das drogas ilícitas por ser injusto, opressivo e desumano, um tipo de caça às bruxas que penaliza o desafortunado. Defendem a redução de danos como uma forma de cuidado com o usuário. A chave desse pensamento é a crença de que o uso de drogas deveria ser regido como qualquer outro comportamento, pois os usuários não são nem mais nem menos racionais em suas escolhas do que qualquer outra pessoa.

A chamada “redução de danos” representa uma mala eclética cheia de propostas políticas. No nível mais geral, defende a idéia de que, se não podemos eliminar as drogas, pelo menos podemos diminuir os danos. A reforma legal, portanto, não seria prioridade, mas sim a prática concreta. Os que estão a favor ressaltam abertamente a tolerância com os usuários, o que se transforma numa descriminalização de fato. Existem dilemas teóricos e práticos nessa abordagem. Algumas questões permanecem sem resposta: como medir a diminuição de um dano em relação a outro? Ao diminuirmos o dano para alguns, não facilitamos o uso de muitos, aumentando o numero de usuários? Nessa perspectiva, teremos menos crime e mais usuários? E se essa política melhorar a vida dos usuários dependentes e piorar a vida de outros, como fica a família dos próprios usuários? Se quisermos diminuir os danos, por que não enfatizar a diminuição das drogas legais, pois isso acarretaria maiores benefícios para a sociedade?

Ninguém pode ser contra a diminuição de danos provocados pelas drogas, pois é exatamente isso que as políticas sobre o assunto buscam. Como objetivo geral, a proposta é indiscutível. No entanto, não acreditamos que a eventual diminuição do dano a alguns indivíduos possa produzir uma diminuição global do dano.

É preciso tornar muito claro que o objetivo geral de uma política de redução de danos deveria ser a redução total do uso de drogas. Para isso, precisamos distinguir entre os planos micro e macro. De forma esquemática, temos a equação: dano total das drogas = média de dano por usuário x uso total. Em relação ao uso total, temos o numero de usuários e a quantidade que cada um usa. A média de dano por usuário tem dois vetores, o dano causado a si próprio e o dano causado a outros.

 

O exemplo da Suécia: restrição às drogas como cuidado social

O sistema de controle de drogas de um país é uma construção complexa e na maioria das vezes controvertida. Desenvolve-se ao interior da própria cultura, em dado momento histórico e é influenciado por políticas sociais e legais. Esse controle se faz somente em parte através de leis e está mais relacionado a sua aplicação que a sua letra. Além disso, a política de saúde, de segurança social, de formas de manejo do desvio social e os aparatos judiciários são todos intimamente conectados ao sistema de controle.

O sistema de controle de drogas sueco é um dos mais debatidos nos anos recentes porque difere em muito do que ocorre no mundo e na Europa, em particular. Ele é muito mais restritivo e o uso de drogas não é tolerado. Na realidade, em 1977 foi declarado que um dos objetivos do sistema seria criar uma sociedade livre das drogas. Para a implementação desse objetivo, quantidade substancial de dinheiro foi alocada na prevenção e informação, na política de controle e no tratamento, os três pilares do sistema. Os indicadores disponíveis mostram que o número de dependentes químicos nesse país é relativamente muito mais baixo quando comparado com os da Europa.

Para entendermos o modelo sueco, é essencial discutir suas bases ideológicas e científicas. Um autor influente nesse sentido foi Nils Bejerot6, que fez distinção entre vários tipos de dependência, em especial do que denominou “dependência epidêmica”. Nesse conceito, ressaltava que pessoas psicológica e socialmente instáveis, após influência direta de outro dependente, começam a usar drogas que não são aceitas socialmente, para obter euforia. Um ponto importante é o significado do termo “epidêmico”, que mostra o caráter de doença com incomum alta incidência no tempo, no lugar e no envolvimento de pessoas. Além disso, Berejot7 inclui o caráter de contágio, ou seja, o fato de um usuário influenciar o outro. Ele considera que a epidemia do uso de substâncias tem alto grau de contágio psicossocial em que a disponibilidade da substância é o fator mais importante no desenvolvimento das formas de abuso. Uma vez que se organiza um grupo de usuários, cria-se uma subcultura da droga, o que contamina a sociedade. Isso explica o termo “contágio psicossocial” ou “pressão grupal”. Esse contágio pode mesmo ser colocado numa fórmula “C=SxE, ou seja, o contágio é função das suscetibilidades individuais e da exposição.

Para Bejerot7, a suscetibilidade individual é difícil de ser influenciada, mas a exposição tem um papel importante nesse sentido. No seu ponto de vista, a sociedade deveria restringir o acesso às drogas e isso fará efeito no número de pessoas usando substâncias tóxicas. A política, portanto, deveria olhar para o usuário, que é a parte central da “corrente das drogas”, pela sua influência direta em outros usuários. Os traficantes sempre serão trocados por novos traficantes dispostos a correr os riscos do dinheiro fácil. Os usuários, por outro lado, não deveriam ser repostos e sim ser considerados como o motor do sistema de prevenção: “Nós temos que aceitar o fato doloroso de que não faremos avanços decisivos a menos que o abuso de substâncias, os usuários e a posse pessoal de drogas sejam colocados no centro da nossa estratégia”3. Bejerot7 posicionase contra a repressão pelo sistema legal, mas acredita que os usuários deveriam ser responsabilizados por seu comportamento.

Outro aspecto conceitual importante é o da hipótese de “porta de entrada”, significando que a maconha levaria à experimentação de drogas mais perigosas. Embora esse conceito seja objeto de grande debate científico, o fato é que o uso da maconha pode ser considerado, no mínimo, como fator de risco para a experimentação. Na realidade, um grande foco da política sueca é a maconha e em como desestimular o seu consumo.

Vale a pena olhar historicamente para outro fator que influenciou a política restritiva de drogas na Suécia: o desenvolvimento, por mais de um século, de ações relacionadas ao uso de álcool. Desde o século XIX, a Suécia adotou uma política repressiva, tendo como base a limitação de disponibilidade de bebidas alcoólicas. Esse é um modelo de sucesso, levando a que os suecos sejam o povo que menos consome álcool na Europa. O modelo baseia-se no fato de que o consumo total do álcool influencia o total de dano social causado pela substância. E sugere que, quanto mais indivíduos bebem numa sociedade, mais haverá bebedores pesados. Portanto, do ponto de vista da saúde pública, a melhor opção é manter o número menor possível de bebedores.

Esse modelo que mostra evidências de eficácia em relação ao álcool é usado para as drogas. Como resultado, a política de drogas foca em limitar o consumo total, começando com qualquer forma de experimentação. Portanto, uma grande parte da prevenção nesse país baseia-se em prevenir a experimentação da maconha. Um grande debate nacional criou uma percepção de risco bastante alto na população em relação a essa substância, tendo como consequência um baixo uso quando comparado com os outros países europeus.

Embora o uso de drogas seja considerado socialmente inaceitável, o objetivo da política não é punir os indivíduos. Ao receber cuidado e tratamento, o usuário deveria se tornar livre das drogas e ficar reabilitado e reintegrado à sociedade. Por exemplo, se um indivíduo usa drogas em público, será encaminhado por uma assistente social para tratamento, se necessário, de forma compulsória. O país investe muito no tratamento para dependentes.

Nos anos oitenta, houve uma mudança conceitual importante do sistema, que passou a buscar reduzir a demanda de drogas na Suécia. O objetivo não mais seria mais atacar os traficantes, mas os usuários, considerados como a engrenagem do tráfico. O uso de drogas tornou-se criminalizado. Essa abordagem potencialmente permitiu identificar novos usuários e oferecer tratamento, o que, quando necessário, conta com ações do aparato policial. Na Suécia, existe uma boa relação dos policiais com a população e 12% do tempo deles são gastos com problemas de usuários e uso de substâncias. A força policial está focada no objetivo de ter uma sociedade sem drogas. Em 1988, o uso de drogas tornou-se crime nesse país, mas a penalidade para o uso não é a prisão, e sim, uma multa. Mais recentemente, a pena aumentou para prisão de até seis meses e a polícia tem vários meios a seu dispor para detectar o uso de drogas, mesmo que o indivíduo não tenha cometido nenhum delito. Os exames de urina para detecção do usuário são muito comuns e não parecem encontrar grande resistência por parte da população. Um bom número de usuários, especialmente de adolescentes, acaba indo para o sistema de tratamento dessa forma, não sem antes pagar uma multa.

O sistema legal sueco tem três categorias de punição à infração em relação às drogas: menor, normal e maior. Depende da droga e da quantidade apreendida. Quando alguém é identificado pelo teste de urina, recebe uma multa. Quando, além do teste, a pessoa tem posse de pequenas quantidades, a prisão até de até seis meses é uma opção, mas isso raramente ocorre, pois a multa é a penalidade mais comum na primeira ou segunda vez em que uma pessoa é flagrada. Um usuário apreendido várias vezes provavelmente será condenado a um mês de prisão. Quando alguém é apanhado vendendo drogas, será preso em todos os casos. Embora a lei não faça grande distinção entre usuários e traficantes, na prática a diferença existe. As infrações consideradas maiores recebem pelo menos dois anos de reclusão. A sentença máxima é de dez anos quando há posse de mais de um quilo de heroína ou de dois quilos de cocaína. A quantidade de drogas apreendidas por tráfico é relativamente baixa. A geografia do país dificulta o acesso, mas, com certeza, a fiscalização também é outro fator importante. Vale a pena salientar que existe uma grande pressão por parte da opinião pública em reivindicar maior controle social e legal em relação às drogas.

Como já citado, o objetivo da política sueca não é punir os usuários, mas oferecer reabilitação. O tratamento é um dos três pilares do sistema. Um conceito importante é o de “corrente de cuidado”, que significa articulação dos elementos no sistema de tratamento: atividades de outreach (busca ativa de usuários), desintoxicação, cuidados ambulatoriais e internação. Os assistentes sociais são muito importantes nesse processo, pois são eles que fazem a busca ativa dos usuários e determinam quem deve se submeter ao tratamento. Dois tipos de assistência são disponibilizados: voluntário e involuntário, com grande diversidade de técnicas. O sistema de comunidade terapêutica domina e não é incomum um usuário ficar dois anos internado. No sistema compulsório, que é raramente utilizado, a pessoa pode passar até seis meses e o principal objetivo é motivá-la a se tornar voluntária no seu tratamento. A maioria do tratamento involuntário ocorre com adolescentes recalcitrantes.

Uma grande mudança ocorreu no sistema de tratamento nos anos oitenta, com o advento da aids. Diferente dos demais países europeus, a Suécia não adotou a política de redução de danos. O governo decidiu que, com o risco da aids, o melhor seria identificar rapidamente os usuários e oferecer desintoxicação e tratamento imediato. Houve uma grande expansão do setor de tratamento. A temida epidemia nessa população de usuários não ocorreu.

 

Algumas considerações finais

Um dos aspectos a destacar nesse debate é que a utilização contínua de qualquer substância psicoativa produz uma doença cerebral em decorrência do uso inicialmente voluntário. A consequência é que, a partir do momento que a pessoa desenvolve uma doença chamada “dependência”, o uso passa a ser compulsivo e acaba destruindo as melhores qualidades da própria pessoa, contribuindo para a desestabilização da sua relação com a família e com a sociedade.

O uso de substancias altera mecanismos cerebrais responsáveis pelo humor, pela memória, pela percepção, pelos estados emocionais e pelos controles finos de vários comportamentos. O uso de drogas regular modifica a estrutura cerebral e pode demorar anos para voltar ao normal. Essas modificações de vários circuitos cerebrais são responsáveis pelas distorções cognitivas e emocionais que caracterizam as pessoas dependentes. É como se o uso de drogas modificasse os circuitos de controle da motivação natural, tornando esse uso quase como a única prioridade do indivíduo. A maioria da comunidade de especialistas considera a dependência de drogas uma doença cerebral com persistentes mudanças na estrutura e função do cérebro.

A visão da dependência gera controvérsias principalmente entre as pessoas com tendência a apresentar uma visão unidimensional para problemas complexos. Essas pessoas colocam a biologia como oposição à mente do dependente, quando na realidade existe uma grande conexão entre o cérebro e o comportamento. Isso não significa que o dependente seja uma vítima indefesa e sem responsabilidade por seus atos. Na realidade, o uso de substâncias começa com um ato voluntário e a pessoa tem grande responsabilidade pelo seu comportamento e também pela sua recuperação. Portanto, ter uma doença cerebral com essas características não exime de responsabilidade o dependente. No entanto, o fato de ter uma doença cerebral implica que muitas vezes é necessário tratamento médico para se produzir uma mudança sólida de comportamento.

Há grande dificuldade na análise dos resultados das políticas relacionadas às drogas. Anos de debate internacional produziram poucas certezas sobre a eficácia das políticas. Uma das poucas avaliações mais bem organizadas é proposta por MacCoun e Reuter7. Esses autores sustentam que precisamos olhar as políticas de forma bem mais analítica e levando em consideração a complexidade da situação, pois várias áreas se relacionam de forma causal, como é o caso da cultura, da ação dos governos, das diretrizes para confrontar o problema, da vontade dos indivíduos e do impacto do uso.

Quatro aspectos precisam ser levados em conta quando analisamos a política de drogas de um país: (1) vários fatores externos influenciam a política: os tratados internacionais, as políticas de saúde e de assistencial social, os direitos individuais, a autoridade e a autonomia dos médicos e outros; (2) os objetivos estabelecidos influenciam não somente as políticas formais, mas também, sua implementação; (3) as políticas recebem influência simbólica que transcende à sua implementação -pessoas influentes fazem declarações que atingem fortemente a legitimidade e a aderência das ações; (4) as políticas formais e sua implementação recebem influência direta dos danos percebidos socialmente pelo uso de drogas que podem ser independentes do nível real do uso em determinada sociedade.

Avaliar a extensão do problema das drogas, portanto, vai além de saber o número de usuários de cada tipo. As drogas diferem em termos de danos ao indivíduo e a sociedade. Também é necessário saber como são consumidas; por exemplo, a cocaína cheirada produz um dano diferente do que a fumada na forma de crack.

Existem duas visões claras na forma de lidar com as drogas: uma proveniente da saúde pública e outra da justiça criminal. Devido ao fenômeno da violência relacionado ao tráfico de drogas nos Estados Unidos, o país escolheu o lado da justiça criminal para lidar com o problema, com todas as implicações que isso acarreta. A Europa escolheu o lado da saúde pública, muito embora haja grandes diferenças de abordagem entre os países. Por exemplo, a Suíça convive com experimentos sociais alternativos para usuários de heroína e uma das maiores taxas de encarceramento da Europa. A Suécia tem clara retórica antidrogas e leis consideradas duras, com investimento muito maior do que qualquer outro país, inclusive que a Holanda, na área de prevenção e tratamento. As escolhas são sempre influenciadas por valores políticos e por definições do que constitui o problema.

Referências

1. Babor T, Caetano R, Casswell S, Edwards G, Giesbrecht N, Graham K, Grube J, Gruenewald P, Hill L, Holder H, Homel R, Osterberg E, Rehm J, Room R, Rossow I. Alcohol: no ordinary commodity: research and public policy. New York: Oxford University Express; 2003.        

2. MacCoun RJ. Drugs and the law: a psychological analysis of drug prohibition. Psychological Bulletin 1993; 113(3):497-512.        

3. Laranjeira R. Legalização de drogas. [site da Internet]. [acessado 2009 jan 8]. Disponível em: http://kiai.med.br/wp-content/uploads/2009/11       

4. Goode E. Between politics and reason: the drug legalization debate. New York: St. Martin’s Press; 1997.

5. Szasz T. Our Right to Drugs: the case for a free market. New York: Praeger; 1992.

6. Bejerot N. Addiction and society. Springfield, Illinois: Thomas; 1970.

7. MacCoun R, Reuter P. Drug war heresies: learning from other vices, times, and places. Cambridge: University Press; 2001.       

 

Dr. Ronaldo Laranjeira
Médico e professor titular do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSTA DE LEGALIZAR AS DROGAS

Em declarações à imprensa, o governador Sérgio Cabral tem defendido a legalização de todas as drogas hoje consideradas ilícitas, como uma medida que favoreceria à redução da criminalidade, em especial, à redução do crime organizado. O consumo dessas drogas já foi descriminalizado. O então senador Sérgio Cabral foi o relator dessa lei, sancionada pelo presidente Lula no ano passado. Portanto, o governador somente pode estar se referindo, agora, à legalização do tráfico de drogas. E, como é de seu estilo, franco e aberto, ele é explícito sobre a questão.

 

Se a fonte dessas declarações fosse de algum desses trêfegos rapazes da mídia ou da chamada vida acadêmica – ou até da vida política – não nos daríamos ao trabalho de prestar muita atenção. Mas, o governador Cabral é homem de responsabilidade – e, além disso, pessoa que temos, como sabem os leitores, em nossa elevada estima e consideração. Para completar, ele governa o Rio de Janeiro, Estado que mora no coração de todo brasileiro – pelo menos é o que pensa o autor destas linhas, carioca convicto há mais de cinco décadas e eleitor do governador, apesar de (ninguém é perfeito) especialista no penoso ramo da psiquiatria…

 

Em sua recente entrevista à “Época”, declarou o governador que “não sou a favor de cocaína, heroína ou do cigarro de maconha. Sou favorável a que o mundo reconheça que há uma demanda por drogas que só aumenta”.

 

Realmente, a demanda é crescente. Trata-se de substâncias cujo uso, no caso da maior parte de seus consumidores, não é voluntário. Ou seja, trata-se de substâncias que causam dependência e, mais do que isso, “tolerância” – o que quer dizer que são necessárias doses crescentes para se alcançar o mesmo efeito. Portanto, é inevitável que a demanda seja crescente. No entanto, essa não é a principal razão para o brutal aumento da demanda nas últimas décadas. A demanda aumentou brutalmente porque a oferta aumentou brutalmente. Como em qualquer outro produto, é a oferta que cria a demanda, e não o contrário.

 

Por essa razão, concordamos inteiramente com o governador que combater exclusivamente o consumo é coisa de hipócritas. Determinadas pessoas preferem os mal chamados “paraísos artificiais”, em vez da realidade, porque a realidade tornou-se para elas insuportável. Portanto, é preciso mudar a realidade, para que ela seja um estímulo a que as pessoas se integrem, e, não, a que se desintegrem. Querer acabar com o consumo através de medidas meramente repressivas, é apenas coonestar uma realidade injusta – e, para alguns, mais torturante ainda do que a dependência às drogas. Além de ser inútil, entre outras coisas porque é impossível resolver o problema sem combater a oferta, ou seja, a produção ilícita e sua conseqüência, o comércio ilícito dessas drogas.

 

Portanto, agiu muito bem o governador ao descriminalizar o consumo, pois o drogado é vítima, não criminoso. Exatamente pelas mesmas razões, por que o aumento da demanda seria um argumento a favor da legalização também do tráfico de drogas? Por que, já que a oferta cria a demanda, e não vice-versa, isso não seria, exatamente, um argumento contra a legalização do narcotráfico? Na China, a demanda pelo ópio, que os ingleses estimularam no país, só fazia aumentar. A dependência ao ópio sugava as energias de milhões de pessoas. Foi necessário acabar com o tráfico, reprimindo duramente os traficantes, para acabar com o consumo. Caso contrário, o país nunca teria se levantado e se transformado no gigante econômico atual. E, do ponto de vista ético: a legalização do tráfico, depois da descriminalização do consumo, não seria, tão somente, a equiparação dos criminosos com suas vítimas? Não estamos aqui, evidentemente, falando de consumidores que traficam para consumir, mas dos grandes traficantes nacionais e internacionais. Por que seria justo que a lei tratasse os que se enriquecem com o desespero dos consumidores de drogas da mesma forma que estes?

 

Mas vamos aos argumentos mais de fundo, expostos pelo governador. Primeiro, vejamos aqueles de natureza histórica. Na entrevista mencionada, o governador refere que inspira-se em Franklin Delano Roosevelt, que em 1933 acabou com a “lei seca” nos EUA.

 

Roosevelt é, realmente, uma excelente fonte de inspiração. Porém, não nos parece que o fim da “lei seca” nos EUA, na década de 30, possa servir de argumento a favor da legalização do narcotráfico no Brasil de hoje. E não apenas, nem principalmente, porque não estamos discutindo a proibição do que sempre foi permitido, e sim a permissão do que sempre foi proibido. O motivo verdadeiro, ou mais importante, é o próprio significado da “lei seca” – e os motivos de sua abolição.

 

A “lei seca” foi uma aberração parida em 1919 por uma aliança entre mequetrefes sem escrúpulos do Partido Republicano e fanáticos religiosos alucinados. Os primeiros queriam desmoralizar o presidente Wilson, democrata que havia aberto luta frontal contra os cartéis e monopólios que nessa época já sufocavam o país, e que era conhecido por sua devoção religiosa protestante. Os republicanos queriam atingir esta reputação de Wilson, obrigando-o a vetar a lei – ou atingir sua popularidade nas camadas proletárias do eleitorado, se não a vetasse. Na época, é necessário lembrar, Wilson, reeleito em 1916, poderia concorrer a um terceiro mandato no ano seguinte, 1920.

 

Já o objetivo dos fanáticos alucinados era, como o de qualquer alucinado, o de adaptar a realidade às suas alucinações. Muitos partidários da “proibição”, é verdade, faziam parte das duas categorias. Wilson, de quem Roosevelt era secretário da Marinha, vetou a lei – e, em meio a uma cruzada da imprensa, seu veto foi derrubado no Congresso.

 

ABORTO JURÍDICO

 

A “lei seca” era, portanto, apenas uma mistura de chicana e delírio. E por isso foi, ainda que tardiamente, abolida. Era um aborto jurídico e moral que não protegia ninguém. Não correspondia a nenhum interesse social verdadeiro. Não tinha função alguma no combate ao alcoolismo. Seu efeito prático era o de fazer o cidadão comum transgredir a lei para tomar um aperitivo, algo que até faz bem à saúde, enquanto os magnatas podiam encher a cara livremente em seus iates, mansões e bordéis de luxo, sem falar nas viagens ao exterior. Até o próprio Eliot Ness, promovido pela mídia a paladino da “lei seca”, disse, anos depois, que era uma lei contra a maioria da população.

 

A “lei seca” nada tinha a ver, portanto, com as leis sobre drogas que tivemos no Brasil, desde que esse problema entrou para o Código Penal, em 1943. No entanto, embora a péssima edição da entrevista não deixe claro, o governador deve estar supondo que houve uma diminuição da criminalidade após o fim da “lei seca”. Daí, a seguinte afirmação: “Se a gente for quantificar os mortos por conta da proibição da droga, o total é esmagadoramente maior do que os mortos por conta do uso da droga”. Na continuação, o governador refere-se às “brigas de gangue” e outros conflitos.

 

O problema das drogas não consiste, como o governador certamente não ignora, principalmente nas mortes provocadas por elas. Mas, analisemos, antes, a suposta diminuição da criminalidade após o fim da “lei seca”.

 

As quadrilhas que operavam com bebidas alcoólicas não se tornaram honestas depois da revogação da “lei seca”. Elas não tinham nenhuma preferência especial pelo álcool. O seu negócio era, como ainda é, ganhar dinheiro. Portanto, depois da revogação da “lei seca”, passaram a explorar mais intensamente outros ramos da criminalidade – a jogatina, a prostituição, o lenocínio, o roubo, o assassinato sob encomenda, e, evidentemente, os narcóticos. O que diminuiu, com o fim da “lei seca”, foi o número de prisões por consumo de bebidas alcoólicas. Mas essas não eram prisões de criminosos, e sim de simples amigos do copo, ou nem isso.

 

Alguém poderia argumentar que aquelas outras atividades a que se dedicaram os gangsters também poderiam ter sido legalizadas. Mas não seria por causa disso que os criminosos deixariam de ser criminosos e o crime deixaria de ser crime. Levando o raciocínio ao absurdo, mesmo se a lei permitisse todos os crimes, nem por isso eles deixariam de existir: um homicídio é sempre um homicídio; um estupro é sempre um estupro.

 

No entanto, houve realmente uma diminuição apreciável da criminalidade nos EUA, durante a década de 30. Mas não por causa do fim da “lei seca”. Os mortos nas guerras entre quadrilhas, a que se refere o governador, diminuíram – não nos EUA em geral, mas em Chicago, onde eram endêmicas – depois da prisão de Al Capone, em 1932, quando a máfia conseguiu estabelecer uma divisão de áreas “civilizada”, ou melhor, cartelizada, no crime organizado.

 

Quanto à criminalidade em geral, esta diminuiu com o “New Deal”, ou seja, diminuiu devido ao aumento do emprego, da renda, do atendimento público, do maior aparelhamento policial, em suma, diminuiu em função da política econômica de Roosevelt, priorizando o povo e não os monopólios que derrotara nas eleições de 1932. Na entrevista, o governador cita o “New Deal”, mas, provavelmente devido à edição, não é possível compreender que relação que ele faz entre essa política, a revogação da “lei seca” e a criminalidade.

 

Passemos agora ao segundo argumento, de natureza política: “O que deve ser proibido no mundo? Tudo que violar as regras da cidadania. (….) Desde que você não prejudique o outro…”. Segundo o governador, o consumo de drogas seria uma questão de “liberdades individuais”. Logo, supõe-se, a interdição do tráfico seria um atentado à liberdade individual do cidadão que escolher consumi-las.

 

Há realmente um problema de liberdade individual no consumo de drogas. A questão das drogas é uma questão de falta de liberdade individual, e não de exercício dessa liberdade individual. Que “liberdade individual” tem o dependente de crack? Que escolha tem ele, senão ir atrás da substância que dá alívio – momentâneo – à sua pavorosa ansiedade? Portanto, é a dependência das drogas que é um atentado à liberdade individual, e não a preocupação da sociedade em impedir essa dependência.

 

Em um de seus momentos menos brilhantes, Rui Barbosa, na época em que Oswaldo Cruz instituiu a vacinação obrigatória contra a varíola, argumentou que essa obrigatoriedade feria a liberdade individual do cidadão de se infectar. Se outros não quisessem contrair a moléstia, que se vacinassem…

 

Há aqui um problema semelhante. Por exemplo: se alguém, ao atravessar a Ponte Rio-Niterói, divisar um cidadão prestes a se atirar no mar, sua reação, se não for um psicopata, será a de parar imediatamente o carro e tentar impedi-lo de consumar o desesperado ato, ao invés de respeitar a suposta “liberdade individual” de se matar. Em outras palavras, a liberdade individual é uma relação do indivíduo com os outros. A vida individual não existe sem relação com a vida dos demais membros da sociedade. Só é possível ser um indivíduo na medida em que se faça parte da coletividade. Fora dessa relação, nem se pode falar em liberdade – ou, mesmo, em indivíduo.

 

O ser humano que se destrói através das drogas, ou vive em função do seu consumo, não está fazendo mal apenas a si mesmo – exceto se ele não tiver filhos, esposa, pais, irmãos, parentes, amigos ou semelhantes, isto é, se não fizer parte da sociedade. Mas, se isso fosse possível, não haveria necessidade de leis – e, portanto, não existiria a discussão sobre a “legalização”, ou não, de alguma coisa.

 

O terceiro argumento do governador, este de ordem clínica, é o seguinte: “quantas pessoas no mundo perdem seus alicerces estruturais, de família, amigos, trabalho e estudos, por conta do álcool? E morrem”. Ou seja, se o álcool, que causa tantos males, é permitido, porque não a cocaína, a heroína, a maconha, etc.?

 

Infelizmente, não é possível estabelecer uma isonomia entre todas as drogas, lícitas e ilícitas. Há um motivo para que as bebidas alcoólicas sejam permitidas, e a cocaína, heroína, crack, etc., não o sejam. Esse motivo chama-se dependência. Evidentemente, também existem dependentes do álcool. Porém, a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é dependente do álcool. Podem muito bem passar sem ele, se necessário, o que não é verdade em relação ao ópio e seu derivado sintético, a heroína, ou à cocaína e seu sub-produto, o crack, ou às anfetaminas e seus coquetéis – um deles é hoje denominado ecstasy. Ou, mesmo, em relação ao uso crônico da maconha.

 

Resumindo: consumidor de bebidas alcoólicas não é igual a dependente do álcool. E, se alguém argumentar que consumidor de heroína também não é igual a dependente de heroína, responderemos apenas que no dia em que nos apresentarem um que não seja, nos comprometemos a rever esse raciocínio. Sobre o que significa essa dependência, é mais do que suficiente ler aquela bíblia da literatura beatnik, “O Almoço Nu”, de William S. Burroughs. Nem mesmo é necessário chegar ao fim daquele circo de horrores.

 

Escolhemos a heroína como exemplo porque o nosso governador referiu-se à liberação de todas as drogas. Assim, a heroína, a esse respeito, é particularmente ilustrativa. Mas, certamente, para o cidadão da alta classe média, o consumo de cocaína pode não ser tão deletério quanto o da heroína e, muitas vezes, ele pode livrar-se da dependência, ainda que pagando a um profissional – ou a uma equipe deles – para que o ajude. Não é por acaso que essa é a camada da população que em geral é a favor da liberação geral das drogas. Realmente, para esses, seria confortável a liberação do tráfico. Poderiam consumir sem os riscos inerentes à compra dessas drogas. Talvez, como no caso das bebidas alcoólicas após o fim da “lei seca”, até pudessem contar com uma cocaína de mais confiança, fabricada pela Merck, pela Johnson ou outro monopólio transnacional, ao invés daquela que é fornecida pelo Fernandinho Beira-Mar…

 

Porém, vamos a um bairro da periferia de qualquer grande cidade. Vejam-se os dependentes do crack, um subproduto da cocaína. Vejam-se os próprios dependentes de cocaína, que existem na periferia e que, em geral, alternam o crack com a cocaína. São gente que não somente não tem como pagar uma ajuda profissional, mas que não tem estímulos para superar a dependência. É evidente que precisamos mudar essa realidade. Mas, enquanto não mudamos, o que significará, para esses dependentes, a legalização do tráfico, senão que o Estado e a coletividade estão se lixando para suas vidas?

 

Andemos mais um pouco pela periferia. Vejam-se as famílias – a que se referiu o governador – que lutam para que um ou mais de seus membros não sejam devorados pelo crack ou pela cocaína. Para esses, a legalização do tráfico seria o sinal de que não podem contar com a ajuda do Estado – ou, pior, o sinal de que o Estado é seu inimigo na luta para salvar um ente querido.

 

O governador Cabral considera que morrem mais pessoas pelas guerras de quadrilha do que por overdose. É verdade. Mas um dos motivos pelo qual isso acontece é que existem alguns limites, um dos quais é constituído pelo critério social que se expressa na interdição legal ao tráfico.

 

Por último, algumas observações rápidas sobre a mais incensada das drogas, o delta-9-THC, princípio ativo da maconha, que há anos é objeto de uma renitente campanha para considerá-la inofensiva. Permitam os leitores um testemunho pessoal. Durante muitos anos, como profissional, estive convicto de que seu uso era sem sequelas. Apenas, não me agradava um certo isolamento, que cruzava com o individualismo, nos usuários da droga. Mas não considerava isso um problema médico. Mantive a convicção de que a maconha, como dizem alguns, “faz menos mal que o cigarro”, mesmo quando, a partir da década de 70, alguns trabalhos, em várias partes do mundo, apontaram para danos mais sérios, sobretudo em estruturas cerebrais. Também não mudei de posição quando foram publicadas experiências em que voluntários desenvolveram surtos persecutórios graves após ser-lhes administrado diretamente o delta-9-THC. Parecia-me que esses estudos permitiam ainda um grau de dúvida razoável.

 

No entanto, médicos são gente prática. Foi impossível manter a minha antiga convicção, quando apareceram não apenas pacientes que relatavam surtos persecutórios, como outros cujo quadro de empobrecimento psíquico e comportamental somente poderia ser explicado por dano estrutural do cérebro devido ao uso crônico de maconha. Nada como ver um caso diante dos olhos. E não foi apenas um.

 

Carlos Lopes

Psiquiatra e diretor de redação do jornal Hora do Povo

Texto publicado no Jornal Hora do Povo em abril de 2007

 

 

 

LIBERDADE OU DEPENDÊNCIA? DROGAS, TÔ FORA!

 

Algumas considerações sobre a proposta de legalizar as drogas – Carlos Lopes, psiquiatra e diretor de redação do jornal Hora do Povo

 

Legalização de drogas e a saúde pública – Dr. Ronaldo Laranjeira, médico e professor titular do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP