Carta-Testamento – O maior libelo da história do Brasil

No início de agosto de 1954, tudo indicava que o governo do presidente Getúlio Vargas havia derrotado a conspiração golpista que começara antes mesmo de sua posse (a quatro meses das eleições presidenciais, Carlos Lacerda escreveu em seu jornal, a Tribuna da Imprensa: “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Em junho, uma tentativa de impeachment não conseguira o apoio nem ao menos de toda a UDN – fora derrotada por 136 votos contra e 35 votos a favor. Mas, em 5 de agosto, os golpistas conseguiram um cadáver, o de um major que fazia a segurança de Lacerda – e uma farsa, a história de um suposto atentado contra Lacerda, hoje completamente insustentável, após o trabalho dos repórteres Palmério Dória e Hamilton Almeida Filho (“Mataram o Presidente!”, Editora Alfa-Omega, 1978) e do pesquisador Ronaldo Conde Aguiar (“Vitória na Derrota – A Morte de Getúlio Vargas”, Ed. Casa da Palavra, 2004). Para uma síntese, ver HP, 28/08/2005.

No dia 24 de agosto, o presidente Getúlio sacrificava sua vida – e sua carta-testamento se tornaria o documento mais importante, mais candente e mais profundo de toda a História do Brasil. É este texto que hoje republicamos. Getúlio havia explicitado a posição que posteriormente nortearia seu governo em maio de 1947, discursando no Senado. Disse ele:

“O que existe por parte de alguns homens em nosso país, arvorados em líderes da economia nacional, é apenas um acentuado complexo contra o trabalhador brasileiro. Acham que ele não deve ser operário nas fábricas, que o Brasil não deve ter indústria, que é indispensável destruir toda e qualquer possibilidade de trabalho fora dos campos. O Brasil, no conceito desses homens, deve ser uma nação essencialmente agrícola. O operário deve mudar de profissão, pelo que pretendem, ou então voltar ao regime de escravatura”.

Durante a campanha eleitoral, tornou mais nítidos os seus pontos de vista. Em 10 de agosto de 1950, discursaria em São Paulo:

“O que existe, defendida intransigentemente pelos velhos partidos, com novos rótulos, é a democracia política, baseada em leis que lhe asseguram o gozo de privilégios para oprimir e explorar o trabalho alheio. O trabalhismo brasileiro surgiu, assim, como uma afirmação contra a máquina montada em nome da liberdade política, com sacrifício da igualdade social”.

A questão fundamental era clara para ele há muito tempo. Em 1944, ao se referir às relações econômicas com os EUA no pós-guerra, havia enunciado:

“Não podemos admitir a hipótese de que terminada a guerra e depois de tantos sacrifícios venham a persistir nas relações entre os povos os mesmos processos condenáveis de dominação econômica. (…) E nem vale a pena pensar em que desorganização caótica, de revoluções e perturbações, mergulhará o mundo de novo se não for ouvida a voz da razão e não nos convencermos de que não é possível a hegemonia de nenhum povo ou raça, isoladamente, sobre os demais”.

A eleição, além da vitória esmagadora de Getúlio, confinou a UDN a três governos estaduais – Alagoas, Mato Grosso e Paraná. Num quarto, o Pará, a UDN venceu em coligação com o PSP, de Ademar de Barros, que apoiava Getúlio.  Apesar disso, a campanha golpista começou logo em seguida – para isso, funcionava no Rio de Janeiro o “Escritório Monsen”, uma suposta empresa de advocacia pertencente à Standard Oil, que tinha como um de seus principais membros o genro do diretor da Hollerith, uma subsidiária da IBM.

A questão, confessada depois pelo próprio Lacerda e por Eugênio Gudin – o mais notório defensor da nossa suposta “vocação agrícola” – era impedir que a política de Getúlio se tornasse “permanente”, se consolidasse como o programa do Estado e da Nação brasileira naquela nova fase da nossa história. Para isso, a conspirata golpista seguiu por três lados: a tentativa de isolar o governo das Forças Armadas; a tentativa de privar Getúlio de qualquer órgão de comunicação com o povo; e a tentativa de isolá-lo do empresariado nacional.

O primeiro episódio não poderia ser mais claro sobre o caráter dos golpistas: a campanha contra o ministro da Guerra, general Newton Estillac Leal, por sua oposição a que o Brasil enviasse tropas para ajudar os EUA na agressão à Coreia. Em dezembro de 1951, o presidente decidiu, definitivamente, que o Exército Brasileiro não iria coadjuvar a agressão. No mesmo mês, Getúlio enviou ao Congresso o projeto inicial de criação da Petrobrás. Isso iniciaria dois anos de luta pela aprovação. Em 31 de dezembro de 1951, o presidente denunciou a escandalosa remessa de lucros das empresas estrangeiras. Logo em seguida, a 3 de janeiro de 1952, ele assinaria um decreto limitando em 10% dos lucros as remessas para o exterior. Os EUA, imediatamente, ameaçaram suspender todos os financiamentos ao Brasil. Mas o presidente manteve o decreto. Enquanto isso, a oposição dos militares brasileiros a que fossem morrer pelos norte-americanos na Coreia e seu apoio à Petrobrás foram tachados de “comunistas”. A questão era atrair, neutralizar e intimidar oficiais com essa cruzada, para fazer com que o Ministério da Guerra ficasse em mãos cada vez menos firmes – em 1952, Estillac Leal sai do ministério.

Era impossível, no entanto, derrubar o governo sem isolá-lo do povo, portanto, tentar destruir o único jornal com que Getúlio contava, a “Última Hora”, de Samuel Wainer. Em abril de 1953, Lacerda publicou uma acusação falsa, a de que Wainer não havia nascido no Brasil: a Constituição de 46 proibia a propriedade de órgãos de comunicação por estrangeiros ou brasileiros naturalizados. O serviçais do escritório da Standard Oil acusavam Wainer de ser… estrangeiro. Em seguida, a acusação passou a ser a de que o jornal tinha obtido créditos bancários para se viabilizar. Exigiam da empresa que fosse a única no mundo a sobreviver sem empréstimos. Por fim, acusavam o governo de favorecer o jornal. Com sua falta de escrúpulos, Lacerda inventou um crédito de Cr$ 300 mil que teria sido concedido pelo Banco do Brasil ao “Última Hora” sem que Wainer tivesse que pagá-lo. Além disso, um aval cambial para importação de papel de imprensa, que o BB estava, por lei, obrigado a conceder, foi chamado de “empréstimo”.

No entanto, a “Última Hora” era o jornal que devia menos ao BB – a dívida executável era de 8 mil cruzeiros. Já os “Diários Associados”, de Chateaubriand, deviam CR$ 162 milhões ao BB; “O Globo”, somente nos dois anos anteriores, tinha obtido US$ 1.022.211,00 do BB em sucessivos empréstimos, dando sempre como garantia uma mesma velha impressora, e sem quitar durante esse período sequer o primeiro desses empréstimos. O próprio jornal de Lacerda, insignificante quanto à tiragem, era devedor do BB.

O próximo alvo foi o Ministério do Trabalho, encabeçado por João Goulart. A 8 de março de 1953, o “The New York Times” iniciou, em editorial, a campanha contra Jango, mais jovem ministro da História da República, logo copiada pela imprensa golpista interna. Em seu primeiro ano de governo, Getúlio havia aumentado o salário mínimo – que ficara sem nem ao menos reajuste durante oito anos – de 380 cruzeiros para 1.200 cruzeiros. Agora, na iminência de outro aumento, a ser concedido em maio de 1954, foi inventada uma peculiar teoria, segundo a qual o aumento não poderia ultrapassar a inflação, isto é, não poderia haver aumento real, sob pena do empresariado ir à falência.

Diante da gritaria que conseguiu envolver setores do empresariado e alguns militares de prestígio – o chamado “manifesto dos coronéis” -, Jango resolveu demitir-se para privar a conspiração de um alvo e impedir que o governo fosse paralisado. Mas o aumento de 100% foi decretado no dia 1º de maio de 1954 – e nenhuma empresa faliu por causa dele. Pelo contrário, representou a expansão do mercado interno para essas empresas.

Nesse primeiro de maio, olhando para algumas décadas mais tarde, Getúlio afirmou:
  “Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo às vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.

 

CARLOS LOPES

 

CARTA-TESTAMENTO

 

“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.

 

GETÚLIO VARGAS

 

Texto estraído da Hora do Povo – Edição 2.893 de 2010

Professor Eduardo de Oliviera

O 13 de maio foi a vitória da luta de Zumbi dos Palmares

A revolução abolicionista-republicana foi o movimento que constituiu, definitivamente, o povo brasileiro. Nenhum outro foi tão importante para definir a fisionomia da Nação

 

Para Eduardo de Oliveira, herói sereno do nosso povo

 

Professor Eduardo de OlivieraO 13 de maio foi sempre uma das datas mais estimadas pelo povo brasileiro, somente comparável em popularidade à da própria Independência. Certamente, nós, brasileiros, temos toda razão em ter em tão alta conta a Abolição. O Brasil é, antes de tudo, um país e uma Nação construída pelos negros. Esta foi a base de toda a luta abolicionista, tal como observou, cinco anos antes do 13 de maio de 1888, Joaquim Nabuco: “a raça negra nos deu um povo. O que existe até hoje sobre o vasto território que se chama Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu o nosso país. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar… a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua”.

O 13 de maio foi a vitória da luta da qual Zumbi dos Palmares – assim como Tiradentes em relação à Independência – foi o protomártir. Nenhuma parte, nenhum setor da sociedade ficou fora dela – a cultura brasileira teve em Castro Alves o seu expoente máximo; os militares afirmaram a consciência nacional ao recusar-se a perseguir os escravos, declarando: “não somos capitães do mato”; a Abolição superou todas as divisões partidárias e, até mesmo, étnicas, de Luiz Gama e José do Patrocínio, negros e republicanos, a André Rebouças, negro e monarquista, Silva Jardim, branco e republicano, até Joaquim Nabuco, branco, monarquista e filho de um senhor de engenho.

Em suma, a revolução abolicionista-republicana foi o movimento que constituiu, definitivamente, o povo brasileiro. Nenhum outro foi tão importante para definir a fisionomia da nacionalidade. Neste sentido, a Revolução de 30 é um desenvolvimento de 1888 e 1889, de certa forma a retomada da revolução abolicionista após a derrubada da república oligárquica, aspecto presente até mesmo na formação de seu líder, Getúlio, filho direto do abolicionismo republicano.

Mas é certo que Abolição e República não foram bandeiras que cami-nharam sempre juntas, apesar de, já no século XVIII, Tiradentes as ter vinculado. Somente em 1887 o Partido Republicano iria assumir oficialmente a Abolição, com a adesão da última seção que ainda resistia, o Partido Republicano Paulista, que futuramente iria dominar a República Velha. Mas os principais propagandistas republicanos – como Silva Jardim – cresceram junto ao povo por serem os mais firmes agitadores da Abolição. Foi o abolicionismo que forjou a unidade nacional. Abolição e República tornaram-se, cada vez mais, convergentes. O primeiro a novamente vinculá-las foi um negro, Luiz Gama, na Convenção republicana de Itu.

Luiz Gama sabia, por experiência própria, do que falava quando denunciou: “Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”.

Nascido livre há exatos 170 anos, Luiz Gama foi separado aos sete anos da mãe, Luiza Mahin, líder da revolta dos malês, deportada para a África. Aos 10 anos foi vendido como escravo pelo próprio pai, um fidalgo português arruinado por dívidas de jogo. Revendido a um contrabandista, percorreu a pé, num grupo de cem outros negros, o caminho da Serra do Mar entre Santos e Campinas, para ser entregue ao novo “senhor”. Segundo seu próprio relato, enfrentou em São Paulo outro preconceito, por ser baiano – os escravos nascidos na Bahia eram então considerados os mais rebeldes, a ponto da palavra “baiano” ter-se tornado pejorativa para os escravocratas.

Aos 18 anos, Luiz Gama fugiu de seu último “senhor” e entrou no Exército. Advogado, foi defendendo um escravo diante do Tribunal do Júri que pronunciou a sentença de morte da escravidão: “aquele negro que mata alguém que deseja mantê-lo escravo, seja em qualquer circunstância for, mata em legítima defesa”. Não dizia isso por ódio, mas porque era verdade. Amigo – e colega na redação de um jornal – de Rui Barbosa, de Joaquim Nabuco e outras grandes personalidades da época, Luiz Gama foi a figura mais avançada da luta abolicionista.

No entanto, desde Tiradentes a Abolição já era a questão fundamental da luta pelo desenvolvimento, industrialização e emancipação do Brasil. A Independência, que se consolidou tendo como classe dominante os senhores de escravos e o Estado que os representava – a monarquia – a tinha colocado em questão na palavra de seu próprio Patriarca, José Bonifácio, dirigindo-se à Assembleia Constituinte, em 1823, na apresentação de seu maior projeto.

Como afirmou José Bonifácio, a escravidão era uma herança insuportável da colonização, a comprometer a unidade e a própria existência da nova Nação: “Se o antigo despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar”.

Assim, a Abolição era absolutamente imprescindível para que o novo país, então com apenas um ano de idade, se consolidasse e o povo brasileiro completasse a sua formação: “… é tempo que vamos acabando até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes… cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto”.

Respondendo ao cretino “argumento” dos escravagistas, segundo o qual a Abolição seria um atentado ao seu “direito de propriedade”, José Bonifácio fez, então, a maior denúncia da escravidão em sua época, colocando a propriedade no devido lugar, subordinada aos interesses sociais e nacionais: “Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém sem atacar os direitos da providência, que fez os homens livres, e não escravos… Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil”.

Antes de tudo, a Abolição correspondia aos interesses nacionais – a rigor, ela é o interesse nacional, não só o interesse da justiça, mas o interesse do país pelo progresso econômico e pelo avanço da industrialização, impossível com a escravidão que “só serve”, ressalta José Bonifácio, “para obstar a nossa indústria… basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia… as máquinas que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas”.

O abolicionismo era, portanto, a luta contra o atraso, a estagnação e a ignorância. O combate foi extremamente árduo. Não teve, nem de perto, um único traço de concessão, até porque é uma idéia ridícula a de conceber uma classe inteira de senhores de escravos dando a estes, como concessão, a liberdade.

As leis antiescravagistas foram sistematicamente desrespeitadas – como denunciaram os abolicionistas, a maior parte delas era pura encenação: proibiu-se o tráfico de escravos, mas não a propriedade de escravos contrabandeados; a lei dos sexagenários concedia liberdade aos escravos que completassem 62 anos, isto é, os mortos; a lei do ventre livre concedia liberdade à criança, mas não à mãe nem ao pai: onde iria viver essa criança “livre” senão na senzala, como escrava?

Os negros, os continuadores de Zumbi, estiveram todo o tempo, a exemplo de Luiz Gama, à frente desse movimento. Mais do que isso, manifestaram-se em massa. A própria declaração dos militares recusando-se a persegui-los foi uma resposta à tentativa do governo de usar o Exército para reprimir os quilombos formados pelos negros que saiam das fazendas. A tal ponto foram isolados os escravagistas que o próprio Estado que os representara desde a Independência foi obrigado a decretar a Abolição – e, com isso, como disse o inconformado Barão de Cotegipe, escravagista renitente, decretou também seu próprio fim.

É verdade que os vencedores do 13 de maio foram marginalizados durante a República Velha – mas exatamente porque a oligarquia, com seu servilismo aos banqueiros e especuladores ingleses, bloqueou o desenvolvimento e a industrialização do país, continuação natural da Abolição. Foi necessária a Revolução de 30 para que os negros e todo o povo brasileiro conquistassem outra vez o lugar que lhes cabe. Quando Getúlio decretou, entre outras inúmeras medidas, a lei estipulando que pelo menos dois terços dos trabalhadores das empresas teriam que ser brasileiros, começou a ser quebrada essa marginalização. Durante o período de Getúlio, o 13 de maio tornou-se festa nacional; o samba tornou-se a mais universal expressão cultural brasileira; as escolas de samba e seus enredos nacionais tornaram-se o ponto culminante do carnaval; e foram proscritas uma série de perseguições e discriminações contra os negros – entre elas, a que proibia a capoeira: a licença que Getúlio assinou para que o famoso mestre Bimba abrisse a primeira academia de capoeira do país é um símbolo imperecível dos ideais e da luta que o 13 de maio representa na consciência nacional.

Hoje, esse é o caminho que retomaremos – e já retomamos – para construir um Brasil livre e justo.

 

CARLOS LOPES

Texto extraído da Hora do Povo

Revolução de 1924 – Nas barrancas do Rio Paraná

“Nas lindes acidentes do Paraná alguns milhares de compatriotas vão selando com o seu sangue o protesto contra a tirania!”

 

1.      Introdução

2.      Sertões Paulistas

3.      A Coluna da Morte

4.      O Papel da Imprensa

5.      Reorganização em Bauru

6.      Plano de Campanha

7.      Porto Tibiriçá

8.      A Conquista de Guaíra

9.      Preparando a Frente Sul

10.  Chimangos e Maragatos

11.  Isidoro desautoriza João Francisco

12.  Insurreição no Rio Grande do Sul

13.  A Revolta do Encouraçado São Paulo

14.  Nas Trincheiras de Catanduvas

15.  A Guerra de Posição

16.  Reveses em Alegrete e Itaqui

17.  O Leão de Caverá

18.  Protetor de Chimangos

19.  A Guerra de Movimento

20.  Marcha para o Norte

21.  Deserção do Tenente Gay

22.  Ataque a Formigas

23.  Conversações de Paz

24.  Operação Clevelândia

25.  Queda de Catanduvas

26.  O Encontro das Divisões

27.  O Comandante Paraguaio

28.  Epílogo

 

1. Introdução

À  1h15 do dia 5 de julho de 1922, os canhões do Forte Copacabana, no Rio de Janeiro, anunciavam a primeira de uma sucessão de rebeliões que culminariam com a liquidação do domínio exercido pela oligarquia cafeeira sobre a vida nacional.

A submissão aos  interesses do imperialismo inglês, e a conseqüente renúncia à industrialização do país, empurrara a oligarquia  a um beco sem saída.  Sua insistência na valorização artificial do café, às custas do empobrecimento dos demais setores da sociedade, provocara uma crise sem precedentes.

Os tenentes sonhavam com um Brasil renovado pelo voto secreto,  educação pública, moralidade administrativa, erradicação da miséria. Para isso era necessário libertá-lo dos grilhões da monocultura cafeeira.

A segunda onda revolucionária teria início em 1924, também na mesma data, 5 de julho. As guarnições do Exército da capital paulista e parte do contingente da Polícia Militar se insurgem. Com o apoio da população civil,  assumem o controle da cidade, depois de quatro dias de combates. À frente do levante estão o capitão Joaquim Távora, veterano de 1922; o major Miguel Costa, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar; o coronel João Francisco Pereira de Sousa; o general reformado Isidoro Dias Lopes; e diversos tenentes e ex-alunos da Escola Militar de Realengo, que tiveram seu batismo de fogo na Revolução de 1922.

A 13 de julho levanta-se a guarnição federal de Sergipe, sob o comando do tenente Maynard Gomes. Dez dias depois, subleva-se o 27º Batalhão de Caçadores, sediado em Manaus. Os tenentes Alfredo Augusto Ribeiro Júnior e Magalhães Barata destituem os representantes do clã Rego Monteiro, e instituem um governo revolucionário. Em 26 de agosto é a vez da guarnição de Belém derrubar o governo estadual.

As rebeliões no Nordeste e Norte são dominadas pelo governo central, ainda no mês de agosto. Porém a revolução iniciada em São Paulo se estenderá por um período de quase três anos, marcando profundamente a vida política do país, preparando o advento da terceira e decisiva ofensiva revolucionária, em 1930.

 

2. Sertões Paulistas

Durante os primeiros dias em que a luta era travada na cidade de São Paulo, os insurretos assumiram o controle de Rio Claro, Jundiaí e Campinas, através do 5º Batalhão de Caçadores e do 2º Grupo de Artilharia de Montanha, unidades respectivamente sediadas na primeira e segunda localidades.

A partir do dia 18 de julho, três destacamentos revolucionários foram lançados sobre os principais eixos ferroviários do estado. Sob o comando do capitão Otávio Guimarães, o primeiro destacamento seguiria pelas ferrovias Paulista e Mogiana, na direção Oeste, com o objetivo de neutralizar as penetrações governamentais vindas de Mato Grosso. O segundo, comandado pelo tenente João Cabanas, tomaria o rumo Norte, através da Mogiana, visando conter infiltrações procedentes do sul de Minas. O outro, chefiado pelo capitão Paulo Francisco Bastos, marcharia na direção Sul, pela Sorocabana, para impedir ou retardar a progressão de forças provindas do Paraná.

Essas providências foram decisivas para evitar o cerco da capital e manter aberto o caminho para a retirada das tropas revolucionárias – opção que, naquele momento, começava a afigurar-se como único meio de salvar São Paulo da destruição provocada pelo criminoso bombardeio levado a cabo pelas forças governistas. Apesar de não produzir baixas significativas entre as forças revolucionárias, o bombardeio, iniciado em 12 de julho, espalhava o pânico e a morte entre a população civil. Em dezesseis dias, mais de 1.800 edificações foram arrasadas, entre as quais uma centena de fábricas e estabelecimentos comerciais.

O destacamento de Otávio Guimarães – tenente do Exército, comissionado na função de capitão – dirigiu-se para a estratégica cidade de Bauru, ponto de convergência de três estradas de ferro, onde havia uma forte oposição disposta a prestar integral apoio aos revolucionários.

O inquérito realizado pela Polícia Militar de São Paulo atesta que a missão foi realizada com êxito. Diz o documento:

“Fazendo de Bauru o centro de suas proezas… mandara ocupar, desde logo, Agudos, Dois Córregos, Jaú e Bocaina, o que foi realizado com felizes incursões pelo civil dr. José Giraldes Filho, comissionado tenente… Determinou o delegado militar de Jaú a ocupação de Mineiros do Tietê e Bica de Pedra… Tomaram a Estrada de Ferro Douradense, cujos empregados, levados pela propaganda revolucionária, aderiram francamente ao levante, passando a obedecer o delegado militar de Jaú”.

A ameaça de infiltração de tropas paranaenses não se efetivou. Poucos dias depois o destacamento do capitão Paulo Francisco Bastos retornava a São Paulo.

 

3. A Coluna da Morte

O tenente João Cabanas, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar – denominada, na época, Força Pública Paulista – tinha um problema difícil de ser resolvido através dos meios convencionais de combate.

À frente de um destacamento composto de 95 homens, sua missão era bloquear o general Martins Pereira, que vindo de Minas ocupara Mogi-Mirim, Jaguari e Itapira com 800 soldados que compunham a vanguarda de sua tropa. Dispunha ainda a força invasora de 1.000 homens estacionados em Ribeirão Preto, e 1.200 que haviam atingido as cidades mineiras de Jacutinga e Pouso Alegre. O general tencionava atacar Campinas, fechando o cerco aos revolucionários na capital.

Dispondo de poucos elementos para desestabilizar e fazer recuar uma tropa cujos efetivos totais chegavam a 3.000 homens, o tenente Cabanas deslocava-se com estudado espalhafato, tendo chegado a se valer de um trem especialmente preparado para parecer armado dos mais mortíferos engenhos militares da época. Na verdade, o veículo era uma réplica cenográfica do trem blindado utilizado semanas antes pelas forças revolucionária no ataque à estação de Vila Matilde, na cidade de São Paulo. No vagão da frente, um imponente e temível canhão de 155 mm. Só observando-o bem de perto se perceberia o logro. Segundo afiança o tenente, o artefato fora fabricado “com a melhor peroba produzida no solo paulista, enegrecida com algumas pinceladas de piche”.

Assim, antes mesmo de ser atingido pelos disparos dos comandados de Cabanas em seus desconcertantes ataques, o general Martins Pereira era fustigado pela nascente lenda da Coluna da Morte.

Antecedido pela fama que começara a granjear, o batalhão do tenente Cabanas, em sua marcha para Mogi-Mirim, surpreendeu os ocupantes da cidade com arrasador telegrama endereçado a uma cidade vizinha:

“Seguimos madrugada, mil homens, seis peças de artilharia, vinte metralhadoras.  Providencie, urgente, alojamentos para tropa”.

Incontinenti a Coluna da Morte atacou e dominou as posições mais fracas do inimigo, em Jaguari e Itapira. Foi o suficiente  para que o general governista ordenasse a desocupação de Mogi-Mirim, aliviando a pressão sobre Campinas.

Perdendo o respeito pelo adversário, Cabanas decidiu persegui-lo, marchando sobre Ribeirão Preto, onde conseguiu dispersar a força inimiga valendo-se dos mesmos métodos.

Contida a ameaça de infiltração das tropas de Minas, o tenente solicitou autorização para ampliar o raio de ação da Coluna da Morte. Pretendia acossar e dispersar as quatro brigadas formadas pelos próceres do PRP – Partido Republicano Paulista. Concentradas em Itapetininga e Sorocaba, essas forças irregulares, compostas de jagunços e peões capturados a laço, levavam o nome de seus ilustres organizadores: Washington Luís, Fernando Prestes, Júlio Prestes e Ataliba Leonel – respectivamente, o ex-governador, o vice-governador, o futuro governador e um senador estadual.

A autorização não foi concedida. Já a essa altura contando com  200 combatentes, a Coluna da Morte voltou-se então para Espírito Santo do Pinhal, onde o general Martins Pereira procurava reorganizar suas forças. Derrotado mais uma vez, o general abandonou no campo de batalha 1.200 fuzis, 14 caixas de munição de artilharia, duas metralhadoras pesadas e farta munição de infantaria.

 

4. O Papel da Imprensa

Sob o impacto das investidas de Otávio Guimarães e João Cabanas, as autoridades revolucionárias comandaram também a ocupação de São Carlos, Araraquara, Jaboticabal, Limeira, Araras, Pirassununga e Descalvado.

Batida no campo de batalha por modestos tenentes, a oligarquia cafeeira empenhou-se em estigmatizá-los através da imprensa.

Otávio Guimarães era apresentado como um celerado que saqueava, em proveito próprio, os cofres das estações ferroviárias, prefeituras e câmaras municipais.

De Miguel Costa diziam que desviava produtos requisitados para suprimento das forças revolucionárias. Sob o título “Busca e apreensão na casa da irmã de um dos chefes dos bandoleiros”, o Correio Paulistano forjava, em 31 de julho, a prova do crime:

“O sr. dr. Edgard Botelho, delegado da 1ª circunscrição da capital… realizou ontem, às 13h, uma busca na casa da rua Tabatingüera, 84-A, residência da irmã  do major Miguel Costa, chefe dos elementos sublevados da Força Pública Estadual, o `remodelador da moral republicana brasileira`, onde apreendeu as seguintes mercadorias: 1 caixão de latas de sardinhas, 2 caixões de cebolas, 1 saco de milho, 2 caixões de sabão, 3 sacos de sal… 1 pneumático, 5 réstias de alho, 16 galinhas, 1 peru, 2 leitões, 15 latas de atum, 2 latas de pescada, 4 latas de leite condensado, 1 lata de vaselina… Um verdadeiro armazém!”.

Já o tenente Cabanas foi contemplado com pérolas do seguinte quilate:

“Na torva galeria dos malfeitores que a revolta engendrou destaca-se, num fundo rubro-negro, ora a rir como jogral num circo, ora a gesticular como epilético em paroxismo trágico, a figura do tenente Cabanas, da Força Pública de São Paulo…

Cabanas surgiu no ambiente lôbrego da revolta como seu mais perfeito símbolo. No cérebro onde se fluidificam vapores de insânia e de delírio perpassam-lhes como relâmpagos visões trágicas e grotescas… Para a execução dos planos sinistros e instantâneos que idealiza todos os meios lhe servem”.

A síntese desses juízos foi expressa pelo Correio Paulistano, através do seguinte epíteto:

 “O famigerado João Cabanas, a alma danada da revolução”.

Empenhavam-se os escribas em compor o perfil de um ser maligno, sanguinário ao extremo, que se comprazia em torturar prisioneiros cortando-lhes a  língua e arrancando-lhes os olhos a ponta de espada. Em breve estariam circulando histórias de que Cabanas protegia-se das balas cobrindo-se com uma invulnerável capa negra que lhe fora presenteada pelo próprio Satanás.

Alheio às maledicências, o tenente ultimava os preparativos para a realização de um plano de invadir o triângulo mineiro e marchar sobre Belo Horizonte, quando foi informado que os revolucionários começavam a retirar-se de São Paulo, devendo a Coluna da Morte tomar o rumo de Campinas, para alcançar o grosso da força revolucionária em deslocamento para Bauru.

 

5. Reorganização em Bauru

Às 22h do dia 28, as forças revolucionárias iniciaram a retirada estratégica pelo eixo ferroviário São Paulo-Campinas-Bauru. São treze composições ferroviárias, com quatorze a dezesseis vagões, cada uma delas, conduzindo homens e material bélico. Toda a tropa, seis baterias de artilharia com seus acessórios e munição, duzentos cavalos, metralhadoras pesadas, equipamento de infantaria e cavalaria, viaturas, tudo foi embarcado com incrível rapidez, sem dar chance ao inimigo de perceber o que estava acontecendo. Os trens correram com um sincronismo tal que não houve embaraço nas linhas, ao longo de vinte e quatro horas.

Os dias seguintes são dedicados à reorganização da tropa e à definição do plano de campanha para as novas condições de luta.

Os 3.000 homens, originários das unidades do Exército, Polícia Militar e Batalhões Patrióticos – formados por voluntários civis – são organizados em três brigadas, um regimento de cavalaria, um regimento misto de artilharia, escolta do QG e Estado-Maior.

O contingente militar do estado era de pouco mais de 11.000 homens, dos quais 7.538 da Polícia Militar e 3.700 do Exército. Cerca de um terço integravam agora as fileiras revolucionárias. Nos quartéis, pelo menos outro terço simpatizava abertamente com a revolução.

A 1ª Brigada, sob o comando do general Bernardo de Araújo Padilha, é composta pelo 1º e 2º Batalhão de Caçadores, chefiados pelos majores Luís França de Albuquerque e Tolentino de Freiras Marques. Padilha era coronel e comandava o 5º Batalhão de Caçadores, de Rio Claro.

O comandante do 2º Grupo de Artilharia de Montanha, de Jundiaí, tenente-coronel Olinto Mesquita de Vasconcelos, assume, no posto de general, a chefia da 2ª Brigada, integrada pelo 3º e 4º Batalhão de Caçadores, comandados pelos majores Juarez Távora e Nelson de Mello.

A 3ª Brigada, tendo à frente o general Miguel Costa, é composta pelo 5º, 6º e 7º Batalhão de Caçadores, respectivamente comandados pelos majores Coriolano de Almeida, João Cabanas e Arlindo de Oliveira.

O Regimento de Cavalaria tem no comando o general João Francisco. O Regimento Misto de Artilharia segue as ordens do tenente-coronel Newton Estilac Leal. O chefe do Estado-Maior do general Isidoro é o coronel Mendes Teixeira.

Todos os oficiais investidos nas novas funções de comando foram promovidos a postos superiores aos que ocupavam quando o levante teve início.

 

6. Plano de Campanha

O plano de campanha previa o deslocamento da Divisão São Paulo para Porto Tibiriçá, última estação da Sorocabana, situada na margem esquerda do rio Paraná, divisa com o estado de Mato Grosso.

Dali, a opção preferencial do general Isidoro, comandante da Divisão, era a de subir o rio e penetrar no Mato Grosso, através de Três Lagoas. A adesão da guarnição de Campo Grande, previamente comprometida com a revolução, propiciaria a ocupação de toda a região que corresponde hoje ao estado do Mato Grosso do Sul.

O general João Francisco tinha uma opinião diferente. Acreditava que de Porto Tibiriçá as forças revolucionárias não deveriam subir o rio, mas descê-lo, invadindo os sertões paranaenses e ocupando a faixa que vai de Guaíra a Foz do Iguaçu, zona produtora de sólida situação estratégica. A razão principal da escolha se devia ao fato dessa posição favorecer uma futura junção com as forças revolucionárias do Rio Grande do Sul, em cuja insurreição o general depositava suas maiores certezas e esperanças. Em seu modo de ver, a abertura da nova frente renovaria e ampliaria as forças revolucionárias, criando as condições para que elas retomassem a ofensiva. Sem que isso ocorresse, o movimento, condenado à defensiva, acabaria por definhar.

Prevaleceu, no entanto, nesse primeiro momento, a opção por Mato Grosso. Foram então mobilizadas as unidades que deveriam dar cobertura ao deslocamento da coluna.

 

7. Porto Tibiriçá

Otávio Guimarães dirigiu-se para Araçatuba, com 150 homens. Sua missão era fixar no terreno as forças do general governista Nepomuceno Costa, até que fosse completada a entrada de toda a tropa em Mato Grosso.

Para a realização da marcha de Bauru até Porto Tibiriçá, era preciso dar uma volta, recuando para Botucatu, até Rubião Júnior, e depois avançando pelo ramal da Sorocabana que passa por Avaré, Ourinhos, Presidente Prudente e Presidente Epitácio.

O Batalhão Cabanas toma então posição em São Manoel e nos arraiais de Toledo, Redenção e Igualdade – na direção de Dois Córregos. O Batalhão Távora segue para Botucatu. A missão de ambos é impedir que as forças do general Azevedo Costa embaracem a progressão da Divisão.

No dia 31 de julho inicia-se o deslocamento, na seguinte ordem: Brigada Padilha, Brigada Mesquita, Cavalaria do general João Francisco, QG, Brigada Miguel Costa. Às 22h do dia seguinte estava terminado o escoamento de todas as unidades em Rubião Júnior. Às 23h, embarcam na esteira do grosso o Batalhão Távora, seguido pelo Batalhão Cabanas, designado para fazer a retaguarda.

Através da longa travessia os revolucionários são estimulados pelo entusiasmo da população. Avaré, Cerqueira César, Ourinhos,  Salto Grande vibram com a sua passagem.

Em 5 de agosto chegam a Assis. São recebidos com festas e missa campal – naquele dia se comemorava um mês de luta revolucionária. Foi realizado um comício e editado o primeiro número do jornal O Libertador, que teria mais quatro edições produzidas naquela cidade.

A 6 de agosto, a vanguarda da Divisão, composta pela Companhia Gwyer, do 1º Batalhão de Caçadores, reforçada por uma seção de metralhadoras, atinge Porto Tibiriçá. Num ataque relâmpago aprisiona os vapores Guaíra, Paraná, Rio Pardo, Brilhante e Conde de Frontim.

Na retaguarda, comandando um batalhão composto de 380 praças, bem armados e municiados, quatro metralhadoras pesadas e uma peça de artilharia, o major Cabanas dinamita pontes e provoca obstruções na via férrea, para retardar a marcha das forças que vêm no encalço da coluna. Em seu relato, ele considera que esse trabalho foi facilitado pela “anarquia nas tropas governistas”. Uma das razões que aponta é a seguinte:

“Na minha estadia em Mandurí, recebia informações detalhadas do que se passava em Avaré. Nesta cidade pararam os comboios que conduziam a vanguarda da perseguição,,, cujos oficiais faziam preceder os respectivos trens de alguns vagões repletos de prostitutas, requisitadas a 100 mil-réis, diários e por cabeça, recrutadas nos bordéis de Sorocaba e Botucatu”.

Vencendo duas escaramuças, em Salto Grande e Indiana, e dois combates de maior vulto, em Santo Anastácio e Cayuã, o Batalhão Cabanas atinge Porto Tibiriçá, no dia 13 de setembro.

Nos 38 dias decorridos entre a chegada da vanguarda da Divisão e de sua retaguarda ao rio Paraná, a marcha dos acontecimentos ditou a alteração dos planos revolucionários. Fracassara a invasão do Mato Grosso. Todas as esperanças voltavam-se para a conquista de Guaíra.

 

8. A Conquista de Guaíra

O Batalhão Távora fora batido, em 18 de agosto, na margem mato-grossense do rio Paraná, quando tentava ocupar Porto Independência, passo preliminar para a conquista da cidade de Três Lagoas.

Conta o seu comandante que o batalhão fora “reforçado pela Companhia Gwyer e Companhia Azhaury, ambas do 1º Batalhão de Caçadores,  e uma seção de artilharia comandada pelo capitão Felinto Muller, somando um efetivo global de 570 homens”.

A tropa era numerosa e experiente. No entanto, sofreu um grave revés, conforme relata o major Távora:

“Deixava o Batalhão, no campo de combate, entre mortos, feridos e prisioneiros, um terço de seu efetivo, aí incluídas as duas seções de metralhadoras pesadas”.

Uma semana depois da trágica investida, começa a descida do rio Paraná. O plano é escoar a Divisão em escalões sucessivos, em direção à Guaíra.

A vanguarda, sob o comando do general João Francisco, é  composta pelo 3º e 4º Batalhão de Caçadores, da Brigada Mesquita de Vasconcelos, reforçada por uma seção de artilharia montada e um piquete de cavalaria. O 3º Batalhão de Caçadores, debilitado pelas baixas sofridas em Mato Grosso, fora reorganizado, absorvendo a Companhia Azhaury que antes integrava o 1º Batalhão.

Embarcada em três navios e um pontão, a expedição aprisiona, no dia 26 de agosto, a lancha Iguatemi, da Companhia Mate Laranjeira, que conduzia uma patrulha governista.

Os prisioneiros informam que o capitão Dilermando Cândido de Assis, responsável pela defesa de Guaíra, mantinha 200 homens em Porto São José, na margem paranaense do rio, três léguas abaixo da foz do Paranapanema – divisa do estado de São Paulo. Na outra margem, o grileiro Quincas Nogueira dominava Porto São João. Nogueira era um homicida disputado pela Justiça do Rio Grande do Sul, de Rosário – Argentina – e Santa Rosa – Uruguai. Fugira da cadeia de Corrientes, em outubro de 1913, instalando-se nos ervais mato-grossenses. O governo, em seu esforço de guerra,  concedera-lhe a patente de tenente-coronel da reserva do Exército.

A força revolucionária dividiu-se para enfrentar a nova ameaça – um destacamento continuaria pela via fluvial, outros seguiriam por terra, para surpreender os elementos governistas entrincheirados nas duas margens do rio Paraná.

A iniciativa valeu a conquista de Porto São João, em 30 de agosto, e Porto São José, no dia seguinte.

Em 14 de setembro, após um confronto com as forças do capitão Dilermando, na ilha do Pacu, os revolucionários conquistam Guaíra. Haviam descido 200 km do rio Paraná, em 20 dias. Percorreriam outros tantos, nas duas semanas seguintes.

 

9. Preparando a Frente Sul

A cidade era uma sólida cabeça-de-ponte para a concentração do grosso revolucionário no sudoeste paranaense. O escalão de vanguarda tratou logo de alargá-la, ocupando Porto Mendes, situado 60 km abaixo de Guaíra – nesse mesmo trecho, paralela ao rio corria a estrada de ferro da empresa Mate Laranjeira. No dia 15 de setembro, a Companhia Azhaury ocupou também Porto São Francisco, 20 km ao sul de Porto Mendes.

Acometido de pneumonia dupla, o capitão Azhaury de Sá Brito morreria poucos dias depois. Azhaury era tenente, no 5º Regimento de Infantaria, de Lorena. Enviado para combater a rebelião na capital paulista, levantara sua companhia integrando-a às hostes revolucionárias.

A 26 de setembro, depois de haver ocupado Porto Britânia, o 3º Batalhão de Caçadores chega a Foz do Iguaçu, fazendo o percurso através de picadas que margeiam o rio Paraná. Nessa cidade se realiza, em 5 de outubro, o encontro longamente esperado pelo general João Francisco. Emissários estabeleciam contato com a Divisão, a fim de coordenar os esforços para promoverem um levante de grande envergadura no estado do Rio Grande do Sul.

Para a abertura da nova frente, o general João Francisco acreditava poder contar com diversas unidades do Exército situadas nas fronteiras sul e oeste daquele estado. Além disso, esperava também a adesão dos generais maragatos e seus lendários cavaleiros. Embora agindo cada qual por conta própria, os chamados caudilhos manifestavam especial consideração pelas opiniões do dr. Assis Brasil, chefe da Aliança Libertadora.

João Francisco nascera e se formara nas lides da fronteira gaúcha. A adaga da qual não se afastava, sempre visível entre o cinturão e a túnica, não deixava dúvida quanto às suas origens. Sobrevivente da Guerra Federalista de 1893, cavalgara com os chefes  maragatos.

A delegação que acabara de chegar para a reunião confirmava as suas expectativas. Ao lado do tenente Siqueira Campos, herói do Forte Copacabana,  sentavam-se os majores maragatos Alfredo Canabarro e Anacleto Firpo, representando os generais Honório Lemes, Zeca Neto e o dr. Assis Brasil. A situação, segundo eles, estava madura. A rebelião poderia ser iniciada em menos de um mês. Esperavam apenas a manifestação da Divisão Paulista sobre a oportunidade de deflagrá-la.

         

10. Chimangos e Maragatos

No final do século 19, uma profunda divisão entre os gaúchos dera origem a sangrentas disputas.

Os chimangos detinham o controle do governo do estado, desde a proclamação da República, com Júlio de Castilhos e, em seguida, Borges de Medeiros.

Nas eleições presidenciais de 1922, o chefe do Partido Republicano Rio-Grandense marchara contra a candidatura oficial, sustentada pela oligarquia paulista. Visando enfraquecê-lo, os maragatos apoiaram o candidato oficial, Artur Bernardes, e lançaram Assis Brasil ao governo do Rio Grande do Sul.

Contestando o resultado das eleições ao governo do estado, iniciaram os maragatos, em janeiro de 1923, uma rebelião armada para derrubar Borges de Medeiros.

O governo federal escusou-se de intervir na contenda, permitindo que ela se aprofundasse. Em seguida, passou a costurar um pacto segundo o qual os partidários de Assis Brasil aceitariam que Borges concluísse o mandato, em troca de não mais poder submeter sua candidatura à reeleição.

O Pacto de Pedras Altas, celebrado em dezembro de 1923, no entanto, não  pacificou o Rio Grande.

Acreditando que a oligarquia paulista havia estimulado sua rebelião com o intuito de utilizá-la em benefício próprio, como instrumento para submeter Borges de Medeiros, os maragatos estavam dispostos a voltar suas armas contra ela.

 

11. Isidoro desautoriza João Francisco

O general João Francisco não perde tempo. No dia 8 de outubro, os emissários estão de volta. Em sua companhia viaja o major Távora. O general Mesquita, que havia transferido o comando da 2ª Brigada ao tenente-coronel Estilac Leal, assumindo a função de superintendente-geral do Serviço de Transporte, também foi mobilizado para uma operação delicada: a de transportar os recursos financeiros para a aquisição de armas e munições necessárias aos revolucionários gaúchos.

Dias depois as providências tomadas por João Francisco dão origem a um sério desentendimento entre ele e o general Isidoro.

O grosso da Divisão ficara sitiado por vários dias nas ilhas situadas pouco acima de Porto São José, perdendo o contato com a vanguarda. Os combates travados produziram muitas baixas – a principal delas foi a perda completa do 7º Batalhão de Caçadores.

Além de defrontar-se com o inimigo tradicional, os revolucionários eram castigados por um novo adversário ao qual não estavam ainda adaptados, e que assim foi descrito pelo tenente Cabanas:

Dormir alguém em uma ilha, embora respirando a fragrância de flores desconhecidas ou embalado pelo rumorejar das águas é quase um sacrifício; nuvens de mosquitos em formação aérea de combate nos atacam aos grupos… Depois os carrapatos de diversos físicos… Além, a infantaria das formigas, num desfilar incessante, ferrão em riste… as urtigas, a unha de gato, a tiririca, o agulheiro de taquarussu, o vespeiro que aprece ao quebrar-se um galho, as aranhas monstruosas, a taturana, a manada furiosa de queixadas e caetetus, o bicho do pé que aos milhares irrompem dos excrementos do tapir.

Em razão desses percalços, só em 20 de outubro o general Isidoro consegue chegar a Guaíra e Porto Mendes, onde encontrou-se com João Francisco, pela primeira vez, desde que este partira de Porto Tibiriçá.

A discussão foi áspera. João Francisco argumenta que a situação do Rio Grande do Sul exigira uma decisão rápida. Isidoro contesta, considera especialmente absurdo o fato dele haver utilizado três quartas partes dos recursos financeiros da revolução numa “aventura”.

Isidoro envia depois uma carta a João Francisco informando que vai desautorizar suas iniciativas  junto aos revolucionários gaúchos. Ele diz:

Vou agir e deliberar de acordo com o meu modo de ver e vou também entender-me diretamente com os amigos do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande, a fim de combinarmos uma ação conjunta.

 Antes que João Francisco possa ler a missiva, estoura o levante no Rio Grande do Sul.

 

12. Insurreição no Rio Grande do Sul

No dia 29 de outubro, o primeiro manifesto das forças revolucionárias anunciava a eclosão da revolução no estado:

“Hoje… levantam-se todas as tropas do Exército das guarnições de Santo Ângelo, São Luís, São Borja, Itaqui, Uruguaiana, Alegrete, Santana, Dom Pedrito; Jaguarão e Bagé; hoje, irmanados pela mesma causa e pelos mesmos ideais, levantam-se as forças revolucionárias gaúchas de Palmeira, de Nova Wuertemburg, Ijuí, Santo Ângelo, e de toda a fronteira até Pelotas. E hoje entram em nosso estado os chefes revolucionários Honório Lemes e Zeca Neto, tudo de acordo com o grande plano organizado”.

O plano previa o levante simultâneo das unidades do Exército e dos chefes maragatos. O objetivo era formar duas colunas, a do Sul e a do Oeste, que marchariam, respectivamente, sobre Santa Maria e Cruz Alta. Realizadas essas operações, as forças revolucionárias se deslocariam para o Norte, visando a capital da República, batendo de passagem as tropas que pressionavam a Divisão São Paulo, no Iguaçu. A movimentação dentro do Rio Grande do Sul deveria realizar-se com a máxima rapidez, para reduzir ao mínimo o contato com as forças de Borges de Medeiros, a fim de concentrar o esforço revolucionário contra o governo federal e seu sustentáculo, a oligarquia cafeeira.

Nem tudo correu conforme o esperado.

Na zona oeste, o capitão Luís Carlos Prestes e o tenente Mário Portela Fagundes sublevaram o Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo. O tenente João Pedro Gay levantou o 3º Regimento de Cavalaria Independente, de São Luís Gonzaga das Missões. Os tenentes Siqueira Campos e Aníbal Benévolo assumiram o controle de São Borja, levantando o 2º Regimento de Cavalaria Independente. Porém a guarnição de Itaqui, situada entre São Borja e Uruguaiana, não aderiu à revolução. A ofensiva sobre Itaqui, para consolidar o controle sobre o Oeste, desarticulou parte importante das forças revolucionárias de São Borja, custando a vida do tenente Benévolo.

Na fronteira sul, apenas Uruguaiana cerrou fileiras com a revolução. O major Távora e o tenente Edgard Dutra foram os responsáveis pelo levante do 5º Regimento de Cavalaria Independente, que guarnecia a cidade.

Violentos combates, na faixa da fronteira uruguaia, arrastaram-se durante dois meses. As forças revolucionárias, compostas pelos gaúchos dos generais Honório Lemes e Zeca Neto, pelo 5º Regimento de Cavalaria, de Uruguaiana, e uma seção do Regimento de Artilharia a Cavalo, de Alegrete, acabaram se chocando pesadamente contra os corpos provisórios que constituíam a nata da força militar chimanga. Reunindo cerca de 10.000 homens, agrupados em cinco brigadas, essas unidades tinham entre seus principais organizadores Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Paim Filho, Claudino Nunes Pereira e Getúlio Vargas.

As forças que marcharam unidas, a partir do Rio Grande do Sul, seis anos mais tarde, para promover a Revolução de 30, se defrontavam, naquele momento, no campo de batalha.

 

13. A Revolta do Encouraçado São Paulo

A insurreição no Rio Grande do Sul foi um chamamento para que outras ações revolucionárias fossem desencadeadas.

No dia 5 de novembro, o encouraçado São Paulo se revolta seguido pelo contratorpedeiro Goiás. Atacados pelos canhões das fortalezas de Santa Cruz e Copacabana, o Goiás se rende. O São Paulo contra-ataca e silencia as duas fortalezas. Os 600 marinheiros revolucionários comandados pelo tenente Hercolino Cascardo, apoiado por seis tenentes, haviam tido grande dificuldade para dominar o navio, em razão da resistência oferecida por parte da tripulação que navega, agora, devidamente trancafiada: praças e sargentos no paiol, os oficiais em seus respectivos camarotes.

O São Paulo e o Minas Gerais, duas das mais potentes belonaves da época, eram o orgulho da Marinha. Para o povo, constituíam-se num importante símbolo das nossas potencialidades. Por seis dias, o encouraçado rebelado navegou seguido da esquadra capitaneada pelo Minas Gerais. Ambos evitaram o duelo que poderia pô-los a pique. A 11 de novembro o São Paulo fundeou em Montevidéu. Metade dos marinheiros sublevados por Cascardo decidem juntar-se às forças revolucionárias em luta no Rio Grande do Sul.

Poucos dias depois, a 15 de novembro, na residência do major Martins Gouveia de Feijó, rua Cabuçu, número 58, a polícia apreendeu grande número de bombas de 10 e 15 kg fabricadas com dinamite. Foram detidos também o Capitão Costa Leite e o farmacêutico João Ferreira Chaves. A rede revolucionária, na capital da República, era extensa, possuindo bases sólidas no 15º Regimento de Cavalaria, 1º Batalhão de Engenharia, Regimento de Artilharia de Montanha, Companhia de Carros de Assalto e Escola Militar de Realengo.

A 4 de janeiro dezenas de prisões desarticularam, em São Paulo, a execução do plano revolucionário de atacar o edifício da Imigração, transformado em cárcere político. Lá se encontravam presos o general Ximeno de Villeroy e o major Arlindo de Oliveira – genro do general João Francisco e comandante do 7º Batalhão de Caçadores da Brigada Miguel Costa. O plano previa o ataque simultâneo ao Comando Geral da Polícia Militar, Polícia Central, QG do Corpo de Bombeiros, por ex-oficiais de Itu, membros da Polícia Militar e civis.

Até o final de 1926, as tentativas de promover novos levantes em apoio à ação do exército revolucionário não cessaram, lotando as cadeias com milhares de presos políticos, dos quais 1.200 foram enviados para a Colônia Agrícola da Clevelândia, situada no Oiapoque, divisa com a Guiana Francesa. Só 179 saíram de lá com vida.

 

14. Nas Trincheiras de Catanduvas

Desde a ocupação de Guaíra, o general João Francisco promovia o alargamento da cabeça-de-ponte conquistada não só em direção à Foz de Iguaçu. Logo nos primeiros dias um pelotão de cavalaria era lançado, rumo leste, pela estrada carroçável que liga Porto São Francisco à Catanduva.

O arraial encravado no alto da serra, única via de penetração direta do planalto para o cânion do médio Paraná, estava situado sobre a estratégica rodovia que liga Guarapuava a Foz do Iguaçu.

Progredindo por essa rodovia, em direção à Guarapuava, o pelotão ocupou a localidade de Lopeí, a 90 km da barranca do rio Paraná.

Posteriormente,  o 4º Batalhão de Caçadores, comandado pelo major Nelson de Mello, estendeu o domínio sobre a rodovia, atacando as forças governistas em Formigas. Estas recuaram, indo entrincheirar-se na Serra do Medeiros, defronte à localidade de Belarmino.

Em Belarmino foi fixada a 2ª Brigada, com dois batalhões de Infantaria, reforçados pelo regimento de cavalaria e uma seção de artilharia. O posto de comando foi instalado em Isolina, na estrada Iguaçu-Cascavel. Também na mesma carroçável, situada atrás das linhas revolucionárias, duas seções de artilharia, enfermaria, intendência e oficina mecânica reforçavam as unidades sob comando de Estilac Leal.  A localidade era conhecida pelo nome de Depósito Central.

Em Foz do Iguaçu instalou-se o QG da Divisão. Em Guaíra, a Brigada Padilha. Entre Porto Mendes, Porto São Francisco e Santa Helena, a Brigada Miguel Costa.

Uma picada que vinha em curva de Guarapuava até Porto Mendes, cruzando o rio Piquiri e deixando Catanduvas à sua esquerda, expunha o flanco revolucionário. A 23 de outubro, o Batalhão Cabanas foi incumbido de guarnecê-lo. O ponto em que a picada cruzava o Piquiri, situado 32 léguas a leste da margem do Paraná, ficava dentro dos ervais do latifundiário argentino Júlio Allica. Em regime de trabalho escravo, cerca de 1.000 mensus – paraguaios contratados como mensalistas – eram ali violentamente explorados. Cabanas libertou-os depois de aplicar uma “surra de espada” no capataz Santa Cruz, cunhado de Allica. O capataz e os jagunços foram expulsos do local. Cerca de 200 trabalhadores incorporaram-se ao 6º Batalhão de Caçadores – esses homens, afeitos ao serviço de abertura de picadas, seriam de grande importância nas futuras ações do batalhão. A partir desse episódio a Companhia Mate Laranjeira, concorrente de Allica na região, redobrou a deferência que passara a dispensar aos revolucionários desde que estes haviam ocupado localidades e portos vitais para a companhia.

 A região sob domínio das forças revolucionárias no sudoeste paranaense possuía área equivalente ao território da Suiça. A produção interna e a fronteira com dois países, Paraguai e Argentina, tornava viável as possibilidades de abastecimento.

A única mudança significativa nas posições ocupadas pela Divisão São Paulo foi o recuo da linha avançada, de Belarmino para Catanduvas, no início do mês de janeiro, após combates iniciados em 15 de novembro.

 

15. A Guerra de Posição

O general Cândido Rondon, comandante da guarnição militar dos estados de Santa Catarina e Paraná, assumira o comando geral dos 12.000 homens das forças governistas mobilizadas para combater os revoltosos.

Nos seus 43 anos de vida militar, o general havia obtido respeito e admiração de seus patrícios pelo trabalho pioneiro que desenvolvera como pacificador de indígenas e desbravador de uma imensa área do território nacional, enquanto cumpria a extenuante missão de estender 2.270 km de linhas telegráficas através da região amazônica.

Em 1922, Rondon havia apoiado Nilo Peçanha contra Bernardes, nas eleições para presidente da República, tendo inclusive chegado a participar das articulações que visavam impedir a posse do segundo por meios insurrecionais, conforme relata o general Flores da Cunha:

“Posso depor quanto à participação ativa dos republicanos rio-grandenses para articular um movimento violento contra o governo da República e o candidato por ele sustentado. Dentre outros recebi em Uruguaiana visitas alternadas dos generais Cândido Rondon, Ximeno de Villeroy e o tenente Adalberto Moreira, recomendados pelo dr. Borges de Medeiros… Dos visitantes era o general Rondon o mais reservado, sem ocultar entretanto a mais formal repulsa aos processos de compressão praticados com flagrante desvirtuamento do regime republicano”.

Assim como Borges de Medeiros, Rondon recuara dessa posição. Os insurretos, porém, mantinham a expectativa de que o general não se deixaria usar pela oligarquia cafeeira a ponto de assumir o comando da ação repressiva. Foi com pesar que eles viram essa esperança se desvanecer.

O plano de Rondon para enfrentá-los era aumentar gradativamente a pressão sobre as linhas revolucionárias, acumulando o maior número possível de homens e armamento, a fim de forçá-los a retroceder, passo a passo, em direção às fronteiras da Argentina e Paraguai, onde pretendia encurralá-los e obrigá-los a escolher entre a rendição e o exílio. Punha em prática a doutrina da guerra de posição, adotada amplamente na 1ª Guerra Mundial. Desde 1920, a Missão Militar Francesa, comandada  pelo  general Maurice Gamelin, repassava aos militares brasileiros sua comprovada experiência nessa matéria.

 

16. Reveses em Alegrete e Itaqui

Em 29 de outubro, quando estourava a rebelião nos quartéis do Rio Grande, o tenente João Alberto, servindo no 3º Regimento de Artilharia a Cavalo, de Alegrete, estranhou que o comandante de sua unidade, ao invés de dominar a força policial e assumir imediatamente o controle da cidade, tenha ordenado o seu deslocamento, com uma seção do regimento, até a ponte sobre o rio Capivari. O objetivo era guarnecer a posição até a chegada do trem que viria transportando forças do 5º Regimento de Cavalaria Independente de Uruguaiana, mobilizadas pelo major Távora para promover a ocupação de Alegrete.

Chegando às imediações cidade, na madrugada do dia 31, com 300 homens, o tenente João Alberto e o major Távora são surpreendidos pela violenta reação de uma tropa composta de 1.000 homens, comandados pelo dr. Osvaldo Aranha. Vindos de Santa Maria e Quaraí, esses integrantes dos corpos provisórios, haviam ocupado Alegrete.

Depois de renhido combate, a força atacante recua, dividida em duas metades que perdem contato entre si. Separadamente, João Alberto e Távora conseguem chegar a Uruguaiana depois de diversas peripécias – o primeiro na noite do dia 31, o segundo dois dias depois.

Mal acabara de repousar, uma ligação telefônica informa ao major Távora que Siqueira Campos e Aníbal Benévolo iam atacar Itaqui, na madrugada do dia 4, e pediam o seu apoio. Acompanhado dos tenentes Edgard Dutra e João Alberto, ele parte para a região, com um destacamento de 200 homens. Porém as duas forças não conseguiram estabelecer contato. Diz ele:

“Como na manhã seguinte nenhum indício do ataque anunciado fosse observado, resolvi retornar a Uruguaiana, onde a situação não me parecia muito segura”.

O desencontro foi fatal. Vindo de São Borja, com um esquadrão de 140 homens do  2º Regimento de Cavalaria Independente, Siqueira Campos estava nas proximidades de Itaqui, aguardando reforços para desfechar o ataque. A defesa da cidade, que sediava o 4º Grupo de Artilharia a Cavalo, fora acrescida de 400 provisórios comandados por Osvaldo Aranha, que rapidamente se deslocara de Alegrete e pela segunda vez se interpunha no caminho de seus futuros aliados. De Santiago, marchava outro contingente de provisórios,  para imprensar a força atacante entre dois fogos. As unidades do Batalhão Ferroviário, mobilizadas de São Luís em seu socorro, pelo tenente Mário Portela Fagundes, não puderam evitar o desastre.

O tenente Benévolo, que cobria a retaguarda de Siqueira, com 70 combatentes, resiste por três horas ao ataque do adversário, até tombar sem vida. Siqueira e Portela retiram-se para o rio Ibicuí, 30 km ao sul. Na iminência de serem cercados, dispersam a tropa em pequenos grupos que retornam cavalgando para São Borja ou se internam nas matas do rio Uruguai, visando atravessá-lo, para chegar à Argentina. Ao atingir a margem, o grupo de 54 homens que seguia com Siqueira não encontra embarcação disponível. O tenente Mário Portela Fagundes, relata o desfecho do episódio:

“Siqueira estava porém disposto a salvar as suas tropas…E resolveu então praticar um gesto que o deixou altamente dignificado perante os companheiros que já se haviam habituado a admirar-lhe a valentia… tomou um pneumático, amarrou-o ao peito e atirou-se sozinho  às águas do Uruguai, frias e revoltas… Após duas horas e meia de natação entre piranhas e jacarés, Siqueira atingiu a margem e trouxe uma chalana que fez várias viagens, até que todos os homens alcançassem a margem portenha”

 

17. O Leão de Caverá

O general Honório Lemes chegara a Uruguaiana no dia 30 de setembro, pouco antes de o major Távora haver partido para a frustrada missão em Alegrete. Veio acompanhado de 550 cavaleiros gaúchos, agrupados em três corpos. Poucos dias depois, um emissário de Santana do Livramento transmitiu-lhe o pedido de oficiais do 7º Regimento de Cavalaria Independente, ali sediado, para que aproximasse sua tropa da cidade, pois a presença da 2ª Regimento da Brigada Militar, impedia que eles assumissem o controle da localidade, sem o reforço solicitado.

O 5º Regimento de Cavalaria Independente, comandado pelo tenente Ambirre Cavalcanti, comissionado tenente-coronel, foi integrado à tropa chefiada pelo general Honório Lemes. O major Távora tornou-se o chefe de seu Estado-Maior.

A coluna iniciou a sua marcha no dia 5, com 1.000 cavaleiros e 2.000 cavalos de remonta.

Na manhã do dia 8, quando se preparava para deixar o acampamento de Guaçu-Boi, 10 léguas a leste de Alegrete, os corpos provisórios, sob o comando de Flores da Cunha, atacaram. A marcha noturna realizada pelo general Honório por atalhos desconhecidos, para encobrir a posição da coluna, fora detectada pela força atacante. Colhidas de surpresa, as tropas não conseguem organizar-se para o confronto.

Conta o tenente João Alberto:

“O chão estava coberto de objetos diversos que caíam das carroças viradas. Instrumentos de música, bombos, sanfonas, cornetas, misturavam-se a lanças barracas e panelas… Honório galopava de um lado para o outro, no meio das balas, gritando: ‘estende linha, estende linha’ “.

A derrota foi dura. Restaram da antiga coluna menos de 200 homens. A maioria havia se dispersado para evitar o massacre, inclusive o tenente João Alberto, que retorna com um grupo para Uruguaiana e atravessa a fronteira argentina.

Mas Honório Lemes dá uma prova de porque merecera o título de Leão de Caverá. Penetrando naquela região, se reabastece e recompõe o seu exército, em menos de uma semana.

No dia 15, a coluna, com 800 homens, já está em marcha para a Estação de Remonta do Exército, em Saicã. Depois de dominar a guarnição, o general Honório armou uma emboscada contra o reforço de 300 provisórios que se deslocara de Rosário para o posto de remonta.

No dia 18, a coluna chega a Cacequi e destrói a estação telegráfica local. Honório Lemes manobrava para atrair em sua perseguição o 2º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar, estacionado em Santana do Livramento. O coronel Januário Correia aceita o desafio. As duas colunas manobram, cada qual procurando despistar e envolver a oponente.

No dia 22, o general Honório envia o major Távora a Santana do Livramento, com a missão de alertar o 7º Regimento de Cavalaria de que atacaria a cidade no dia 24. Mas, no último momento, decide emboscar o coronel Januário, no desfiladeiro da Conceição. Na manhã de 23 de novembro, travou-se ali um sangrento combate, do qual saíra ferido o coronel Januário Correia, perdendo Honório seus dois melhores comandantes de corpo – os coronéis Catinho Pinto e Teodoro de Meneses.

Desfalcado de seus efetivos, o general maragato, rumando para Caçapava e depois para Camaquã, reuniu suas forças às do general Zeca Neto. Após muitas correrias, marchas e contra-marchas destituídas de objetividade estratégica, sem munição e acossados pelos provisórios, emigram ambos, com os remanescentes de suas forças, para o Uruguai.

 

18. Protetor de Chimangos

Isolado em Santana do Livramento, o major Távora decide atravessar a rua que separa aquela cidade de Rivera, sua vizinha no Uruguai. Considerando esgotado seu papel na Frente Sul, o major prepara-se para retornar ao oeste paranaense. Antes, porém, faz uma visita à octogenária mãe de seu comandante de Brigada, durante a descida do Rio Paraná, o general João Francisco.

Ao apresentar-se, conta ele, foi “brindado com a seguinte declaração”:

– Já conheço a sua fama de protetor dos chimangos.

Perguntei-lhe  meio perplexo porque me atribuía tal fama.

– Porque o senhor acha que os chimangos podem degolar os soldados maragatos, mas nossos maragatos não podem degolar os chimangos…

O major Távora lembrou-se então que após a emboscada contra os provisórios em Saicã, percorrendo o campo de batalha, ele verificara, com tristeza, que alguns adversários vencidos haviam sido degolados pelos vencedores. Protestara junto ao general Honório e dissera que não se sentiria à vontade          como chefe do Estado-Maior de sua coluna se ele não fixasse uma proibição terminante àquele tipo de prática. Evidentemente, sua reprovação era extensiva aos atos de mesmo teor praticados pelas tropas adversárias, como o perpetrado em Los Galpones, ali nas proximidades de Rivera, quando sete marinheiros do encouraçado São Paulo, entre os quais um sobrinho do dr. Assis Brasil, haviam sido degolados ainda em território uruguaio. O desfecho de seu relato porém mostra que a velhinha era dura na queda:

“Meu esclarecimento não pareceu demover a senhora Pereira de Sousa de seus pontos de vista, pois treplicou-me, sem pestanejar:

– Aí é que está o seu engano. O senhor pode fazer chegar o seu pito aos nossos soldados, por intermédio do general Honório. Mas não pode fazer o mesmo aos chimangos por intermédio de sinhô Cunha e outros de seus comandantes de degolas.

Achei mais prudente calar-me para pôr termo ao incidente”.

 

19. A Guerra de Movimento

As derrotas em Itaqui e na fronteira uruguaia levaram as forças revolucionárias a concentrar-se na região de São Luís Gonzaga das Missões, distante 150 km da estrada de ferro mais próxima. Acampadas ali, duas unidades do Exército e centenas de gaúchos aguardavam a chegada dos remanescentes dos destacamentos que, abaixo do rio Ibicuí, haviam cometido a imprudência de reeditar aquilo que se pretendia evitar: as velhas peleas entre chimangos e maragatos.

João Alberto retornara da Argentina por São Borja. Permanecera fora do país apenas o tempo necessário para embarcar num trem e descer na cidade fronteiriça de São Tomé. De São Borja parte para São Luís, com 200 combatentes, originários do 2º Regimento de Cavalaria Independente, que iriam constituir-se no núcleo do 2º Destacamento, a força que estaria sob seu comando, na marcha daDivisão Rio Grande para o Paraná.

Poucos dias depois chegava Siqueira Campos. O grande desafio, segundo relata João Alberto, era “transformar os insucesso e malogros de grupos desordenados em organização militar disciplinada, eficiente…”. A maior dificuldade era convencer os coronéis, majores e capitães maragatos a se enquadrarem numa estrutura militar única, combatendo de acordo com um plano estratégico geral, dentro do qual  cada unidade tinha o seu papel determinado a cumprir.

Aos poucos os jovens tenentes foram superando os obstáculos, ajudados por figuras como o major Nestor Veríssimo, que aceitou o encargo de subcomandante do 2º Destacamento.

Outro dos gaúchos que mais contribuíram para o êxito dessa empreitada foi o coronel Luís Carreteiro, do qual João Alberto apresenta um significativo retrato:

“Era aproximadamente da minha altura (1,80), mas cheio de corpo. Bigode e barba. Cabelos abundantes e grisalhos. Tez escura, denotando mestiçagem… Trajava espetacularmente. Prendia as suas amplas bombachas de pano riscado um cinto largo, cheio de medalhas e enfeites de prata, que lhe caíam sobre as botas pretas, novas e altas, de sanfona. Esporas de prata com corrente e grandes rosetas tilintantes anunciadoras de seus movimentos. Ainda seguros ao cinto, dois revólveres calibre 38 e uma quantidade de balas. Circundava-lhe o pescoço um grande lenço vermelho… Do chapéu de abas largas, também novo, cinza escuro, pendia-lhe uma fita vermelha, onde se podia ler a frase: ‘não dou nem pido ventaje’”.

Toda a tropa foi distribuída em três destacamentos sob comando do coronel Luís Carlos Prestes, com o tenente  Siqueira Campos na chefia do Estado-Maior. Prestes recebera a promoção das mãos do general João Francisco, no início do mês de novembro, em São Borja. Foi o último ato do general, antes de seguir para o exílio.

O 1º Destacamento da Divisão Rio Grande foi confiado ao tenente Mário Portela Fagundes, o 2º Destacamento a João Alberto. O comando do 3º Destacamento coube ao tenente João Pedro Gay. Eram 2.000 homens. O bastante para refutar a afirmação de Isidoro na carta que provocara o afastamento do general João Francisco da Divisão São Paulo:

“Não creio nos três ou quatro mil homens que o senhor ficou de nos mandar para voltarmos pelo Paraná a São Paulo”.

Renovaram-se as esperanças. A estratégia adotada seria a da guerra de movimento, enunciada por Prestes em carta ao general Isidoro com as seguintes palavras:

“Com a minha coluna armada e municiada, sem exagero julgo não ser otimismo afirmar que conseguirei marchar para o Norte, dentro de pouco tempo atravessar o Paraná e São Paulo, dirigindo-me ao Rio de Janeiro, talvez por Minas Gerais. Se a Divisão São Paulo igualmente movimentar-se, em vez de aceitar a guerra de trincheiras, e se marchar conosco em ligação estratégica, e talvez, em algumas circunstâncias, mesmo tática, impossível será ao governo obstar a nossa marcha”.

Siqueira Campos, João Alberto e Prestes eram revolucionários desde o levante que abalara a capital da Republica em 1922. Siqueira comandara a lendária marcha dos 18 do Forte. Exilado na Argentina, logo estabelecera contato com os quartéis da fronteira gaúcha. João Alberto fora preso em razão do malogro do levante da Vila Militar, onde servia na 2ª Bateria do 1º Regimento de Artilharia Montada. Passara cinco meses na prisão, antes de ser transferido para Alegrete. Prestes contraíra tifo, às vésperas do 5 de julho, ficando impossibilitado de promover a sublevação do 1º Batalhão Ferroviário. Desta feita, porém, tomara todo o cuidado para que a saúde não lhe pregasse outra peça.

 

20. Marcha para o Norte

Na véspera do Natal, a coluna se pôs em marcha. Depois de organizada, aguardara ainda algumas semanas, em São Luís, pelas armas que viriam através da Argentina – enviadas pela Divisão São Paulo. Metade da tropa estava bem armada, outra metade não.

Constatada a impossibilidade da remessa dos armamentos, os revolucionários decidem atacar Tupanciretã – 100 km a leste de São Luís. O 7º Regimento de Infantaria da Brigada Militar recém chegado à cidade repele o ataque. A 27 de dezembro, evitando uma manobra de envolvimento realizada por sete colunas governistas, a Divisão Rio Grande toma a ponte sobre o rio Ijuí e embrenha-se na zona da mata, marchando por antigas picadas abertas pelos colonos alemães. Ultrapassando a região agreste, retornam ao campo aberto. No dia 3 de janeiro são alcançados pelas forças perseguidoras de Claudino Nunes Pereira, no Boqueirão de Ramada. O combate é feroz. As baixas nas fileiras revolucionárias são de 50 mortos e 100 feridos. Mas o adversário bate em retirada para Palmeiras. No dia 4, os revolucionários alcançam as matas marginais ao rio Uruguai, pelas quais prosseguem em direção à Santa Catarina.

Prestes assinala que:

“As matas dos rios Uruguai e Iguaçu são talvez as mais densas do Brasil, não se podendo marchar a não ser através de picadas abertas a facão… Era difícil fazer com que os homens andassem pela mata mais de três ou quatro quilômetros por dia”.

As condições da marcha são penosas, particularmente para os gaúchos acostumados a desmontar apenas para comer churrasco e beber chimarrão ao redor do fogo. A carne de panela tomou o lugar do churrasco. A cavalhada foi se enfraquecendo com a falta de pasto, e o terreno úmido embaraçava a caminhada. Com seus ponchos transformados pela chuva constante em verdadeiras“cangalhas”, os gaúchos patinam e atolam na lama suas botas sanfonadas. Trazem o cavalo pelas rédeas e se obrigados a desfazer-se dele carregam a sela nas costas.

Sofrendo na própria carne as conseqüências desse tipo de marcha, o pernambucano João Alberto revelou que em certos momentos de maior dificuldade, chegara mesmo “a concordar com opreconceito gaúcho contra a infantaria”. Em seguida, afirma:

“Marchar a pé não requer valentia, Mas tenacidade, estoicismo, dureza de fibra. São outras qualidades de caráter”.            

No final de janeiro, a vanguarda da Divisão, composta pelo 2º Destacamento, atravessa o rio Uruguai e chega a Porto Feliz, em Santa Catarina. A travessia do grosso é lenta, feita em dezenas de canoas e leva vários dias. A medida que as tropas vão chegando, providenciam abastecimento e descansam. Tinham ainda um longo caminho pela frente: Mais de 30 léguas, pela densa mataria, até atingirem o estradão que serve de divisa entre os estados do Paraná e Santa Catarina e de ligação entre as cidades de Barracão e Palmas.

 

21. Deserção do Tenente Gay

A dureza da marcha produziu uma diferenciação entre os participantes. Temperou o ânimo da maioria. Mas abateu o de considerável número de combatentes. Ao longo de três semanas, desde que abandonaram o campo aberto, após o combate no Boqueirão de Ramada, diversas deserções aconteceram. Na Colônia Militar do Alto Uruguai, pouco antes da transposição do rio, mais de 200 gaúchos solicitaram permissão – e receberam – para abandonarem a tropa e passarem à Argentina.

Mais grave porém foi a atitude do tenente João Pedro Gay, até aquele momento comandante do 3º Destacamento da Divisão Rio Grande.

No dia 3 de fevereiro ele foi preso, a fim de ser submetido a um Conselho de Guerra. Dias antes de sua prisão, Prestes havia convocado uma reunião com os oficiais em função de denúncias que circularam sobre os maus propósitos do tenente.  Ele foi advertido de que poderia ir embora, esse era um direito que,  naquele momento, estava facultado a todo e qualquer combatente. Não poderia, no entanto, levar o armamento e a munição, por serem indispensáveis àqueles que optaram por prosseguir na luta. A reação do tenente foi chorar, dizendo estar sendo vítima de uma infâmia.

Mais tarde, interrogados por Prestes os soldados confirmaram que Gay, valendo-se da posição de comandante do Destacamento,  estava procurando organizar uma deserção em massa.

A decisão do Conselho de Guerra foi a condenação do oficial à morte, por fuzilamento.

A sentença não foi executada. Dois dias antes da data marcada, o tenente Gay fugiu. Prestes contou à sua filha, Anita Leocádia, que anos depois tomara conhecimento de que João Alberto se apiedara daquela alma e facilitara a sua fuga. Mas não há outros testemunhos que referendem a exatidão da assertiva.

O comando do 3º Destacamento foi assumido pelo tenente Siqueira Campos.

 

22. Ataque a Formigas

No dia 6 de janeiro, o major Cabanas participa de uma reunião com os oficiais que respondem pela defesa de Catanduvas. O front havia sido recuado de Belarmino para aquela localidade. Embora a posição fosse mais segura, seus 600 defensores estavam sob pressão das tropas do coronel Álvaro Mariante, compostas de 2.200 homens. A conferência avalia a conveniência de um ataque a Formigas, atrás das linhas das forças sitiantes. O plano previa também uma incursão simultânea, a partir de Formigas e de Catanduvas, sobre as linhas do coronel Mariante, com o intuito de desorganizá-las. Como o general Rondon passava grande parte do tempo no acampamento de Formigas, acompanhando de perto a evolução da situação na frente de batalha, a possibilidade de capturá-lo dava novo alento às forças revolucionárias.

A única possibilidade de execução dessa ousada ofensiva estava na exploração do elemento surpresa. Seria, portanto, indispensável a abertura de uma picada de 30 km, na mata, partindo do rancho de Sapucaï, nas proximidades de Santa Cruz,  até o acampamento inimigo..

Cabanas iniciou a marcha no dia 11, com duas companhias do seu batalhão, a terceira seguiria dois dias depois. Eram ao todo 280 homens. O restante do 6º Batalhão de Caçadores continuaria a guarnecer a antiga posição, no rio Piquiri. No dia 18, haviam rasgado 25 km de mata e construído quatro pontes, uma das quais com 16 metros, sobre o rio Ano Novo. O ataque ocorreu na madrugada do dia 21. Surpreendida, a guarnição não pode fazer valer o peso de sua superioridade numérica.

O comandante geral das forças governistas, porém, não foi encontrado. Conta o major Cabanas:

“O primeiro prisioneiro que fiz deu-me a informação que o general Rondon, devido ao desconcerto de sua limusine, retardou a chegada a Formigas onde já deveria estar”.

Embora espetacular, a investida não surtiu o efeito desejado. Nas imediações do acampamento, o comando governista já havia concentrado forças de efetivo muito superior ao esperado pelos revolucionários.. Em pouco tempo, 600 homens do 2º Batalhão de Caçadores e 1.200 do coronel Varella convergem sobre ele. Durante toda a tarde, Cabanas resistiu ao assédio. À noite conseguiu escoar suas forças para a mata. Nem o general Rondon fora aprisionado, nem pode Cabanas atacar as linhas do coronel Mariante. E encontrou muitas dificuldades para retornar a Santa Cruz, o que só ocorreu em 1º de fevereiro.

 

23. Conversações de Paz

O deputado Batista Luzardo chegou a Foz do Iguaçu em 13 de fevereiro. Veio acompanhado de um capitão do Exército que trazia carta do general Eurico de Andrade Neves, comandante da 3ª Região Militar, sediada no Rio Grande do Sul. A carta propunha a abertura de conversações de paz, na cidade argentina de Posadas, onde já se encontrava o deputado João Simplício de Carvalho.

Luzardo e Simplício representavam o Rio Grande na Câmara Federal. Mas seguiam orientações políticas distintas. O deputado Luzardo fora, até recentemente, um dos principais coronéis da força militar que combatia sob a bandeira do general Honório Lemes.

Em Posadas, para onde se desloca o general Isidoro, a conferência se estende nas preliminares sem chegar a um acordo.

Ainda que as conversações não tenham chegado a estabelecer um cessar-fogo, na prática ele vai se impondo no front de Catanduvas. No dia 24 de fevereiro, os 300 metros que separam as trincheiras inimigas são atravessados por soldados desarmados, de ambos os lados, dando início a uma grande confraternização que se prolonga por mais de quatorze horas. Não é sem dificuldade que os oficiais revolucionários e os governistas trazem seus comandados de volta às posições originais.

No dia 6 de março recomeçam as negociações, em Passo de los Libres. Simplício apresenta a proposta que recebera diretamente do presidente da República.

Pelas condições estabelecidas, os insurretos deveriam entregar todo o armamento em seu poder. O governo se comprometia a “deixar cair no esquecimento esse período de sacrifício e de luto”, empenhando-se para que o Congresso Nacional formulasse uma lei de anistia. Enquanto ela não fosse aprovada, os rebeldes deveriam entregar-se nas cidades indicadas pelo governo. O acordo de paz deveria ser assinado na cidade de Uruguaiana.

Os revolucionários consideraram inconsistentes as garantias oferecidas pelo governo. Firmam em documento a posição de que não baixariam as armas enquanto não fosse revogada a Lei de Imprensa e adotados o voto secreto e o ensino público obrigatório.

Os negociadores solicitam tempo para novas consultas. Porém não voltariam mais a reunir-se formalmente.

 

24. Operação Clevelândia

A 7 de março a Divisão Rio Grande chega em Barracão, no estado do Paraná, fazendo junção com as forças do coronel Fidêncio de Mello. Estabelecido como fazendeiro na região, o coronel era amigo do general João Francisco. Comandando uma força de 78 homens, havia providenciado a abertura de uma picada de Santo Antônio, em Santa Catarina, até a vila paranaense de Benjamin Constant, situada do outro lado do rio Iguaçu, de modo a permitir a ligação das duas divisões.

Barracão fica na antiga região do Contestado. De lá, até Foz do Iguaçu, onde estava instalado o Estado-Maior da Divisão São Paulo, a distância era de 90 km. Uma picada entre as duas localidades, aberta na mata por uma turma do Batalhão Cabanas, dirigida pelo tenente Gastão Maitre Pinheiro, estava em fase final de conclusão.

Mas a última coisa que passava pela cabeça de Prestes era atravessar o  Iguaçu, conduzindo suas tropas ao interior do cerco montado pelo general Rondon à Divisão São Paulo.

Os destacamentos de Siqueira Campos e João Alberto foram lançados sobre Clevelândia e Palmas, na direção Leste, buscando uma junção com os 170 homens das forças paulistas que, dois dias antes da chegada da Divisão Rio Grande à região, haviam dispersado e perseguido o contingente governista que guarnecia Santo Antônio, Barracão e Campo Erê. O objetivo da manobra era prosseguir até a Colônia Mallet e golpear a retaguarda de Rondon, de modo a forçar a abertura de uma brecha que permitisse o escoamento da Divisão São Paulo.

Conta o tenente João Alberto:

“Durante cinco ou seis dias, Siqueira e eu… marchamos juntos. Ao fim da semana, quando já nos aproximávamos do campo de Clevelândia,,, escalamos nossa tropa e coube-me a vanguarda. No mesmo dia, o 2º Destacamento chocou-se com uma coluna inimiga que… marchava em sentido oposto ao nosso.

Daí por diante foi um continuar de pequenos combates…”

Impossibilitados de cumprir a missão, Siqueira e João Alberto tratavam agora de retardar a  progressão da tropa governista em direção a Barracão, fazendo uma “guerra de emboscadas” ao longo de “180 quilômetros”.

Frustrada a tentativa de efetuar a junção com o grosso da Divisão São Paulo fora do cerco estratégico, a Divisão Rio Grande prepara-se para iniciar a marcha para o Norte em direção ao rio Iguaçu. Siqueira e João Alberto são avisados para evitar o contato com o inimigo e rumar também para o Norte.

Em Barracão a situação é delicada. Convergem sobre o 1º Destacamento duas fortes colunas governistas. A primeira vem seguindo os revolucionários, através da mata, desde Porto Feliz. Na luta para retardá-la, ainda em Santa Catarina, tombara em combate, no dia 27 de janeiro, seu comandante, o tenente Mario Portela Fagundes. A outra, vinda do leste, é a que acabara de fazer abortar o ataque à retaguarda de Rondon.

Prestes aguarda até o último instante. Ao anoitecer do dia 24 de março, simula um avanço do 1º Destacamento, sobre a coluna que vinha do Sul, obrigando-a a fixar-se à espera do ataque, na localidade denominada Maria Preta. Em seguida retira-se, sem permitir que a manobra seja detectada. Na escuridão da noite, as duas colunas governistas acabaram por se chocar, passando a trocar tiros entre si. Só na madrugada puderam verificar que o fogo amigo provocara 200 baixas.

         

25. Queda de Catanduvas

Três dias depois, visando antecipar-se à junção das duas divisões revolucionárias, as forças governistas desencadeiam uma violenta ofensiva contra a cidadela de Catanduvas.

A cada 20 segundos uma granada de artilharia explode nas trincheiras revolucionárias. Os combatentes que as defendem são assediados por 4.000 soldados comandados por 17 generais.

O major Cabanas assim descreveu os últimos dias de Catanduvas:

“A artilharia inimiga rompeu vivíssimo fogo, contra nossas posições, ao mesmo tempo em que a infantaria caía com violenta carga de baionetas em todas as trincheiras e destacamentos isolados. Ao primeiro embate foi tomada, na ala direita, nossa posição denominada Cajati… no dia seguinte, o inimigo enveredou pelas matas, abrindo picadas contornou as trincheiras da ala (esquerda)e foi satir a 2.500 metros, na retaguarda… interceptando completamente nossa ligação entre Catanduvas, minha coluna em Floresta e o posto de comando do general Costa… A noite avançava; os nossos soldados detonavam seus últimos cartuchos e a situação era gravíssima… Assim reuniu-se a oficialidade em conferência e tomaram a única solução viável no caso: a entrega da praça, devendo pôr-se imediatamente a salvo como pudessem o coronel Estilac Leal e o capitão Felinto Müller… Ao amanhecer de 30, o inimigo sabendo não existir mais um cartucho, dá o sinal de carga de infantaria, e na nossa trincheira principal, da frente, agita-se tristemente uma bandeira branca”.              

A notícia do desastre colheu João Alberto em plena transposição do rio Iguaçu. Prestes, que já completara a travessia, movimenta o 1º Destacamento em marcha forçada para proteger o cruzamento da estrada Catanduvas-Cascavel- Benjamin-Iguaçu pelos destacamentos de Siqueira Campos e João Alberto. As tropas governistas, no entanto, não progrediram pela estrada, estacionando na posição conquistada. Sobre a rodovia foi então organizada uma nova frente de cobertura às forças revolucionárias que se concentraram em Santa Helena, porto fluvial sobre o rio Paraná, entre Porto Mendes e Foz do Iguaçu.

Logo após a travessia do rio Iguaçu, ainda em Benjamin Constant, no dia 3 de abril, o coronel Prestes e o general Miguel Costa mantiveram um encontro, no qual firmaram o compromisso de prosseguirem na luta, levando as tropas das duas divisões a movimentarem-se continuamente através do território nacional, até reunirem as forças necessárias à derrubada do governo. Para isso, seria necessário romperem imediatamente o cerco, passando ao estado do Mato Grosso.

 

26. O Encontro das Divisões

No dia 12 de abril, em Foz do Iguaçu, realiza-se o encontro decisivo entre diversos oficiais da Divisão São Paulo e o comandante da Divisão Rio Grande. A reunião contou com a presença do marechal Isidoro, que retornara da Argentina dois dias depois da queda de Catanduvas. O comando das forças paulistas que fora transferido ao general Padilha, na ocasião em que Isidoro recebera a promoção, estava agora sob a responsabilidade do general Miguel Costa.

Miguel Costa e Prestes sustentaram a posição do deslocamento imediato para o Mato Grosso. Mas a tarefa não era simples. Guaíra, posição revolucionária mais avançada ao norte e porta de acesso àquele estado, fora evacuada. A ordem, da qual Miguel Costa só tomou conhecimento após a execução, partira do marechal, que considerara inútil manter a cidade, depois da rendição de Catanduvas e de sufocados os levantes das guarnições mato-grossenses de Campo Grande e Ponta-Porã. As rebeliões do 17º Batalhão de Caçadores e do 11º Regimento de Cavalaria tinham sido deflagrados em 27 de março, dia do início da ofensiva governamental sobre Catanduvas.

A síntese das decisões é relatada por Juarez Távora nos seguintes termos:

“1. Considerar frustradas as tentativas de pacificação começadas, por iniciativa dos chefes do governistas, em 16 de fevereiro.

 2. Prosseguir as operações de guerra de acordo com as diretrizes baixadas pelo general  Miguel Costa.

3. Grupar numa divisão, sob o comando do general Miguel Costa, os remanescentes das forças paulistas, sob comando do tenente-coronel Juarez Távora, e os elementos chegados do Rio Grande do Sul, sob o comando do coronel Luís Carlos Prestes”.

O tenente-coronel Cabanas acrescenta:

“… sendo o plano da nova campanha de grande movimentação, acordaram os oficiais superiores, atendendo à idade e ao abatimento físico do marechal Isidoro, do general Padilha e bem assim ao delicado estado de saúde do coronel Estilac Leal, pedir aos três que ficassem no estrangeiro até que fosse possível retornarem ao exercício revolucionário”.

Estilac havia sofrido um ferimento, por estilhaço de granada, no  pescoço.

Concentradas em Santa Helena, as forças revolucionárias escoaram suas tropas por uma picada de 30 km, passando por Porto Artaza até Porto Mendes, correndo a 5 km da margem do Paraná para evitar os cânions dos rios São Francisco Falso e São Francisco. A abertura dessa picada havia sido ordenada pelo general Miguel Costa ainda na primeira semana do mês de abril.

Constatada a impossibilidade da retomada de Guaíra, ao norte, Miguel Costa e Prestes decidiram atingir o Mato Grosso, passando através do território paraguaio. Para que a travessia do rio Paraná não fosse embaraçada pelas forças governistas que se aproximavam perigosamente de Porto Artazas, através da carroçável que partia de Lopeí, a leste, as forças revolucionárias desferiram um contra-ataque que as fez recuar 10 km.

 

27. O Comandante Paraguaio

João Alberto foi encarregado de apresentar ao comandante da guarnição paraguaia de Puerto Adela uma carta na qual os revolucionários expunham as suas razões:

“Por circunstâncias excepcionais e inapeláveis entramos armados no território de vossa Pátria.

Não nos move, neste passo extremo a que nos impelem as vicissitudes de uma luta leal, porém intransigente, pela salvação das liberdades brasileiras, nenhuma idéia de violência contra nossos irmãos da República do Paraguai”.

Datado de 26 de abril, o documento levava as assinaturas do general Miguel Costa; coronel Luís Carlos Prestes; tenentes-coronéis João Alberto, Juarez Távora, Cordeiro de Farias, João Cabanas;  majores Coriolano de Almeida, Paulo Kruger da Cunha Cruz, Virgílio Ribeiro dos Santos; capitães Djalma Dutra, Ricardo Holl, Ary Salgado Freire, Lourenço Moreira Lima e Emídio Costa Miranda. Deixaram de assiná-lo, o tenente-coronel Siqueira Campos e outros oficiais que  se achavam empenhados em ações de cobertura do grosso revolucionário.

O comandante da guarnição paraguaia, porém, não era homem de muita conversa, conforme relata o próprio portador da carta:

“Os motores fracos do Assis Brasil demoraram muito para vencer os 400 metros que nos separavam da margem oposta. Isso bastou para que o capitão paraguaio, comandante da tropa (50 homens) que vigiava e defendia a fronteira da república vizinha, pressentindo nossas intenções de invadir seu território, tomasse posição para repelir o nosso desembarque.

Eu não tinha nenhuma alternativa… desembarquei com o Nestor e uns poucos homens. O resto da tropa ficou detida a bordo… Confabulamos a igual distância de nossas tropas. Ele exigia que eu depusesse armas ou regressasse para o Brasil… Por duas vezes ele abandonou as negociações e voltou para junto de seus homens, dizendo que iria reagir… Pensei então em entrar em luta corporal com o capitão paraguaio a fim de evitar que ele me fuzilasse”.

Afinal o capitão acedeu ao pleito revolucionário. Mas só depois de João Alberto assinar um documento no qual reconhecia que a anuência do comandante se devia à inferioridade numérica em que ele se encontrava frente às tropas brasileiras.

A travessia foi realizada em dois vapores: o Assis Brasil, recondicionado, meses antes, pelos revolucionários, em Porto Mendes, e o Bell, requisitado por eles em Puerto Adela. O deslocamento de toda a Divisão – 700 homens da Brigada São Paulo, 800 da Brigada Rio Grande, 600 animais de carga, sela e tração, todo o material bélico, inclusive uma bateria de artilharia – levou setenta e duas horas.

No dia 30 de abril, depois de marcharem 125 km, em território paraguaio, penetravam no estado de Mato Grosso pelos campos de Amambaí.

 

28. Epílogo

Iniciava assim, sob o comando do general Miguel Costa, a terceira fase da Revolução de 1924: a Grande Marcha de 25 mil quilômetros, através de dez estados brasileiros, ao longo de quase dois anos.

As forças revolucionárias não conseguiram reunir o apoio necessário para derrotar a oligarquia cafeeira. Esta, porém, também não teve força para impor-lhes uma derrota estratégica. 

Em 1927, candidato ao governo do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, realiza a proeza de unificar chimangos e maragatos. Aí começa a gestação da nova onda revolucionária, que, em meados de 1929, se materializaria no amplo leque de forças que se aglutinou em torno de sua candidatura à presidência da República. Nele estariam reunidos os revolucionários de 22 e 24 e alguns de seus mais duros oponentes, no passado. 

Isolada, a oligarquia paulista não hesita em apelar mais uma vez para a fraude eleitoral. A resposta será a Revolução de 3 de outubro de 1930.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído da Hora do Povo

Revolução de 1924 – São Paulo Cidade Aberta

 “Nunca vi morte tão de perto como na madrugada de hoje”

 

1.      Antecedentes

2.      Personagens

3.      1º  Plano Geral de Campanha

4.      2º  Plano Geral de Campanha

5.      São Paulo em 1924

6.      O Início do Levante

7.      Reação do General Abílio de Noronha

8.      A Disputa da Capital

9.      Miguel Costa Confronta Isidoro

10.  Acordo com a Associação Comercial e a Prefeitura

11.  Chuva de Bombas sobre São Paulo

12.  A Intensificação do Bombardeio

13.  A Morte de Joaquim Távora

14.  Batalhões Patrióticos

15.  Aviação Ataca São Paulo

16.  Condições de Paz

17.  Revoltosos Derrotam Tanques

18.  Mais Destruição

19.  Com o Dr. Carlos de Campos em Guaiaúna

20.  A Retirada Estratégica

21. Epílogo

 

1. Antecedentes

A marcha heróica dos 18 do Forte, arremetendo contra 4.000 mil soldados da força governista, encerrara a primeira Revolução Tenentistaocorrida nos estados do Rio de Janeiro e Mato Grosso, em 5 de julho de 1922.

Dois anos depois, mais experientes e mais fortalecidos, os tenentes voltariam à carga, retomando a ofensiva. Desta vez o centro do levante seria a cidade de São Paulo. A oligarquia cafeeira que assumira o controle da República, com Prudente de Moraes, em 1894, não teria mais condições de exercer tranquilamente o seu poder autocrático. Seguidamente contestada pelos movimentos cívico-militares, seria apeada do poder em 1930, levando de roldão o império da fraude eleitoral, do boicote à industrialização, da manutenção artificial dos lucros do café, da afrontosa submissão aos interesses do imperialismo inglês.

As articulações entre militares e civis, para a Revolução de 1924, começaram no primeiro semestre do ano anterior. Estimulados pela adesão do ex-presidente Nilo Peçanha, e empurrados pela perseguição do recém-empossado governo federal, os tenentes tecem as malhas de uma vasta conspiração, envolvendo principalmente os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, o Sul de Minas Gerais e o Rio de Janeiro.

Nos últimos meses de 1923, o capitão Joaquim Távora assume de forma incansável o comando das articulações. Estabelece contato com oficiais sediados no Sul, e percorre todas as unidades do interior de São Paulo, Mato Grosso e Rio de Janeiro.

Távora havia participado do levante de 1922, no estado do Mato Grosso. O tenente João Alberto, que o conhecera na prisão, onde conviveram de julho a dezembro daquele ano, assim o descreveu:

“Alto de porte, calva à mostra, juntava o vigor físico à bravura moral… Socialista ardoroso, explicava-nos os acontecimentos políticos à luz da economia. Já preparava, nessa época, a próxima revolução”.

         

2. Personagens

Em São Paulo, Joaquim Távora fora morar na casa do Tenente Custódio de Oliveira, do 2º Grupo Independente de Artilharia Pesada, de Quitaúna.

Transformada em autêntico quartel-general revolucionário, a residência da Rua Vauthier, número 27, sediava as reuniões dos líderes do levante. Frequentavam-na o major Miguel Costa, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar  – denominada, na época, Força Pública Paulista –, e diversos oficiais do Exército que serviam em unidades sediadas em São Paulo como o major Cabral Velho (fiscal do 6o Regimento de Infantaria, de Caçapava), o capitão Newton Estilac Leal (chefe de material bélico da 2ª Região Militar), os tenentes Asdrúbal Gwyer e Castro Afilhado – ambos do 4o Batalhão de Caçadores, situado no bairro de Santana.

Outro aparelho utilizado para discussões sobre os planos revolucionários era a residência dos tenentes Ricardo Holl e Vítor César da Cunha Cruz, na Travessa da Fábrica, número 6. A exemplo de Joaquim Távora, ambos haviam se transferido para São Paulo. Outros militares que também se encontravam fora da tropa, em virtude dos processos judiciais originados pelo levante de 1922, tomaram opção idêntica, visando fortalecer o comando revolucionário. Entre eles, figuram os tenentes Joaquim Nunes de Carvalho, Otávio Guimarães, Eduardo Gomes, Juarez Távora – irmão mais novo de Joaquim – e os ex-alunos da Escola Militar de Realengo, Emídio da Costa Miranda e Diogo Figueiredo Moreira Jr.

A escolha de um militar de alta patente, que assumisse publicamente o comando das operações no momento da deflagração do levante, era considerada pelos revolucionários um elemento estratégico indispensável ao êxito do movimento. Fixaram-se em Isidoro Dias Lopes, general do Exército, reformado, que mantinha conversações com o ex-presidente Nilo Peçanha, desde 1923.

 

3. 1º  Plano Geral de Campanha

O primeiro Plano Geral de Campanha, elaborado por Joaquim Távora, pretendia antecipar-se ao golpe preparado pelo governo federal contra J.J. Seabra, que procurava manter o controle sobre o governo da Bahia apoiando Raul de Leoni à sua sucessão. Seabra era o governador do estado – na época, o termo era presidente do estado. Fora candidato à vice-presidência da República, em 1922, na chapa encabeçada por Nilo Peçanha contra o candidato situacionista Artur Bernardes. A luta para impedir a vitória e, em seguida, a posse de Bernardes, resultado de um processo eleitoral estruturalmente fraudulento, fora o estopim da Revolução de 1922.

Segundo o plano, o movimento deveria ser deflagrado no dia 28 de março, com início simultâneo no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Sul de Minas, podendo, em seguida, receber o apoio de elementos das guarnições do Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás.  O núcleo principal era a cidade de São Paulo. As guarnições do Exército, circunvizinhas da capital, em ação conjugada com elementos da Polícia Militar, a tomariam, enquanto os corpos de tropa aquartelados no Vale do Paraíba, reforçados por elementos vindos do Sul de Minas, avançariam até Cruzeiro, abrindo as portas para a invasão do Rio de Janeiro. Às forças paulistas caberia também a missão de barrar, na costa Leste da Serra do Mar, a progressão das unidades contra-revolucionárias, partidas de Santos. A rebelião no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná visava, principalmente, impedir que o contingente situado em Porto Alegre marchasse contra São Paulo ou que o mesmo fosse feito por elementos desembarcados em Paranaguá e São Francisco.

O principal fator que bloqueou e adiou sine die a execução do projeto foi o que Juarez Távora denominou, diplomaticamente, de “resistência passiva de um dos conspiradores mais graduados e influentes entre as guarnições comprometidas”. Na verdade, a defecção do major Bertoldo Klinger

O mês de março, conta ainda Juarez, “findava, assim, com uma rajada de desalentos”. Klinger desertara, Seabra fora humilhado e forçado a abandonar o governo da Bahia, um dia antes de expirar seu mandato. Quase simultaneamente, se apagava do cenário nacional o vulto estimulador de Nilo Peçanha. Morto em 31 de março de 1924, Nilo foi enterrado levando sobre o seu coração um dos pedaços do pavilhão do Forte Copacabana, que o tenente Siqueira Campos havia dividido em 29 partes para que cada combatente pudesse tê-lo consigo no momento final da luta. Nilo não apoiara a insurreição de 1922, porém, logo no momento seguinte, desdobrou-se na defesa política e jurídica dos revoltosos, radicalizando paulatinamente suas posições.

 

4. 2º  Plano Geral de Campanha

Mas os reveses não desanimaram os tenentes. Joaquim Távora trabalha com energia redobrada. No início do mês de maio, já está pronto o novo plano para a deflagração do movimento revolucionário.

Ao invés do levante simultâneo de unidades militares em diversos estados, como projetado anteriormente, a ação deveria iniciar-se pela tomada da cidade de São Paulo. As demais guarnições do Estado incorporar-se-iam num segundo momento. As do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais só revelariam sua adesão à revolução na medida em que fossem enviadas para combatê-la.

A primeira parte do plano, execução do levante em São Paulo, foi preparada em dois tempos:

1º – assédio e assalto do bloco de quartéis policiais da Luz (1º, 2º e 4º Batalhão de Infantaria, Corpo Escola, Cadeia Pública e Regimento de Cavalaria – este previamente comprometido com a revolução). A ação seria executada pelo 4º Batalhão de Caçadores e pelo Regimento de Cavalaria, com apoio de fogo do 2º Grupo de Artilharia Pesada, de Quitaúna. Isso conseguido, ocupar-se-iam as estações ferroviárias, o telégrafo e a telefônica.

2º – o assalto dos demais bastiões da defesa governista, localizados em vários pontos da cidade – 3º e 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Secretaria de Justiça, Palácio do Estado e Quartel-General da Guarda Cívica. A ação seria realizada por patrulhas do 4º Regimento de Infantaria, transportadas de Quitaúna para São Paulo em automóveis.

A segunda parte do plano, defesa e ampliação das posições conquistadas, seria iniciada antes do amanhecer do dia 5 de julho. O capitão Joaquim Távora avançaria com 500 homens, pela Estrada de Ferro Central do Brasil, em direção a Barra do Piraí (RJ), incorporando durante a marcha os efetivos de  unidades do Exército já comprometidas com o movimento. Outro destacamento seguiria para Santos, através da São Paulo Railway, a fim de ocupar o Porto. Se a cidade não pudesse ser ocupada, os revolucionários abririam trincheiras na Serra do Mar, para barrar a progressão de tropas vindas do litoral contra São Paulo.

Esperava-se que uma vez ocupada a capital paulista, bloqueado um ataque governista mediante desembarque de tropas em Santos, e aberto o Vale do Paraíba à ofensiva das tropas revolucionárias sobre o Rio, seria quase certa a adesão das unidades do Exército enviadas de outras guarnições para combatê-las.

Concluído o plano, Joaquim Távora dirigiu-se ao Rio, para apresentá-lo ao general Isidoro. Este aceitou-o sem ressalvas. A data da deflagração do  movimento foi fixada inicialmente para o dia 28 de maio, depois 26 de junho e, finalmente, zero hora de 5 de julho de 1924.

 

5. São Paulo em 1924

Embora a escolha de São Paulo como centro do levante tenha se dado principalmente pela avaliação da correlação de forças no terreno militar, o ambiente de descontentamento que predominava entre os 700 mil habitantes da cidade não escapava à percepção dos revolucionários.

Três questões políticas galvanizavam as atenções, no primeiro semestre daquele ano. A truculência empregada por Washington Luís,  para fazer de Carlos de Campos seu sucessor no governo do estado. As greves operárias provocadas pela carestia, ocorrida em função da alta artificial dos preços do café. Os objetivos da Missão Inglesa que, antecipando as do FMI, promovia, com o beneplácito do governo, minuciosa inspeção na economia nacional.

A ação de Washington Luís forçando o PRP (Partido Republicano Paulista) a recuar da indicação da candidatura do senador Álvaro de Carvalho, primeiro para o governo e depois para o senado, provocara, em 22 de janeiro, o desligamento de Altino Arantes, governador no período 1916-1920,  e o surgimento do grupo dissidente denominado Os Coligados, do qual se aproxima Júlio de Mesquita, com seu jornal O Estado de São Paulo.

No final do mês de janeiro tem início também uma greve na maior indústria têxtil da cidade, o Cotonifício Rodolfo Crespi. Pressionados pela carestia, os trabalhadores reivindicam 40% de reajuste salarial. A paralisação se alastra por todo o setor, envolvendo 12.000 operários durante várias semanas. Violências, perseguições, prisões, deportações e um aumento de 10% são o resultado do movimento. Porém a discussão sobre as causas e soluções para o problema da carestia não cessam com o seu encerramento.

No dia 29 de junho, ultrapassando as piores expectativas dos que desde a sua chegada, em dezembro de 1923, denunciavam a humilhante ingerência, a Missão Inglesa publica um relatório no qual recomenda a privatização do Banco do Brasil, do Lloyd e da Estrada de Ferro Central do Brasil, ou seja, de todas as estatais dos anos 20. Para renegociar a dívida e conceder novos empréstimos, a missão cobrava também do governo um rígido arrocho fiscal e medidas que favorecessem o ingresso de capitais externos, considerados indispensáveis ao desenvolvimento do país – antigo filme que viria a ser reprisado inúmeras vezes, sempre apresentado como a última palavra em matéria de modernidade.

 

6. O Início do Levante

Um atraso de doze horas na chegada do general Isidoro impediu que a segunda parte do levante transcorresse conforme o plano estabelecido. Porém, a primeira – a mais importante –, embora só iniciada por volta das cinco horas da manhã, estava praticamente concluída, sem incidentes, em pouco mais de quarenta minutos, ao clarear do dia 5.

Isidoro havia se comprometido a chegar, em São Paulo, na manhã do dia 4. O local marcado para o encontro era a estação da Luz. No entanto, na última hora, decidiu saltar na estação do Brás, provocando os desencontros e atrasos que prejudicariam a execução das operações.

Só às três e meia da manhã, Joaquim Távora consegue chegar ao 4º Batalhão de Caçadores, de Santana, encontrando a tropa já rebelada pelo trabalho de persuasão realizado pelo capitão Newton Estilac e os tenentes Asdrúbal Gwyer e Castro Afilhado. Uma hora depois, armada e municiada, a força marchou reunida até a Ponte Pequena,  onde se separaram as diversas patrulhas de assalto aos quartéis da Luz. Às cinco horas da manhã completou-se o cerco dessas casernas. O Regimento de Cavalaria, comandado pelo major Miguel Costa, foi o primeiro a soar o toque de formatura, sinal de adesão à causa revolucionária.  Enquanto isso, Índio do Brasil e Castro Afilhado penetram no 4º Batalhão de Infantaria;  Estilac Leal e Thales Marcondes no 2º; Eduardo Gomes e João Batista Nitrini no 1º; Asdrúbal Gwyer e Arlindo de Oliveira no Corpo Escola. Sem que tenha sido preciso o disparo de um só tiro, a bandeira da revolução tremulava triunfante sobre o principal reduto governista.

No entanto, seis núcleos da defesa governamental – 3º e 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Guarda Cívica, Secretaria da Justiça e Palácio do Estado – não puderam ser atacados em virtude do desencontro entre as forças do tenente Juarez Távora e o tenente Custódio de Oliveira, o que retardou a tomada do 4º Regimento de Infantaria, de Quitaúna, base de onde partiriam tais ataques.

Assim, ao amanhecer os revolucionários ainda não haviam logrado apoderar-se da cidade. Mas seus efetivos contavam 1.500 homens, 100 automáticas, 2 milhões e 500 mil cartuchos e as baterias do Grupo de Artilharia Pesada de Quitaúna, ocupando posição no Campo de Marte. O efetivo do governo não chegava a 1.000 homens, sem artilharia e sem cavalaria.

 

7. Reação do General Abílio de Noronha

Alertado da eclosão do movimento pelo Capitão Grimualdo Fávila, o general Abílio de Noronha, comandante da 2ª Região Militar,  que passara a noite no Hotel Esplanada, participando dos festejos do Independence Day, promovidos pelo consulado norte-americano, dirigiu-se, na manhã do dia 5, ainda insone, ao recém-sublevado quartel do 4º Batalhão de Caçadores. Como os oficiais revolucionários haviam se deslocado para o Centro, não foi difícil ao general retomar o quartel. Com os elementos que lá encontrou organizou uma força e marchou rumo aos quartéis da Luz.

Chegando ao 4º Batalhão de Infantaria, cuja maior parte da tropa também já se encontrava em missões fora do quartel, tomou-o e reintegrou no comando os oficiais que haviam sido presos pelos revolucionários. Dali seguiu para o Corpo Escola, onde tentou fazer o mesmo, mas foi barrado pelo capitão Joaquim Távora que lhe deu voz de prisão. Houve troca de palavras ásperas que só cessou com a chegada providencial do general Isidoro e do coronel João Francisco, a cuja ordem de prisão acabaram se submetendo o general Abílio e os oficiais de seu séquito. Aí terminou a ação contra-revolucionária do comandante da 2ª Região Militar, mas não os seus efeitos.

Desconhecendo o que ocorrera no 4º Batalhão de Infantaria, para lá se dirige Joaquim Távora, seguido dos tenentes Juarez Távora, Castro Afilhado e do capitão Índio do Brasil. São presos e sumariamente condenados à morte por fuzilamento, pelo secretário de Justiça Bento Bueno. Mas acabam libertados na tarde do dia 10, após o abandono da cidade pelas tropas do governo. Na mesma ocasião foi libertada a aviadora Anésia Pinheiro Machado, também detida na unidade por haver lançado flores e panfletos sobre a cidade no início da rebelião.

Com a prisão de Joaquim Távora, a estratégica descida do Vale do Paraíba, em direção a Barra do Piraí, que deveria iniciar-se na manhã do dia 5, sob seu comando, foi sendo adiada e acabou suspensa. O prolongamento da luta pelo controle da capital provocaria outras alterações nos planos revolucionários.

 

8. A Disputa da Capital

Na noite de 5 de julho começa a definir-se a linha de contato das tropas adversárias. No Centro, as estações da Luz e Sorocabana, sob comando do tenente João Cabanas, da Polícia Militar; o hotel Terminus sob o comando de Estilac Leal; a estação do Brás sob o comando do tenente Arlindo de Oliveira; a da Cantareira comandada pelo tenente Eduardo Gomes; e, no flanco esquerdo, o 4º Batalhão de Caçadores, retomado pelo tenente Gwyer de Azevedo.

Os dias 6 e 7 são marcados por intensos combates. Forças federais penetram na cidade visando um contra-ataque. Três dessas unidades aderem à revolução: o 2º Grupo de Artilharia da Montanha, vindo de Jundiaí, o 6º Regimento de Infantaria, de Caçapava, sob o comando do major Cabral Velho, e uma companhia do 5º Regimento de Infantaria, de Lorena, sob o comando do tenente Azhaury de Sá Brito e Sousa. O efetivo que passa para o lado dos revoltosos, com essas adesões, é superior aos reforços governistas chegados de Santos e Pirassununga – 400 marinheiros, com uma seção de canhões Armstrong, 75; o 3º Grupo de Artilharia de Costa, com uma bateria Krupp, 75; e 200 homens do 2º Regimento de Cavalaria Divisionária. Essas forças realizam um bombardeio de pouca eficácia sobre o quartel-general das forças revolucionárias, instalado na região da Luz, e tentam um avanço ao longo do Tamanduateí. A ação é repelida. Seus executores são forçados a entrincheirar-se na usina da Light, da Rua Paula Sousa.

Os ataques dos revoltosos ao Palácio dos Campos Elísios, onde o governador Carlos de Campos mantinha a sede do governo, foram todos rechaçados, nos dias 5 e 6 de julho. Porém, durante a madrugada do dia 7, os rebeldes penetram silenciosamente nos palacetes abandonados pelos moradores, nas imediações do Palácio. A partir de posições bem protegidas, nos forros dos telhados, desatam intensa fuzilaria sobre as forças governistas. Pegas de surpresa, as tropas abandonam as barricadas em atropelo e são obrigadas a permanecer acuadas, dentro do prédio. O governador decide então transferir-se, sigilosamente, para a Secretaria da Justiça, no Largo do Tesouro. Mas o edifício, devido a sua posição elevada, se constituía num excelente alvo para a artilharia revolucionária que, mesmo sem conhecimento de tão ilustre presença, atacou-o com rara eficácia. Carlos de Campos, quase atingido pelas granadas, decide, então, retirar-se com seus auxiliares imediatos para a localidade de Mogi das Cruzes e dali para Guaiaúna – nas proximidades da estação de Vila Matilde, situada, na época, nos limites da capital. A fuga foi efetuada no dia 8 de julho. Os revolucionários, porém, só tomaram conhecimento do fato na manhã seguinte.

 

9. Miguel Costa Confronta Isidoro

A luta ininterrupta travada dia e noite dentro da capital paulista, desde o amanhecer de 5 de julho, se constitui num verdadeiro teste para os nervos dos dois adversários. Desconhecendo a fuga do governador, o general Isidoro, na noite do dia 8, comunica sua decisão de abandonar a cidade e concentrar as tropas revolucionárias em Jundiaí. Para lá deveriam marchar também o 4º Regimento de Artilharia da Montanha, de Itu, e o 5º Batalhão de Caçadores, guarnições que haviam aderido à revolução e estavam aquarteladas em Rio Claro.

O major Miguel Costa se insurge contra a decisão.  Não vê sentido numa retirada quando as possibilidades de vitória ainda eram promissoras. Não aceita que se deixe para trás, na prisão, sob ameaça de execução sumária, o principal organizador do movimento, o capitão Joaquim Távora. Considera que a retirada naquele momento seria um golpe fatal no moral das tropas e provocaria a desagregação das forças revolucionárias. Declara que as unidades da Polícia Militar, sob seu comando, não acatariam a ordem e prosseguiriam em suas posições, dentro da cidade. Isidoro retira-se do quartel-general abalado, mas mantendo a decisão de promover a retirada na manhã do dia seguinte.

Miguel Costa foi o primeiro a tomar conhecimento da fuga de Carlos de Campos e do consequente colapso das forças governistas, ocorrido na madrugada do dia 9. Prontamente pediu ao tenente Simas Enéas, assistente de Isidoro, que fosse procurá-lo para que se reconciliassem. A divergência estava superada. São Paulo fora conquistada.

 

10. Acordo com a Associação Comercial e a Prefeitura

Os dias 9 e 10 de julho transcorrem em relativa tranquilidade. As forças revolucionárias contêm rapidamente a onda de saques iniciada com a fuga das autoridades governamentais e realizam entendimentos com a Associação Comercial e a Prefeitura de São Paulo.

A Associação Comercial, presidida por José Carlos de Macedo Soares,  representava os grandes industriais e comerciantes paulistas.  No dia 7 de julho, havia publicado manifesto de apoio a Carlos de Campos, que conclui com as seguintes palavras:

“A Associação Comercial de São Paulo aconselha às classes conservadoras que acompanhem com a máxima simpatia e apoio a heróica resistência que vem desenvolvendo o governo do Estado. E se mantenham confiantes na ação resoluta do presidente Carlos de Campos”.

Mas, considerando a retirada do governador para Guaiaúna e a impossibilidade das empresas das ditas classes conservadoras seguirem o mesmo caminho, acharam estas prudente reconhecer a situação de fato, criada pela conquista revolucionária da cidade. As principais decisões que emergiram dessas conversações foram a manutenção do prefeito Firmino Pinto no cargo e a assinatura do Ato 2424, criando a Guarda Municipal – uma força desarmada, organizada pela Prefeitura, destacada para apoiar o policiamento da cidade.

Em boletim datado do dia 10, o doutor Firmino Pinto, prefeito da capital,  apresenta o seu ponto de vista sobre a questão:

“O prefeito de São Paulo, diante da situação de fato, de ter sido tomada a cidade pelas forças revolucionárias, foi pessoalmente à presença de seu chefe responsabilizá-lo pelo serviço de policiamento e abastecimento desta capital. Tendo o chefe dos revolucionários declarado que não embaraçaria a atuação da autoridade municipal, o prefeito continuará no seu posto a tomar as providências que se tornem necessárias”.

No mesmo dia, os jornais publicam com destaque o Comunicado dos Chefes do Movimento Revolucionário, sinal de que a imprensa também mudara o tom em relação ao levante.

 

11. Chuva de Bombas sobre São Paulo

Mas a paz terminaria no dia seguinte, 11 de julho, quando os 700.000 habitantes de São Paulo assistem estarrecidos o início do capítulo mais negro da história da cidade. Os bairros do Brás, Belenzinho,  Mooca e o Centro começavam a sofrer tremendo bombardeio. Seguidamente os obuses e granadas de vários calibres varavam casas pobres, matando, ferindo, destruindo, apavorando. Os moradores dessas zonas atingidas, acometidos de pânico, juntavam o que podiam e se retiravam sem rumo certo, invadindo outros bairros em busca de abrigo e socorro.

Francisca Spinelli, moradora de um dos bairros atingidos, em carta à amiga Leopoldina Ferreira, de Piracicaba, revela a angústia e a perplexidade da população frente à violência do choque:

“Nunca vi a morte tão de perto como na madrugada de hoje… As balas passam sobre as nossas cabeças assobiando terrivelmente. Espera-se a todo momento ser-se vítima de uma dessas monstruosas granadas. Já morreram diversas pessoas aqui na rua e aqui ficam, sem o auxílio de ninguém… Temos nos escondido no porão”…

A ação causa centenas de baixas civis e nenhuma baixa militar. Há uma multidão de feridos e desabrigados. A Associação Comercial lança um dramático apelo:

“O canhoneio de ontem, tendo alarmado a  população desta capital, determinou o êxodo dos moradores… fazendo com que dezenas de milhares de pessoas abandonassem seus lares… A Associação Comercial de São Paulo pede aos habitantes desta generosa cidade que recebam em suas casas, na medida de suas forças, as mulheres velhos e crianças desamparadas”.

O arcebispo Metropolitano D. Duarte Leopoldo da Silva mandou franquear igrejas, cedeu conventos, escolas, casas e paróquias, para a abertura de hospitais. No próprio dia 12, é criada uma comissão para pedir a intervenção do governo federal a fim de cessar o bombardeio. A comissão é composta pelo arcebispo D. Duarte; o prefeito Firmino Pinto; o presidente daLiga Nacionalista, Vergueiro Steidel; o diretor do jornal O Estado de São Paulo, Júlio Mesquita; e José Carlos de Macedo Soares. Prontamente  telegrafam ao Ilustre Presidente da República, dr. Artur Bernardes:

“Pedimos V. Excia. intervenção caridosa para fazer cessar bombardeio contra inerme cidade de São Paulo, uma vez que as forças revolucionárias se comprometem a não usar seus canhões em prejuízo da cidade. A comissão não tem intuito algum político,  mas exclusivamente a compaixão pela população paulista”.

A resposta vem assinada pelo ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho, diz:

“…não é possível assumir nenhum compromisso nesse sentido. Não podemos fazer a guerra tolhidos do dever de não nos servirmos da artilharia contra o inimigo… Os danos materiais podem ser facilmente reparados, mormente quando se trata de uma cidade servida pela fecunda atividade de um povo laborioso. Mas os prejuízos morais, esses não são suscetíveis de reparação”.

Carlos de Campos, em mensagem à Câmara de Deputados, é ainda mais explícito e enfático:

“Estou certo de que São Paulo prefere ver destruída sua formosa capital antes que destruída a legalidade no Brasil!”.

Na verdade, a oligarquia cafeeira, ao concluir que iria perder a sua capital para os revolucionários, decidiu sacrificá-la. Ao mesmo tempo em que comandou a retirada de Carlos de Campos, fez gestões junto ao governo federal para que o bombardeio fosse iniciado imediatamente. Washington Luís e o vice-governador, coronel Fernando Prestes, bancavam o jogo nos bastidores. Carlos de Campos, ex-líder do governo na Câmara Federal, havia sido o principal articulador da candidatura Bernardes. Washington Luís foi quem garantiu a sua posse na presidência da República, em 1922, quando o próprio Epitácio Pessoa pregava “a desistência do Bernardes” como “solução” para a crise. Este não se encontrava em condições de negar-lhes nada.

O bombardeio prossegue quase ininterruptamente, à razão de 130 disparos por hora. As descrições encontradas em relatos da época são  impressionantes:

“No Cemitério Municipal, onde centenas de pessoas vagam como zumbis a procura de desaparecidos, 64 corpos não identificados aguardam os coveiros, para serem enterrados em covas rasas. Cerca de 200 mortos anônimos se amontoam também numa baixada do Cemitério do Araxá a espera de sepultamento… Alguns corpos, há mais de 24 horas insepultos, são enterrados sem as formalidades legais até mesmo em terrenos descampados. Muitas famílias sepultam os seus mortos em quintais”.

Nova tentativa de suspender o bombardeio, feita no dia seguinte, 13 de julho, por uma delegação dos representantes diplomáticos sediados em São Paulo, também não obteve êxito. A noite é de grandes incêndios. Labaredas com mais de dez metros de altura devoram a fábrica de biscoitos Duchen, na Mooca. As chamas destroem também o Fórum Criminal, três casas na rua Tabatinguera, a companhia Duprat, os armazéns de Nazareth Teixeira e da Companhia de Comércio e Navegação. No dia 14 os bairros mais atingidos são Campos Elísios, Vila Buarque, Vila Mariana, Aclimação e Liberdade. No dia 15, o Teatro Olympia, na avenida Rangel Pestana, que servia de abrigo para dezenas de famílias que haviam perdido suas casas foi duramente atingido. As colunas, teto e paredes desabaram sobre seus ocupantes, em sua maioria, mulheres, velhos e crianças – 30 mortos e 80 feridos em estado grave.

O escritor e compositor Cornélio Pires, mestre da poesia caipira, registrou em sua Moda da Revolução o ambiente de desolação provocado pelo bombardeio da cidade:

Quando cheguei em São Paulo

O que cortou meu coração

Eu vi a bandeira de guerra

La na torre da estação

Encontrava gente morto

Por meio dos quarterão

Dava pena e dava dó

Ai, era só judiação

 

12. A Intensificação do Bombardeio

A situação era terrível, mas ainda iria piorar. Em 15 de julho, trazida do Rio de Janeiro, entra em ação uma arma mais mortífera: os canhões de 155 milímetros. Até então a cidade havia sido alvejada por baterias de 75 e 105 milímetros.

O capitão Correia Lima, comandante da 2ª Bateria, recebendo Carlos de Campos em visita às tropas estacionadas nas proximidades da estação de Vila Matilde, ordenou ao municiador que abrisse a culatra do canhão e lhe mostrasse uma granada. Isto feito, ponderou:

Excelência, essa granada tem um raio de ação de 600 metros. Isso quer dizer que duas pessoas, distantes 1200 metros,  uma da outra, poderiam ser mortas por estilhaços de uma única granada. Numa ocasião como esta, sobre São Paulo,  o melhor uso desta bateria é ficar silenciosa.

A resposta de Carlos de Campos:

Destrua-se São Paulo, mas fique impoluto o princípio da autoridade.

 Nos dias que se seguiram, aquelas baterias não cessaram de despejar sua carga arrasadora sobre a cidade.

O jornalista Paulo Duarte, testemunha ocular dos fatos, observa que“as granadas caíam a esmo”:

“O bombardeio durava dias e noites sem cessar; a Santa Casa se enchia de mulheres e crianças, os cemitérios pejavam-se de cadáveres e as fileiras revolucionárias não perdiam um só homem.

A conclusão que se impunha era estarrecedora, porém incontestável:

“… a artilharia governista atirava sobre a cidade em geral, sem ponto certo”.

O alvo era a própria cidade. A finíssima e liberalíssima oligarquia cafeeira paulista praticava, contra sua capital rebelada, o cruel,  desumano e covarde bombardeio terrificante – ação tipificada como crime de guerra, perante a Convenção de Haia de 1917.

 

13. A Morte de Joaquim Távora

Na noite do dia 14, um contingente governista, partindo do Ipiranga, consegue atravessar os bairros de Aclimação e Vila Mariana, em caminhões  e automóveis, e acaba por entrincheirar-se naquelas redondezas, retomando e ocupando o 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, na rua Vergueiro; os largos do Paraíso e da Guanabara; o convento Santo Agostinho; e, na Brigadeiro Luís Antônio, o convento Imaculada Conceição.

Desde o início do levante, as forças governistas não haviam conseguido qualquer penetração, digna de nota, nas defesas revolucionárias. Esta era a primeira vez que isso acontecia. Reverter a situação tornou-se, então, uma questão vital, a fim de que o precedente criado não minasse o moral das tropas.

O contra-ataque é comandado pelo capitão Joaquim Távora. Depois de intensos combates, na manhã do dia 16 os revoltosos já haviam retomado o controle da área. A bandeira revolucionária voltava a tremular no 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar. Porém, saiu-lhes cara a vitória. Com indignação contida, um relato da época conta como o capitão Joaquim Távora tombou na luta pela retomada do 5º Batalhão.

“Vendo que a resistência era inútil, os legalistas acenaram o lenço branco. Aproximou-se do quartel um pelotão de rebeldes comandados por Joaquim Távora. Os defensores da lei, com flagrante deslealdade, atiraram sobre aquele oficial, atingindo-o em cheio no peito. O capitão Távora dois dias depois, falecia no Hospital Militar”.

 

14. Batalhões Patrióticos

Ao mesmo tempo em que Joaquim Távora recebia no próprio peito a demonstração do tipo de “princípios morais” pelos quais a oligarquia revelava tamanho zelo, o comando revolucionário abre inscrições para o voluntariado e convoca a população.

O resultado entusiasma os tenentes. O jornal A Plebe, porta voz do movimento anarquista, divulga um manifesto de apoio aos revoltosos – Moção dos Militantes Operários ao Comitê das Forças Revolucionárias. Ainda que considerando imprecisos e limitados os objetivos do levante, os anarquistas não tinham como deixar de acompanhar a onda de adesão das classes populares, especialmente da classe operária, que só fazia aumentar a cada granada disparada contra a cidade.

Alguns comícios já haviam se realizado, a exemplo do ocorrido no Largo do Arouche, cuja convocatória é representativa do clima que tomava conta de São Paulo:

“… o comício será de protesto contra o bombardeio da cidade – atentado de inaudita ousadia, perpetrado por aqueles que se dizem defensores da ordem e da legalidade. Falará sobre o acontecimento o dr. Lindolfo Barbosa Lima, fazendo-se ouvir outros oradores”.

Com a abertura para o recrutamento de voluntários, o apoio da população expresso em manifestações e outros gestos de simpatia, como as refeições servidas aos combatentes nas trincheiras,  poderia expressar-se de forma superior.

Os voluntários foram organizados em Batalhões Patrióticos. A afluência de imigrantes veteranos da 1ª Guerra Mundial, muitos sem saber o português, foi grande, o que levou os revolucionários a criarem três batalhões estrangeiros, organizados de acordo com as afinidades de idioma.

O batalhão húngaro, instalado na rua Tiradentes, número 15, inicialmente se responsabilizou pelo policiamento da cidade. Dos 122 combatentes alistados, 13 eram oficiais com experiência em campos de batalha. No número 88 da avenida Liberdade, foi instalado o Batalhão Patriótico da Colônia Alemã, sob o comando de João Joaquim Tuchen. O batalhão italiano, composto basicamente de anarquistas, tem em Lamberti Sorrentino, redator do jornal Il Piccolo, um de seus principais líderes.

O processo de adesão popular cresceu ininterruptamente. Até a véspera da retirada, encontravam-se panfletos com este teor:

“Ao proletariado em geral! Convida-se o proletariado para uma reunião neste Sábado, 26 do corrente, a rua Wenceslau Brás, 19, às 14h, onde ficará definitivamente assentado o seu concurso moral e material em favor da Revolução que ora sacode este Estado ao caminho de um amanhã de mais liberdade, justiça e bem-estar para as classes oprimidas. (O Comitê Operário)”

O caipira retratado por Cornélio Pires, na Moda da Revolução, que inicialmente se mostra consternado, melancólico, com a destruição observada em sua chegada à cidade, já na quinta estrofe aparece mergulhado na luta, de armas e bagagens:

Nós tinha um 42

Que atirava noite e dia

Cada tiro que ele dava

Era mineiro que caía

E tinha um metralhador

Que encangaiava com pontaria

Os mineiro com os baiano

Ai, c`os paulista não podia

 

15. Condições de Paz

Desde o início dos bombardeios, os representantes dos industriais e comerciantes apelavam ao general Abílio de Noronha,  preso pelos revoltosos no primeiro dia do levante,  para que aceitasse a incumbência de negociar com o governo federal uma solução para o conflito. Noronha, que até a rebelião era o comandante da 2ª Região e tinha alto prestígio na cúpula militar, pede que os revolucionários formalizem em carta as suas condições. 

Em 17 de julho, o general Isidoro encaminha a carta estabelecendo a condição básica:

“Entrega imediata do governo da União a um Governo Provisório composto de nomes nacionais de reconhecida probidade e da confiança dos revolucionários. Exemplo: Dr. Wenceslau Brás”.

A carta afirma ainda que: o “Governo Provisório convocará uma Constituinte, quando julgar oportuno”. E reafirma o compromisso com o “voto secreto” e a “educação pública”, bandeiras que sintetizavam as mudanças mais urgentes pelas quais os revolucionários se batiam.

Alegando não poder dirigir-se ao presidente da República para solicitar a sua renúncia, o general Abílio de Noronha recua da atribuição,  mas a carta se transforma numa espécie de plataforma revolucionária. É impressa, distribuída aos jornais e à população, obtendo ampla repercussão.

 

16. Aviação Ataca São Paulo

A 22 de julho já era insuportável a atmosfera em São Paulo. O canhoneio sistemático espalhava pânico e desespero entre a população civil. Cerca de 15 mil pessoas deixavam a cidade diariamente. Mais de 150 mil já a haviam abandonado. Esse número chegaria a 300 mil, quase a metade da população de São Paulo, na época.

Naquele dia fora atingida mais uma das grandes fábricas paulistas, o Cotonifício Rodolfo Crespi, estabelecimento têxtil dos mais bem montados da América do Sul. O povo olhava angustiado os rolos de fumaça que enegreciam o céu. Chamas colossais podiam ser vistas a quilômetros de distância.

Os revolucionários respondem com ousadia, estreando seu trem blindado. Produzido nas oficinas da São Paulo Railway, o invento se constituía de uma locomotiva entre dois vagões de carga revestidos com paredes duplas de madeira recheadas de areia, para amortecer as balas e proteger os soldados em seu interior. O vagão da frente transportava um reforçado limpa-trilhos e uma metralhadora pesada, no teto, dentro de uma torre de ferro. A 60 quilômetros por hora, o trem partiu da Luz em direção a estação de Vila Matilde, onde surpreendeu as forças governistas com um ataque relâmpago e retirou-se ileso.

Às três horas da tarde, aviões se aproximam de São Paulo, voando a baixa altitude. A cidade sofre o seu primeiro ataque aéreo. Cinco bombas de 60 quilos explodem nas ruas, destruindo casas e edifícios.

 

17. Revoltosos Derrotam Tanques

Em 23 de julho, pela primeira vez tanques irrompem no Belenzinho, produzindo um princípio de pânico nas forças revolucionárias.

Equipados com canhões,  automáticas e blindagem de 22 milímetros, os Renault F-17 eram imunes ao fogo de fuzis e metralhadoras. Nem as tropas do Exército, nem as da Polícia Militar tinham experiência em combatê-los.

O comando revolucionário age com presteza e mobiliza os três batalhões estrangeiros contra os tanques. Para veteranos da 1ª Guerra Mundial, tanques não eram novidade. Depois de cavarem fossos de dois metros de profundidade, para barrar a progressão dos veículos, verificam que eles haviam avançado sem apoio de infantaria, erro que já custara muitas perdas nos campos europeus. Então os batalhões estrangeiros envolveram os blindados,  passando a atacá-los pela retaguarda. Alguns alemães chegaram a trepar nos tanques, com o intuito de abrir as escotilhas e matar seus ocupantes. Quase capturaram dois.

A ofensiva, que prometia mudar o curso da batalha em questão de horas, por pouco não se transformou num pesadelo para as forças governistas. Os tanques se retiraram rapidamente do teatro de operações e não mais voltaram a ser utilizados.

 

18. Mais Destruição

Na madrugada do mesmo dia, densas colunas de fumaça brotavam do depósito de inflamáveis Mercansul e da fábrica de bebidas Antártica.

Em função dos incêndios sucessivos, o comando revolucionário põe em liberdade todos os bombeiros dispostos a prestar serviços profissionais. O Quartel-General do Corpo de Bombeiros tinha sido um dos bastiões da defesa governista nos primeiros dias do levante. Muitos dos carros de bombeiros haviam sido levados pelas tropas legalistas para Guaiúna, em sua retirada. A fim de reavê-los, a Associação Comercial envia carta ao general Eduardo Sócrates, comandante das forças que efetuavam a operação de cerco e aniquilamento da cidade. O material nada tinha de bélico. Mesmo assim a espera pela resposta é longa e inútil. A destruição prossegue de forma sistemática.

O número de indústrias e estabelecimentos comerciais atingidos, entre os quais as Oficinas Duprat, Motores Morelli, S/A Scarpa, Matarazzo, Magasins Generaux, Reickman & Cia, Ernesto de Castro, Moinhos Gamba, ultrapassa a uma centena. Até o fim do conflito, a quantidade de prédios destruídos chegaria à casa de dois mil.

No dia 26, panfletos ameaçadores são lançados por aviões, trazem a assinatura do ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho:

“Faço à nobre população de São Paulo apelo para que abandone a cidade… É esta uma dura necessidade que urge aceitar como imperiosa… Espero que todos atendam a esse apelo para se pouparem aos efeitos das operações que dentro de poucos dias serão executadas”.

           

19. Com o Dr. Carlos de Campos em Guaiaúna

No dia seguinte, o jornalista Paulo Duarte parte para Guaiaúna levando cartas do presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares, para Carlos de Campos e o general Eduardo Sócrates:

“… o aniquilamento do poder industrial do Estado de São Paulo prossegue todos os dias, pelo efeito destruidor das granadas e pelas chamas devoradoras de pavorosos incêndios… O ânimo da fiel e leal população de São Paulo está abatido,  mas compara com azedume o tratamento generoso que tem recebido dos revolucionários com a desumanidade inútil de ininterrupto bombardeio”.

A carta solicita uma trégua de 48 horas, “para que o general Abílio de Noronha possa parlamentar ainda hoje com V. Excia”, uma vez que os revolucionários haviam se disposto negociar a paz em troca de uma anistia ampla aos participantes dos levantes de 1924 e 1922.

O próprio portador lavrou para a história, com indisfarçável ironia, o insólito encontro que manteve com o Dr. Carlos de Campos:

“Com toda a pachorra esperei que o sr. Governador do Estado engraxasse as botas, e, em sua companhia, dei entrada depois no carro da Central, ambulante quartel-general das forças legais, sede provisória do governo de São Paulo…

Confortavelmente instalado numa das macias poltronas do majestoso carro… disse qual era a minha missão e entreguei a carta que trouxera… Ao  meio da carta, já o amável governador não pode mais esconder sua irritação, dizendo:

– Isso não são palavras de amigo!

E ao fim da leitura:

– Absolutamente! Aos revoltosos nada! Nós iremos até o fim… Eles aguardem as consequências…

– Mas Dr Carlos de Campos (aventurei), se V.Excia conhecesse a atual situação da cidade…

– Não será pior que a minha aqui.

Tive a ousadia de lamber com um olhar tímido o ambiente confortável do carro salão…

– Vocês, (retrucou S. Excia, ainda agitado) parece que estão fazendo causa comum com os revoltosos… Em vista dos termos desta carta vou mandar aumentar os bombardeios. A granada será a resposta!”

 

20. A Retirada Estratégica

Às 22h do dia 28, surpreendendo as tropas governistas com uma manobra ousada e precisa, as forças revolucionárias empreendem uma retirada estratégica pelo eixo ferroviário São Paulo-Campinas-Bauru. São treze composições ferroviárias, com quatorze a dezesseis vagões, cada uma delas, conduzindo homens e material bélico. Toda a tropa, seis baterias de artilharia com seus acessórios e munição, duzentos cavalos, metralhadoras pesadas, equipamento de infantaria e cavalaria, viaturas, tudo foi embarcado com incrível rapidez, sem dar tempo ao inimigo de compreender o que estava acontecendo.

Os trens correram com um sincronismo tal que não houve o menor embaraço nas linhas dentro de um espaço de tempo de vinte e quatro horas.

No derradeiro manifesto dirigido à população da cidade, os revolucionários agradecem o apoio recebido:

“Assim, pois, no desejo de poupar São Paulo de uma destruição desoladora, grosseira e infame… vamos mudar a nossa frente de trabalho e a sede governamental.

Avante paulista, que a hora da liberdade se aproxima! Deus vos pague o conforto e o ânimo que nos transmitistes”.

Durante o dia 29 concentraram-se na cidade de Bauru. Somavam 3.500 homens, entre soldados do Exército, Polícia Militar e voluntários civis, que passaram a se organizar em três brigadas, um regimento de cavalaria e um regimento misto de artilharia. Posteriormente se dirigirão ao Paraná, onde mantêm a luta por vários meses, até que, em maio do ano seguinte, com as fileiras engrossadas por tropas gaúchas, levantadas em outubro pelo capitão Luís Carlos Prestes e os tenentes Siqueira Campos e João Alberto, iniciam a longa jornada de 25 mil quilômetros, através de dez estados, ao longo de dois anos, sem serem derrotados em nenhuma das batalhas travadas.

 

21. Epílogo

Nos dias em que São Paulo esteve sob direção das forças revolucionárias, as baixas militares provocadas pelos bombardeios foram irrelevantes. Porém as vítimas civis atingiram proporções trágicas. Dos 700 mil habitantes da capital, 300 mil a abandonaram, refugiando-se no interior. O relatório preliminar, apresentado pelo prefeito Firmino Pinto, registra 500 mortos, 5.000 feridos, 1.182 prédios destruídos, entre os quais 103 estabelecimentos comerciais e industriais. Porém considera parciais os dados levantados e estima que numa apuração completa os números obtidos seriam muito superiores. No caso das edificações atingidas, chega a admitir “mais de 1.800”:

“A Inspetoria Geral de Fiscalização procedeu a um penoso trabalho de exame… dos prédios danificados… e apurou devidamente verificados 1.182. Por inspeção posterior pode-se asseverar que esse número vai a mais de 1.800”.

No entanto, com a consolidação do controle da cidade pelas forças contra-revolucionárias, a apuração das baixas produzidas pelo bombardeio foi bloqueada e abandonada, confirmando o preceito de que o interesse dos criminosos é sempre o de ocultar a extensão de seus delitos. 

Dois anos e meio mais tarde, a oligarquia cafeeira paulista guindaria  Washington Luís à presidência da República. O coronel Fernando Prestes também não seria esquecido. Seu filho, Júlio Prestes, o Dr. Julinho, assumiria o governo do estado de São Paulo. Carlos de Campos deixaria a cena mais cedo, falecendo antes da conclusão do mandato, em abril de 1927.

Quando a Revolução de 30 os varreu do mapa, Julio Prestes, mercê da habitual fraude que marcava o processo eleitoral, estava a pique de suceder Washington Luís na presidência da República.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído da Hora do Povo

 

A Revolução de 1922 – OS 18 DO FORTE

“Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?”

 

1. Às Portas da Revolução

Domingo, 2 de julho de 1922. O decreto de fechamento do Clube Militar, anunciado pelo governo, é debatido em Assembleia dirigida pelo marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube. Presentes cerca de 600 oficiais, em clima de grande agitação. Contra o tenente Gwyer de Azevedo, que discursa na tribuna, disparam apartes o major Euclides Figueiredo, o coronel Tertuliano Potiguara, os generais Setembrino de Carvalho, Napoleão Felipe Aché, Carneiro de Fontoura, membros da cúpula militar comprometida com a velha ordem que começava a desmoronar. O relato do episódio, firmado pelo próprio tenente Gwyer de Azevedo, é representativo da tensão que marcava a época. Oito anos e três meses mais tarde, a oligarquia cafeeira seria derrubada do poder pela Revolução de 1930.

Tenente Gwyer: … Os jornais noticiam que o senhor Presidente da República …vai mandar seus agentes fecharem amanhã o Clube Militar, baseado numa lei proíbe as sociedades de anarquistas, de cáftens e de exploradores do lenocínio…

Major Euclides Figueiredo: O senhor Presidente da República tem toda a razão.

Tenente Gwyer: Vossa Excelência concorda que o presidente feche o Clube Militar baseado naquela lei?

Major Euclides Figueiredo: Concordo.

Tenente Gwyer: Então Vossa Excelência é cáften? É explorador do lenocínio?Queira desculpar porque, francamente, eu não sabia.

Marechal Hermes: O senhor tenente Gwyer precisa modificar a sua linguagem…

Tenente Gwyer: … O que revolta é oficiais emprestarem seus galões a um bandido, … deixando-o cavalgar livremente o Exército e fechar o Clube Militar de maneira infame, injuriosa e opressora.

Coronel Tertuliano Potiguara: Vossa Excelência se atreve a chamar o senhor presidente da República de bandido?

Tenente Gwyer: Ele não é somente bandido, é ladrão também, está provado…

Capitão Teopon Vasconcelos: Vossa Excelência é indigno de vestir a farda do Exército. Não agrida seus superiores!

Tenente Gwyer: Eu falei com o coronel Potiguara, e não com o seu ordenança…

Capitão Teopon Vasconcelos: Vou lhe mostrar quem é o ordenança, seu cachorro…

Marechal Hermes: Se os senhores oficiais continuarem nessa linguagem, serei obrigado a suspender a sessão. Todos nós somos do Exército, e o que está se passando aqui depõe contra nossa cultura e nossa educação. Continua com a palavra o Tenente Gwyer de Azevedo.

Tenente Gwyer: A observação do senhor presidente atinge aqueles que me obrigam a responder com violência aos apartes violentos e indelicados…

Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um cretino.

Tenente Gwyer: Cretino é Vossa Excelência. Não estamos no Contestado, onde Vossa Excelência mandava fuzilar a torto e a direito…

General Setembrino de Carvalho: Fosse eu presidente do Clube, esse oficial não continuaria a falar.

Tenente Gwyer: … Como poderia ser presidente deste Clube um oficial-general que na campanha do Contestado roubou da nação dois mil e seiscentos contos, assinando recibos fantásticos de víveres e deixando os soldados morrerem de fome?

Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um caluniador:

Tenente Gwyer: Vossa Excelência toma as dores porque mandou encher de palha os 15 vagões que deveriam levar roupas para os soldados no Contestado, remeteu 30 volumes de pedras no lugar de 30 volumes de granadas  … fluidificou 20 mil pares de botas de montaria que nunca foram vistas, em ponto algum do planeta, a não ser nas algibeiras de Vossa Excelência, vastas como o oceano…

General Napoleão Felipe: Torna-se necessária uma reação da nossa parte, porque esse oficial está nos enxovalhando.

Tenente Gwyer: Vossa  Excelência também tem rabo de palha..

General Napoleão Felipe: Aponte uma irregularidade minha.

Tenente Gwyer: Vossa  Excelência, na França, requisitou dinheiro do Tesouro Nacional para pagar dívidas contraídas em consequência de jogo e libertinagem… Isso está no relatório do embaixador do Brasil enviado ao Ministério do Exterior.

General Napoleão Felipe: Mas esse embaixador é um canalha…

Tenente Gwyer: Não sou o culpado. Entenda-se com o senhor embaixador.

Marechal Hermes: Não posso aceitar os termos em que o senhor está se expressando…

Tenente Gwyer: Senhor presidente… Estamos às portas da revolução!

 

2. A República do Café

Em 1894, com a ascensão de Prudente de Moraes à presidência, a oligarquia cafeeira paulista assumira o controle da República.

A produção do café viera se expandindo continuamente, desde 1830. A partir de 1870, com a marcha para o Oeste paulista e a introdução da mão de obra assalariada, esse crescimento foi fortemente acelerado. Porém, no final do século, grandes dificuldades despontaram no horizonte.

Em 1893, a saca de café no mercado internacional estava cotada a 4,90 libras. Em 1899, o preço caíra para 1,48 libras – uma queda de 70% em seis anos. Sob comando dos cafeicultores, a resposta do governo era a desvalorização cambial. A oligarquia cafeeira recebia menos libras por cada saca de café. Mas compensava a perda no momento em que trocava as libras valorizadas pelos mil-réis desvalorizados.

Do outro lado da moeda, o preço, em mil-réis, dos produtos importados se elevava. Como a oligarquia não queria nem ouvir falar em política de industrialização, o país seguia importando quase tudo o que consumia. Portanto, quem acabava pagando a conta da política de manutenção dos lucros do café através da desvalorização cambial era o povo, assolado por uma inclemente carestia.

Em 1901, a produção nacional de café atingiu 16,3 milhões de sacas, enquanto o consumo mundial era de apenas 15 milhões. O problema tornava-se mais grave.

Em 1906, uma nova política foi inaugurada, através do Convênio de Taubaté. O governo paulista – secundariamente os de Minas e Rio -, com o aval do governo federal, contrairia empréstimos junto aos bancos ingleses e norte-americanos para comprar e estocar café, de modo a que a oferta excessiva do produto não acarretasse a redução dos preços.

O resultado era previsível: estoques invendáveis se acumulariam e os bancos não abririam mão de receber seus empréstimos. Para atendê-los o governo acabaria promovendo a socialização dos prejuízos, drenando os recursos do conjunto da sociedade.

Batizada de política de valorização do café, esse expediente arquitetado para garantir lucros à oligarquia cafeeira e ao sistema financeiro internacional, às custas da expropriação de todos os demais setores da sociedade, perdurou até a Revolução de 1930, convivendo, inclusive, em vários períodos com a desvalorização cambial.

Tal situação se refletiria diretamente sobre o sistema político. Na impossibilidade de mantê-la através de regras minimamente democráticas, seus beneficiários transformaram o processo eleitoral num grosseiro cambalacho.

Além do voto a bico de pena – aberto e não secreto – que propiciava toda a sorte de pressões, intimidação e encabrestamento dos eleitores, o sistema de apuração alterava escandalosamente o veredicto das urnas.

A designação de todos os componentes das mesas eleitorais era de responsabilidade exclusiva dos presidentes das casa legislativas. Depois de colhidos e contados, os votos eram incinerados. Sobravam as atas, cuja validação e totalização também estavam sob estrito controle dos presidentes dos legislativos.

Quando isso não se mostrava suficiente para alijar os candidatos oposicionistas, as comissões de verificação de poderes das Assembleias Estaduais e da Câmara Federal, nomeadas pelo mesmo critério, se encarregavam da degola: termo pelo qual celebrizou-se o ato de transformar candidatos derrotados em vencedores e vice-versa.

Tal sistema eleitoral, fraudulento até a medula, garantia às elites estaduais o controle sobre sua província e à oligarquia paulista, coadjuvada pela mineira, o controle sobre a máquina federal.

Só uma única vez, em 1910, uma cisão entre paulistas e mineiros produziu a brecha que levou à presidência da República um candidato fora do eixo café-com-leite, o marechal Hermes da Fonseca.

 

3. As Eleições de 1922

A pressão que a oligarquia cafeeira mantinha sobre a sociedade acabaria explodindo nas eleições presidenciais de 1º de março de 1922. Os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia lançariam Nilo Peçanha, contra o candidato oficial Artur Bernardes – a quem a voz do povo, revelando notável antipatia, logo carimbaria com os apelidos de Seu Mé e Rolinha.

O Clube Militar, presidido pelo marechal Hermes, coloca-se frontalmente contra a candidatura situacionista. Empurrado para um papel cada vez mais subalterno, desprestigiado pelos baixos soldos, mas cioso do papel preponderante que desempenhara na Abolição e na constituição da República, o Exército via com olhos cada vez mais críticos o rumo tomado pelo país.

A gota d’ água viria no dia 9 de outubro de 1921. O jornal carioca Correio da Manhã publica em primeira página uma carta de Bernardes dirigida a seu principal colaborador, o senador Raul Soares, lavrada nos seguintes termos:

“Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados, e de tudo que nessa orgia se passou… esse canalha precisa de uma  reprimenda para entrar na disciplina. Veja se o Epitácio mostra agora sua apregoada energia, punindo severamente esses ousados… A situação não admite contemporizações; os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões”.

Os protestos de Bernardes quanto à falsidade do documento não encontraram eco na oficialidade. Uma longa, desgastante e acirrada polêmica sobre a autenticidade da carta arrastou-se durante meses. A ideia que ficou pode ser resumida numa afirmação que revela o grau de radicalização atingido pelo confronto:

Se não escreveu, foi o que disse. E se não disse, é o que pensa.

Nos últimos dias de dezembro, o General Ximeno de Villeroy, depois de condenar com veemência a “desbragada delapidação dos cofres públicos” e a “onda de lama que ameaça submergir a República” lança um dramático apelo:

“Republicanos! Até quando sofreremos tanta ignomínia e abjeção? Uni-vos que é chegada a hora de fazermos justiça implacável! Discípulos de Benjamin Constant! Soldados de Floriano e Deodoro, que vos importam os insultos de um politiqueiro de baixa estofa?”

A campanha da Reação Republicava, nome pelo qual a chapa oposicionista evocava o compromisso com a causa pública contra o processo de privatização do Estado promovido pela oligarquia cafeeira, empolga as ruas. Era absolutamente nítido o contraste entre a vibração produzida pelas duas campanhas. No carnaval, cantada e tocada até a exaustão, apesar de proibida pela polícia, a marchinha de Freire Júnior e Careca, Ai Seu Mé, renovava as esperanças:

 Ai, Seu Mé!

Ai, Seu Mé!

Lá no Palácio das Águias, olé!

Não hás de pôr o pé!

               

4. Tribunal de Honra

Encerrada a votação, Nilo Peçanha começa a articular, com o apoio do Clube Militar, a criação de um Tribunal de Honra, para garantir a “apuração isenta” do pleito. Em favor da tese, é invocado o exemplo norte-americano das eleições presidenciais de 1876. 

Ao substituir a comissão de verificação de poderes do Congresso, o Tribunal de Honra poria em cheque o principal trunfo da oligarquia para produzir a vitória de seu candidato: a fraude.

A proposta ganha força na sociedade. Os pronunciamentos militares se sucedem. O presidente Epitácio Pessoa tenta contê-los através de atos administrativos, transferências, punições, o que só faz elevar a temperatura.

A oficialidade jovem revela-se cada vez menos disposta a aceitar que as eleições terminem num novo cambalacho. Os tenentes sonhavam com um Brasil livre dos grilhões da monocultura cafeeira, renovado pelo voto secreto, educação pública, industrialização, moralidade administrativa, erradicação da miséria. A fraude eleitoral significava o contrário. Uma ideia vai ganhando força nos quartéis: Tribunal de Honra ou Revolução!

No mês de abril, são presos quatro aviadores navais, sob a acusação de planejarem o bombardeio do trem presidencial, que transportaria Epitácio Pessoa em sua viagem de Petrópolis para o Rio de Janeiro, no dia 28.

Na noite de 1º de maio, o presidente realiza uma reunião de emergência, no Palácio do Catete, com os mentores da candidatura oficial, para avaliar a conveniência de, como resposta ao Tribunal de Honra, promover uma reforma no regimento do Congresso, para que a comissão de verificação de poderes ganhasse o caráter de comissão de arbitragem constituída por três representantes de cada candidato. Seria uma proposta de acordo, que contava com o apoio de Nilo Peçanha.

Os ministros da Guerra e da Marinha alertam para o estado agudo e explosivo da crise militar e consideram o acordo uma boa saída.

O senador Raul Soares – já eleito para substituir Bernardes no governo mineiro – contesta a ideia. Argumenta que tal comissão, por ser paritária, terminaria seu trabalho num impasse, não reconhecendo nenhum dos dois candidatos, o que acarretaria a anulação do pleito.

A bem da verdade, a renúncia dos candidatos e a convocação de uma nova eleição não estavam fora das cogitações de Epitácio. Em carta a Bernardes, Raul Soares relata o diálogo que manteve com o presidente:

–  O Artur Bernardes – é a minha convicção – não se aguentará 24 horas no Catete… É possível que aqui ainda obtenha certo apoio da guarnição, porque está organizada com o máximo de cuidado… Mas e os estados? As deposição de governadores partidários de Bernardes se sucederão. Não ficará um só governo de pé e o Bernardes não terá forças para restabelecer a ordem. Teremos, pois, a revolução, a anarquia e o mais que se pode prever.

– De acordo com a sua exposição só há uma solução: a desistência do Artur…

– Exatamente, a desistência de Bernades seria a solução.

O senador paulista Álvaro de Carvalho, que havia apoiado a tese do entendimento, comunica, no encerramento da reunião, o recado que Washington Luís lhe transmitira através de uma ligação telefônica: São Paulo não aceita nem reforma, nem renúncia, nem qualquer alteração das regras eleitorais. O pronunciamento do governador reafirmava os termos da nota do Partido Republicano Paulista, porta voz da oligarquia cafeeira, contra as tentativas de apaziguamento realizadas antes da eleição: 

“São Paulo, como sempre, assumiu atitude definida e definitiva”.

O assunto estava encerrado. No dia 7 de junho, o Congresso proclamaria a vitória de Bernardes. Porém, até a posse, em 15 de novembro, muita água ainda haveria de rolar por baixo e por cima da ponte.

 

5. O Plano Revolucionário

Fechadas as portas à saída política, a solução revolucionária passa ao centro da cena. O plano que vai sendo arquitetado tem por objetivo estratégico a obtenção do controle sobre 1ª Divisão de Infantaria, sediada na Vila Militar, para, com base nela, organizar uma coluna revolucionária que marchasse até o Catete e depusesse o governo.

Os revoltosos acreditavam que com apoio no 1º Regimento de Infantaria e em unidades situadas nas proximidades – Escola Militar de Realengo, Batalhão Ferroviário, Batalhão de Engenharia, Escola de Aviação – seria possível forçar o 2º Regimento de Infantaria e demais corpos da 1ª Divisão de Infantaria a se integrarem ao movimento.

Obtido esse resultado, o marechal Hermes, escoltado por um piquete do 15º Regimento de Cavalaria, assumiria o comando da coluna que iniciaria o seu deslocamento pelo eixo ferroviário da Central do Brasil. Na região do Méier, previa-se um confronto com as tropas da Marinha, do 1º Regimento de Cavalaria Divisionária, da 3ª Companhia de Metralhadoras Pesadas e do 3º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar.

A vanguarda revolucionária suportaria o choque, enquanto a retaguarda, tomando o rumo de Jacarepaguá, se deslocaria pela estrada do Pica-Pau, em direção à Tijuca, visando a Zona Sul, por onde avançaria sob a cobertura dos canhões do Forte Copacabana e da Fortaleza de Santa Cruz, também previamente sublevados, para alcançar o Palácio das Águias, bairro do Catete, sede do governo federal.

Hermes da Fonseca Filho, biógrafo do marechal, apresenta a seguinte avaliação:

“Esse plano não deixava de ser bem estruturado, pois enquanto o combate no Méier empolgasse as atenções do governo, levando-o a concentrar ali todos os reforços, o ataque revolucionário diversionista pelo lado Tijuca-Copacabana-Gávea desenvolver-se-ia a toque de caixa”.

O plano previa também a sublevação da guarnição federal de Mato Grosso, chefiada por seu comandante, o general Clodoaldo da Fonseca.

 

6. O Fechamento do Clube Militar 

Durante o mês de junho, a tensão política se eleva. O governador de Pernambuco protesta contra a intervenção de Epitácio Pessoa nas eleições daquele estado. O presidente alega inocência. O incidente, porém, desencadeia uma escalada que culmina no levante de 5 de Julho.

Uma concorrida Assembleia do Clube Militar, realizada no dia 28 de junho, aprova por aclamação o telegrama do marechal Hermes ao coronel Jaime Pessoa, comandante militar de Recife, recriminando a intervenção do Exército nos incidentes contra o governo estadual, provocados pelos Pessoa de Queirós, sobrinhos de Epitácio. Os jornais de Recife estampam o texto do documento. A violência em curso já havia provocado a morte do dentista Tomás Coelho, com um inconfundível tiro de fuzil mauser que convulsionara o estado.

Diz o telegrama:

“O Clube Militar está contristado pela situação angustiosa em que se encontra o Estado de Pernambuco, narrada por fontes insuspeitas que dão ao nosso glorioso Exército a odiosa posição de algoz do povo Pernambucano. Venho fraternalmente lembrar-vos que mediteis nos termos dos artigos 6º e 14º da Constituição, para isentardes o vosso nome e o da nobre classe à que pertencemos da maldição de nossos patrícios… Não esqueçais que as situações políticas passam e o Exército fica”.

Em sua resposta, o coronel Pessoa, também parente de Epitácio, comete a imprevidência de sublinhar que estava agindo por ordens superiores – “outro não é nem será meu intuito que obediência à lei e autoridades constituídas”. A indiscrição expõe e deixa furioso o presidente da República.

No dia seguinte, o coronel é forçado a pedir demissão do comando da 6ª Região Militar. Epitácio incumbe também o ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, de interpelar o marechal Hermes sobre a autoria do telegrama que considera desrespeitoso à sua autoridade.

Em 1º de julho, o marechal e a diretoria do Clube Militar reafirmam sua responsabilidade sobre o telegrama. O governo anuncia, então, duas decisões explosivas. O fechamento do Clube Militar por seis meses, baseado na Lei Adolfo Gordo, que autorizava a interdição – a bem da moral pública – de casas de tavolagem e lenocínio, antros de vigaristas e rufiões, sociedades de cáftens e anarquistas. A outra seria uma medida disciplinar, sob a forma de repreensão, contra o marechal Hermes, que repele pronta e energicamente a punição dirigindo-se à Epitácio nos seguintes termos:

“Considerando que a minha alta patente e a condição de chefe do Exército nacional me conferem tacitamente o direito de aconselhar e encaminhar na senda honrosa, sempre trilhada pelas forças armadas, àqueles oficiais que porventura possam ser mal orientados… declaro à vossa excelência que não posso aceitar a injusta e ilegal pena que me foi imposta”..

No dia 2 de julho, Hermes preside a tormentosa Assembleia do Clube Militar, na qual o tenente Gwyer lança a dramática advertência: “estamos às portas da revolução”. Naquele momento, mais que desejo ou vaticínio, essa era a constatação de um fato.

 

7. Preparativos Finais

Condenando o decreto de suspensão do Clube e a repreensão ao marechal Hermes, o Correio da Manhã publica um editorial incendiário, no dia 3 de julho, onde  afirma:

“Afinal o crime do marechal Hermes e do Clube Militar foi o de terem em documento público aconselhado o respeito a Constituição… Não é preciso mais nada para saber que entramos num estado revolucionário da pior espécie, aquele em que é o agente da ordem que o provoca e entretém. O fechamento do Clube Militar toma o caráter de uma medida em que só se vê o fel que amarga as resoluções de pura vingança”..

O ultraje aos militares e oposicionistas em geral não ficaria sem resposta.

No bairro do Leme, o general Joaquim Inácio em reunião com cem revolucionários, civis e militares de todas as armas, que vinham há meses preparando o levante, fixa o seu início para uma hora da madrugada do dia 5. 

Um dos presentes à reunião era o tenente Antônio de Siqueira Campos, brilhante oficial do Forte Copacabana. Nascido numa fazenda de café, em Rio Claro, interior de São Paulo, leitor assíduo de textos sobre a história do Brasil e a revolução mexicana de Villa e Zapata, ocorrida na década anterior, Siqueira, com 24 anos de idade, seria o protagonista da epopeia que o transformaria no grande baluarte do Movimento Tenentista.

Das seis fortalezas que guarnecem a baía da Guanabara, Copacabana (1ª Bateria Isolada de Artilharia de Costa) era a mais moderna. Com suas cúpulas protegendo gigantescos canhões de 305 milímetros, o Forte Copacabana era o que dispunha de maior poder de fogo. Sua guarnição estava sob o comando do capitão Euclides Hermes, filho do marechal Hermes.

Os revolucionários contavam também como certa a adesão da Fortaleza de Santa Cruz (2º Regimento de Artilharia). As demais – Vigia, Laje, São João e Pico – dependeriam da evolução dos fatos. Mas Copacabana e Santa Cruz, pela localização e potência de fogo, eram as principais unidades de artilharia da Capital da Federal.

A 3 de julho, o Forte acelera os preparativos para a revolução. A despensa é abastecida com víveres para um mês; barricadas com centenas de sacos de areia são erguidas em pontos estratégicos; a guarda é reforçada. Siqueira Campos minara diversas áreas do terreno, desde o portão da guarda até o farol. Concentra-se, agora, em recuperar o holofote da unidade.

 

8. A Prisão do Marechal Hermes

Às 23h, por ordem do Presidente da República, o marechal Hermes é preso e recolhido ao 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. A afronta viria colocar mais lenha na fogueira, e sua libertação, ao meio-dia do dia 4, não detém a marcha dos acontecimentos.

A truculência empregada pela oligarquia cafeeira para sufocar o questionamento à fraude eleitoral que patrocinara voltava-se contra ela.

O líder das bancada fluminense, senador Irineu Machado, pronuncia inflamado discurso que conclui dizendo:

“Espero dos acontecimentos e da história os grandes dias em que arrancaremos desse pântano mefítico a nossa nacionalidade. Será essa, ainda uma vez, a obra  grandiosa do Exército”.

Também o líder da bancada gaúcha na Câmara Federal, deputado Otávio Rocha, não poupa adjetivos para incentivar a resposta revolucionária que está prestes a ser desencadeada:

“De joelhos, nunca. De pé e de frente eu encaro o ditador…  fiquem para todo e sempre malditos os que… tiveram a ilusão de que os césares eram eternos e o poderio da Terra o supremo bem”..

A única pessoa a quem foi permitido visitar o Marechal Hermes, durante a sua estada de dezessete horas na prisão, foi o ex-presidente Nilo Peçanha. A conversa foi reservada e não há relato sobre o que foi discutido. Porém o marechal Hermes não deixou o 3º Regimento de Infantaria com a mesma firmeza de propósitos que havia demonstrado até antão. Talvez porque Nilo de alguma forma o tenha feito entender que tanto ele quanto o governador Borges de Medeiros, que até então vinham apoiando seus pronunciamentos, consideravam inoportuno o recurso à insurreição naquele momento.

Borges formalizaria essa posição em manifesto publicado no dia 7, no jornal gaúcho A Federação:

“Nada mais absurdo nem mais condenável do que corrigir uma violência com outra violência”…

Declarando-se “solidário com os vencidos”, Nilo Peçanha empregaria seus últimos vinte meses de vida na defesa dos tenentes rebelados, e em conversações que conduziriam à eclosão de novo levante, na cidade de São Paulo, dando início à Revolução de 1924.

                 

9. O Forte Está Pronto

À noite, cerca de duzentos oficiais, praças e voluntários civis começam a cruzar os portões do Forte, para reforçar a sua guarnição. Às 22h toda uma bateria do Forte do Vigia, situado na outra extremidade da praia de Copacabana, bairro do Leme, integra-se nesse esforço. São 54 homens comandados pelo tenente Fernando Bruce.

Às 23h30 o general Bonifácio Gomes, comandante do 1º Distrito de Artilharia de Costa, chega ao Forte com ordem expressa de destituir o capitão Euclides Hermes do comando da unidade. Vem acompanhado do capitão José da Silva Barbosa, a quem pretende investir na função. Ambos são presos.

Uma companhia do 3º Regimento de Infantaria, que havia sido deslocada para apoiar a missão do general, é intimada a recuar. O tenente Mário Carpenter, que integra a companhia, confraterniza com os revoltosos e também adere ao levante.

À 1h15 de 5 de julho, um disparo para o céu anunciava o compromisso do Forte Copacabana com a revolução. Conforme o combinado, as outras fortalezas deveriam confirmar o apoio disparando também os seus canhões. A resposta é o silêncio.

Mas o Forte não se deixa impressionar. Seus canhões alvejam a desabitada ilha de Cotunduba. Depois começam os tiros para valer: os dois primeiros, dirigidos ao 3º Regimento de Infantaria e ao Forte do Vigia.

 

10. O Levante da Escola Militar

Às 23h do dia 4 teve início o levante da Escola Militar de Realengo. Por iniciativa do corpo de oficiais instrutores, composto por diversos protagonistas das futuras rebeliões tenentistas, entre os quais os tenentes Victor César da Cunha Cruz, Ricardo Hall, Caio de Albuquerque Lima, Edmundo Macedo Soares e Juarez Távora, cerca de 600 cadetes de várias armas entram em forma e começam a ser armados e municiados.

Patrulhas foram destacadas para vigiar a residência de oficiais sabidamente contrários ao movimento.

Foram detidos o comandante da Escola, general Monteiro de Barros, e um cadete que se recusou a participar do levante.

À meia-noite, sob o comando do coronel Xavier de Brito, diretor da Fábrica de Cartuchos de Realengo e veterano da campanha de Canudos, a Escola deslocou-se pela estrada São Pedro de Alcântara em direção à Vila Militar – a 10 quilômetros de distância. Antes de alcançar a parada de Magalhães Bastos,  um elemento de ligação trouxe a informação de que toda a tropa aquartelada na Vila estava de prontidão, e sob o completo controle dos oficiais governistas.

Cinquenta anos mais tarde, Juarez Távora descreveria o episódio, com as seguintes palavras:

“Soube-se mais tarde que apenas alguns elementos de uma Companhia do 1ºRegimento de Infantaria haviam sido sublevados por um dos seus oficiais,o tenente Frederico Cristiano Buiz….

Diante dessa grave situação, o comando da Escola deslocou a marcha da Coluna para ocupar posição no morro da Caixa d’Água, com bom domínio sobre toda a Vila  Militar… Ao clarear do dia 5, o comando da Escola determinou o disparo de alguns tiros de shranpnel da artilharia, sobre os quartéis da Vila… A reação não demorou… Por volta das 9h, a situação estava claramente definida; toda a tropa da Vila se movimentava contra a Escola. Entre os elementos desta já havia um morto – o cadete Fedorval Xavier Leal – e um outro ferido… Seria insensato e desumano prosseguir naquele duelo desigual… A retirada foi feita em ordem”.

                       

11. Malogra a insurreição

Na Vila Militar estava aquartelado o 1º Regimento de Infantaria, principal corpo de tropa a partir do qual os revolucionários pretendiam irradiar o levante às demais unidades da 1ª Divisão de Infantaria.

O comandante do regimento era o coronel Nestor Sezefredo Passos, oficial governista que, às 22h15 do dia 4, recebeu ordens para prender diversos oficiais que haviam tomado o trem na Estação Central com destino à Vila Militar. O coronel Sezefredo incumbiu o tenente-coronel Álvaro Mariante de organizar patrulhas para aprisionar os insurretos, antes que esses sublevassem o regimento.

Assim, quando desembarcaram na Vila Militar, foram presos o capitão Agenor Aguiar, os tenentes Aníbal Duarte, Leônidas Hermes da Fonseca e outros três revoltosos. Também num alojamento da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, conhecida como Baiúca, as patrulhas do tenente-coronel Mariante detiveram vários oficiais. Desse modo, mais de uma centena de revolucionários foi sendo detida, desarticulando o levante.

O tenente João Alberto Lins e Barros, que poucos anos mais tarde se converteria num destacado expoente do Movimento Tenentista, integrava, na época, o 1º Regimento de Artilharia Montada, sediado na Vila Militar. Eis o testemunho que apresenta sobre o seu malogrado batismo de fogo:

“No dia 4 de julho, durante a noite, todos nós, revolucionários, estávamos a postos para erguer a tropa ao primeiro sinal… Éramos poucos, dentro de um regimento considerado legalista e precisávamos de um apoio vindo de fora do quartel para fazer o levante… fomos presos com a impressão de que o movimento abortara. Só depois de transferidos de unidade, quando nada mais podíamos fazer, soubemos que a Escola  Militar e o Forte Copacabana estavam revoltados”.

À meia-noite, no cassino do 1º Regimento de Infantaria, estavam reunidos vários grupos de oficiais. Entre eles encontrava-se o 2º tenente Frederico Cristiano Buiz. Pouco antes da 1h, Buiz dirigiu-se à sua companhia, armou os praças e formou dois pelotões. O  primeiro recebeu a missão de guarnecer a frente do quartel. Com o outro sob seu comando, retornou ao cassino. O objetivo era prender o coronel Sezefredo e os oficiais governistas que ali se encontravam.

O cassino foi cercado. Irrompendo pela porta, pistola à mão, seguido por praças de armas embaladas, Buiz surpreendeu os oficiais, mas não conseguiu dominar a situação. Após um cerrado tiroteio, no qual foi mortalmente atingido o capitão José Barbosa Monteiro, Buiz acabou dominado. Falhara o levante do 1º Regimento de Infantaria.

Nas demais unidades o quadro não era alentador. O capitão Luís Gonzaga Borges conseguiu sublevar a Companhia de Pontoneiros do 1º Batalhão de Engenharia, mas não logrou assumir o controle da unidade. O tenente Luís Carlos Prestes, outro futuro vulto da história nacional, responsável pela rebelião no 1º Batalhão Ferroviário, contraíra tifo, no dia 13 de junho, ficando fora de combate. Na Escola de Aviação Militar, quando os pilotos e observadores se dirigiam para o campo, a fim de experimentar os motores das aeronaves, um batalhão governista ocupou os hangares, neutralizando a rebelião. Também na Escola de Sargentos de Infantaria, Fortaleza de Santa Cruz e 15º Regimento de Cavalaria, unidades cuja adesão era esperada, os oficiais revoltosos retraíram-se frente aos reveses iniciais.

Às 6h do dia 5, o marechal Hermes da Fonseca e o general Joaquim Inácio são presos num sítio, onde aguardavam contato com os comandantes das unidades rebeladas. O sítio de propriedade de um dos quatro filhos do marechal, o deputado Mário Hermes, ficava próximo à Vila Militar, nas imediações da estação ferroviária cujo nome lhe rendia homenagem – Marechal Hermes.

A Escola Militar ainda sustentava um desigual duelo de artilharia com as forças da Vila. Às 9h empreenderia a retirada, seguida da rendição ao meio-dia. Só no Forte Copacabana a bandeira da revolução seguia desfraldada.

A guarnição militar do Mato Grosso havia cumprido o compromisso de sublevar-se, concentrando em Três Lagoas, na fronteira paulista, a Divisão Provisória Libertadora, formada a partir das diversas unidades rebeladas. No entanto, surpreendida pela evolução desfavorável dos acontecimentos no Rio de Janeiro, permaneceu estacionada até a deposição das armas, em 13 de julho

 

12. Falam os Canhões

Na manhã do dia 5 os disparos do Forte continuam a atingir pontos da cidade, com uma precisão que alarmou as autoridades e assombrou os membros da Missão Militar Francesa.

Durante a fase de organização do levante, Siqueira Campos e outros oficiais do Copacabana haviam preparado cuidadosamente novas tabelas para o tiro de canhões, com redução de carga, para modificar a trajetória dos projéteis, encurtando seu raio de ação. Os cálculos foram revisados por um antigo professor de balística da Escola Militar. Com isso os canhões do Forte tornaram-se aptos a atingir alvos da cidade considerados invulneráveis.

Às 9h, o general Carneiro de Fontoura, chefe da 1ª Região Militar, nomeia o coronel Nepomuceno da Costa comandante das Forças de Assalto ao Forte Copacabana, e encaminha uma intimação à sua guarnição.

A resposta foi um disparo sobre o quartel-general situado no edifício do Ministério da Guerra, na praça Duque de Caxias. O tiro não foi preciso, atingiu os fundos do prédio da Light and Power e a casa número 216 da rua Barão de São Félix.

O ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, tomou então a iniciativa de telefonar para o Forte, a fim de protestar contra o bombardeio. Calógeras não era militar. Não percebeu que sua reclamação indicava com precisão a localização do alvo atingido. Com a informação prestada pelo ministro, os revolucionários prontamente refizeram os cálculos, ajustaram a pontaria e realizaram novo disparo. O impacto do obus destruiu parte da ala esquerda do Palácio da Guerra. Em seguida, mais dois tiros explodiram no pátio interno do prédio, onde tropas do Exército e da Marinha estavam estacionadas, espalhando morte e destruição. Rapidamente o quartel-general foi transferido para o Corpo de Bombeiros, do outro lado do Campo de Santana,  e,  em seguida,  para o quartel-auxiliar do Largo de Humaitá.

 

13. O Forte esta isolado

Às 4h da madrugada do dia 6, o capitão Euclides Hermes reúne todos os oficiais que participam da defesa do Forte e expõe claramente a situação vivida. O levante da Vila falhara. A Escola Militar tinha deposto as armas. O mesmo ocorrera com o 15º de Cavalaria. A fortaleza de Santa Cruz não havia aderido. O marechal Hermes e o general Joaquim Inácio estavam presos. O Forte Copacabana era a única unidade que se mantinha rebelada. Estava completamente isolado. Poderia resistir por mais tempo, em virtude de seu imenso poder de fogo, mas as chances de vitória eram inteiramente nulas.

O capitão prosseguiu declarando que, em vista da precariedade da situação, não se considerava no direito de sacrificar seus companheiros. Facultava, portanto, a cada um, a opção pela resistência ou pela retirada.

Desse modo, dos 301 homens que iniciaram a insurreição do Forte Copacabana, restaram apenas 29 – cinco oficiais, dois sargentos, um cabo, dezesseis praças e cinco voluntários civis. Os demais deixaram as armas e se retiraram.

 

14. Contra-Ataque Mortífero

Pouco tempo depois, a Marinha inicia uma ofensiva contra o Forte.

Os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, escoltados pelo destróier Paraná, cruzaram a barra. Os revolucionários são atacados pelo fogo dos canhões de 305 milímetros do São Paulo. O impacto das granadas chega a estremecer o solo. Ao organizarem o contra-ataque, os 29 defensores constatam que o motor que movimenta seus canhões de 305 milímetros está inutilizado. Então, manobrando a braço os canhões de 190 milímetros, a guarnição responde ao fogo.

O São Paulo é atingido. O tiro disparado pelo tenente Siqueira Campos explodira na torre de comando. A esquadra recua para uma distância segura, e não volta a entrar em ação. O Forte faz novos disparos contra a Ilha das Cobras, o Forte do Vigia, o Palácio do Catete.

 

15. A Prisão do Capitão Euclides

 

Sensível às 72 toneladas de granadas de artilharia que abarrotavam os paióis da fortaleza, o ministro da Guerra propõe uma conversação de paz, aceita pelos insurretos.

O major Egídio Moreira de Castro e o tenente-aviador Pacheco Chaves são enviados pelo governo. No momento em que o tenente Newton Prado cruza o portão para recebê-los, dois hidroaviões da Marinha sobrevoam o forte, bombardeando-o. A missão de paz degenera em conflito verbal e físico entre os embaixadores.

Indignado, o capitão Euclides Hermes toma o telefone e protesta. Calógeras desculpa-se, argumenta que foi um engano: a Marinha não fora devidamente informada sobre a trégua. Lembrando as relações cordiais que mantinham até o início do levante, propõe um encontro pessoal entre ambos. A oferta é aceita pelos revolucionários.

Depois de passar o comando do Forte ao tenente Siqueira Campos, o capitão Euclides, a bordo do táxi 231, transpõe as linhas governistas sem ser molestado. Chegando à residência de seu pai, em Botafogo, telefona a Calógeras, que pede para aguardá-lo. Mas quem comparece é o capitão Marcolino Fagundes que lhe dá voz de prisão e o conduz ao Palácio do Catete. Lá, visivelmente embaraçado, Calógeras explica que: por decisão posterior do Presidente da República era forçado a prendê-lo, devendo também o Forte render-se incondicionalmente.

Às 12h30, o capitão Euclides, por telefone, comunica a Siqueira Campos o resultado da missão de paz:

Estou preso, Siqueira. Eles traíram a palavra de honra dada… Eles querem que os oficiais se rendam, que deixem o forte, marchando desarmados,  um a  um, até se entregarem às tropas legais.

As mais próximas se encontravam na Praça Serzedelo Correia, a mais de    um quilômetro de distância. A oligarquia cafeeira pretendia liquidar a fatura com uma lição exemplar e definitiva. Em troca de suas vidas, à guarnição rebelada não bastaria render-se. A humilhação era o preço a ser pago por haverem levado a luta até aquele ponto.

           

16. A Decisão que Mudou a História

Na sala de comando reúnem-se os quatro últimos oficiais que se mantinham em armas pela revolução. Todos eram tenentes. Nenhum tinha mais de 25 anos. Dois eram membros da guarnição original do Forte Copacabana: Siqueira Campos e Newton Prado. Outros dois haviam se juntado a ela no momento da sublevação: Mário Carpenter e Eduardo Gomes. Reinava uma paz temporária, pois o dispositivo legal recebera ordens de aguardar a rendição.

A decisão que sai da reunião é ousada, surpreendente, e muda o rumo da história, transformando a derrota do levante numa esmagadora vitória moral dos revolucionários.

Ao invés de rendição, a resolução é a de marcharem contra a tropa governamental, armados de fuzis e revólveres. Se fossem atacados, reagiriam. Se não, a parada seria no Palácio do Catete. O ânimo retorna e os preparativos são realizados em ritmo febril.

Siqueira pede ao sergipano Manoel Ananias dos Santos, o soldado 108, e ao praça José Olympio, que desçam a bandeira do Forte. Dividiu-a em 29 pedaços, dando um a cada revolucionário presente – cujos nomes foram gravados a prego e bala numa das paredes internas da fortaleza. O último guardou-o consigo, para o capitão Euclides. Todos se municiaram, enchendo os bolsos com cartuchos. Ninguém deixou de levar menos de 200 tiros. Os oficiais barbearam-se, ajustaram seus uniformes, e desfizeram-se das insígnias do grau militar. Naquele momento, eram todos soldados.

Às 13h30, antes de transpor as barricadas, Siqueira fala aos companheiros:

Eles têm que atirar primeiro… Não se dá nenhum tiro antes… Deixa eu conversar com quem chegar primeiro… Agora, se derem um tiro na gente, não precisam esperar ordem de fogo

           

17. Arrancada Final

Marcharam pela rua e a calçada que margeia a praia de Copacabana. A avenida Atlântica, na época, tinha poucas construções, mas não estava deserta.  No caminho falavam aos moradores sobre seus motivos. Lenços brancos eram acenados das janelas. De longe, oficiais e praças do 3º Regimento de Infantaria lhes gritavam que se rendessem. Foram assim até o hotel Londres, onde pararam para beber água. Já haviam percorrido mais de um quilômetro.

Ao reiniciar a marcha, Siqueira verifica que alguns haviam desistido. Mas isso já não tinha importância.

Antes de atingirem a rua Barroso, o jovem engenheiro gaúcho Otávio Correia se aproximou do grupo. Dirigindo-se a Siqueira, a quem conhecera na casa da escritora Rosalina Coelho Lisboa, falou:

Vou com vocês Antônio, preciso de uma arma…

Newton Prado entregou-lhe o fuzil que trazia e sacou a parabellum, que passou a empunhar na mão direita.

Ao chegarem na esquina da rua Barroso, hoje Siqueira Campos, uma surpresa. O tenente Segadas Viana, comandante de um dos três pelotões da 6ª Companhia do 3º Regimento de Infantaria, surge diante deles.

A 6ª Companhia, estacionada na praça Serzedelo Correia, havia recebido ordens de preparar-se para deter a marcha dos revolucionários, enquanto se providenciavam mais reforços. Seu comandante, o capitão Pedro Crisol Fernandes Brasil, dispôs então um pelotão na rua Barroso, comandado pelo tenente Segadas; outro na rua seguinte, Hilário de Gouveia, chefiado pelo tenente Miquelina; e o terceiro manteve na praça, sob comando do tenente Sawen.

Algum tempo depois, o tenente Segadas recebeu ordem de descer pela rua Barroso, em direção à praia, para observar a progressão dos reforços. Tendo atrás de si, a uns 30 metros, seu pelotão, logo que chegou na esquina deparou-se com os insurretos. Ao verem o tenente legalista, três soldados  tentaram dominá-lo. Ele sacou a arma, mas o tenente revolucionário Mário Carpenter, seu colega no 3º Regimento, ordenou aos praças que se detivessem. Enquanto isso, os 40 membros do pelotão apontavam suas armas contra os revoltosos e vice-versa.

Nessas circunstâncias iniciou-se um diálogo. Siqueira e Carpenter exortavam Segadas a acompanhá-los e este procurava fazer com que se rendessem. Esgotados os argumentos, o destacamento revolucionário retomou a marcha, mas, vindo da Hilário de Gouveia, surge o capitão Brasil que acaba dando a ordem de “fogo” ao pelotão do tenente Segadas. Um soldado obedeceu e disparou. A bala matou pelas costas o soldado Pedro Ferreira de Melo. Siqueira virou-se e devolveu o tiro. O combate começou.

 

18. Combate na Praia

Depois de sustentarem o tiroteio por alguns minutos em pé, na rua, os revolucionários pularam para a areia e se entrincheiraram por trás do paredão da calçada da avenida Atlântica. A esta altura, eram 15. Ali iriam se manter por mais de uma hora enfrentando o fogo combinado do Exército, da Polícia Militar e do Batalhão Naval.

Os pelotões do tenente Segadas e Miquelina, da 6ª Companhia, sofrem imediatamente várias baixas, inclusive seis mortes.

As forças legalistas acorrem em massa à praça Serzedelo Correia, em socorro aos pelotões do 3º Regimento de Infantaria. Até mesmo a tropa de guarda do Palácio do Catete foi deslocada para essa finalidade. Ao todo, 4.000 homens foram mobilizados contra os 18 do Forte.

Embora a desproporção entre as forças fosse esmagadora, o paredão representava excepcional proteção aos revolucionários. E a motivação com que pelejavam dava às suas ações a objetividade que faltava às forças governistas.

O voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior, que sobreviveu ao combate, relatou:

“O tiroteio foi renhido, mas atirávamos com calma e precisamente… as forças do governo avançavam lentamente”.

O primeiro revolucionário atingido pela fuzilaria foi Eduardo Gomes, o único que não sofreu um ferimento mortal. Teve o fêmur partido por uma bala, mas seguiu combatendo. Depois tombou o gaúcho Otávio Correia, com um tiro no coração.

Considerando a dificuldade de sufocar os revoltosos, foi cogitada a carga de baionetas. Os oficiais, no entanto, recusaram-se a empregá-la contra aqueles que, mesmo na condição de inimigos, lutavam tão corajosamente. Que se rendessem ou fossem mortos a tiros, nunca estripados.

A luta prosseguiu, até que a munição dos rebeldes se esgotou. Já havia caído o sargento José Pinto de Oliveira, com uma bala na fronte. O tenente Mário Carpenter, atingido no tórax, mergulhara na inconsciência. Estavam feridos também os praças Hildebrando da Silva Nunes e Manoel Antônio dos Reis – corneteiro, cujos toques de clarim vibravam duros golpes no moral das tropas governistas.

Siqueira Campos – com um ferimento na mão esquerda – e o tenente Newton Prado – baleado no abdome e na perna – ainda guardavam a última bala em seus revólveres. Aos demais combatentes já não restava nenhuma.

 

19. Retirada dos Praças

O tenente Siqueira Campos ordena, então, aos praças e voluntários civis, que que cada qual tome um rumo, mas não se deixem prender.

Dois conseguem fazê-lo com êxito.

O soldado 108, Manoel Ananias dos Santos, respirou fundo, saltou para cima do paredão e desviando-se das balas atravessou a avenida em busca de abrigo. “Os legalistas deram uma rajada contra mim, mas não acertaram”, conta ele, quarenta e dois anos mais tarde ao jornalista Glauco Carneiro, da revista O Cruzeiro. “Consegui alcançar e pular o  muro de uma casa… havia no  jardim uma corda estendida com vários calções de banho.” Disfarçado de banhista, ele conseguiu atravessar o túnel, por volta das 16h30, chegando em seguida à residência de um sargento, na rua Mena Barreto, Botafogo.

O voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior escapou pelo mar:

“Esgotada a minha munição, ordenou o tenente Siqueira Campos que eu me retirasse… Atirei o meu fuzil ao mar e logo adiante nadei até um lugar abrigado, onde alguns operários humanitários me vestiram à paisana”.

Preso, ao tentar romper o cerco, o soldado João Anastácio Falcão de Melo fez um significativo relato do acontecimento:

“Quando não tinha mais munição fui avançado, com um bruto ferimento na perna, mas com um punhal na mão. Me pegaram logo adiante e um oficial legalista me chamou de bandido. Aquilo moeu-me a alma. Lutara de peito descoberto contra gente armada em número muito superior e aquele homem a chamar-me de bandido! Depois, sendo da Paraíba, de uma terra em que  o  inimigo é seguro pelo nariz e degolado a frio, eu nunca tinha matado ninguém até aquele dia”.

O inquérito policial registra também as prisões dos soldados Francisco Ribeiro de Freitas, Benedito José do Nascimento, Heitor Ventura da Silva e do civil Lourival Moreira da Silva. Em seus depoimentos eles admitem que estavam na praia no momento dos combates, porém negam terem feito uso das armas que portavam.

 

20. A Última Bala

Como os revolucionários não respondiam mais aos disparos, o capitão Brasil e o tenente Segadas Viana suspenderam o fogo e iniciaram um avanço lento e cuidadoso em sua direção. Já tinham caminhado cerca de vinte metros quando, repentinamente, um contingente de 100 homens do 3º Batalhão de Infantaria da Policia Militar, sob o comando do coronel Tertuliano Potiguara, sai da rua Barroso, em veículos de transporte apelidados de viuvinhas. Em alta velocidade, chegam ao local onde se encontram Siqueira Campos e seus companheiros.

Calar baioneta! Avançar! Foi a ordem de Potiguara.

Debaixo de uma gritaria infernal os atacantes se precipitam contra uma fortaleza sem muralhas guarnecida por mortos e feridos. Mas a surpresa ainda os espera.

A última bala do tenente Newton Prado é certeira, derrubando para sempre o atacante mais afoito. Siqueira aguarda até o último instante para disparar a sua, atingindo na boca o sargento Lindolfo Garcia Godinho que lhe enterrara a baioneta no fígado.

Levantem os vivos! Os vivos levantem! – uivam os comandados de Potiguara, tomados de histérico frenesi.

Não há quem os possa atender.

Junto ao corpo inerte do tenente Mário Carpenter jaz o seu quinhão da bandeira do Forte. Nele está escrito:

“Forte Copacabana – 6 de julho de 1922

Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia…minha vida”.

 

21. Epílogo

O jornal Gazeta de Notícias foi o primeiro a dar a notícia de que o número de heróis que participaram da saga foi de 18. Não seria a primeira nem a última vez em que o rigor histórico haveria de ceder lugar à lenda. Cantado em verso e  prosa, o feito dos 18 do Forte incendiou corações e mentes e ganhou a força do mito.

Apesar de mortalmente ferido, Siqueira Campos sobreviveu. Em breve estaria comprovando que não fora precipitado o juízo expresso pelo escritor Coelho Neto, no artigo Arrancada Radiante. Mesmo opondo-se aos objetivos do levante, ele conclui:

“Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?”

A oligarquia cafeeira perdera as condições de exercer tranqüilamente o seu poder autocrático. Mais radicais e mais amplas, novas revoluções se sucederiam até a sua derrocada em 1930.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído da Hora do Povo

Euclides, a saga de Canudos e a formação do povo brasileiro

 

Já abordamos anteriormente, aqui nesta página (v. HP, 08/09/2010), a obra de Euclides da Cunha, ao introduzir o seu texto sobre a Independência do Brasil.

Resta agora dizer que a sua obra mais conhecida, “Os Sertões”, justamente famosa, além de ser um prodígio literário, tentava ir muito além da historiografia e sociologia da sua época, na compreensão do nosso país e de sua formação.

Sucintamente: o domínio da oligarquia cafeeira na República Velha produzira, desde cedo, uma estranha historiografia, para a qual o Brasil era a consequência de uma conta de somar: ao território concedido aos portugueses pelo papa Alexandre VI (o notório Rodrigo Bórgia) no Tratado de Tordesilhas, os bandeirantes adicionaram o resto do país. As famílias da oligarquia, segundo seu principal ideólogo, Júlio de Mesquita Filho, eram descendentes dos bandeirantes. Mas não dos bandeirantes reais – que se constituíam em bandos de mestiços que nem falavam português, mas o nheengatu, a língua geral tupi compilada pelos jesuítas, ou a “língua geral paulista”, formada a partir do tupi-guarani específico dos tupinambás.

Porém, segundo os arautos da oligarquia, os bandeirantes teriam sido nobres portugueses da melhor estirpe, portanto as raízes das famílias oligárquicas estariam em Portugal, na corte de D. Manuel, o Venturoso, ou de D. João I, mestre D’Avis.

Toda essa construção ideológica, além de falsa, era ridícula. Sobretudo não se entendia, nela, porque o Brasil deveria ser um país independente. Mas era assim a concepção dominante nos primeiros anos da República, até que a Revolução de 30 terminasse de vez com essa comédia.

Alguns autores, no entanto, se opuseram na própria época às falsificações dessa historiografia de ilusões reacionárias. Todo o esforço de Capistrano de Abreu para localizar a origem da nossa civilização na grande curva do São Francisco – “na grande curva traçada a Nordeste por ele antes de se lançar no oceano“, como escreveu em“Capítulos de História Colonial” (1907) – é uma polêmica não somente com o historiador-mor do II Império (o visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen), mas também com a historiografia, dita republicana, da oligarquia cafeeira.

No entanto, o cearense Capistrano de Abreu também tinha um lado reacionário que impediu sua influência de ir além de certos limites: o sinal mais agudo disso foi sua recusa a reconhecer importância na Inconfidência Mineira e na figura de Tiradentes, que, em seu principal livro, justamente sobre a história colonial, passam sem menção.

Para que se faça inteira justiça, esta não foi sempre a posição de Capistrano. Em seu “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”(1878), ele ataca o então recém-falecido historiador favorito de Pedro II, exatamente nesses termos: “A falta de espírito plástico e simpático — eis o maior defeito do Visconde de Porto Seguro. A História do Brasil não se lhe afigurava um todo solidário e coerente. Os pródromos da nossa emancipação política, os ensaios de afirmação nacional que por vezes percorriam as fibras populares, encontram-no severo e até prevenido. Para ele, — a Conjuração Mineira é uma cabeçada e um conluio; a Conjuração Baiana de João de Deus, um cataclisma de que rende graças à Providência por nos ter livrado; a Revolução Pernambucana de 1817, uma grande calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de inteligência estreita, ou de caráter pouco elevado. Sem D. Pedro a independência seria ilegal, ilegítima, subversiva, digna da forca ou do fuzil. Juiz de Tiradentes e Gonzaga, ele não teria hesitado em assinar a mesma sentença que o desembargador Diniz e seus colegas” (cf. Capistrano de Abreu, “Ensaios e Estudos (Crítica e História) 1ª série”, SCA, Briguiet, 1931, pág. 138).

“Os Sertões”, de Euclides da Cunha, inscreve-se dentro desta tradição de conhecer e procurar o Brasil naquilo que lhe é mais próprio e legítimo – o seu povo – e não em fantasias de falsa nobreza. Não importa muito que o aparato teórico seja algo inadequado para a tarefa ou, até mesmo, que a consciência do autor seja algo confusa. Há momentos em que Euclides é mais notável pelo que conclui através do sentimento que da teoria, que fica bem atrás desse sentimento. Um excelente exemplo é o seu próprio prefácio:

“O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou extintas.

“Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que lhes não permite a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.

“A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável ‘força motriz da História’ que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.

“A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disso, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica — o tempo.

“Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.

“E foi, na significação integral da palavra, um crime.

“Denunciemo-lo.”

Pela sua importância, começamos hoje a publicação dos trechos finais de “Os Sertões”. Esperemos que sirva de estímulo aos leitores, especialmente aos mais jovens, para que empreendam a leitura de toda a obra. O livro de Euclides, aliás, é um destes que melhor é lido quando de trás para a frente. O motivo é esclarecido pelo próprio autor, que, quando publicou a obra, achou o acontecimento histórico algo desatualizado – daí as duas introduções que fez ao tema: “A terra” e “O homem”.

Pareceria que, nisso, Euclides se equivocou. No entanto, a campanha de Canudos só não foi esquecida por causa de “Os Sertões”. Basta comparar com a difusa memória que temos de um acontecimento semelhante, mas que não teve ainda um grande autor a consagrá-lo: a revolta do Contestado, em Santa Catarina.

Por último, uma palavra sobre as dificuldades para estabelecer o texto: para nossa surpresa, as várias edições que consultamos de “Os Sertões” apresentavam diferenças visíveis entre si – palavras que foram substituídas, principalmente.

No entanto, Euclides é notável por seu estilo. Como Flaubert, ele tinha a opinião de que a literatura é uma luta constante contra o lugar-comum. Para autores desse tipo, não existem sinônimos: somente a palavra justa (“mot juste”, como chamam os franceses), o vocábulo insubstituível em cada contexto, a cada momento, a cada trecho da obra – o que exige, às vezes, um certo esforço do leitor, mas um esforço recompensador.

Logo, decidimos nos orientar pela 3ª edição, corrigida pelo próprio autor e publicada em 1905 por Laemmert & Companhia. Usamos um exemplar digitalizado dessa edição, pertencente à coleção Brasilianas, da USP, proveniente da biblioteca José Mindlin. O problema é que isso demandou uma extensa correção ortográfica. Fizemos o trabalho que nos foi possível. Se algo escapou, que nos perdoem os leitores.

 

CARLOS LOPES

 

EUCLIDES DA CUNHA

 

Reunidos a 30 de setembro os principais chefes militares, concertaram nos dispositivos do recontro para o dia imediato. E, de acordo com os lineamentos do plano adotado, naquele mesmo dia à noite mobilizaram-se as unidades do combate, ocupando, assim, de véspera, as posições para a investida [NOTA DE EUCLIDES:Segundo os mapas dos batalhões havia, no dia 30 de Setembro, 5.871 homens sob as armas].

O assalto seria iniciado por duas brigadas, a 3ª e 6ª, dos coronéis Dantas Barreto e João César Sampaio, a primeira endurada por três meses de contínuos recontros e a última, recém-vinda, de combatentes que ansiavam a medir-se com os jagunços. Aquela deixou, então, a sua antiga posição na linha negra, sendo substituída por três batalhões, 9º, 22º e 34º, e, contramarchando para a direita, seguiu rumo à Fazenda Velha, de onde juntamente com a outra, formada dos 29º, 39º e 4º batalhões, se moveu até estacionar à retaguarda e flancos da igreja nova, objetivo central do acometimento.

Completariam este movimento primordial outros, secundários e supletivos: no momento da carga, o 26º de linha, o 5º da Bahia e ala direita do batalhão de S. Paulo, tomariam rapidamente posições junto à barranca esquerda do Vaza-Barris, à ourela da praça, onde se conservariam até nova ordem. À sua retaguarda se estenderiam em apoio os dois corpos do Pará, prontos a substituírem-nos, ou a reforçarem-nos, segundo as eventualidades do combate. De sorte que este, iniciado à retaguarda e aos flancos da igreja, iria a pouco e pouco, deslocando-se para a linha de baionetas que se cosia à barranca lateral do rio, na face sul da praça.

Era, como se vê, um arrochar vigoroso – em que colaborariam os demais corpos guarnecendo as posições recém-conquistadas e o acampamento. Interviriam na ação à medida das circunstâncias, ou quando tombassem diante das trincheiras e das barrancas as chusmas de inimigos repulsados.

Sobre tudo isto – preliminar preparatória e indispensável – um bombardeio firme, em que entrariam todos os canhões do sítio, batendo por espaço de uma hora a estreita área a expugnar-se. Somente depois que eles emudecessem, arremeteriam as brigadas assaltantes, de baionetas caladas, sem fazerem fogo, salvo se o exigissem as circunstâncias. Em tal caso, porém, devia ser feito na direção única da meridiana, a fim de não serem atingidos os batalhões jazentes nas posições próximas ao conflito. A 3ª brigada, ao toque geral partido do comando em chefe, de “infantaria avançar!”, seguiria a marche-marche, procurando o flanco esquerdo da igreja, junto ao qual se estenderia distante cento e cinquenta metros; enquanto dois batalhões da 6ª, o 29º e o 39º, investissem para a retaguarda daquela, e o 4º, transpondo também o Vaza-Barris, a acometesse pelo flanco direito. Os demais combatentes seriam, a não ser que o imprevisto determinasse ulteriores combinações, simples espectadores da ação.

 

O ASSALTO

E no amanhecer de 1º de outubro começou o canhoneio.

Convergia sobre o núcleo reduzido dos últimos casebres, partindo de longo semicírculo de dois quilômetros, das baterias próximas ao acampamento até ao redente extremo, da outra banda, onde findava a estrada do Cambaio. Durou quarenta e oito minutos apenas, mas foi esmagador. As pontarias estavam feitas de véspera e não havia errar o alvo imóvel.

Dava-se, além disto, a última lição à rebeldia impenitente. Era preciso que, francamente desbravado o chão para o assalto, não sobreviessem mais surpresas dolorosas e ele se executasse, de pronto, fulminante e implacável, com os entraves únicos de um passo de cargas sobre ruínas. Fizeram-se as ruínas.

Via-se a transmutação do trecho torturado: tetos em desabamentos, prensando, certo, os que se lhes acolhiam por baixo, nos cômodos estreitos; tabiques esboroando, voando em estilhas e terrões, arrombados; e aqui, ali, em começo dispersos e logo depois ligando rapidamente, sarjando de flamas a poeira dos escombros, novos incêndios, de súbito deflagrando.

Por cima – toldada a manhã luminosa dos sertões – uma rede vibrante de parábolas.

Não havia perder-se uma granada única. Batiam nas cimalhas rotas das igrejas, explodindo em estilhas, ou saltando em ricochetes largos, para diante, sobre o santuário e a latada; arrebentavam nos ares; arrebentavam sobre a praça; arrebentavam sobre os colmos, esfarelando as coberturas de barro; entravam, arrebentando, pelos colmos dentro; basculhavam os becos enredados, revolvendo-lhes os ciscalhos; e revolviam, de ponta à ponta, inflexivelmente, batendo-o casa por casa, o ultimo segmento de Canudos. Não havia anteparos ou pontos desenfiados, que o resguardassem. O abrigo de um ângulo morto formado pelos muros da igreja nova, antepostos aos disparos da Sete de Setembro, era inteiramente destruído pelas trajetórias das baterias de leste e oeste. Os últimos jagunços tinham, intacta, fulminando-os, sem perda de uma esquirola de ferro, toda virulência daquele bombardeio impiedoso.

Entretanto não se notou um brado irreprimível de dor, um vulto qualquer, fugindo, ou a agitação mais breve. E quando, dado o ultimo disparo, cessou o fragor dos estampidos, a inexplicável quietude do casario fulminado fazia supor o arraial deserto, como se durante a noite a população houvesse, miraculosamente, fugido.

Houve um breve silencio. Vibrou um clarim no alto da Fazenda Velha.

Principiou o assalto.

Consoante as disposições anteriores, os batalhões abalaram, convergentes de três pontos, sobre a igreja nova. Seguiram, invisíveis, entre os casebres ou pelothalweg do Vaza-Barris. Um único, pela direção que trilhava, se destacou à contemplação do resto dos combatentes, o 4º de infantaria. Viram-no atravessar a marche-marche, de armas suspensas, o rio; transpô-lo; galgar a barranca e aparecer, alinhado e firme, à entrada da praça.

Era a primeira vez que ali chegavam lutadores numa atitude corretamente militar.

Feito este movimento, aquele corpo marchou heroicamente, avançando. Mas desarticulou-se, dados alguns passos, num desequilíbrio instantâneo. Baquearam alguns soldados, de bruços, como se se preparassem para atirar melhor por traz dos blocos da fachada destruída: viram-se outros, recuando, fora da fôrma; distanciarem – se, arremetendo para frente, outros; depois um enredado de baionetas entrebatendo-se, em grupos dispersos — erradios. E logo após, pelos ares ainda silenciosos, um estouro, lembrando arrebentamento de minas.

O jagunço despertava, como sempre, de improviso, surpreendedoramente, teatralmente e gloriosamente, renteando o passo aos agressores

Estacou o 4º, batido de chapa pelos adversários emboscados à ourela da praça; estacaram o 39° e o 29°, ante descargas à queima-roupa, rompentes das paredes ao fundo do santuário; e, pela sua esquerda, imobilizou-se a carga da brigada Dantas Barreto. Fortemente atacada por um dos flancos esta teve que avançar naquele sentido, abandonando a direção inicial da investida, o que foi imperfeitamente conseguido por três companhias dispersas, destacadas do grosso dos batalhões.

Modificavam-se todos os movimentos táticos preestabelecidos Ao invés da convergência sobre a igreja, as brigadas paravam ou fraccionavam-se embitesgando nas vielas

Durante cerca de uma hora os combatentes que contemplavam a refrega, no alto das colinas circunjacentes, nada mais distinguiram, fora da assonância crescente dos estampidos e brados longínquos — arruido confuso de onde expluíam, constantes, sucessivos, quase angustiosos, abafados clangores de cometas. Desapareceram as duas brigadas, embebidas de todo na casaria indistinta Mas contra o que era de esperar, os sertanejos permaneceram invisíveis e nem um só repontou, correndo para a praça. Atacados entretanto por três lados, deviam, recuando por ali e precipitando – se na fuga, ir de encontro ás baionetas das forças estacionadas nas linhas centrais e beiradas do rio. Era este, como vimos, o objetivo primordial do assalto. Falhou completamente. E o malogro valia por um revez. Porque os assaltantes, deparando resistências com que não contavam, paravam, entrincheiravam-se, e assumiram atitude de todo contraposta á missão que levavam. Quedaram na defensiva franca. Caíam-lhes em cima, desbordando dos casebres fumegantes e assaltando-os, os jagunços.

Apenas a igreja nova fora tomada e dentro da sua nave atravancada os soldados do 4º, trepados em montões de blocos e caliça, embaralhavam-se, em tumulto, com os das companhias pertencentes à 3ª brigada. Este sucesso, porém, verificara-se inútil. A um lado, estrepitava, feroz, continua, ensurdecedora, a trabucada dos guerrilheiros, que enchiam o santuário.

E a praça, onde devia aparecer o inimigo repelido, ferretoado à baioneta, permanecia deserta.

Era urgente ampliar o plano primitivo do recontro, lançando no conflito novos lucradores Do alto da Sete de Setembro partiu o sinal do comando em chefe, e logo depois o toque de avançada para o 5º da Bahia. Lançava-se o jagunço contra o jagunço.

O batalhão de sertanejos avançou. Não foi a investida militar, cadente, derivando a marche-marche, num ritmo seguro. Viu-se um como serpear rapidíssimo de baionetas ondulantes, desdobradas, de chofre, numa deflagração luminosa, traçando em segundos uma listra de lampejos desde o leito do rio até aos muros da igreja.

O mesmo avançar dos jagunços, célere, estonteador, escapante à trajetória retilínea, num colear indescritível. Não foi uma carga, foi um bote. Em momentos uma linha flexível, de aço, enleou o baluarte sagrado do inimigo. Coruscou um relâmpago de duzentas baionetas: o 5º desapareceu mergulhando nos escombros.

Mas a situação não mudou. Aquele fragmento revolto do arraial, para cuja expugnação pareciam excessivas duas brigadas, absorvera-as; absorvera o reforço enviado; ia absorver batalhões inteiros. Seguiram logo depois, o 34°, o 40°, o 30° e o 31° de infantaria. Duplicavam as forças assaltantes. Aumentou, num crescendo, o estrépito da batalha invisível; ampliaram-se os incêndios; ardeu toda a latada. Mas na espessa afumadura dos ares obumbrados, branqueava, embaixo, a praça absolutamente vazia.

Ao fim de três horas de combate, tinham-se mobilizado dois mil homens sem efeito algum. As nossas baixas avultavam. Além de grande numero de praças e oficiais de menor patente, baquearam mortos, logo pela manhã, o comandante do 29°, major Queiroz, e o da 5ª brigada, tenente-coronel Tupy Ferreira Caldas.

A deste originara raro lance de bravura.

Os soldados do 30° idolatravam-no.

Era uma rara vocação militar. Irrequieto, nervoso e impulsivo, o seu temperamento casava-se bem à vertigem das cargas e à rudeza das casernas. Nesta campanha mesmo jogara varias vezes a vida. Fora o comandante da vanguarda a 18 de Julho de depois daquele dia saíra indene dos mais arriscados tiroteios. As balas tinham-no até então poupado arranhando-o, rendando-lhe o chapéu, amolgando-lhe a chapa do talim. A última fulminou-o. Entrou por um dos braços: soerguido para sustentar o binóculo com que contemplava o assalto, e traspassou-lhe o peito. Atirou-o em terra, instantaneamente, morto. O 30° procurou vingá-lo. Correu-lhe pelas fileiras um frêmito de pavor e de cólera, e depois transmontou de um pulo a tranqueira em que se abrigava. Embateu contra os casebres entrincheirados, de onde partira o projétil e arrojou-se a marche-marche, envesgando por uma viela em torcicolos. Não se ouviu um tiro. Soldados alvejados à queima roupa, caíam por terra rugindo enquanto os companheiros lhes passavam por cima esbarrando contra as portas, arrombando-as a coronhadas, penetrando os cômodos apertados, travando-se, lá dentro em pugilatos corpo a corpo.

Esta arremetida, porém, das mais temerárias que se fizeram em todo o decorrer da luta, como as demais, reduziu-se ao primeiro ímpeto. Sopeou-a a tenacidade incoercível dos jagunços. O 30° desfalcado, refluiu em desordem à posição primitiva.

Por toda a banda realizavam-se idênticos arremessos e idênticos recuos. O último estortegar dos vencidos quebrava a musculatura de ferro das brigadas.

Entretanto, pouco antes de nove horas, alentou-as a ilusão arrebatadora da vitória. Ao avançar um dos batalhões de reforço, um cadete do 7º cravara nas junturas das paredes estaladas da igreja a bandeira nacional. Ressoaram dezenas de cornetas e um viva à República saltou, retumbando, de milhares de peitos. Surpreendidos com o inopinado da manifestação, os sertanejos amorteceram e cessaram o tiroteio. E a praça, pela primeira vez, desbordou de combatentes. Muitos espectadores desceram, rápidos, as encostas. Desceram os três generais. Ao passarem pela baixada da linha negra, viram às encontroadas entre quatro praças, dois jagunços presos. Adiante e aos lados — agitando os chapéus, agitando as espadas e as espingardas, cruzando-se, correndo, esbarrando-se, abraçando-se, torvelinhando pelo largo – combatentes de todos os postos em delírios de brados e ovações estrepitosas.

Terminara afinal a luta crudelíssima.

Mas os generais seguiam com dificuldades, rompendo pela massa tumultuária e ruidosa, na direção da latada, quando, ao atingirem grande depósito de cal que a defrontava, perceberam surpreendidos, sobre as cabeças, zimbrando rijamente os ares, as balas.

O combate continuava. Esvaziou-se, de repente, a praça.

Foi uma vassourada.

E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos — os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela História, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços — sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros — a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte.

Impunham-se outras medidas. Ao adversário inamolgável as forças máximas da natureza, engenhadas à destruição e aos estragos. Tinham-nas, previdentes. Havia-se prefigurado aquele epílogo assombroso do drama. Um tenente, ajudante de ordens do comandante geral, fez conduzir do acampamento dezenas de bombas de dinamite. Era justo; era absolutamente imprescindível. Os sertanejos invertiam toda a psicologia da guerra: enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota.

Ademais entalhava-se o cerne de uma nacionalidade.

Atacava-se a fundo a rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite. Era uma consagração.

Cessaram as fuzilarias; e desceu sobre todas as linhas um grande silêncio de expectativa ansiosa… Logo depois correu um frêmito pela cercadura do sítio; espraiou-se pela periferia dilatada; passou, vibrátil, pelo acampamento; passou, num súbito estremeção, pelas baterias dos morros; e avassalou a redondeza, num tremolo vibrante de curvas sismais cruzando-se pelo solo. Tombaram os dentilhões despegados das igrejas; desaprumaram-se paredes, caindo; voaram tetos e tetos; tufou um cúmulos de poeira espessando a afumadura dos ares; e, dentre centenares de exclamações irreprimidas, de espanto, retumbou a atroada de explosões fortíssimas. Parecia tudo acabado. O último trecho de Canudos arrebentava todo.

Os batalhões, embolados pelos becos, fora da zona mortífera das traves e cumeeiras que zuniam, em estilhas, sulcando para toda a banda o espaço, aguardavam que se diluísse aquele bulcão de chamas e pó, para o derradeiro acontecimento.

Mas não o executaram. Houve ao contrário um recuo repentino. Batidos de descargas que não se compreendia como eram feitas daqueles braseiros e entulhos, os assaltantes acobertaram-se em todas as esquinas, esgueiraram-se pelas abas dos casebres e pularam, na maioria, para trás dos entrincheiramentos.

Adiante atordoava-os assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e imprecações, refletindo do mesmo passo o espanto, a dor, o exaspero e a cólera da multidão torturada que rugia e chorava. Via-se indistinto entre lumaréus um convulsivo pervagar de sombras: mulheres fugindo dos habitáculos em fogo, carregando ou arrastando crianças e entranhando-se, às carreiras, no mais fundo do casario; vultos desorientados, fugindo ao acaso para toda a banda; vultos escabujando por terra, vestes presas das chamas, ardendo; corpos esturrados, estorcidos, sob tições fumarentos… E, dominantes, sobre este cenário estupendo, esparsos, sem cuidarem de ocultar-se, saltando sobre os braseiros e aprumando-se sobre os colmos ainda erguidos, os últimos defensores do arraial. Ouviam-se as suas apóstrofes rudes, distinguiam-se vagamente os seus perfis revoluteando por dentro da fumarada; e por toda a parte, salteadamente, a dois passos das linhas de fogo, repontando, de improviso, fisionomias sinistras, laivadas de mascarras, bustos desnudos chamuscados, escoriados, embatendo-as, em assaltos temerários e doidos.

Vinham matar os adversários sobre as próprias trincheiras. Estes esmoreciam. Verificaram a inanidade do bombardeio, das cargas repetidas e do recurso extremo da dinamite, desanimavam. Perderam a unidade da ação e do comando. Os toques das cornetas contrabatiam-se, discordes, interferentes nos ares, sem que ninguém os entendesse. Não havia obedecê-los, variando as condições táticas a cada minuto e a cada passo. As seções de uma mesma companhia avançavam, recuavam ou imobilizavam-se; subdividiam-se em todas as esquinas; misturavam-se com as de outros corpos; embatiam com as casas ou contornavam-nas, ou dispersavam-se aliando-se a outros grupos e reeditando, dados alguns passos, as mesmas avançadas e os mesmos recuos, e a mesma dispersão. De sorte que, por fim, se agitavam em bandos desorientados, em que se amalgamavam praças de todos os batalhões.

Aproveitando este tumulto, os jagunços fuzilaram-nos a salvo e sem piedade. A breve trecho os combatentes, que não tinham o anteparo dos espaldões, acumularam-se às abas das vivendas ainda intactas, ou alongaram-se, distanciados, pelos becos da parte conquistada — evitando a zona perigosa. Esta, porém, alastrava-se. Baqueavam combatentes para além das trincheiras; caíam inteiramente fora da órbita flamejante do combate e, como nos maus dias da primeira semana do assédio, a mínima imprevidência e o mais rápido afastamento daqueles abrigos frágeis eram uma temeridade.

O capitão secretário do comando da 2ª coluna, Aguiar e Silva, ao passar por perto dele um pelotão em marcha, retirou-se por um instante do cunhal que o acobertava e, para animar o ataque, tirou entusiasticamente o chapéu, levantando um viva à República. Mas não pronunciou as últimas sílabas. Varou-o uma bala, em pleno peito, derrubando-o.

O comandante do 25º, major Henrique Severino, teve idêntico destino. Era uma alma belíssima, de valente. Viu em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços; aconchegou-a do peito – criando com um gesto carinhoso o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz – e salvou-a.

Mas expusera se. Baqueou, malferido, falecendo poucas horas depois.

E assim por diante. O combate transformara-se em tortura inaturável para os dois antagonistas.

As nossas baixas avultavam. Os espectadores, atestando os mirantes acasamatados da lombada anteposta ao acampamento, avaliavam-nas pela lúgubre procissão de andores, padiolas e redes que lhes passava de permeio, subindo. Saía da sanga, embaixo; derivava vagarosa na ascensão contornando em desvios as casas por ali espalhadas; galgava o alto e prosseguia, descendo para o hospital de sangue, onde, à uma hora da tarde, já haviam chegado cerca de trezentos vitimados.

Mas aquela alpendrada de couro, cobrindo a reentrância abrigada entre colinas, não os continha. Os feridos entulhavam-na; desbordavam para as abas das encostas envolventes, ao sol, sobre as pedras; e arrastavam-se, disputando a sombra das barrancas, até à farmácia anexa e pavilhão dos médicos, por onde se cruzavam, correndo, enfermeiros e médicos diminutos demais para os satisfazer a todos. Ao fundo o barracão, arrimados aos cotovelos, de bruços, os antigos doentes, e feridos dos dias anteriores, olhavam assustados para os novos sócios de infortúnio. A um lado, sobre o chão duro, corpos inteiriçados francamente batidos pelo sol, jaziam os cadáveres de alguns oficiais, o tenente-coronel Tupy, o major Queiroz, os alferes Raposo, Neville, Carvalho e outros.

Soldados ofegantes e suarentos entravam e saíam intermitentemente, arcados sob padiolas. Despejavam-nas, volvendo, prestes, naquela azáfama fúnebre que ameaçava prolongar-se pelo dia todo. Porque até aquela hora a situação não melhorara. Persistia indecisa senão agravada, a réplica feroz dos adversários.

Insistentes, imprimindo no tumulto a nota de uma monotonia cruel, reproduziam-se em todas as linhas os toques das cornetas, determinando as cargas; e estas se realizavam, sucessivas, rápidas e impetuosas – pelotões, batalhões, brigadas, vagas de metal e flamas, fulgurando, rolando, arrebentando de encontro a represas intransponíveis.

As bombas de dinamite (foram arrojadas noventa nesse dia) estouravam de momento em momento, mas com absoluto insucesso. Adicionaram-se-lhes outros expedientes: latas de querosene derramadas por toda a orla da casaria, avivando os incêndios.

Este recurso bárbaro, porém, por sua vez, resultara inútil.

Por fim, às duas horas da tarde, se paralisou inteiramente o assalto; cessaram de todo as cargas; e no ânimo dos sitiantes, em franca defensiva nas posições primitivas, doíam desapontamentos de derrota. Defluindo da baixada, a leste da praça, continuou largo tempo a romaria penosa dos feridos, em busca do hospital de sangue. Em padiolas, em redes, ou suspensos pelos braços entre os companheiros, ascendiam exaustos, titubeantes, arrimando-se e cosendo-se às casas. E sobre eles, sobre as colinas, varrendo-as, sobre os morros artilhados, varejando-os, sobre o acampamento todo, ao cair da tarde, ao anoitecer e durante a noite toda, visando todos os pontos da periferia do assédio, sibilando em todos os tons pelos ares, da zona reduzidíssima onde se acantonavam os jagunços, irrompiam as balas.

O combate fora cruento e estéril. Desfalcara-nos de quinhentos e sessenta e sete lutadores, sem resultado apreciável.

Como sempre, a vibração forte da batalha amortecera a pouco e pouco, atenuando-se em tiroteios escassos; e toda a noite passou, velando-a, a tropa combalida, na expectativa cruel de novos recontros, novos sacrifícios inúteis e novos esforços malogrados.

Entretanto a situação dos sertanejos piorara. Tinham, pela perda da igreja nova, perdido as últimas cacimbas e ardiam em braseiros enormes, progredindo-lhes em roda e avançando de três pontos – do norte, leste e oeste – obstringindo-os no último reduto.

Mas à madrugada de 2 os triunfadores fatigados foram despertados com uma descarga desafiadora e firme.

 

DIÁRIO

Nesse dia…

Translademos, sem lhes alterar uma linha, as últimas notas de um “Diário”, escritas à medida que se desenrolavam os acontecimentos.

“… Chegam à uma hora em grande número novos prisioneiros — sintoma claro de enfraquecimento entre os rebeldes. Eram esperados. Agitara-se pouco depois do meio-dia uma bandeira branca no centro dos últimos casebres e os ataques cessaram imediatamente do nosso lado. Rendiam-se, afinal. Entretanto não soaram os clarins. Súbito silêncio avassalou as linhas e o acampamento.

A bandeira, um trapo nervosamente agitado, desapareceu; e, logo depois, dois sertanejos, saindo de um atravancamento impenetrável, se apresentaram ao comandante de um dos batalhões. Foram para logo conduzidos à presença do comandante em chefe, na comissão de engenharia.

Um deles era Antônio, o Beatinho, acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido e magro; ereto o busto adelgaçado. Levantava, com altivez de resignado, a fronte. A barba rala e curta emoldurava-lhe o rosto pequeno animado de olhos inteligentes e límpidos. Vestia camisa de azulão e, a exemplo do chefe da grei, arrimava se a um bordão a que se esteava, andando. Veio com outro companheiro, entre algumas praças, encalçado de um séquito de curiosos.

Ao chegar à presença do general, tirou tranquilamente o gorro azul, de listras e borlas brancas, de linho; e quedou, correto, esperando a primeira palavra do triunfador.

Não foi perdida uma sílaba única do diálogo prontamente travado.

– “Quem é você ?

– “Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente não tem mais opinião e não aguenta mais.

E rodava lentamente o gorro nas mãos lançando sobre circunstantes um olhar sereno.

– O Bem. E o Conselheiro ?

– O nosso bom Conselheiro está no céu …

Explicou então que aquele, agravando-se antigo ferimento, que recebera de um estilhaço de granada atingindo-o quando em certa ocasião passava da igreja para o Santuário, morrera a 22 de setembro, de uma disenteria, uma caminheira — expressão horrendamente cômica que pôs repentinamente um burburinho de risos irreprimidos naquele lance doloroso e grave.

O Beato não os percebeu. Fingiu, talvez, não os perceber. Quedou imóvel, face impenetrável e tranquila, de frecha sobre o general, o olhar a um tempo humilde e firme. O diálogo prosseguiu:

– E os homens não estão dispostos a se entregarem ?

– Batalhei com uma porção deles para virem e não vieram porque há um bando lá que não querem. São de muita opinião. Mas não aguentam mais. Quase tudo mete a cabeça no chão de necessidade. Quase tudo está seco de sede…

– E não podes trazê-los ?

– Posso não. Eles estavam em tempo de me atirar quando saí…

– Já viu quanta gente aí está, toda bem armada e bem disposta?

– Eu fiquei espantado!

A resposta foi sincera, ou admiravelmente calculada. O rosto do altareiro desmanchou-se numa expressão incisiva e rápida, de espanto.

– Pois bem. A sua gente não pode resistir, nem fugir. Volte para lá e diga aos homens que se entreguem. Não morrerão. Garanto-lhes a vida. Serão entregues ao governo da República. E diga-lhes que o governo da República é bom para todos os brasileiros. Que se entreguem. Mas sem condições; não aceito a mais pequena condição.

O Beatinho, porém, recusava-se, obstinado, à missão. Temia os próprios companheiros. Apresentava as melhores razões para não ir.

Nessa ocasião interveio o outro prisioneiro, que até então permanecera mudo.

Viu-se, pela primeira vez, um jagunço bem nutrido e destacando-se do tipo uniforme dos sertanejos. Chamava-se Bernabé José de Carvalho e era um chefe de segunda linha.

Tinha o tipo flamengo, lembrando talvez, o que não é exagerada conjectura, a ascendência de holandeses que tão largos anos por aqueles territórios do norte trataram com o indígena.

Brilhavam-lhe, varonis, os olhos azuis e grandes; o cabelo alourado revestia-lhe, basto, a cabeça chata e enérgica.

Apresentou logo como credencial o mostrar-se duma linhagem superior. Não era um matuto largado. Era casado com uma sobrinha do capitão Pedro Celeste, de Bom Conselho.

Depois contraveio, num desgarre desabusado, insistindo com o Beatinho recalcitrante:

– Vamos! Homem! Vamos embora… Eu falo uma fala com eles… deixe tudo comigo. Vamos!

E foram.

O efeito da comissão, porém, foi de todo em todo inesperado. O Beatinho voltou, passada uma hora, seguido de umas trezentas mulheres e crianças e meia dúzia de velhos imprestáveis.

Parecia que os jagunços realizavam com maestria sem par o seu último ardil. Com efeito, viam-se libertos daquela multidão inútil, concorrente aos escassos recursos que acaso possuíam, e podiam, agora, mais folgadamente delongar o combate.

O Beatinho dera — quem sabe ? — um golpe de mestre. Consumado diplomata, do mesmo passo poupara às chamas e às balas tantos entes miserandos e aliviara o resto dos companheiros daqueles trambolhos prejudiciais.

A crítica dos acontecimentos indica que aquilo foi, talvez, uma cilada. Nem a exclui a circunstância de ter voltado o asceta ardiloso que a engenhara. Era uma condição favorável, adrede e astuciosamente aventurada como prova iniludível da boa fé com que agira. Mas mesmo que assim não considerassem, alentava-o uma aspiração de todo admissível: fazer o último sacrifício em prol da crença comum: devotar-se, volvendo ao acampamento, à sagração do martírio, que desejava, porventura, ardentemente, com o misticismo doentio de um iluminado. Não há interpretar de outra maneira o fato, esclarecido, ademais, pelo proceder do outro parlamentar, que não voltara, permanecendo entre os lutadores, instruindo-os sem dúvida da disposição das forças sitiantes.

A entrada dos prisioneiros foi comovedora. Vinha solene, na frente, o Beatinho, teso o torso desfibrado, olhos presos no chão, e com o passo cadente e tardo exercitado desde muito nas lentas procissões que compartira. O longo cajado oscilava-lhe à mão direita, isocronamente, feito enorme batuta, compassando a marcha verdadeiramente fúnebre. A um de fundo, a fila extensa, tracejando ondulada curva pelo pendor da colina, seguia na direção do acampamento, passando ao lado do quartel da primeira coluna e acumulando-se, cem metros adiante, em repugnante congérie de corpos mumificados e em andrajos.

Os combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial, in extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o das trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse tão numerosa ainda dos casebres fulminados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os arcabouços esmirrados e sujos, cujos mulambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros — a vitória tão longamente anelada decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana — do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos.

Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador domado: mulheres, sem número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos afastados pelos braços, passando; crianças, sem número de crianças; velhos, sem número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de cera, bustos dobrados, andar cambaleante.

Pormenorizava-se. Um velho absolutamente alquebrado, soerguido por alguns companheiros, perturbava o cortejo. Vinha contrafeito. Forçava por se livrar e volver atrás os passos. Voltava-se, braços trêmulos e agitados, para o arraial onde deixara certo os filhos robustos, na última refrega. E chorava. Era o único que chorava. Os demais prosseguiam impassíveis. Rígidos anciãos, aquele desfecho cruento, culminando-lhes a velhice, era um episódio somenos entre os transes da vida nos sertões. Alguns respeitosamente se desbarretavam ao passarem pelos grupos de curiosos. Destacou-se, por momentos, um. Octogenário, não se lhe dobrava o tronco. Marchava devagar e de quando em quando parava. Fitava por instantes a igreja e reatava a marcha; para estacar outra vez, dados alguns passos, voltar-se lançando novo olhar ao templo arruinado e prosseguir, intermitentemente, à medida que se escoavam pelos seus dedos as contas de um rosário. Rezava. Era um crente. Aguardava talvez ainda o grande milagre prometido.

Alguns enfermos graves vinham carregados. Caídos logo aos primeiros passos, passavam, suspensos pelas pernas e pelos braços, entre quatro praças. Não gemiam, não estortegavam; lá se iam imóveis e mudos, olhos muito abertos e muito fixos, feito mortos. Aos lados, desorientadamente, procurando os pais que ali estavam entre os bandos ou lá embaixo mortos, adolescentes franzinos, chorando, clamando, correndo. Os menores vinham às costas dos soldados agarrados às grenhas despenteadas há três meses daqueles valentes que havia meia hora ainda jogavam a vida nas trincheiras e ali estavam, agora, resolvendo desastradamente, canhestras amas-secas, o problema difícil de carregar uma criança. Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra — a velha mais hedionda talvez destes sertões — a única que alevantava a cabeça espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo despidas, emaranhados, os cabelos brancos e cheios de terra — rompia, em andar sacudido pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E essa criança aterrava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada. A face direita sorria. E espantava aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz.

Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha. Lá se foi com o seu andar agitante, de atáxica, seguindo a extensa fila de infelizes.

Esta parara adiante, a um lado das tendas do esquadrão de cavalaria, represando entre as quatro linhas de um quadrado. Via-se, então, pela primeira vez, em globo, a população de Canudos; e, à parte as variantes impressas pelo sofrer diversamente suportado, sobressaía um traço de uniformidade rara nas linhas fisionômicas mais características. Raro um branco ou negro puro. Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita de três raças.

Predominava o pardo lídimo, misto de cafre, português e tapuia — faces bronzeadas, cabelos corredios e duros ou anelados, troncos deselegantes; e aqui, e ali, um perfil corretíssimo recordando o elemento superior da mestiçagem. Em roda, vitoriosos, díspares e desunidos, o branco, o negro, o cafuz e o mulato proteiformes com todas as gradações da cor. Um contraste: a raça forte e íntegra abatida dentro de um quadrado de mestiços indefinidos e pusilânimes. Quebrara-a de todo a luta. Humilhava-se. Do ajuntamento miserando partiam pedidos flébeis e lamurientos de esmola. Devoravam-na a fome e a sede de muitos dias”.

 

ÚLTIMA TRÉGUA

O comandante geral concedera naquele mesmo dia aos últimos rebeldes um armistício de poucas horas. Mas este só teve o efeito contraproducente de retirar do trecho combatido aqueles prisioneiros inúteis.

Ao cair da tarde estavam desafogados os jagunços.

Deixaram que se esgotasse a trégua. E quando lhes anunciou o termo uma intimativa severa de dois tiros de pólvora seca seguidos logo de outro, de bala rasa, estenderam sobre os sitiantes uma descarga divergente e firme.

A noite de 2 entrou, ruidosamente, sulcada de tiroteios vivos.

 

VI

Não há relatar o que houve a 3 e a 4.

A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas.

Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.

E lutavam com relativa vantagem ainda.

Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39º, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperem pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os.

Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes o arrojo o horror de um quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada. E salteava-os a atonia do assombro…

 

FIM

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem.

Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que repontassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante — e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história ?

Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

 

Texto extraído do Jornal Hora do Povo – Março de 2013

A Grande Marcha

 

Série histórica sobre a 1ª Divisão Revolucionária, que empreendeu sua marcha pelo Brasil em 1924, contra o assalto da oligarquia cafeeira paulista, que submetia o Brasil ao imperialismo inglês e ao atraso. O período de lutas culminou com a Revolução de 1930, que levou Getúlio à presidência, colocando na ordem do dia a reconstrução e o desenvolvimento

 

Durante os 21 meses em que percorreu uma extensão de 25.000 km, através de 10 estados brasileiros, a 1ª Divisão Revolucionária foi duramente combatida pelo governo que mobilizou contra ela um vasto aparato militar composto por forças regulares do Exército, polícias militares de quinze estados, jagunços e cangaceiros.

Tendo ocupado, ao longo da marcha, mais de 500 cidades e vilas, os revolucionários encerraram a campanha, em fevereiro de 1927, cercados por uma aura de invencibilidade e prestígio que feriu de morte o poder da oligarquia cafeeira paulista.

Esta conseguiria manter ainda, por mais alguns anos, o seu domínio sobre a vida nacional. Porém, a nova onda revolucionária que se ergueria  em 1930, sob o comando de Getúlio Vargas, levaria de roldão o velho regime baseado na submissão aos interesses do imperialismo inglês, na política de valorização artificial do café – às custas do empobrecimento dos demais setores da sociedade – e na imposição de um sistema eleitoral notoriamente fraudulento.

A eclosão da primeira rebelião inspirada pelos ideais de voto secreto, ensino público, industrialização, direitos trabalhistas, independência econômica e moralidade administrativa ocorreria no Rio de Janeiro, em 1922.

A segunda onda revolucionária teria início em julho de 1924, quando as guarnições do Exército da capital paulista e parte do contingente da Polícia Militar, com o apoio da população civil, assumiram o controle da cidade. Ainda no mês de julho, as forças revolucionárias tomam Aracaju e Manaus, mas são sufocadas no mês seguinte.

Em São Paulo, após 22 dias de combates que culminaram num, devastador e indiscriminado bombardeio promovido pelos representantes da oligarquia contra a população da cidade, os revolucionários se retiram para o interior. Cruzando o estado, atingem o rio Paraná, de onde seguem para o sul, assumindo, no mês de setembro, o controle da faixa oeste do território paranaense, de Guaíra a Foz do Iguaçu.

A 29 de outubro, revoltam-se as guarnições do Exército das cidades gaúchas de Santo Ângelo, São Luis Gonzaga das Missões, São Borja, Uruguaiana e Alegrete, em ação conjugada com as milícias dos generais maragatos Honório Lemes e Zeca Neto.

Em abril de 1925, as forças revolucionárias gaúchas atingem Foz do Iguaçu, reunindo-se às forças paulistas.

Decidem então constituir a 1ª Divisão Revolucionária e prosseguir a luta cruzando uma faixa do território paraguaio, para atingir o estado do Mato Grosso, iniciando assim a Grande Marcha através dos sertões brasileiros.

Com um efetivo de 1.500 homens, armados de fuzis e revólveres, 600 animais de carga, sela e tração, duas seções de metralhadoras pesadas e uma bateria de artilharia, a 1ª Divisão Revolucionária era comandada pelo general Miguel Costa, sendo formada pelas brigadas Rio Grande e São Paulo. A primeira comandada pelo coronel Luís Carlos Prestes e a segunda pelo tenente-coronel Juarez Távora.

Alguns oficiais revolucionários que participaram da fase anterior da luta emigraram para o Paraguai, entre eles o marechal Isidoro Dias, o general Bernardo Padilha, os tenentes-coronéis Estilac Leal e João Cabanas, o major Felinto Muller, os capitães Gwyer de Azevedo e Ricardo Holl. A maioria, com a saúde abalada, não se encontrava em condições de enfrentar os rigores da nova campanha.

 

PRIMEIRAS VITÓRIAS

Penetrando em solo paraguaio, a 29 de abril de 1925, o grosso da 1ª Divisão Revolucionária retornou ao Brasil, no dia 1º de maio, após percorrer 125 km, através de uma picada ligando Puerto Adela à fazenda Jacareí, situada na fralda brasileira da serra de Maracaju.

Marchando na vanguarda, o regimento João Alberto, um dos quatro destacamentos que compunha a Brigada Rio Grande, atingiu o estado do Mato Grosso, a 30 de abril, atravessando, na mesma data, o rio Iguatemi, na localidade de Porto Lindo. Poucos dias depois, o batalhão Virgílio dos Santos, daBrigada São Paulo, ocupou Porto Felicidade, e, em seguida, a vila de Campanário, sede da empresa Mate Laranjeira.

O povoamento dos ricos campos do sul mato-grossense tivera seu início com a chegada das forças do maragato Juca Tigre, em 1894. Formara-se, desde então, uma ininterrupta corrente migratória procedente do Rio Grande do Sul.

A farta quantidade de gado, mate e outros recursos ali existentes faziam a felicidade da tropa revolucionária que voltava a sentir-se como peixe dentro d’água.                 

Os combates não tardaram, tendo se iniciado no dia 6 de maio, conforme relato do comandante do 2º Regimento da Brigada Rio Grande, tenente-coronel João Alberto:

“Em Panchita, a meio caminho de Ponta Porã, fui acometido, quando almoçava, por um forte destacamento do Exército – que vinha ao nosso encontro em caminhões. O combate foi duro, mas obtivemos brilhante vitória. Prendemos 20 caminhões e fizemos mais de 100 prisioneiros.

Usando esses caminhões avançamos naquela mesma noite até a ponte do Amambaí que encontramos destruída. O adversário manobrava na defensiva. Passados dois dias… prosseguimos para Ponta Porã”.

A guarnição dessa cidade, situada na fronteira paraguaia, era constituída do 11º Regimento de Cavalaria Independente, reforçado por um batalhão do 3º Regimento de Infantaria, recém-chegado, e por cerca de 100 jagunços do coronel Mário Gonçalves. O efetivo total era de 800 homens. A tropa do governo, no entanto, recebeu  ordens do QG para retirar-se, indo entrincheirar-se em Cabeceira do Apa, encruzilhada de estradas no caminho para Campo Grande – sede da 4ª Região Militar, no estado.

No dia 8, o batalhão Cordeiro de Farias, da Brigada Rio Grande,  ocupou Porto Carlos, na margem do rio Paraná, como flanco-guarda direita, batendo-se com o inimigo durante o dia e a noite de 10 de maio, impedindo que ele avançasse contra o grosso da força insurgente. 

No dia 11, quando o general Miguel Costa e o Estado Maior da 1ª Divisão Revolucionária chegaram a Ponta Porã, os regimentos de João Alberto e Siqueira Campos já haviam deixado a cidade, em perseguição às tropas governistas. Estas haviam recebido reforço procedente de Campo Grande, sob o comando do major Bertoldo Klinger, dispondo de muitas metralhadoras e farta munição.

Em carta datada de 14 de maio, João Alberto relata a Prestes o desenrolar dessa batalha:

“Durante a aproximação fui tiroteado quatro léguas aquém do Apa… Atropelei; e, na madrugada de hoje, ataquei as posições inimigas. Até às 15 horas combati fortemente e a coluna inimiga retirou quase completamente, deixando uma retaguarda de 100 homens de infantaria e 60 de cavalaria. Mas notando que meu fogo estava fraco… a cavalaria inimiga atacou o flanco esquerdo que debandou… forçando-me a recuar meia légua, depois do que consegui opor resistência.

Às 16 horas, chegou o Siqueira que avançou um pelotão, fazendo parar a cavalaria inimiga. Fiz prisioneiro o 1º tenente Sayão que me informou… que a concentração do governo será em Campo Grande onde esperam, a cada momento, 1.000 homens da polícia gaúcha”.

Em marcha na direção de Campo Grande, no dia 19 de maio, o esquadrão de cavalaria do capitão Ari Salgado Freire dispersou uma tropa de jagunços, pouco além da margem esquerda do Rio Dourados.

A 4 de junho, a 1ª Divisão Revolucionária, tendo contornado as forças governistas entrincheiradas em Campo Grande, atingia a localidade de Patrimônio de Jaguari, situada 50 km ao norte daquela cidade.                        

Seguindo na direção nordeste, os revolucionários visavam atingir a cidade de Mineiros, no estado de Goiás. Ao alcançá-la teriam concluído um percurso de 2.000 km em território mato-grossense, dos quais já haviam coberto a metade.

Os canhões da artilharia, que os acompanhavam desde a insurreição na capital paulista, em julho de 1924, haviam sido cuidadosamente ocultos, em terras da fazenda Jacareí, nas proximidades da fronteira paraguaia, no dia 15 de maio. O ritmo veloz que se impunha a marcha impossibilitava o seu transporte.

 

ASSALTO AO 3º RI 

Na madrugada do dia 1º de maio, antes do amanhecer, enquanto a coluna revolucionária realiza sua penetração no território do Mato Grosso, os capitães Carlos da Costa Leite, Leopoldo Néri da Fonseca e o tenente Jansen de Melo, integrando um grupo de 20 homens, entre militares e civis, tentam tomar de surpresa o 3º Regimento de Infantaria, situado na Praia Vermelha, Rio de Janeiro.

O tenente, há pouco mais de um mês, fugira do Hospital Central do Exército, onde se encontrava detido por haver participado da Revolução de 1922. Costa Leite, Leopoldo Néri e outros oficiais também haviam escapado do presídio militar da Ilha Grande.

Conforme o plano dos revoltosos, depois de dominado o 3º RI, seriam tomadas de assalto as  fortalezas de São João e Copacabana. Em seguida, um destacamento marcharia ao palácio do Catete, para prender o presidente da República. O vice-presidente Estácio Coimbra seria detido na praça José de Alencar por um comando liderado pelo deputado gaúcho Batista Luzardo.

O plano, porém, fracassa. Apesar dos atacantes terem conseguido penetrar no quartel, a guarda, comandada pelo capitão Aquino Correia, reage. O tenente Jansen, ferido mortalmente, é resgatado por seus companheiros, que se retiram em meio a cerrado tiroteio. Eles transportam também, para a Casa de Saúde Pedro Ernesto, o cabo Cecílio, outro revolucionário ferido no confronto.

O tenente Jansen de Melo, com hemorragia intensa, morre antes de receber os primeiros socorros.

O cabo Cecílio, depois de medicado, é transferido para o Hospital Central do Exército. Para lá também fora removido o capitão Aquino Correia, cuja reação frustrara o levante.                     

O único revolucionário preso não fornece à polícia informações sobre a rede que planificara e realizara o assalto. Os deputados Batista Luzardo, Adolfo Bergamini e Azevedo Lima retomam normalmente suas atividade parlamentares. O médico Pedro Ernesto, outro civil que participara do levante, também prossegue em liberdade.

No dia 18 de julho, o capitão Costa Leite participa de novo embate com as forças do governo, rompendo a tiros um cerco, no bairro do Riachuelo. O alvo era a residência do capitão Cristóvão Barcelos, na rua Flack, onde ambos estavam reunidos com o estudante de engenharia João Beckeuser. Os três escaparam ilesos.

A ação conspirativa na capital da República não daria descanso a Artur Bernardes, até o último dia de sua permanência no palácio das Águias. Anos mais tarde, ele desabafaria:

“Como presidente da República não fui mais que um chefe de Polícia”.

 

A reestruturação da 1ª Divisão Revolucionária, feita por iniciativa do general Miguel Costa, para integrar as tropas gaúchas e paulistas, dotou-a de maior mobilidade e unidade de comando, e vigorou até o final da Grande Marcha, em 1927

 

No dia 10 de junho, as duas brigadas que compunham a 1ª Divisão Revolucionáriase reuniram na fazenda Cilada, nas proximidades da cidade de Camapuã, para reorganizar-se.

O comandante da Brigada São Paulo, tenente-coronel Juarez Távora, revela em suas Memórias que:

“Enquanto grande parte da Brigada Rio Grande estava montada, a quase totalidade da Brigada São Paulo se deslocava a pé, e, por isso mesmo, tinha dificuldade de afastar-se do itinerário da marcha, para potrear animais de sela, nas estâncias circunvizinhas de seu itinerário de marcha”.

Por iniciativa do general Miguel Costa, foi apresentado aos comandantes das duas unidades e aos chefes de seus respectivos destacamentos um plano para a reestruturação da Divisão. O objetivo principal era promover a integração entre as tropas gaúchas e paulistas, de modo a superar as contradições que começavam a despertar animosidade entre elementos das duas brigadas.

Foi decidida então a dissolução dessas forças e a constituição de quatro destacamentos, cada um deles composto por soldados paulistas e gaúchos.

De acordo com a nova organização, que vigorou até o final da Grande Marcha, Prestes e Juarez Távora tornaram-se respectivamente chefe e subchefe do Estado-Maior da 1ª Divisão Revolucionária, permanecendo como seu comandante o general Miguel Costa.

Para o comando do 1º, 2º, 3º e 4º destacamentos foram designados os tenentes-coronéis Cordeiro de Farias, João Alberto, Siqueira Campos e Djalma Dutra.

Além de resolver o problema que lhe dera origem, a reorganização da 1ª Divisão Revolucionária dotou-a de maior mobilidade e unidade de comando. A critério deste, os destacamentos revezavam-se nas funções de vanguarda, retaguarda e flanco-guarda, durante a marcha. Sempre protegido, o QG, apenas por uma vez, viveu situação de sério risco, em toda a campanha.

Cada destacamento tinha freqüentemente um conhecimento detalhado das condições do terreno e das posições do adversário, num raio de vários quilômetros, em virtude da ação incansável de seus potreadores.

Criadas inicialmente com o objetivo de cumprir um papel meramente logístico, na captura de animais de montaria, as potreadas logo se transformaram em importantes instrumentos de luta.

Dotados de grande mobilidade, os pequenos grupos de 10 a 15 cavaleiros se afastavam 20 a 30 km de seus destacamentos, durante vários dias, vasculhado a região, arrebanhando o gado, realizando missões de reconhecimento e fustigando o inimigo, onde ele menos esperava.

Retomando a marcha em direção à fronteira goiana, e tendo vencido todos os combates que tomara a iniciativa de travar, a coluna revolucionária mantinha as forcas governistas em situação de defensiva.

A imprensa, porém, controlada pelo governo, desdobrava-se na apresentação das mais fantasiosas versões dos acontecimentos, a exemplo da nota publicada no jornal carioca A  Notícia, no dia 18 de junho:

“Acossados por todos os lados… os rebeldes completamente desanimados, sem armas e sem munição, continuam a fugir das forças legais, evitando sempre entrar em combate… As tropas federais continuam galhardamente a perseguir de perto os bandoleiros, não lhes dando trégua e desbaratando-os totalmente, a fim de livrar o território nacional da permanência desses impertinentes e desmoralizados inimigos da ordem”.

 

AS MISSIVAS DE KLINGER

Transportadas em caminhões, as tropas do major Klinger se deslocaram de Campo Grande, ultrapassando a 1ª Divisão Revolucionária e atingindo a localidade de Baús, nos limites da fronteira goiana.

Dispondo suas forças de modo a barrar a progressão da coluna, na ponte da Capela, sobre o rio Sucuriú,  o chefe do estado-maior das tropas governistas buscava virar o jogo que até então lhe fora desfavorável.

A ofensiva revolucionária contra essas defesas foi empreendida por três destacamentos: 1º, 3º, e 4º.                    

No dia 19 de junho, Cordeiro de Farias atacou as forcas oponentes na ponte da Capela. Klinger repeliu o ataque, mas não conseguindo contato com a sua retaguarda, interceptada pelo destacamento Djalma Dutra, tentou com duas investidas romper, pelo norte, o cerco que o constrangia. Foi, porém, rechaçado pelas forças de Siqueira Campos, que então contra-atacaram, tomando-lhe parte do acampamento – situado na margem direita do arroio Dois Córregos.      

O major Klinger estava virtualmente sitiado.

Visando poupar homens e munições, o QG ordenou o levantamento do cerco, na madrugada do dia 21, deixando Siqueira Campos ocupado em fixar o inimigo. E passou para Goiás, atingindo a localidade de Mineiros, no dia 26. A travessia do território mato-grossense durara 53 dias.

A 29 de junho, às 11h, a 1ª Divisão Revolucionária acampou na invernada Zeca Lopes. Pouco tempo depois, o general Miguel Costa recebia um emissário que trazia uma carta do major Klinger:

“Meus camaradas,

Acho-me muito próximo de vós, dispondo de recurso de velocidade e de fogo, bem como de uma tropa excelente. Esta tem sobretudo vontade decidida e grande superioridade moral. Não desejo empregar esses meios de força contra patrícios, sem tentar antes, mais uma vez, a cessação pacífica da luta pelas armas. Por que não vos entregueis à minha discrição confiantes de que tereis o máximo de concessões possíveis, militarmente?…

Saudações do camarada,

Major Bertoldo Klinger”

Não era a primeira carta que Bertoldo Klinger enviava a seus antigos parceiros de conspiração. No dia 19 de maio, vazada no mesmo tom melífluo, porém transbordante de arrogância, a carta do major Klinger dizia:

“Meus destemidos camaradas,

Apresento-lhes meus cumprimentos com o propósito de convidá-los a pôr termo à inglória luta pelas armas. O destacamento onde sirvo está, só ele, com um efetivo equivalente ao total dos vossos combatentes. Já vos rodeiam outros destacamentos e continua crescendo o efetivo das tropas fiéis ao governo, que de toda a parte vem chegando…

Se não for pois uma completa subversão da lógica dos fatos, não mais podeis pretender êxito para vossa causa…”.

Miguel Costa que conhecia bem os prejuízos que a pusilanimidade de Klinger haviam causado ao levante de 1924, pôs-se imediatamente a responder a carta. O resultado foi arrasador:

Invernada Zeca Lopes, 30 de junho de 1925

Sr. Bertoldo Klinger,

A história julgará amanhã, talvez, a sinceridade das propostas que nos tendes enviado.

Ex-companheiro de ideal revolucionário, vós não deveis procurar nunca injuriar com as vossas fraquezas a fé inquebrantável dos que não abjuraram as suas crenças.

Se quereis merecer daqueles que justamente vos julgam traidor algum sentimento de respeito, não os incomodeis mais com as vossas cartas tão cheias de orgulho por comandardes valentes esbirros de Bernardes.

Estamos contentes com os nossos soldados. Também eles não quiseram essas pomposas garantias que os vossos policiais de Minas lhes ofereceram.

A maldição pelo sangue derramado cairá um dia na consciência dos traidores.

Miguel Costa

Comandante dos homens de brio”

A resposta por certo não foi apreciada pelo chefe das tropas governistas que desferiu violento ataque contra as forças revolucionárias, contido pelos destacamentos João Alberto e Siqueira Campos, na entrada da invernada.

O próximo confronto de vulto só ocorreria no dia 24 de julho, já nas proximidades da cidade de Anápolis, ponto terminal da estrada de ferro que ligava Goiás a Minas e São Paulo.

O tenente-coronel João Alberto fez a seguinte descrição do combate:

“Simulando um ataque frontal a Anápolis, a Coluna forçou os governistas à defensiva… Assumindo a vanguarda, enquanto Siqueira e o Cordeiro de Farias cobriam o lado direito, achei-me em certo momento no flanco de uma das colunas legalistas. Temendo um ataque, o adversário retirou-se apressadamente em caminhões para a cidade…   

Avançamos de revólver em punho aos gritos de carga, enquanto o adversário fugia, atirando contra nós de cima dos caminhões. A estrada arenosa e cheia de buracos não lhe permitia velocidade…

Confirmando a regra geral das cargas de cavalaria que nos ensina que quase sempre um dos adversários cede terreno e foge, a tropa adversária abandonou os caminhões e, atirando o armamento para o chão, fugiu a pé pelo cerrado na direção da cidade”.

Depois dessa derrota as forças de Bertoldo Klinger não deram mais trabalho à 1ª Divisão Revolucionária.

Amante das missivas, o major escreveria ao ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho:

“O esmagamento é pura teoria.  A questão não tem solução pela força: importa corajosamente resolvê-la por via política com um ato radical de ampla volta à paz”.

 

SOPINHA DE ARROZ

A travessia do território goiano durou 51 dias, sendo concluída a 10 de agosto. Desenvolvera-se na direção sudoeste-nordeste, até a região de Formosa, na altura do paralelo 15º, de onde infletira para leste, buscando as cabeceiras do rio Urucuia, em Minas Gerais.

Entre 10 de agosto e 5 de setembro, a Divisão Revolucionária fez uma incursão diversionista pelo noroeste de Minas e sudoeste da Bahia, percorrendo, em 26 dias, cerca de 600 km, enfrentando apenas dois pequenos combates sustentados pelo destacamento João Alberto contra um batalhão da Polícia Militar baiana, dentro de São Romão, e logo à sua jusante, à margem do rio São Francisco. 

Atravessando uma região pobre e pouco povoada, a 1ª Divisão Revolucionáriateve de suportar um dos piores períodos de subsistência, devido à falta de agricultura e de criação de qualquer espécie.

O tenente-coronel Juarez Távora assinala em suas Memórias:

“Na última etapa do nosso percurso em território baiano, bivacamos, tarde alta, às margens do rio Formoso, sem ter tido oportunidade de ingerir qualquer alimento substancial. E as potreadas lançadas pelo Destacamento Siqueira Campos, com o qual então me deslocava, foram chegando, uma após outra, sem qualquer notícia de bois… O cozinheiro de Siqueira, uma hora depois de bivacarmos, trouxe-nos, para consolar-nos, o que chamou de uma ‘sopinha de arroz’. Mas, na verdade, era uma panela de água salgada, com meia dúzia de caroços de arroz, no fundo… Siqueira olhou-a de soslaio; e, desacreditando o pretendido milagre da multiplicação dos grãos de arroz, tentado por seu ‘mestre-cuca’, disse-lhe, com a moca costumeira de seus olhos de gato:

– Água por água, prefiro a água fresca do rio.

E despejando o prato de sopa na panela, foi, calmamente beber a água fresca do Formoso…

Eu, com a humildade de sertanejo cearense, enfrentei a água quente… Ao encerrar essa excursão, já sentíamos saudade da abundância de recursos a que nos habituáramos, marchando pelo sul de Goiás.         

Tratamos por isso de regressar, o mais rapidamente possível, ao território goiano”.                                              

 

PLANO DE CAMPANHA

Alcançada a Vila de Posse, em Goiás, o plano de campanha era percorrer 1.100 km, em direção ao norte, para penetrar no Maranhão, estado onde os revolucionários possuíam ligações que poderiam abrir novos horizontes para a luta.

O Maranhão seria a porta de entrada para o Nordeste e a Bahia. O Estado-Maior considerava essas regiões como as mais favoráveis para um acúmulo de forças que lhe permitisse ameaçar Minas e a capital da República ou, na pior das hipóteses, prolongar a guerra de movimento pelo tempo que julgasse necessário.

Segundo relato do secretário do Estado-Maior da 1ª Divisão Revolucionária, capitão Lourenço Moreira Lima, no início do mês de julho os revolucionários tinham enviado um emissário ao marechal Isidoro, no Paraguai, solicitando a remessa de armas e munições, que “deveriam ser colocadas em qualquer ponto do Nordeste ou Bahia, confiadas aos nossos amigos, ali, a fim de nos serem entregues”.

De Posse, Miguel Costa, Prestes e Juarez escreveram ao deputado Batista Luzardo, no dia 14 de setembro:

“Apesar das asperezas da campanha, força é confessar que ela tem se abrandado nos últimos tempos graças à completa liberdade de ação que nos permitem as forças governistas… A eficiência dos nossos adversários se torna cada vez menos sensível. Dir-se-ia que essas forças adivinham sempre onde não estamos e para aí marcham.

Não é absurdo que prevejamos a possibilidade de prolongar indefinidamente a atividade da campanha.

Sem julgarmo-nos fortes, ousamos confessar que, por meio de exclusiva violência, será difícil ao governo submeter-nos…

Autorizamos Vossa Excelência a declarar ao país, da sua tribuna de legítimo representante do povo, que somos francos e sinceros partidários da paz…

Nada pedimos para que ela seja estabelecida, que não se justifique como um preceito de liberdade.

Como limite mínimo de nossas aspirações liberais, incluímos a revogação da lei de imprensa e a adoção do voto secreto.

Com tais medidas, uma natural anistia e imprescindível suspensão do estado de sítio, talvez seja possível ao governo trazer ao Brasil a paz e a tranqüilidade de que tanto necessita.

Eis as bases em que se poderia apoiar uma paz grata para nós, honrosa para o governo e proveitosa para o país”.

 

A 1ª Divisão Revolucionária atravessa o norte de Goiás (atualmente, Tocantins) e entra no Nordeste combatendo: o cerco de Teresina

 

A travessia do norte de Goiás durou 68 dias, ao longo dos quais a 1ª Divisão Revolucionária ocupou doze vilas e cidades, transpondo oito rios, afluentes ou subafluentes do Tocantins.

A ausência de combates estimulava Siqueira Campos a superar-se na arte de pregar peças nos companheiros. Algumas delas eram bastante trabalhosas, conforme revela Juarez Távora, em suas Memórias, ao mencionar um episódio ocorrido, no dia 22 de setembro, na cidade de Arraias, importante centro de mineração de ouro, nos tempos coloniais:

“Siqueira, com a ajuda de outro oficial, escrevera num papel bem amarelado e gasto (obtido, não sabia onde nem quando) uma espécie de roteiro indicando a existência, no subsolo da igreja, de um tesouro… A perversidade maior estava em haver no papel do roteiro dois buracos, como se fossem artes da traça, exatamente nos lugares onde deviam estar declarados os números de braças marcando o local e a profundidade em que devia ser encontrado o tesouro…. Esse documento fora meticulosamente metido numa das rachaduras existentes na parede frontal da igreja, de jeito a despertar a curiosidade de quem olhasse para o local”.

De Arraias, o QG da Divisão seguiu para Natividade, enquanto duas flanco-guardas eram lançadas sobre Palmas e Santa Maria de Taguatinga. 

 

CHUVA DE MANGA 

A 29 de setembro, o destacamento Siqueira Campos, que marchava como flanco-guarda direita, bateu-se com uma força da Polícia Militar goiana, na vila de Taguatinga, onde a mesma se entrincheirou, desistindo de prosseguir o seu avanço em direção ao grosso da coluna. Foi esse o único confronto ocorrido, durante toda a campanha no norte de Goiás.

A outra flanco-guarda, depois de atravessar o rio Palmas, chegou à localidade Chuva de Manga onde o capitão Moreira Lima tomou ciência de extraordinárias ocorrências que assim passou a relatar:

“Acampamos… num bosque de mangueiras colossais, junto à casa de moradia de dois pretos velhos que ali viviam. Eram pai e filho. Um, de 85 anos, inteiramente calvo, e o outro, de 60, ostentando farto cavanhaque todo branco…

Esses pretos ficaram escandalizados quando Cordeiro de Farias lhes perguntou pelas canoas, porque lhes haviam dito que atravessávamos os rios sem nos utilizarmos de embarcações, por conduzirmos um ‘apareio de mangaba’ que estendíamos sobre as águas passando por ‘riba deles’, bem como uma ‘rede de apanhar homens e cavalos’, rede que ‘não havia vivente que lhe escapasse’…

Como essa, muitas outras lendas se formaram a nosso respeito… só comíamos as partes dianteiras  do gado para andarmos mais depressa… Prestes ‘adivinhava’, razão porque não podíamos ser batidos, pela forças do ‘gunverno’…

Em Chuva de Manga os pretos nos contaram coisas espantosas do rio Palmas. Disseram-nos que havia neles peixes colossais, feras monstruosas que atacavam as criaturas até fora do rio, salientando-se pela sua audácia o ‘Negro D’Água’, um ‘bicho feroz’ que saltava em terra, ereto como um gigante e as perseguia, arrastando-as para o fundo d’água; e … um ‘horrendo terém’, que o preto de cavanhaque me afirmou ter visto uma noite, quando se achava trepado num ‘pé de arvore’ , de tocaia às antas, e tão horrendo era que ele não se animara a lhe atirar e começou a tremer de medo, apesar de ser acostumado a ‘topar onça’; e estava certo de ter sido salvo por haver chamado por Nossa Senhora”.

Coincidências a parte o capitão Moreira Lima conclui assim a sua narrativa:

“Tendo sido arranjadas algumas canoas, foi iniciada a travessia do rio Palmas, passando a cavalhada a nado.

Aí perdemos um soldado, que desapareceu de repente, quando tomava banho perto da margem, com água pouco acima da cintura, certamente arrebatado por algum peixe.

Houve um momento de grande ansiedade, quando atravessava a canoa dirigida pelo preto de cavanhaque, que pilotava em pé.

A embarcação caiu numa grande corredeira e começou a meter água por um dos bordos.

Os soldados que ela conduzia não sabiam nadar e se amedrontaram… O preto remava corajosamente, gritando em altas vozes:

– Com a ajuda de Nossa Senhora, nos havemos de chegá. Valei-me Nossa Senhora da Conceição!

A canoa encostou, afinal, à outra margem, sem que se registrasse a desgraça que se avizinhava”.

Muitas histórias fantásticas brotavam daqueles rincões. O morro do Moleque, na serra de São Domingos, era povoado por assombrações que se manifestavam a noite: frades sem cabeça, montados em esqueletos de cavalos imensos, cobras enormes com olhos de fogo, isso quando não aparecia o próprio demo, no alto do morro, cavalgando um gigantesco porco-espinho, cujos grunhidos podiam ser ouvidos a mais de 100 léguas de distância.

Também a Coluna já deitara suas raízes naquele imaginário. 

 

SOBRE AS REQUISIÇÕES 

O grosso da Divisão descansou em Palmas, durante cinco dias, a espera da reincorporação das  flanco-guardas, seguindo a 12 de outubro para Porto Nacional, na margem direita do Tocantins, onde acantonou, durante oito dias.

A travessia do norte de Goiás prosseguia, sem maiores surpresas.

O único incidente grave fora de caráter interno – uma conspiração chefiada pelo major Aldo Geri, membro do Estado Maior, ex-comandante do batalhão italiano formado durante a insurreição paulista, em julho de 1924. O objetivo era atacar o QG, liquidar seus integrantes, assaltar as finanças da caixa de guerra e fugir para a Bolívia. Detectado o plano, antes que ele fosse posto em prática, foram expulsos o major Geri, o tenente Morgado e dois ex-oficiais que meses antes haviam sido rebaixados por mau comportamento, além de alguns soldados.

Em todas as vilas e cidades goianas pelas quais passavam, os revolucionários destruíam sistematicamente os troncos e gargalheiras, que povoavam as cadeias, bem como as palmatórias, abundantes também nas escolas.

Em Porto Nacional, o povo acorreu curioso para ver a princesa Isabel que, conforme se espalhara, acompanhava a marcha da 1ª Divisão Revolucionária. As cinqüenta vivandeiras que seguiam com a coluna e a destruição dos antigos instrumentos de tortura, da época da escravidão, davam asas à imaginação sertaneja.

O QG da Divisão ficou hospedado no Convento dos Dominicanos, a convite de Frei José Maria Audrin, que substituía o prelado Dom Domingos Carrerot, então em visita apostólica no Araguaia.

A única fotografia, na qual todos os chefes da 1ª Divisão Revolucionária aparecem juntos, foi tirada pelo próprio frei Audrin, em Porto Nacional.

Deveras atencioso e hospitaleiro, o frei considerou, no entanto, de bom tom formalizar por escrito ao general Miguel Costa uma proposta de intermediar junto ao governo federal um acordo de paz. A proposta vinha precedida de um veemente protesto contra as requisições, através das quais as forças revolucionárias se abasteciam durante a marcha.

O documento, datado de 21 de outubro, dizia:

“Ilmo Sr. General Miguel Costa

A passagem da coluna revolucionária através dos nossos sertões e por nossa cidade tem sido um lamentável desastre que ficará, por alguns anos, irreparável. Em poucos dias, nosso povo, na maioria pobre, viu-se reduzido a quase completa miséria.

… Se é grato dever para nós reconhecermos a elevada disciplina que tem reinado na Coluna, quanto ao respeito aos lares e ao cuidado extremo do Estado-Maior e comandos de corpos em prevenir e castigar severamente qualquer ofensa à moralidade e ao sossego do povo – se acreditamos que os danos materiais sofridos pela população em gado e animais, longe de serem motivados pelo instinto do roubo, são apenas uma imposição vexatória mas fatal das duras necessidades da guerra, sentimo-nos não obstante forçados a deplorar tais prejuízos e levar contra eles perante Vossa Excelência o nosso protesto…

E o mesmo sentimento de caridade cristã que nos tem obrigado a lamentar as misérias do nosso povo, excita-nos a procurar um meio de contribuir para a conclusão de tantas angústias…”.

Miguel Costa poderia ter lembrado ao missionário que a pobreza secular do povo daquelas regiões tinha causas que os revolucionários corajosamente empenhavam-se em erradicar, ao contrário de certas almas piedosas que pouco faziam para alterar aquele estado de coisas.

Porém, mais útil, naquele momento, era fortalecer a disposição de frei Audrin de bater-se pela abertura de negociações de paz, e reiterar a lisura que presidia o processo de requisições.

A resposta, assinada por Miguel Costa, Prestes e Juarez, dizia:

Não ignoramos nenhuma das vicissitudes deploráveis que constituem o séqüito sombrio da guerra civil.

Bem medimos a penúria em que fica a debater-se a população menos abastada das regiões sertanejas por onde transitamos…

Afiançamo-lhe, entretanto, que só temos retirado ao patrimônio do povo aquilo que é indispensável à satisfação das necessidades imprescindíveis da tropa. E se não indenizamos ao particular os prejuízos que lhe causamos é porque – ao contrário do que a má-fé de alguns tem propalado – transitamos na revolução tão pobres como quando para ela entramos.

De qualquer forma, porém, temos assegurado, indistintamente, a amigos e adversários, por meio de um documento idôneo, o recurso de reaver, mais tarde, pelos trâmites legais, a importância total dos bens de que houverem sido despojados”.

Um dispositivo da Constituição e do Código Civil obrigava a União a indenizar os prejuízos causados pela ação das forças revolucionárias. Ainda que o governo quase sempre o desconsiderasse, nunca era demais lembrar a sua existência.               

 

CERCO DE TERESINA 

Cruzando o rio Manoel Alves Grande, a 1ª Divisão Revolucionária penetrou em território maranhense, no dia 13 de novembro.

O 1º Destacamento rumou para Carolina, como flanco-guarda esquerda da Divisão, devendo cobri-la contra incursões de tropas vindas do Pará pelo rio Tocantins, enquanto o grosso avançou até São Raimundo das Mangabeiras, passando por Balsas.

Acolhido com comício e banda de música, pela população de Carolina, o 1º Destacamento permaneceu até o dia 23 naquela cidade, onde aproveitou para imprimir a oitava edição do jornal O Libertador, alcançando a Divisão, em Mangabeiras, a 29 de novembro.

No dia anterior, o destacamento João Alberto destacara-se do grosso, seguindo a noroeste para Grajaú, com o objetivo de libertar o major Paulo Kruger, membro do Estado Maior, que havia sido preso nas proximidades daquela cidade, quando viajava em missão de estabelecer contatos com chefes políticos oposicionistas do estado.

A 3 de dezembro, o comando revolucionário deu início a uma manobra de envolvimento da forte concentração de tropas governistas estacionadas na região de Benedito Lima e Uruçui, cidades respectivamente situadas nas margens maranhense e piauiense do rio Parnaíba.

Lançando o destacamento Djalma Dutra como flanco-guarda direita, em direção às forças governistas, a Divisão marchou para Mirador, com o objetivo de atingir Nova Iorque, no Rio Parnaíba, vários quilômetros abaixo de Benedito Lima e Uruçui, a fim de cortar a comunicação fluvial e telegráfica entre Teresina e aquela força de 1.500 homens que guarnecia o sul dos dois estados.

Na manhã do dia 7, uma patrulha do destacamento Dutra atacou um posto avançado e ao escurecer tiroteou as primeiras posições do adversário, retirando-se em seguida. Este, fortemente entrincheirado, prorrompeu em fogo maciço, durante toda a noite, contra um inimigo que já se encontrava a léguas de distância, tendo se retirado precipitadamente, a pé, a cavalo, em vapores, canoas e balsas, na direção de Teresina, ao raiar do dia.

Dutra, mal acreditando no que via, perseguiu-os até Nova Iorque, por onde a força governista passou aceleradamente, antes que o grosso da 1ª Divisão Revolucionária, em Mirador, pudesse agir.

Impressionado, o capitão Moreira Lima registrou, em seu diário de campanha:                 

“… os prisioneiros que fizemos… diziam ter sabido que não podíamos ser batidos porque conduzíamos uma preta feiticeira, chamada tia Maria, que dançava nua diante das ‘metraiadeiras’, ao som de um flautim… para ‘fechar o corpo’  dos nossos homens às balas dos inimigos”.

No dia 9 de dezembro, João Alberto chega a Mirador. Não conseguira libertar Kruger, porque o governo já havia transferido o prisioneiro – de Grajaú, para São Luís.

Acompanhavam o 2º Destacamento 200 homens comandados por Manoel Bernardino, fazendeiro da Zona da Mata, e 50 liderados por Euclides Neiva, todos armados e municiados.

Conta o capitão Lourenço Moreira Lima:

“Manuel Bernardino era cearense. Homem inteligente e entusiasta, exercia grande influência no povo… Chamavam-no o Lenine da Mata, porque era o defensor dos direitos dos fracos e oprimidos”.

Em sua fuga, as forças governistas de Uruçui se entrincheiraram em Floriano, somando-se à guarnição daquela cidade. O QG ordenou o assalto imediato da posição pelo 2º Destacamento e o 4º, que transpuseram o Parnaíba. Ao mesmo tempo o 1º e as tropas de Manoel Bernardino deviam atacar a vila de Barão de Grajaú, situada na margem maranhense do rio, enquanto o 3º cortaria mais abaixo as comunicações entre as duas localidades e Teresina.

Empreendendo novo recuo, a força governista sofreu pesadas baixas ao ser atacada por Siqueira Campos que estava à sua espera em Queimados e Araçás.

Uma ampla faixa dos territórios do Maranhão e Piauí, desde os altos sertões, às cercanias de Teresina, passou às mãos dos revolucionários.

No dia 18 de dezembro, o QG ocupou Barão de Grajaú e Floriano. Daí partiu o Esquadrão Ari Freire, do 4º Destacamento, na direção leste, a fim de se apoderar das cidades piauienses de Oeiras e Picos, devendo observar a coluna inimiga do coronel Almada que avançara de Remanso, na Bahia, em direção a Vitória, no alto Parnaíba.

Os destacamentos João Alberto e Dutra seguiram pela margem direita do Parnaíba, para Teresina, sob comando de Juarez Távora, enquanto os destacamentos Cordeiro de Farias e Siqueira Campos, sob o comando de Prestes, marchavam pela margem maranhense do rio para atacar a contígua cidade de Flores.

A 26, a 1ª Divisão Revolucionária instalava o seu QG em Amarante.

Teresina e Flores eram guarnecidas por um efetivo de 3.000 homens do Exército, Polícias Militares e Marinha, navios de guerra e artilharia, sob comando geral do coronel Gustavo Bentemuller.

As incursões das forças revolucionárias sobre as trincheiras dessas cidades só teriam início no dia 28.

No entanto, desde o dia 23, sobressaltadas, as forças governistas atiravam a esmo, conforme assinala João Alberto, com fina ironia, em bilhete enviado a Juarez Távora:

“De ontem para hoje repetiu-se o mesmo tiroteio forte em Teresina e foi ouvido daqui do meu acampamento. Decididamente estão gastando toda a nossa munição”.

Na manhã do dia 27, ao embarcar de Floriano para Amarante, o capitão Moreira Lima foi contatado pelo capitão Waldemar de Paula Lima e o jornalista pernambucano Josias Carneiro Leão. Procedentes do Recife, eles eram portadores de uma correspondência do tenente Cleto Campelo. Cleto tencionava apoderar-se daquela cidade, e destacara os tenentes Lourival Seroa da Mota e Aristóteles de Sousa Dantas para apossarem-se da capital da Paraíba.

 

No Nordeste, os combates prosseguem com táticas bem sucedidas dos revolucionários, combates sangrentos e a prisão de Juarez Távora

 

Em Teresina a confusão reinante era agravada pelos desentendimentos entre o governador Matias Olímpio e o comando das forças militares. Na madrugada de 26 de dezembro, um levante no 25º Batalhão de Caçadores, que poderia ter sido fatal aos ocupantes daquela cidade, foi debelado.

Na madrugada do dia 28, as forças revolucionárias começam a testar as defesas adversárias, mantendo a pressão durante três dias seguidos. Numa das investidas, o pelotão comandado pelo capitão Filó, do 4º Destacamento, conseguiu romper as linhas inimigas, penetrando em Teresina. Porém, refeitas da desordem inicial, que as acometera desde o recontro em Benedito Leite, as forças governistas conseguiram se estabilizar, passando a tirar proveito de sua superioridade numérica e maior poder de fogo.

O comando revolucionário ordenou então a suspensão do cerco e a retomada da marcha em direção ao Ceará.       

Em suas Memórias, Juarez Távora revela que o Estado-Maior contava com essa possibilidade, desde o momento em que planejara a ofensiva:

“Ficou estabelecido que antes de decidir-se um ataque em força àqueles dois redutos governistas, seriam feitas cautelosas explorações ofensivas sobre cada um deles, para melhor avaliar a organização defensiva em seu conjunto.

Essas explorações foram realizadas simultaneamente sobre Flores e Teresina, durante as madrugadas de 28, 29 e 30 de dezembro, chegando-se à conclusão de que não seria compensador para as forças revolucionárias o ataque projetado…”.

A retirada, inclusive a transposição do Parnaíba pelas forças revolucionárias que se encontravam na margem maranhense, se realizou no dia 31 de dezembro.

As tropas governistas custaram a perceber a manobra, que se efetuou sem maiores percalços, salvo o que passa, agora, a ser relatado pelo tenente-coronel João Alberto:

“Infelizmente, no dia exato em que me cumpria partir na vanguarda para transpor a serra de Ibiapaba – acidente geográfico que limita o estado do Piauí com o do Ceará – Juarez foi feito prisioneiro. Cometera a imprudência de tentar, apenas com alguns homens, um reconhecimento às posições adversárias. Atacado pelo inimigo, julgou poder escapar com a sua montada, na qual transportava arquivos e documentos. Tiveram mais sorte os homens que o acompanhavam: cortaram o mato e alcançaram o acampamento. Que desastre!”.

Juarez considerou-se vítima de “uma infeliz coincidência”. Ao relato de João Alberto acrescenta que estava acompanhado apenas de seu ordenança e um oficial da guarda de Caieiras, e que se deslocava pela margem direita do Parnaíba, na direção de Teresina, em busca de um local apropriado para armar emboscada a uma lancha governista.

Imprudência ou coincidência, o fato é que não havia tempo para se chorar o leite derramado. E o coronel Távora, logo encontrou um modo de retirar da derrota sofrida o primeiro resultado positivo:

“Teresina, 1º de janeiro de 1926

Prestes,

Aqui estou desde ontem pela manhã, como prisioneiro. Recebendo logo após a minha chegada uma honrosa visita de sua Excelência o bispo Dom Severino Vieira de Melo, abordou-se, em palestra, a idéia de um entendimento para evitar, se possível, o transe amargo que ameaça a população indefesa de Teresina.

Contrariando, embora, o meu interesse pessoal, naturalmente propenso a anelar por uma tentativa de libertação, eu prefiro abdicar dessa satisfação em benefício do povo desse recanto do meu país…”.

Em sua resposta, Prestes repica o blefe, dando seqüência à operação de contra-informação deflagrada por Juarez. A carta foi entregue por ele, pessoalmente, ao bispo de Teresina: ’Acantonamento da Vila Natal, 4 de janeiro de 1926.

Meu caro Távora,

Tendo consultado o general Miguel Costa e os comandantes de destacamento a respeito do teu pedido, resolvemos suspender o ataque a Teresina, até que tenhas outro entendimento com o comandante dessa praça, coronel Bentemuller, desde que ele se mantenha, como prometeu, dentro de suas posições atuais, e não procure perturbar a tranqüilidade das regiões que estamos dominando no estado, regiões essas que, como sabes, abrangem a quase totalidade do seu território.

Percebemos que com essa nossa primeira concessão os nossos adversários ficarão, dia a dia, mais fortes; mas tudo sacrificamos pela tranqüilidade da família teresinense, certo de que igualmente por esta tranqüilidade o governo não se oporá à tua liberdade e volta ao nosso meio.”

O governo não libertou Távora, mas a 1ª Divisão Revolucionária só foi incomodada pelo adversário a partir de 14 de janeiro, depois de haver deixado a cidade de Valença, a mais de 200 km de Teresina. Uma semana depois cruzava a fronteira do Ceará.

720 km haviam sido percorridos em território maranhense e piauiense. Maior inimigo: a malária – contraída por cerca de 400 homens nas margens do Parnaíba. Parte dos feridos e doentes ficaram pelo caminho a convite dos moradores. Voluntários preenchiam os claros, mantendo os efetivos da força combatente em torno de 1.200 homens.

Os revolucionários procuravam não avançar muito além desse patamar, em razão das dificuldades que isso acarretaria ao abastecimento da tropa. 

No dia 20 de janeiro, Miguel Costa promovera Siqueira Campos e João Alberto ao posto de coronel e Prestes a general.           

 

JAGUNÇOS E CANGACEIROS 

O governo concentrara forças no Ceará. Além das tropas do Exército e Polícia Militar, armara milhares de jagunços e cangaceiros, arrebanhados por Floro Bartolomeu e Pedro Silvino, na zona do Cariri.

O doutor Floro e o latifundiário Silvino haviam se tornado poderosos e temidos, anos antes, explorando os supostos milagres do padre Cícero Romão, em Juazeiro do Norte. No ano de 1914, com o apoio do padre, eles mobilizaram milhares de romeiros para marchar sobre Fortaleza e derrubar o governador Franco Rabelo, que se desentendera com o governo federal.

Em 1926, Floro Bartolomeu ocupava uma cadeira de deputado, na capital da República. O padre Cícero recusara-se a atender a convocação do presidente Artur Bernardes para incorporar-se à cruzada contra a 1ª Divisão Revolucionária. Este recorreu então ao doutor Floro.

O capitão Moreira Lima conta que:

“Floro fechou o negócio, recebeu mil contos de réis, armas e munições e partiu para o Ceará, onde reuniu o cangaço, contra a vontade do padre que, já passando dos 80 anos de idade, não teve energia para se opor a isso”.

Nem mesmo Virgulino Ferreira, o famoso Lampião, cuja base de operações era distante do Cariri, deixou de comparecer a Juazeiro, acompanhado de 40 cabras, para receber os armamentos, dinheiro e uniformes idênticos aos do Exército – a única diferença era o distintivo sobre o dólmã, com as letras BPJ, Batalhão Patriótico de Juazeiro. Floro também brindou-o com a patente de capitão. Lampião ficou muito envaidecido, até descobrir que a patente era falsa. As armas eram verdadeiras, mas ele não as empregou contra as forças revolucionárias.

Em relatório enviado ao governador da Paraíba, o tenente-coronel Elísio Sobreira, comandante da Polícia Militar do estado, não deixa dúvida sobre o caráter dessas novas tropas criadas por iniciativa do governo federal:

“Pesa-me relatar a Vossa Senhoria que os oficiais imediatos do coronel Pedro Silvino constituem uma afronta às autoridades paraibanas”.

A passagem da 1ª Divisão Revolucionária pelo Ceará, no entanto, ocorreu sem confrontos expressivos. O objetivo fixado pelo Estado-Maior era atingir a cidade de Triunfo, em Pernambuco, entre os dias 12 e 15 de fevereiro, conforme fora combinado com os emissários do tenente Cleto Campelo.

Para isso, foi concebida uma manobra posta em execução desde o levantamento do cerco a Teresina.

O 2º Destacamento seguira na direção nordeste, para atravessar a serra de Ibiapaba e invadir o Ceará ao norte, na altura de Ipu, simulando uma investida contra Sobral e Fortaleza, para atrair e fixar o grosso das forças governistas naquelas localidades. Enquanto isso, o restante da Divisão deslocou-se para sudeste, atingindo a vila de Arneiroz, às margens do Jaguaribe, em 26 de janeiro, evitando as tropas de Floro Bartolomeu que se encontravam mais ao sul, na cidade de Campos Sales.

De Ipu, onde João Alberto tomou a estação ferroviária, danificou a via férrea e, antes de silenciar o telégrafo, enviou mensagens a Fortaleza anunciando a chegada das tropas revolucionárias, o 2º Destacamento deslocou-se para o sul, em marcha forçada de 100 km diários, ligando-se ao grosso em Arneiroz, a 29 de janeiro.

A vila ficava às margens do Jaguaribe, cujo leito escarpado, quase sem água, situava-se em terras semi-áridas que impunham grande dificuldade ao deslocamento de tropas.

O Estado-Maior avaliara que as forças governistas descartariam a hipótese de que a 1ª Divisão Revolucionária ousasse se aventurar por aqueles caminhos. E justamente por isso escolhera essa rota. Seguindo a leste, por Saboeiro e Jucás, a Divisão atravessou a região – onde 30 anos mais tarde foi construído o grande açude de Orós – e atingiu o estado do Rio Grande do Norte, em São Miguel, no dia 3 de fevereiro, depois de haver transposto a serra do Pereiro. Os dois recontros mantidos com as forças inimigas, no alto da serra e na vila de São Miguel, foram facilmente vencidos. Dali a coluna revolucionária infletiu para o sul, conforme relata o coronel João Alberto:

“Atravessamos o estado do Rio Grande do Norte sem maiores incidentes… Entramos no estado da Paraíba sempre em marcha forçada, para aproveitar a surpresa do ataque… o comando das forças governamentais… não sabia bem se era nossa intenção… marchar sobre a capital daquele estado ou continuar para o sul… Já no limite com Pernambuco teve a Coluna de batalhar duramente para dominar a resistência obstinada do Padre Aristides, misto de sacerdote e de cangaceiro que chefiava a defesa de Piancó…”.

 

PIANCÓ

A cidade bloqueava a progressão da 1ª Divisão Revolucionária, tanto para Pernambuco, ao sul, quanto a leste para Patos, ponto estratégico da defesa da estrada de rodagem que seguia até a capital da Paraíba.

O padre Aristides Ferreira da Cruz, deputado estadual que portava um 38 sob a batina, já fora expulso de Piancó por roubar gado dos vizinhos. Empenhara-se em diversas atividades pouco recomendáveis a um prelado, porém retornara à cidade sob a proteção de seu correligionário, o ex-presidente Epitácio Pessoa.

Foi a pedido deste que Aristides armou 200 pistoleiros para barrar a marcha da1ª Divisão Revolucionária, em Piancó, enquanto aguardava reforços, enviados pelo governo, através de Patos.

Os revolucionários não tinham conhecimento de que as forças governistas haviam entrado em prontidão, no dia 5 de fevereiro, após intenso tiroteio travado contra 11 revolucionários comandados pelos tenentes Sousa Dantas e Seroa da Mota, antes que estes pudessem iniciar o levante do 22º Batalhão de Caçadores, na capital paraibana.

Os tenentes foram delatados por Batista Ramos, ex-deputado goiano, que havia se infiltrado na 1ª Divisão Revolucionária, no Piauí.

Outro levante também havia fracassado, no dia 18 de janeiro, em Aracaju. O tenente Maynard Gomes, que liderara a rebelião de julho de 1924, em Sergipe, conseguira fugir e sublevar o 28º Batalhão de Caçadores, ocupando os pontos principais da cidade e cercando o quartel da Polícia Militar. Os revolucionários foram subjugados com a ajuda de tropas da Marinha, depois que o tenente Maynard foi ferido.

O sangrento confronto em Piancó foi registrado pelo capitão Moreira Lima, no diário da campanha:

“O dia 9 amanheceu belíssimo, fazendo a vanguarda o Destacamento Cordeiro, seguindo-se Dutra e por fim Siqueira.

O Destacamento Cordeiro ao descer a ladeira que conduz à vila foi rudemente atacado, travando-se renhido combate, que durou ate às 3 horas da tarde…

O inimigo estava entrincheirado em várias casas, na cadeia pública, que é um vasto edifício de granito, e na igreja.

Caíram feridos, logo no início do combate, os capitães Manoel de Oliveira Pires e João Batista dos Santos, e o tenente Agenor Pereira de Sousa, além de vários soldados, sendo mortos alguns desses últimos.

Mais tarde foi ferido o tenente Valfrido, do Destacamento Dutra, que avançava em apoio a Cordeiro…

Em dado momento, de uma das casas ocupadas pelo inimigo, hastearam uma bandeira branca, tendo arrefecido o fogo, da nossa parte… Os nossos avançaram confiadamente, sendo alvejados da casa onde estava o padre Aristides.

Dutra ordenou então ao sargento João Baiano que jogasse uma lata de gasolina à porta da casa, a fim de incendiá-la.

João Baiano tratou de cumprir essa ordem.

Nesse momento, abriu-se a porta da casa.

O sargento Laudelino da Silva, conhecido como Lino, tentou penetrar nela recebendo um tiro que o prostrou morto.

Os demais soldados precipitaram-se na sala, subjugando as pessoas que ali se achavam, inclusive o padre Aristides…”.

Foram todos imediatamente degolados. Um dos soldados, depois disso, castrou o padre e encheu-lhe a boca com os próprios testículos.

A velha tradição da degola que imperava nas guerras civis dos pampas fora combatida pelos oficiais revolucionários como um costume bárbaro. Porém, a torpeza do deputado-cangaceiro, simulando por duas vezes consecutivas um ato de rendição, para disparar contra os adversários, havia despertado a fera.

Miguel Costa e Prestes não permitiram que seus comandados tornassem a se deixar dominar por ela, até o final da Grande Marcha.

 

Durante um ano invictos e batendo sistematicamente as forças do governo, os revolucionários cruzam o Nordeste e traçam os próximos passos da campanha: manter a luta armada até o último dia do governo Bernardes e aproximar a Divisão da fronteira boliviana

 

Penetrando em Pernambuco, entre Flores e Ingazeira, a 1ª Divisão Revolucionáriaatingiu a Vila do Triunfo, no dia 13 de fevereiro, conforme fora combinado com os emissários do tenente Cleto Campelo.

A permanência na região, no entanto, apresentava novas dificuldades, conforme relata o coronel João Alberto:

“Passara a surpresa, e o adversário apresentava-se agora cheio de agressividade…”.

O tenente Cleto Campelo não conseguira reunir as condições para sublevar o 21º Batalhão de Caçadores e tomar a capital pernambucana. Seu novo plano era assumir o controle da estação ferroviária de Jaboatão, na periferia do Recife, seguir de trem para o interior e incorporar à 1ª Divisão Revolucionária as forças que conseguisse arregimentar durante a marcha.

Cleto desertara do 21º BC, em 1925, ao ser enviado para combater os revolucionários no Mato Grosso. Acompanhava-o Waldemar de Paula Lima, sargento da guarnição do encouraçado São Paulo, rebelada em 1924. Waldemar era capitão da 1ª Divisão Revolucionária, e fora designado para fazer a ligação com os revolucionários pernambucanos. O núcleo era integrado também pelo marinheiro Severino Cavalcanti e treze civis, entre os quais os padeiros comunistas José Francisco de Barros e José Caetano. O dirigente do recém-criado Partido Comunista do Brasil, em Pernambuco, Cristiano Cordeiro, havia prometido apoio ao tenente Cleto. O Comitê Central do partido não referendou a sua iniciativa.

No dia 18 de fevereiro, o grupo ocupou a estação da estrada de ferro Great Western, em Jaboatão, recebeu a adesão de 40 ferroviários e organizou um trem de combate, composto de quatro vagões e uma locomotiva.

A primeira parada foi em Vitória de Santo Antão, onde Cleto requisitou, da prefeitura e coletoria estadual, armas e munições, além de 1 conto e 525 mil-réis. Cerca de 100 novos voluntários se incorporaram à coluna. A maioria era constituída de ferroviários que seguiam de Caruaru para Recife. Quando o trem em que viajavam foi parado, em Vitória de Santo Antão, operários, telegrafistas, fiscais e o próprio chefe da estação de Caruaru decidiram somar-se aos revoltosos.

O tenente Cleto Campelo pretendia seguir pela via férrea até Buique, buscando contato com a 1ª Divisão Revolucionária.

O plano começaria a ruir em Gravatá. Numa confusa operação para submeter a fraca guarnição da cadeia local, o tenente Cleto foi baleado e morto, acidentalmente, pelos seus próprios companheiros. A consternação tomou conta da inexperiente tropa. O capitão Waldemar de Paula assumiu o comando e tentou prosseguir a luta, alterando o rumo da marcha. Mas pouco pode fazer. A 22 de fevereiro, foi morto numa emboscada em Tapada. Nenhum dos homens do pequeno contingente que o acompanhava escapou com vida. 

 

CÍRCULO DE FERRO

Para o coronel João Alberto, os 15 dias passados em Pernambuco pesaram como 15 meses:            

“Combatendo diariamente, não nos sobrava tempo, sequer, para comer, tal a velocidade com que nos deslocávamos. A cada passo, surgia uma reação nova”.

A 14 de fevereiro os destacamentos Dutra e João Alberto atacam uma tropa da Policia Militar transportada em 20 caminhões, chefiada pelo coronel João Nunes.             

O capitão Moreira Lima registraria no diário de campanha o resultado da batalha de Carneiro:                  

“O inimigo foi completamente destroçado, deixando 15 homens mortos e 15 prisioneiros, alguns dos quais feridos, salvando-se os demais por se haverem refugiado na caatinga, onde a nossa cavalaria não os podia perseguir…

Foram feridos nesse combate o major Manuel Alves de Lira, capitão Heraclides Pinto (Preto), tenente Agerson Dantas e três soldados”.

Apesar dos reveses, as forças governistas tornavam-se mais ousadas e cada vez mais numerosas. No dia 18, em Mulungú, o 3º Destacamento sofreu 10 baixas, em virtude de um ataque no qual os homens da Policia Militar usaram lenços vermelhos nos pescoços, para confundir os comandados de Siqueira Campos.

A falta de notícias sobre Cleto Campelo obrigava os destacamentos revolucionários a restringirem sua movimentação à região demarcada pelos rios Pajeú, Navios e a Serra Negra. Um piquete comandado pelo major Ari Freire destacara-se na direção leste, realizando um raid sobre Pesqueira, Garanhuns e Buique em busca de ligação com o tenente Cleto.

Os combates se sucediam. Dia 20, na vila de Santa Maria e fazenda Monte Alegre. 21, em Tabuleiro Comprido. 22, na fazenda do Cipó.

Na tarde do dia 22, o grosso acampou na fazenda Buenos Aires, situada num contraforte da serra Negra. Conta o capitão Moreira Lima:

“Pelas explorações realizadas pelos nossos piquetes e depoimentos dos prisioneiros que fizemos em Cipó, soubemos que se aproximavam três poderosas Colunas inimigas, procurando nos envolver num círculo de ferro.

A situação era grave, tendo o governador de Pernambuco se apressado em telegrafar para o Rio, conforme lemos depois nos jornais, comunicando nos acharmos cercados e restar-nos apenas o refúgio daquela serra.

Esse comunicado exprimia a verdade, pois o inimigo havia conseguido transportar para aqueles sertões todas as tropas que dispunha no Nordeste, cerca de 15.000 homens.

Ari não conseguira notícias de Cleto.

Foi então combinado atravessarmos o São Francisco e invadirmos a Bahia…”.

Antes que o círculo se fechasse, a 1ª Divisão Revolucionária executou outra manobra na qual buscou intencionalmente o terreno adverso, para surpreender o adversário. Marchou para o norte, em passo acelerado, voltando em seguida para o sul, descrevendo um arco de mais de 120 km, através das caatingas, sob chuvas torrenciais, transpondo lamaçais e atoleiros, em marchas noturnas, enquanto o inimigo se distanciava, seguindo em direção à serra Negra.

No dia 25, a coluna revolucionária atingiu a fazenda Brejinho, a 20 km do São Francisco, tendo iniciado a travessia do rio ao meio-dia, terminando-a na madrugada do dia 26.

A travessia dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco durara 23 dias, nos quais foram percorridos 1.016 km.

Realizando um rápido balanço, o coronel João Alberto conta que:

“Perdêramos, desde o cerco de Teresina, mais de 100 dos nossos melhores veteranos, sem contar os voluntários que vinham aderindo…”.

Lourenço Moreira Lima apresenta um quadro mais geral:               

“Entramos no Maranhão com cerca de 900 homens. Aí incorporamos 250, no Piauí 160, no Ceará 20, na Paraíba e Pernambuco 40, tendo se perdido 160, por mortes, deserções e extravios, de sorte que invadimos a Bahia com perto de 1.200 homens”.

Ainda em Pernambuco, os revolucionários receberam a informação de que Tia Maria, uma das cozinheiras da coluna, fora degolada na Paraíba, junto com outros três soldados que haviam se perdido da tropa. 

 

A CAUDA DO COMETA 

A primeira etapa da campanha na Bahia foi a marcha de 558 km, na direção sudoeste, até a chapada Diamantina.

Durante os 18 dias de travessia daqueles sertões – imortalizados na obra de Euclides da Cunha – a 1ª Divisão Revolucionária vadeou o rio da Ema, o Vaza Barris, o Salitre e o rio do Inferno; cruzou a estrada de ferro Salvador-Juazeiro; sesteou e pousou em 21 fazendas e um povoado. Nenhum combate expressivo foi registrado. As condições de suprimento eram satisfatórias, conforme relata ocoronel João Alberto:

“Nos habituáramos a comer cabrito, que existia em toda a parte. Assado era quitute apreciável. Havia também muito queijo de leite de vaca e de leite de cabra. Farinha e rapadura encontravam-se com facilidade. Quase uma Canaã”.

O que incomodava era o fato da tropa estar a pé, pois a cavalhada tivera de ser deixada na margem pernambucana do rio São Francisco.

Antes de atingirem regiões mais favorecidas pela presença eqüina, o que só ocorreria a partir da vila de Uauá, os potreadores não dispensaram os jericos, que da localidade de Salgado do Melão em diante existiam em grande quantidade.

O capitão Moreira Lima faz uma apreciação do desempenho desses resistentes animais, no exercício do papel de montaria dos exímios cavaleiros da 1ª Divisão Revolucionária:     

Eles portavam-se bem e pareciam seriamente compenetrados da sua nova e honrosa missão de corcéis de guerra, mantendo uma elegante linha de conduta, até encontrar um riacho a vadear, quando perdiam a compostura marcial que iam ostentando. Sem nenhuma consideração para com os guerreiros que tinham a ventura de carregar, davam coices e cabeçadas e se recusavam a entrar na água, por mais que apanhassem… Era necessário arrastá-los”.

A 18 de marco, a 1ª Divisão Revolucionária atingiria a vila de Alagoinhas, na extremidade norte da chapada Diamantina. No dia 25, ocupava Caraíbas. O capitão Moreira Lima relata o teor de uma inesperada visita recebida naquele povoado:

“Chegaram a Caraíbas o capitão Leovigildo Cardoso Viana, da Guarda Nacional, amigo de Horácio de Matos e um primo deste, de nome Augusto de Matos, que nos disseram ter ido a nossa procura, a fim de promover um entendimento com Horácio, declarando que ele simpatizava com a nossa causa, e que, certamente nos apoiaria, e quando isso não fosse possível não nos hostilizaria”.

Os revolucionários desconfiaram que se tratava de um ardil. E estavam certos.

O coronel Horácio de Matos era o rico e truculento senhor de Lençóis, centro da comercialização de pedras preciosas na chapada. No ano anterior, ele havia armado seus cabras e promovido uma guerra contra o governo estadual, para impedir a nomeação de um delegado de polícia que não rezava pela sua cartilha. O Exército precisou intervir, e o governador Góes Calmon acabou recuando da nomeação.

A missão dos embaixadores do coronel era de espionagem. Horácio de Matos já havia negociado com o governo federal a mobilização de seu bando.

Dirigia as forças governistas, na Bahia, o general Álvaro Mariante, que sustentava uma acirrada contenda com o general João Gomes, seu comandante e chefe das Forças em Operação no Norte da República, sobre as implicações éticas e a eficácia militar das tropas compostas de jagunços e cangaceiros, na luta contra-revolucionária.

Entusiasta desse método, Mariante havia mobilizado, para a campanha na Bahia, além do bando de Horácio de Matos, os de Franklin de Albuquerque, Abílio Volney e José Honório Granja, com cerca de 400 homens cada – todos armados, municiados, alimentados e pagos pelo governo federal.            

Sua estratégia consistia em lançar esses destacamentos contra a coluna revolucionária, “como cães de caça no encalço da raposa”, enquanto os caçadoresaguardariam o momento oportuno para entrar em ação.

Mariante dispôs os efetivos do Exército e Polícias Militares da Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Piauí e Alagoas, ao longo do São Francisco. Seu QG foi instalado em Chique-Chique. De uma barcaça que descia e subia o rio, ele dirigia as operações.

Seu plano era cercar a 1ª Divisão Revolucionária na caatinga, entre Tiririca dos Bodes, Aleixo, Brotas e o rio São Francisco.

O plano não produziu o resultado prometido. A 1ª Divisão Revolucionária cruzaria a região, não apenas uma, mas duas vezes. Mariante, no entanto, tomaria o lugar de João Gomes, por determinação do ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho, no dia 23 de abril. Em julho, Horácio de Matos ganharia o status de coronel da Guarda Nacional e seu bando o de Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas. Franklin e Volney seriam promovidos a tenentes-coronéis da reserva do Exército e Ganja a major. 

 

LAÇO HÚNGARO 

Atravessando a chapada Diamantina, na direção do sul, os revolucionários mantinham ainda a esperança de receber uma comunicação do marechal Isidoro sobre a remessa dos armamentos que haviam solicitado quando passaram pela vila de Posse, em Goiás, seis meses antes.

Nos 21 dias de duração dessa marcha, a 1ª Divisão Revolucionária ocupou 16 povoados e vilas, percorrendo 700 km. A partir de 27 de março, vários confrontos ligeiros foram mantidos com os bandos de jagunços, ocorrendo o principal em Barra do Mendes, envolvendo o destacamento Djalma Dutra.

A ação contra-revolucionária quase se resumia à realização de emboscadas contra os pequenos grupos de potreadores, evitando os jagunços aproximar-se dos destacamentos da coluna.

Concluída a travessia das Lavras Diamantinas, o terreno plano e aberto, coberto de campos floridos,  era impróprio às tocaias, passando então os bandos de Horácio de Matos, Franklin, Volney e Granja a formarem o que o capitão Moreira Lima designou de “a grande cauda de acompanhamento que nos seguiu até o norte de Minas”.

No dia 7 de abril, a 1ª Divisão Revolucionária foi recebida na cidade de Rio de Contas por uma comissão trajada a caráter: fraques, sobrecasacas e cartolas.  Relativamente rica e orgulhosa da condição de berço do educador baiano Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, a cidade registrava, no entanto, uma deficiência que motivou a seguinte reflexão do capitão Moreira Lima:

“Minas do Rio de Contas, apesar de ter um bom prédio para a cadeia, não possui um edifício condigno para escola, pois a que existe funciona num pardieiro.

É uma coisa que impressiona, tristemente, no interior do Brasil a diferença entre as cadeias e as escolas… É o contrário do que se verifica na Argentina… Outros prédios que sempre se encontram no interior da Argentina são os hospitais… Percorremos mais de 500 cidades, vilas e povoações e em nenhuma delas encontramos um só hospital”.

No dia seguinte, encantaram-se os revolucionários com a visão da cachoeira do Fraga, que despenca de 340 metros de altura.

A 13 de abril, assistiram uma sessão de cinema em Caculé e, no dia 15, vadearam o rio Gavião chegando à cidade de Condeúba, onde, a noite, os soldados encenaram uma comédia criada por eles próprios.

Estava quase concluída a travessia da Bahia – 1.596 km, em 52 dias.

Penetrando em território mineiro, no dia 19, a coluna atinge o povoado de Jatobá, no dia 23, tendo a sua retaguarda mantido dois recontros, no percurso, com as forças de Horácio de Matos e Honório Granja.

Numa reunião, Miguel Costa, Prestes e os comandantes de destacamento discutem e decidem o futuro da campanha.

Ao longo de um ano, a coluna se mantivera invicta, fustigando e batendo o governo sistematicamente, mas as forças insurgentes, em seu conjunto, não haviam reunido as condições para uma ofensiva estratégica. A onda revolucionária iniciada em julho de 1924, em São Paulo, apresentava sinais de esgotamento. Era necessário preparar o passo seguinte, no qual a ação política prosseguiria por outros meios.

Manter a luta armada até o último dia do governo Bernardes e aproximar a Divisão da fronteira boliviana, passaram a ser os objetivos da campanha.

O coronel João Alberto conta que a decisão foi mantida sob rigoroso sigilo:

“Não se falaria de emigração na coluna, nem aos próprios oficiais. Somente os comandantes e subcomandantes de destacamento tinham conhecimento da manobra”.

A posse de Washington Luís, candidato único à presidência da República, nas eleições de março de 1926, só ocorreria a 15 de novembro.

O plano do Estado-Maior, concebido e apresentado pelo general Prestes, para atingir esses objetivos, era tão ousado quanto surpreendente: realizar uma contramarcha, retrocedendo sobre os próprios passos, cruzar de novo a Bahia, transpor o São Francisco, atingir o Piauí, Goiás e Mato Grosso.

Para iniciá-lo era preciso livrar-se dos bandos de jagunços, que acompanhavam a coluna, e das tropas do Exército que subiam o rio São Francisco em embarcações, procurando cercar a 1ª Divisão Revolucionária.

Isso foi realizado, conforme o relato do capitão Moreira Lima:

“Prestes repetiu a manobra realizada em Pernambuco, após o combate da fazenda do Cipó, marchando, porém, para oeste, para dar a impressão de que avançava para aquele rio, mudando logo de direção. Descreveu, assim, um arco de círculo e entrando novamente na Bahia, deu à nossa marcha nos territórios baiano e mineiro a forma de um laço húngaro das faldas setentrionais do Grão Mogol à margem do São Francisco, no lugar Saco e no povoado de Rodelas”.

 

Combatendo bravamente, os destacamentos da 1ª Divisão Revolucionária enfrentam ciladas, emboscadas e as durezas do sertão nordestino

 

A 30 de abril, a 1ª Divisão Revolucionária sesteou na fazenda Ilha de Dentro, a leste da cidade de Condeúba, já no estado da Bahia.  Os revolucionários seguiram para Ituaçu, tendo atravessado o rio Gavião e mais adiante o das Contas, ocupando a cidade em 4 de maio.

No dia seguinte, uma potreada comandada pelo sargento Zupério prendeu o jovem Anatolino Medrado, levando-o até o acampamento do QG.

Anatolino era filho de Doca Medrado, chefe político da cidade de Mucugê, pai de 42 filhos e sogro de Horácio de Matos.

Mucugê fica nas proximidades de Brotas, capital do feudo de Horácio de Matos, na região das Lavras Diamantinas.

Ao ser preso, Anatolino dissera a Zupério que seu pai o encarregara de convidar os integrantes da coluna para irem a Mucugê, onde seriam recebidos como amigos.

O destacamento Dutra foi designado para acompanhar Anatolino até a cidade, enquanto o grosso levantou acampamento, retomando a marcha para o povoado denominado Guiné de Cima.

O convite tinha uma forte aparência de cilada. Mas se não fosse, poderia render à coluna armas e munições, que faziam muita falta naquele momento. O QG decidira correr o risco de fazer a verificação.

O 4º Destacamento, marchando cautelosamente, alcançou Mucugê, que fica além de uma longa e estreita garganta formada por duas serras pedregosas. Eram 9 horas da manhã.

Diz o capitão Moreira Lima:

Fazia a vanguarda o major Ari Salgado Freire, que atravessou aquela garganta até perto das primeiras casas da cidade.

Ao atingir esse ponto, foi hostilizado com violência, de frente e pelos flancos por numerosa tropa emboscada dentro das casas e nos altos das serras… Ari mediu a situação em que se achava e resolveu manter-se dentro daquele círculo de fogo em que penetrara, até receber o apoio de Dutra”.

O combate foi feroz. Os revolucionários só conseguiram retirar-se da garganta depois de  tomarem uma das serras, expulsando dali a força inimiga.

Os efetivos mobilizados por Doca Medrado eram de 400 homens, entre policiais militares e jagunços.

Transportando os feridos em padiolas, o destacamento Dutra iniciou a marcha para Guiné de Cima. A tropa inimiga tornou a atacar.

O capitão Moreira Lima registrou:        

“Eram 4 horas da tarde, o inimigo investiu contra os nossos com uma fúria terrível. O 4º Destacamento recuava combatendo bravamente, em proteção de seus numerosos feridos, assim percorrendo duas léguas, até que sobreveio a noite, quando se rompeu o contato com o adversário, cujas baixas também foram igualmente grandes”.

Em conseqüência da cilada, por não resistir aos ferimentos, morreria, na noite do dia 9, o tenente Leopoldo Ribeiro Júnior, voluntário baiano que havia se incorporado às forças revolucionárias durante a insurreição paulista de 1924.

Anatolino Medrado, que entrara no desfiladeiro ao lado do major Ari Freire, foi defendido por este, no inquérito aberto para apurar a sua responsabilidade na cilada. O relato é do capitão Moreira Lima:

“Ari declarou que… Anatolino se mostrara sinceramente surpreendido e indignado…, pedira-lhe uma arma para combater, não tendo passado para a cidade porque não quisera, pois fora descurada a sua vigilância durante o combate… Diante disso Anatolino nada sofreu, sendo levado como prisioneiro, sempre bem tratado, até a cidade de Monte Alegre, onde foi solto…”.

Algum tempo depois, ele daria uma entrevista num jornal de Salvador, afirmando que aceitara cumprir o papel de isca na armadilha preparada por seu pai.

Verdadeira ou falsa a segunda versão de Anatolino, a entrevista teve o mérito de expor de público a miséria moral que campeava nas hostes governistas. 

 

TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO 

O plano de campanha na Bahia era cortar a chapada Diamantina na direção noroeste, para atingir o vale do rio Verde, afluente do São Francisco, e cruzar o velho Chico na altura de Pilão Arcado.

Até o meio do caminho, a exceção da cilada em Mucugê, não houve confrontos. O dispositivo do general Mariante, composto pelas forças regulares que se deslocavam em embarcações, através do São Francisco, e pelos bandos de jagunços que faziam o papel de cauda da coluna, custou a perceber a manobra que esta fizera em Minas. Continuou tentando cercá-la naquele estado, quando ela já se deslocava pela Bahia.

A partir de Várzea, em 9 de maio, duros embates e mortíferas tocaias começaram a se suceder. O general Mariante conseguiu reposicionar as suas forças e os coronéis sertanejos pressionaram as populações dos pequenos vilarejos, para lançá-las contra a coluna.

Como essas pressões começassem a produzir resultados, a 1ª Divisão Revolucionária reagiu, incendiando os povoados de Barro Alto, Tiririca dos Bodes, Canabrava do Ângelo e Roça de Dentro, entre os dias 12 e 14.  

 O remédio amargo neutralizou o veneno. Na manhã do dia 17, a coluna sesteou em Passagem do Rio Verde, na margem direita deste rio, descendo-o até atingir a localidade de Pedrinhas, a 50 km da sua foz. Dali não pode mais prosseguir, as águas do Verde estavam represadas, naquele ponto, pela grande cheia do São Francisco, que galgara suas barrancas e vazara para as áreas ribeirinhas.

1ª Divisão Revolucionária enveredou, então, por uma picada de 80 km, na direção nordeste, através da vasta caatinga situada no chapadão que divide as bacias do Verde e do Jacaré, procurando atingir a localidade de Tabuleiro Alto.

O caminho era conhecido pelo nome de Estrada Cruel. Moreira Lima registrou no diário de campanha:

“Essa região é um ermo despovoado de pássaros e quadrúpedes, e nela vivem numerosos répteis que coleiam por entre as macambiras agressivas e as coroas de frade espalhadas pelos lajeados…

A marcha foi vagarosa, não só porque grande parte da tropa estava desmontada, como também por termos sido forçados a ir afastando numerosos galhos armados de temíveis espinhos, que obstruíam a estreitíssima passagem que percorríamos.”

Chegando a Tabuleiro Alto, próximo à margem direita do rio Jacaré, no dia 25 de maio, nova decepção os aguardava.

Conta o capitão Moreira Lima:

“Ali, segundo nos informou um morador que encontramos, o São Francisco estava com cinco léguas de largura… A margem do rio apresentava um aspecto doloroso de miséria e desolação. Nela apenas encontramos as pequenas canoas dos moradores, sendo portanto impraticável a travessia… Diante desses embaraços foi resolvido descermos até a altura da cidade de Sento Sé, a fim de ganharmos o sertão…”.

O plano envolvia altos riscos e extremo esforço para sua realização.

O caminho de Tabuleiro Alto a Sento Sé, apertado entre o rio São Francisco e a serra do Encaibro, alongava-se por quase 300 km de terrenos pegajosos, impróprios ao deslocamento rápido. Várias localidades, nesse percurso, estavam sendo ocupadas pelo inimigo. Este certamente concentrava forças em Sento Sé, bloqueando a garganta próxima da cidade, única saída para os sertões do leste. E os bandos de Horácio, Volney, Granja e Franklin de Albuquerque – ali conhecido como seu Franklin de Pilão Arcado – estariam logo atrás.

Se algo não desse certo, só restaria aos revolucionários invadir a imensa caatinga que cobria a serra do Encaibro, da qual haviam tido uma amostra na travessia da Estrada Cruel.              Agigantaram-se os soldados da coluna. Nada os deteve. Andando muitas vezes com água pela cintura, comendo e dormindo pouco, rompendo à bala ou contornando os bloqueios do inimigo, eles escreveram uma epopéia a parte através dessa estafante marcha.

No esforço final, o último obstáculo foi vencido com uma manobra, assim narrada pelo capitão Moreira Lima:

“João Alberto, que fazia a vanguarda, abriu uma picada de cerca de légua e meia e às cinco horas da manhã de 1º de junho, saímos a uma legua na retaguarda do entrincheiramento inimigo, na estrada de Sento Sé… A coluna que nos perseguia foi bater de encontro ás trincheiras da polícia…”.

Ganhando os sertões baianos, a 1ª Divisão Revolucionária livrara-se do aperto que a constrangia. O plano do Estado-Maior entrava, agora, em sua segunda fase: atingir o trecho não navegável do São Francisco, na altura da cidade pernambucana de Cabrobó, para, finalmente, poder transpô-lo e atingir aquele estado.

Esse ponto estava cerca de 400 km a nordeste de Sento Sé. Os revolucionários, no entanto, marcharam para sudeste, até Monte Alegre, infletindo para nordeste, até as imediações da estação ferroviária de Serrinha, seguindo depois para o norte, até Jeremoabo, cidade próxima à fronteira sergipana. Dali tomaram a direção noroeste, até Canché, e, finalmente, avançaram para o norte, até Rodelas, na margem do São Francisco, descrevendo uma grande curva de 1.470 km, em 32 dias.

Desconcertadas com a manobra, as forças comandadas pelo general Mariante anularam-se por completo.           

 

ACOLHIDA NO PIAUÍ 

O coronel João Alberto sintetizou em poucas palavras o final da campanha na Bahia e a travessia de seu estado natal:

Depois de outra marcha para o litoral…, conseguimos, ainda uma vez, graças à mobilidade da coluna, agora toda montada, atravessar o famoso rio, nas proximidades de Cabrobó, no sertão pernambucano… A reação do governo do Recife era, agora, bastante fraca. Mantinha a sua tropa a fim de…  defender capital do estado e prevenir-se contra qualquer tentativa de sublevação”.

No rápido deslocamento, através do território de Pernambuco, a 1ª Divisão Revolucionária seguiu o rumo noroeste, ate Bodocó, de onde infletiu para oeste, entrando no Piauí.

Após passar pelas cidades de Jaicós e Picos, o grosso estacionou em Oeiras, entre os dias 17 e 23 de julho.

O 2º Destacamento foi enviado a Amarante e Floriano, cidades que haviam sido ocupadas durante a primeira jornada da coluna naquele estado.

Em todas elas, os revolucionários foram recebidos pela população com manifestações de apreço e carinho.

Um único incidente foi registrado pelo capitão Moreira Lima no diário da campanha:

“Eu e João Alberto causamos involuntariamente um grande desgosto à cidade de Amarante: batemos os seus campeões de gamão numa partida em que nos empenhamos”.

Em Floriano, foi impresso mais um número do jornal O Libertador. Após um comício, realizado no dia 26, os oficiais revolucionários foram presenteados, pelas famílias locais, com lenços de seda vermelha.

A partir de 22 de julho, os jagunços de Volney, Granja e Franklin haviam começado a pressionar o destacamento Cordeiro de Farias, que fazia a retaguarda, na fazenda Tranqueiras. Novos ataques foram repelidos, a 25, em Tanque Novo, pelo 1º Destacamento, e a 26 pelo destacamento Siqueira Campos que avançara para o sul, até Jurumenha, reiniciando a marcha rumo ao estado de Goiás.

No Piauí, a 1ª Divisão Revolucionária aproveitara para recompor-se das perdas sofridas nos quatro meses de campanha na Bahia e Minas Gerais: quase 300 homens, entre mortos, prisioneiros, extraviados e desertores, contra 50 novos voluntários, incorporados à tropa.

Além de preencher esses claros, buscaram também os revolucionários reduzir a carência de armamentos e munições, já que o marechal Isidoro não respondera às suas solicitações a esse respeito.

A população de Oeiras despediu-se dos ilustres hóspedes, oferecendo-lhes um grande baile.

A dedicatória sobre um velho mapa de campanha, que ficaria na cidade como recordação daqueles acontecimentos, registrava os 16.500 km varados pela coluna, até aquela data:

“Marcha dos Revolucionários de 1924.

Percurso de 2.500 léguas de Puerto Adela (Paraguai) a Jurumenha (segunda passagem).

Lembrança ao senhor José Nogueira Tapety que gentilmente nos ofereceu outro mapa mais apropriado.

Oeiras, 22 de julho de 1926.

General Miguel Costa

General Luís Carlos Prestes”.

 

Missão das forças governistas para aniquilar os revoltosos, organizada pela oligarquia cafeeira, fracassa, e a 1ª Divisão Revolucionária marcha, através do Mato Grosso, em direção à Bolívia

 

Insatisfeita com os insucessos do dispositivo militar do general Mariante, a oligarquia paulista decidiu transferir à sua Polícia Militar a missão de aniquilar a1ª Divisão Revolucionária, no território de Goiás.

Um forte contingente de 4.000 homens de infantaria e dois regimentos de cavalaria, sob direção do próprio comandante da corporação, coronel Pedro Dias de Campos, foi deslocado para aquele estado. A Polícia Militar – que, na época, tinha o nome de Força Pública Paulista – estrearia também, nessa oportunidade, sua mais recente conquista bélica: uma esquadrilha de cinco aviões Curtis e JN.

Antes que os revolucionários se deparassem com o novo oponente, haveriam de passar, ainda, por mais uma dura prova.

A 27 de agosto, dois dias depois que a coluna penetrara em Goiás, cerca de 60 jagunços, comandados pelo capitão Ludovico Lustosa e guiados pelo desertor Newton Milhomem, por muito pouco não conseguem tirar a vida do general Miguel Costa.

Newton fora cabo no Exército e se apresentara à coluna, no Maranhão. Tendo desertado no norte da Bahia, se incorporara à força do major Abílio Volney que o fez oficial. Conhecedor dos hábitos de seus antigos camaradas, ele se oferecera para conduzir um ataque diretamente ao QG revolucionário, com o objetivo de matar Miguel Costa ou Prestes.

A oportunidade surgiu durante um confronto entre a tropa de Volney e o 1º Destacamento que fazia a retaguarda. O grosso acampara a poucos quilômetros dali, na fazenda do Piau – município de Monte Alegre.          

O pelotão do capitão Ludovico infiltrou-se por um flanco, onde havia um enorme banhado cortado por um riacho, conseguindo chegar,  sorrateiramente, a 50 metros do QG, prorrompendo, então, em intensa fuzilaria.

Conta o coronel João Alberto: “Eu havia acampado com o 2º Destacamento a cerca de 200 metros de uma velha fazenda onde ficara o general Miguel Costa, para sestear. Cordeiro de Farias, cobrindo a retaguarda, combatia em boas condições, a uns três quilômetros, defendendo uma passagem do córrego.

Conduzido por moradores que conheciam bem o terreno, o tal grupo de jagunços aproximou-se do acampamento do Miguel abrindo fogo a curta distância contra alguns companheiros nossos que se encontravam ao redor do churrasco. Surpresa! A confusão foi completa, mas a reação pronta. Siqueira Campos, que se encontrava nas proximidades, socorreu a turma do general Miguel Costa, liquidando os atacantes.

Tudo isso se passara em poucos momentos. Miguel Costa fora ferido… Corri com alguns homens para socorrer o Miguel, trazendo-o nos braços, com a ajuda de outros amigos, até a posição que eu ocupava. Lívido, golfando sangue pela boca e apresentando um vasto ferimento sobre o peito esquerdo (tão grande que nele cabia a mão) portava-se como um bravo. Agradecia-me com um olhar amigo a ajuda que lhe prestara e não soltava um só gemido.

Ao anoitecer, quando atingi o acampamento de Prestes, encontrei o major Aristides Correia Leal, oficial veterinário que fazia as vezes de médico e era pau para toda obra. Preparava, no momento, banha de porco para ser misturada ao ácido bórico… Fazia falta, no caso do Miguel, uma agulha de operação e um pouco de fio de guta para dar uns pontos na horrível abertura que lhe pulsava bem em cima do coração.

A resistência orgânica dos enfermos e o índice de salubridade das terras virgens eram, porém, os maiores medicamentos dos nossos feridos… Miguel deveria resistir também àquele sofrimento, restabelecendo-se completamente cerca de dois meses depois”.

Além do general Miguel Costa, foram feridos o tenente Atanagildo França, sargento Francisco Messa, cabo Francisco Martins, soldados Frederico Francisco Lira, Antonio da Rosa, Antonio Lemos da Silva e Amado Madure.

Morreram o sargento Faustino Gonçalves, os soldados Albino Bento de Freitas, Lidio Francisco de Sousa, Anésio de Oliveira e o conhecido como Periquito.

Oito jagunços foram mortos no embate, entre eles o renegado Milhomem. Não fosse o imediato contra-ataque de Siqueira Campos, à frente de um punhado de homens que se lançaram sobre os agressores, entrando em luta corporal contra eles a golpes de coronha de fuzil e facão, o desastre teria sido completo.                                                

 

O PILOTO AMERICANO 

No dia 3 de setembro, chegava à cidade mineira de Uberaba a esquadrilha que decolara de São Paulo para arrasar os revolucionários no interior de Goiás.

A força estava sob o comando do capitão Orton Hoover, aviador norte-americano que chefiava a missão instrutora da Polícia Militar de São Paulo.

O capitão Hoover atendeu com satisfação o pedido das autoridades locais para a realização de um show aéreo, brindando a população daquela cidade com uma demonstração inequívoca da superioridade das forças governistas sobre osimpertinentes rebeldes.

O show foi um sucesso. A vida, porém, não se sentiria compelida a imitar a arte. Na saída de Uberaba, para a escala seguinte, um dos aviões caiu, morrendo a sua tripulação, composta pelos oficiais Pereira Lima e Edmundo Chantre.

No dia 8 de setembro, antes de entrar em combate, caiu sobre a cidade goiana de Urutaí o avião pilotado pelo capitão Hoover.

A aeronave carregava 15 bombas que não detonaram, mas produziram uma crise, na capital da República, pois a evidência de que o falecido oficial norte-americano se encontrava em missão de combate e não de instrução violava a ordem jurídica, expunha a diplomacia de Washington a uma situação delicada e criava conflitos de competências entre as autoridades civis e militares.

A missão da esquadrilha foi cancelada e os três aviões restantes retornaram a São Paulo.

Desfalcado de sua força aérea, o coronel Pedro Dias dispusera as forças paulistas em duas linhas de defesa. A primeira estendida de São José do Duro a Porto Nacional, passando por Almas e Natividade. A segunda, mais ao sul, partia da cidade de Formosa, onde foi instalado o QG das forcas governistas, alongando-se pelo vale do Paranã, até a vila de Cavalcanti.

O capitão Moreira Lima aponta a vulnerabilidade dessa estratégia:

“Pedro Dias entrincheirou a força dentro das vilas e das cidades, mandando vigiar as estradas reais por fracas patrulhas e deixando os campos em completo abandono”.

No dia 23 de setembro, ele registraria no diário de campanha:

“Passamos entre Formosa e Planaltina, à distância de quatro léguas de cada uma delas… Estava transposta a defesa inimiga sem que houvéssemos travado um só combate, registrando-se apenas ligeiros tiroteios entre patrulhas, nos quais não tivemos um único morto ou prisioneiro e tão somente um ferido”.

Constatando a inutilidade das linhas de defesa, o coronel Pedro Dias procurou movimentar as suas forças, sofrendo, então, um golpe decisivo, em Olho D’Água, nas proximidades de Anápolis.

O relato é do capitão Moreira Lima:

“A coluna sesteou a 1º de outubro, na fazenda João Batista, andando cinco léguas, e acampou no lugar Taboca, cobrindo mais três léguas.

Aí foram assinaladas duas forças inimigas que se aproximavam, vindas de pontos diversos. Uma, constituída por um batalhão de polícia paulista, comandada pelo major Artur de Almeida, avançava a leste, e a outra formada pelos jagunços de Horácio de Matos, procedia do norte.

Prestes resolveu jogá-las uma contra a outra, como fizera com Paim em Maria Preta, e com os cangaceiros de Franklin e Volney e a polícia baiana nas proximidades de Sento Sé…

Os inimigos satisfizeram a sua vontade empenhando-se em encarniçado combate que durou desde a madrugada, até às 8 horas da manhã de 2… Esse encontro motivou o suicídio daquele major quando seguia preso para São Paulo a fim de ser submetido a conselho de guerra, acusado como responsável pelo mesmo”.

O coronel Pedro Dias foi removido do comando das forças governistas, reassumindo-o o general Álvaro Mariante.

 

GARIMPOS DO GARÇAS 

Em meados de outubro, a coluna revolucionária atravessou o rio Araguaia, atingindo o estado do Mato Grosso, na altura dos garimpos do Garças. A região era rica em diamantes e abrigava uma população de 30 mil baianos e maranhenses que cruzaram Goiás a pé, em busca da fortuna.

Vivendo em conflito com a polícia por questões de fisco, os garimpeiros tinham por hábito reagir à bala a qualquer violência que contra eles se praticasse.

As autoridades temiam aquelas legiões de homens armados e evitavam internar-se em seus domínios.

Os ideais dos combatentes da coluna eram quase incompreensíveis aos garimpeiros. No entanto, o fato de que ambos arrostavam com coragem os perigos advindos de suas opções gerava respeito. Havia também um inimigo comum que os aproximava: as tropas governistas.

Avaliando a situação, o general Prestes começara a arquitetar um novo plano, com objetivo de fixar as forças revolucionárias naquela região.

O projeto foi relatado pelo coronel João Alberto, nos seguintes termos:

“Criaríamos um núcleo de resistência de onde o governo não nos pudesse desalojar. Talvez isso desse mais resultado que enfrentar uma penosa marcha de 3.000 km, atravessando florestas e pantanais, para chegar, enfim, exaustos, a fronteira da Bolívia”.

Prestes já havia sustentado muitas idéias surpreendentes e, à primeira vista, insensatas, mas que logo haviam se revelado precisas e eficazes. Esse crédito não foi suficiente para convencer seus camaradas. E quanto mais aquela nova estratégia era questionada, mais ele insistia nela.

Conta o coronel João Alberto:

“O problema tornou-se tão sério que os comandantes de destacamentos se reuniram para deliberar.

Prestes defendeu calorosamente a tese… Dividir-se-ia a coluna em destacamentos autônomos que eventualmente se poderiam apoiar… Miguel Costa reagiu vigorosamente… inflamou-se na defesa da coluna que, dizia ele, não podia desaparecer assim, ao terminar a gloriosa jornada através do Brasil.          Suspendemos a reunião sem que nada ficasse resolvido. Todos nós, comandantes de destacamentos sabíamos que a razão estava com Miguel Costa… Entretanto não queríamos, assim, numa reunião, desgostar Prestes, velho companheiro, repelindo por unanimidade o seu alvitre…

Siqueira e eu encarregamo-nos de falar mais tarde a Prestes em sua barraca… Não foi preciso argumentar muito. Prestes também já havia sentido que também éramos pela imigração”.

Retomado o plano original, a 1ª Divisão Revolucionária dirigiu-se para o sul, marchando na direção de Campo Grande.                                      

 

COLUNA RELÂMPAGO 

No dia 25 de outubro, na  fazenda Cervo – 130 km ao norte da cidade de Coxim – destacou-se da 1ª Divisão Revolucionária um piquete de nove homens, comandados por Emídio Miranda, com a missão de escoltar o tenente-coronel Djalma Dutra e o capitão Moreira Lima, até a fronteira paraguaia, situada a 800 km de distância.

Os dois oficiais deveriam dirigir-se a Libres, na Argentina, a fim de estabelecer contato com o marechal Isidoro.

Até a altura de Campo Grande, a marcha do grupo seria monitorada à distância, pelo 3º Destacamento.

Conta o capitão Moreira Lima:

“Fora combinado comigo e Dutra, ao nos separarmos da coluna, a 25 de outubro, que nos deveríamos achar na fronteira da Bolívia, nas alturas de San Mathias… dentro de dois meses, a contar daquela data, quando a coluna se deveria encontrar nas cercanias daquela região, a fim de nos reunirmos a ela…”.

Dutra e Moreira Lima chegaram a Passo de los Libres, em 14 de novembro. O piquete que os acompanhou até a fronteira paraguaia voltou a reunir-se à Divisão no dia 30 de novembro.

Na primeira conferência mantida com o marechal Isidoro, os dois emissários foram informados de que uma ampla e complexa operação militar se encontrava em fase final de preparação.

O plano previa o levante de unidades do Exército, no Rio Grande, inclusive a guarnição da estratégica cidade de Santa Maria, a penetração de três colunas revolucionárias, naquele estado, e uma em Santa Catarina. O marechal havia investido 200 contos de réis, para armar essas colunas organizadas pelos generais maragatos Zeca Neto, Leonel Rocha, Julio de Barros e dezenas de militares exilados como o general Bernardo Padilha, o coronel Estilac Leal e vários componentes da guarnição do encouraçado São Paulo.

Seguro de que esta iniciativa mudaria o curso da luta, o marechal se dirigia à 1ª Divisão Revolucionária pedindo – pois “não se considerava com o direito de ordenar” – que esta permanecesse em armas, “a fim de manter aceso o fogo sagrado da revolução, até que o Rio Grande voltasse a luta”.

Conta o capitão Moreira Lima:

“Entretanto, no dia seguinte começavam a chegar boatos de haver rebentado o movimento revolucionário, no Rio Grande…

No dia 17, o marechal recebeu uma carta de Santa Maria, em que os nossos amigos lhes comunicavam que o pessoal de São Gabriel resolvera precipitar o levante para o dia 14, o que já havia feito e que eles, assim surpreendidos, só se poderiam levantar até o dia 18… Outros levantes parciais foram se verificando em vários pontos, sem nenhuma unidade coordenadora. O marechal Isidoro… tratou de tomar as providências que julgou conveniente, declarando-nos porém, imediatamente, que considerava o movimento abortado… Em seguida escreveu a Miguel e Prestes… Nessa carta ele… pedia que a coluna se mantivesse em armas por dois meses, a contar de 23 de novembro… E, que expirado esse prazo, se a situação no sul não lhe desse oportunidade de se movimentar isoladamente, emigrasse…”.

As orientações de Isidoro eram tão altissonantes quanto inócuas, assim como seu plano.

À exceção da vitória obtida pelo 5º Regimento de Artilharia Montada, rebelado pelo tenente Alcides Etchegoyen, contra os provisórios comandados por Osvaldo Aranha, ferido naquele combate, nas proximidades de Santa Maria, a campanha foi uma sucessão de equívocos, correrias, fracassos e dilapidação dos efetivos revolucionários, passando a ser conhecida pelo nome de coluna relâmpago. Já no início de janeiro, nada restava das múltiplas colunas coordenadas pelo marechal.

Moreira Lima, que retornara de Libres, no dia 23 de novembro, aguardou por vários dias, na fazenda Descalvados, situada no Mato Grosso, a 120 km da vila boliviana de San Mathias, a passagem da 1ª Divisão Revolucionária por aquela região. O capitão viajara sozinho, pois Djalma Dutra permanecera na Argentina.

Na madrugada do dia 2 de fevereiro, ele conseguiu fazer contato com umapotreada comandada pelo tenente Sousinha. No dia 3, encontrou-se, em San Mathias, com o tenente-coronel Ari Freire, que substituíra Dutra no comando do 4º Destacamento. Dali seguiram para a fazenda Capim Branco, onde a Divisão acampara após haver emigrado.

Com base nos relatos de seus camaradas, o capitão Moreira Lima conseguiu recompor, no diário de campanha, os três últimos meses de lutas da coluna.

 

No último capítulo da série, os revolucionários chegam ao exílio, após os 21 meses em que percorreram 25.000 Km do território brasileiro. Em meados de 1929, a candidatura de Getúlio à sucessão de Washington Luís deflagraria uma nova ofensiva para libertar o país do domínio da oligarquia cafeeira paulista. Os soldados da coluna voltariam a atender ao chamado das armas

 

Ao separar-se do 3º Destacamento – e do piquete que conduziu seus emissários, da fazenda Cervo à fronteira paraguaia – a 1ª Divisão Revolucionária infletiu para o norte, prosseguindo sua marcha através do Mato Grosso em direção à Bolívia.

O séqüito de jagunços que se arrastava atrás dela, como uma indesejável cauda, não acompanhou Siqueira Campos, frustrando assim um dos objetivos da manobra.

No dia 6 de novembro, o 1º Destacamento, que fazia a retaguarda, bateu-se contra o bando de Franklin de Albuquerque. No dia 10, foi a vez do destacamento João Alberto enfrentar uma força composta de jagunços e policiais militares do Mato Grosso, que deixaram no campo de batalha 13 animais encilhados, 750 tiros, um fuzil-metralhador, vários fuzis mauser e três feridos.

No dia 11, a coluna acantonou no garimpo de Caçununga, voltando a penetrar na região do alto Garças. Pela madrugada, o capitão Filó bateu um contingente da polícia mato-grossense, tomando-lhes sete cavalos encilhados, um fuzil metralhador, dois fuzis mauser e 800 tiros.

A Divisão esperava encontrar naquela região o destacamento Siqueira Campos, de volta do seu raid às cercanias de Campo Grande. Como isso não ocorreu, o Estado Maior resolveu dirigir-se para leste, disposto a verificar se eram procedentes as informações que circulavam na região, de que o 3º Destacamento estaria nas proximidades da capital do estado – na época, a cidade de Goiás Velho.

Cruzando o rio Araguaia, no dia 17, o 1º Destacamento sustentou tiroteio contra a tropa de Horácio de Matos. Em 29 de novembro, a Divisão atingiu a localidade de Pilões, no vau do rio de mesmo nome, onde combateu uma força do 6º Batalhão de Caçadores – tropa do Exército que guarnecia a linha telegráfica Goiás-Cuiabá.

Dali a coluna inverteu o rumo da marcha, voltando para o Mato Grosso. O Estado-Maior concluíra que o 3º Destacamento não deixara aquele estado.

No dia 10 de dezembro, a 1ª Divisão Revolucionária voltou a cruzar o Araguaia, tendo percorrido 789 km, em 22 dias, na quarta passagem pelo território goiano, de verdes rios e exuberantes paisagens que os aguerridos combatentes não se cansavam de apreciar.

O plano do Estado-Maior era cruzar o Mato Grosso, na direção noroeste, atravessando os rios das Garças e das Mortes, passando ao norte de Cuiabá e transpondo o rio Paraguai. Dali marchariam para o sul varando os pantanais, até a fronteira boliviana.

O primeiro combate ocorreu no dia 19, na transposição do rio das Garças, contra o bando de Franklin de Albuquerque reforçado por uma tropa da Polícia Militar. O destacamento João Alberto derrotou o inimigo que retirou-se, deixando em campo, vários mortos, 22 cavalos encilhados, armamentos e dois prisioneiros: um tenente e um soldado da polícia.

Foi morto nesse combate o major Manuel Alves de Lira, subcomandante do 2º Destacamento. Lira havia se incorporado à revolução, em julho de 1924, na capital paulista, tendo comandado o 2º Batalhão de Caçadores da Brigada São Paulo.            

A 24 de dezembro, o 1º, 2º e 4º destacamentos assestaram um golpe demolidor sobre uma força de 400 homens da Polícia Militar do Mato Grosso, nas proximidades da estação telegráfica Presidente Murtinho.

Conta o capitão Moreira Lima:

“O inimigo perdeu 32 homens mortos, 46 prisioneiros, estando 8 feridos, 18 fuzis mauser, 15.000 tiros, 14 cofres de munição para metralhadoras, 600 carregadores, inteiramente carregados, num total de 20.000 tiros, 2 caminhões automóveis, um auto Ford, 12 cavalos encilhados, além de grande quantidade de fardamentos e outras peças de equipamentos”.

Novos combates ocorreram, na travessia do rio das Mortes, a 28 de dezembro, contra uma força do 16º Batalhão de Caçadores que guarnecia a ponte, e na margem esquerda do Cuiabazinho, a 5 de janeiro, contra os jagunços de Franklin Albuquerque.

No segundo confronto, foi morto o capitão Filó – Filogônio Antonio Teodoro era sargento da Polícia Militar de São Paulo e integrara a lendária Coluna da Morte, do tenente Cabanas, desde os primeiros dias da luta, naquele estado.

A 8 de janeiro, a 1ª Divisão Revolucionária transpôs o rio Paraguai. No dia 10, teve início a dura jornada pela imensa região dos pantanais, que se estendem até a Bolívia.

Conta o capitão Moreira Lima:

“Essa travessia foi a marcha mais difícil… durante toda a campanha e somente se lhe pode comparar a que fizemos na margem do São Francisco quando regressamos de Minas, tendo sido esta, porém, muito mais fácil e menos dolorosa do que aquela.

Os animais desapareciam dia a dia.

Muitos soldados viajavam montados em bois, que passaram a ser utilizados na condução das cargas e das padiolas.

Dentro de pouco tempo, porém, a coluna estava a pé e sem recursos, alimentando-se de palmitos, e dos poucos bois que lhe restavam para as montarias, sem ter sequer um pouco de sal para temperar a carne.

Essa marcha era feita muitas vezes com água pelos peitos e em certas ocasiões a nado, quando se deparava com algum corixo.

Descansava-se trepando nas árvores… Durante a noite, milhões e milhões de pernilongos perseguiam os homens e as bestas…

Do rio Sepotuba ao Cabaçal foi necessário abrir uma picada na mata, numa extensão de 33 léguas e meia, durante oito dias, de 15 a 22”.

Um último combate custaria ainda aos revolucionários quatro mortos e quatro feridos. O choque ocorreu na fazenda Pantanal, nas proximidades do rio Jaurú, a 28 de janeiro. Os jagunços de Franklin de Albuquerque deixariam em campo 30 mortos.

No dia 3 de fevereiro, 800 homens da 1ª Divisão Revolucionária deixariam o solo nacional, entrando na Bolívia, indo acampar na fazenda Capim Branco, após haver percorrido 1.900 km, em 55 dias, nesta derradeira etapa da Grande Marcha.

 

O RAID DO 3º DESTACAMENTO 

1ª. Divisão Revolucionária internara-se na Bolívia. O 3º Destacamento, porém, permaneceria em território brasileiro, até o dia 24 de março.

Após destacar-se da coluna, marchando em direção a Campo Grande, com o objetivo de fixar as tropas governistas naquela cidade, Siqueira Campos descreveu uma circunferência de 1.000 km em torno da sede da 4ª Região Militar, no estado, invadiu Goiás, marchando até Minas Gerais, onde ocupou a cidade de Paracatu, com 80 homens.  Dali dirigiu-se para o sudoeste, cruzando Goiás, Mato Grosso e, por fim, a fronteira da República do Paraguai, a 24 de marco, tendo percorrido 9.000 km, em cinco meses.

De Buenos Aires, ele escreveria ao velho camarada da Escola Militar do Realengo:

“30 de abril de 1927.

Prestes,

Às ordens, meu caro general!

São tantas as coisas que tenho a te dizer que não sei por onde começar. Vamos agir com método. Vou em traços gerais dizer o que fiz, para contar depois o que houve após a emigração.

Como deves saber, a 24 de outubro deixei a coluna para marchar em direção a Campo Grande, procurando levar a cauda do cometa. Infelizmente a cauda te acompanhou, o que vim a saber alguns dias depois…

Fui até perto de Campo Grande, atravessei a estrada de ferro em Visconde de Taunay, entre Miranda e Aquidauana, marchei em direção a Nioaque, para depois ir atravessar a estrada de ferro, em Ligação (a cinco léguas de Campo Grande) com destino a Goiás, onde tinha notícias de que andavas.

Fiz uma marcha rápida para Goiás, tendo atravessado todos os rios – Verde, Sucuriú, Peixe, Corrente Claro e da Ponte – indo bater, a 1º de janeiro, na cidade de Jataí, às 4 horas da manhã… Lá soube dos combates de Presidente Murtinho, da derrota da polícia e da ordem do Mariante para os destacamentos marcharem todos em direção a Cuiabá.

Segui com a intenção de te procurar, mas tendo encontrado o Claro cheio em todas as vaus, retrocedi em direção a Rio Verde… que já estava guarnecida e tendo passado perto vim bater em Santana do Parnaíba.

Por essa época eu já tinha todo o meu pessoal armado a fuzil e mosquetão (novinhos), cada soldado a 100 tiros e mais uns 10.000 de reserva!

De Santana, voltei a Goiás… e tendo encontrado a zona boa resolvi dar as caras e fazer um passeio pela estrada de ferro.

Passei pelas cidades de Palmeiras, Pouso Alto, Santa Cruz e Pires do Rio… Oficialmente mudei o nome da estação de Pires do Rio para ‘Prestes’, não sei se eles respeitarão a idéia!

Em Pouso Alto, a 8 de fevereiro, recebi um rádio do Mariante avisando a tua imigração. Da estação de Pires do Rio resolvi fazer uma pilhéria com o Favilla, que era o signatário do tal telegrama da emigração e passei-lhe o seguinte: ‘Major Favilla – no momento em que prendo o trem P2, no qual sigo para a Bolívia, peço transmitir Presidente da República votos feliz administração sua vasta senzala’…

De lá ainda fui a Paracatu – Minas Gerais – e a 14 de fevereiro…, tomei o rumo da fronteira paraguaia.

Pelo croquis junto poderás ver a minha marcha louca até Bela Vista. Só houve um incidente na passagem da linha Jataí-Rio Verde, onde tive que passar por dentro do acampamento chimango à meia-noite, e na estrada de ferro (em Senador Vitorino), onde houve um tiroteio com o pessoal do Horácio…

Emigrei com 65 homens, tendo ficado alguns no Brasil em fazendas de camaradas… Mortos foram poucos: Melena, morto a 15 de novembro, perto do rio Manso, por um jagunço. Negro João, morto afogado em fins de dezembro, perto da fronteira Mato Grosso-Goiás. Quatorze, morto por jagunços em Paracatu, a 14 de fevereiro.

Tive que deixar o negrinho Antônio, ferido na barriga, no combate de Barra dos Bugres, com um canoeiro que ia descer o rio Paraguai, tenho esperanças que tenha se salvado…

Vai uma lista dos soldados emigrados…

Notícias mais detalhadas tê-la-ás pelo Dutra…”.

Ao longo de toda a campanha, a imprensa governista cobrira de infâmias o herói da saga dos 18 do Forte. Um exemplo são os artigos de Ariosto Palumbo, publicados no jornal O País, reunidos posteriormente em livro, sob o título “Jantando um Defunto”. Subtítulo, não menos sugestivo: “a mais horripilante e verdadeira descrição dos crimes da revolução”.

Conta ele que Siqueira Campos, ao passar por Buriti, em Mato Grosso, “deflorara nove moças, filhas de um tal Manuel Inocêncio, que morreu com a cabeça esmigalhada por um tiro”.  Revela também o escriba que “a égua Água Doce, um animal endemoninhadosimpatizara com a figura de Siqueira Campos, o Átila, e ficara como sua montaria, ela que nunca consentira ser cavalgada por ninguém”.

Os prejuízos que tais injúrias, produzidas aos borbotões, causaram à revolução, não foram maiores do que o descrédito que lançaram sobre o governo e as forças oligárquicas que as endossavam e patrocinavam.

Siqueira Campos passaria à história como o herói que sempre fora. Seus detratores seriam relegados ao esquecimento.           

 

EPÍLOGO

No exílio, uma das primeiras providências adotadas pelos protagonistas daGrande Marcha foi a remoção do marechal Isidoro do comando supremo da revolução.

A escolha recaiu sobre Prestes.

Conta o coronel João Alberto:            

“Siqueira viajava para Buenos Aires e Montevidéu a fim de combinar com os outros companheiros emigrados a retirada do comando das mãos do marechal Isidoro… para as de Prestes… Combinamos elevar o nome do Prestes à altura de um verdadeiro líder que polarizasse toda a chama, todo o idealismo da revolução… De pouco valeria para a revolução a existência de numerosos pequenos heróis… Surgiu então o ‘Cavaleiro da Esperança’”.

1ª Divisão Revolucionária tornou-se a Coluna Prestes, denominação que foi se afirmando com o passar dos anos.

Em meados de 1929, a candidatura de Getúlio Vargas, à sucessão de Washington Luís, deflagraria uma nova ofensiva revolucionária para libertar o país do domínio da oligarquia cafeeira paulista.

Os soldados da coluna voltariam a atender ao chamado das armas.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído do Jornal Hora do Povo – Agosto de 2007

 

A Revolução de Vargas

 

A REVOLUÇÃO DE VARGAS

 

“Desta viajada se volta com honra ou não se volta mais”

 

1. Prólogo

2. Assalto ao QG da 3ª Região Militar

3. Morro do Menino Deus

4. Tomada de Porto Alegre

5. Sucessão de Washington Luís

6. Aliança Liberal

7. Preparação da Insurreição

8. Campanha Eleitoral

9. O Amigo da Onça

10.  Defecção de Prestes

11.  Manifesto de Vargas

12.  Volta por Cima

13.  Assassinato de João Pessoa

14.  Preparativos Finais

15.  Colunas Avançadas

16.  Revolução em Minas

17.  Revolução no Nordeste – 1

18.  Revolução no Nordeste – 2

19.  A Caminho do Front

20.  Deposição de Washington Luís

21.  A Batalha de Itararé

22.  Passagem por São Paulo

23.  Chegada ao Rio de Janeiro

24.  Epílogo

 

 

1. Prólogo

3 de outubro de 1930. Getúlio Vargas, governador do Rio Grande do Sul, candidato esbulhado nas eleições presidenciais de março, registra em seu recém iniciado diário: 

“Se todas as pessoas anotassem diariamente num caderno seus juízos, pensamentos, motivos de ação e as principais ocorrências de que foram parte, muitos a quem um destino singular impeliu poderiam igualar as maravilhosas fantasias descritas nos livros de aventura dos escritores da mais rica imaginação. O aparente prosaísmo da vida real é bem mais interessante do que parece. Lembrei-me que se anotasse, diariamente, com lealdade e sinceridade, os fatos de minha vida como quem escreve apenas para si mesmo e não para o público, teria aí um largo repositório de fatos a examinar e uma lição contínua de experiência a consultar.

Não o fiz durante a minha mocidade cheia de episódios  interessantes que vão se apagando pouco a pouco da memória. Depois, o trato contínuo com os homens e as observações feitas sobre os mesmos em fases e circunstâncias diferentes nos habilitam a um juízo mais seguro.

Lembrei-me disso hoje, dia da Revolução. Todas as providências tomadas, todas as ligações feitas. Deve ser hoje às cinco horas da tarde. Que nos reserva o futuro incerto neste lance aventuroso?…

Pela manhã recebi o secretário da presidência, com quem despachei a correspondência do dia, e entreguei-lhe para passar a limpo o manifesto revolucionário que deverá ser publicado amanhã… Chegou às 10 horas o coronel Claudino Nunes Pereira, comandante da Brigada Militar. Achei-o mais confiante. Estava antes vacilante e um tanto desanimado. Não acreditava no êxito do movimento… Atendi.. o dr. João Simplicio, secretario da Fazenda… Nada sabia sobre o movimento preparado para hoje, apenas os boatos insistentes que corriam a cidade… disse-me que queimaria toda a sua biblioteca se Minas entrasse no movimento revolucionário porque, se tal acontecesse, instituiria uma subversão completa de todas as noçòes que ele havia aprendido…

Quatro e meia, aproxima-se a hora. Examino-me e sinto-me com o espírito tranqüilo de quem joga um lance decisivo porque não encontrou outra saída digna para o seu estado. A minha sorte não me interessa e sim a responsabilidade de um ato que decide do destino da coletividade. Mas esta queria a luta, pelo menos nos seus elementos mais sadios, vigorosos e ativos. Não terei depois uma grande decepção? Como se torna revolucionário um governo cuja função é manter a ordem? E se perdermos? Eu serei depois apontado como responsável, por despeito, por ambição, quem sabe? Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”.

 

2. Ataque ao Quartel-General da 3ª Região Militar

“Começou o movimento, um fogo vivo de fuzilaria e metralhadoras, uns vinte minutos de luta e foi tomado o quartel-general, presos o comandante da Região e seu estado-maior. O assalto foi feito por guardas civis e populares capitaneados por Osvaldo Aranha, Flores da Cunha e Adalberto Correia. Foi um lance épico”.

Osvaldo Aranha organizara meticulosamente o decisivo ataque. Por delegação de Vargas, ele assumira a frente dos preparativos da insurreição, desde o ano anterior, como secretário de Interior e Justiça de seu governo.

O plano era capturar, logo no início do levante, o general Gil de Almeida, comandante da 3ª Região Militar, e seu estado-maior, de modo a desarticular o esforço contra-revolucionário.

O quartel da Guarda Civil ficava nas imediações do Quartel-General da 3ª     Região. Com várias semanas de antecedência, Aranha determinara que diariamente, às cinco da tarde, hora em que encerrava o expediente nas repartições militares, a Guarda Civil entrasse em formatura e iniciasse um desfile, saindo de seu prédio e passando, invariavelmente, pela frente ao QG. Sentinelas e demais ocupantes da unidade militar acostumaram-se àquela rotina.

No dia 3 de outubro, a cena costumeira se repetiria. A diferença é que alguns edifícios na retaguarda e no flanco esquerdo do quartel haviam sido discretamente ocupados pelos revolucionários que ali instalaram metralhadoras para servirem de cobertura ao assalto. Igualmente, nas imediações do QG um grupo armado, integrado por Osvaldo Aranha e pelo senador Flores da Cunha, aguardava a passagem da tropa da Guarda Civil. Quando esta chegou em frente ao QG, o ataque começou. As sentinelas foram surpreendidas e o prédio invadido. A luta foi curta, porém intensa. Dos 50 revolucionários que atacaram o prédio, a metade foi posta fora de combate – seis morreram na própria investida e cinco mais tarde, em conseqüência dos ferimentos. Mas estavam presos o general Gil de Almeida, o coronel Firmo Freire, chefe de seu estado-maior, e outros oficiais.

Na mesma rua, a poucos metros do Quartel-General, a guarnição do arsenal de guerra foi dominada por outro contingente integrado por guardas civis e populares, dirigidos pelos deputados federais Adalberto Correia e Francisco Antunes Maciel.

 

2. Morro do Menino Deus

3 de outubro. Diário de Vargas:

“No morro do Menino Deus estavam dois corpos o 8º e o 9º Batalhão de Caçadores. O primeiro, sob o comando do tenente-coronel Galdino Esteves, aderiu, e o segundo ofereceu fraca resistência sendo preso o comandante e alguns oficiais”. 

O segundo alvo estratégico da insurreição na capital gaúcha era o fortificado Morro do Menino Deus, onde estavam sediados dois regimentos de Cavalaria Divisionária – o 3º e o 4º. Em setembro, o general Gil de Almeida havia reforçado essa posição com o 8º e o 9º Batalhão de Caçadores, respectivamente comandados pelo tenente-coronel Galdino Esteves e pelo coronel Toledo Bordoni. O contingente ali aquartelado atingia um efetivo de 1.500 homens.

Além de se constituir na mais importante posição da tropa federal, em Porto Alegre,  no imenso paiol do Morro estava armazenada a “única reserva de munição existente no estado”.

O coronel João Alberto, veterano da Revolução de 1924, encarregado de comandar a investida, comenta o fato:

“O ponto fraco da revolução era justamente o reabastecimento da munição de fuzil. Nem a Brigada Militar do estado nem os corpos de tropa do Exército dispunham de municiamento para grandes combates. Seria temeridade armar uma centena de milhar de homens para uma luta séria, contra um adversário poderoso, sem ter o reabastecimento garantido… Aquela munição não nos podia escapar. Se o general Gil a fizesse explodir no último instante o êxito do movimento talvez ficasse comprometido”.

Momentos antes da hora combinada para o ataque, o tenente-coronel Galdino Esteves neutralizou o 8º Batalhão, sob seu comando, conduzindo-o para o salão do rancho. Sob a cobertura de um grupo comandado por Estilac Leal, João Alberto atacaria as trincheiras, na parte alta do Morro, guarnecidas pelo 9º Batalhão, também previamente minado pela pregação revolucionária. O tenente Setembrino Palma, com um pequeno grupo de guardas civis e alunos do CPOR, procuraria imobilizar as tropas de Cavalaria, surpreendendo-as em seus alojamentos.

João Alberto fez a seguinte narração do episódio:

“Tínhamos apenas cinco minutos de espera, quando ouço uma fuzilaria vinda lá de baixo, na direção do quartel de Cavalaria. O tenente Setembrino Palma cumprira a sua palavra. Dei o sinal de avanço… Uma fuzilaria nervosa estrondou por toda a linha de fortificação do adversário. Quis, minha boa estrela, que o ataque… incidisse sobre a trincheira ocupada pela companhia do tenente Amaro, nosso companheiro de conspiração… Galgando temerariamente o parapeito da própria posição, para se dar a conhecer, no meio das balas, ele agitou um lenço vermelho, símbolo das forças revolucionárias… Em menos de meia hora dominamos o Morro e precipitamo-nos, em seguida, sobre os alojamentos em defesa de Setembrino”.

O tenente, no entanto, já havia dominado os 170 soldados que se encontravam no quartel. Estes se renderam pouco depois de haver tombado o seu comandante – capitão Jaime Argolo Ferrão.

 

4. “De Pé, Pelo Brasil!”

3 de outubro. Diário de Vargas:

“Resistiu até a madrugada o 7º Batalhão de Caçadores comandado pelo coronel Acauã. Durante à tarde e parte da noite, a cidade sofreu o alarme de fogo cruzado  entre os sitiantes e sitiados, fuzilaria, metralhadoras e morteiros. Pouco depois da meia-noite, veio um oficial do 7º  ao palácio  propor-me um parlamento. Entreguei-o ao coronel Góis Monteiro que ficou dirigindo as operações como meu chefe do estado-maior. Este regulou as condições de entrega e o 7º se rendeu”.

Com a queda desta unidade, Porto Alegre passou inteiramente ao comando das forças revolucionárias. O coronel Benedito Marques da Silva Acauã, comandante do 7º Batalhão de Caçadores, era cunhado do senador Flores da Cunha, o que não o impediu de oferecer uma resistência encarniçada, acima de todas as expectativas. Para não permitir que a luta se prolongasse em demasia, os revolucionários tiveram que fazer uso maciço da artilharia e mesmo dos lança-chamas que haviam sido preparados por outro veterano das revoluções de 1922 e 1924, o major Henrique Ricardo Holl.

Porém, no momento da rendição, o coronel Acauã formou a tropa, para despedir-se de seus comandados, e informou que, conforme as condições estabelecidas, todos aqueles que quisessem regressar a seus lares deveriam dar um passo a frente, pois poderiam fazê-lo com todas as garantias. Nem um só homem se moveu, incorporaram-se todos às fileiras revolucionárias.

No dia 4, pela manhã, os jornais estampavam o manifesto revolucionário que o secretário de Vargas recebera dele, pela manhã do dia 3, com a orientação de encaminhá-lo para a publicação, no dia seguinte – sutilezas a que se obriga um governador decidido a dirigir uma revolução e não a alardeá-la:

“O povo oprimido e faminto. O regime representativo golpeado de morte, pela subversão do sufrágio popular… Daí como conseqüência lógica a desordem moral, a desorganização econômica, a anarquia financeira, o marasmo, a estagnação, o favoritismo, a falência da Justiça. Entreguei ao povo a decisão da contenda, e, este, cansado de sofrer rebela-se contra os seus opressores… Não foi em vão que o nosso Estado realizou o milagre da união sagrada. É preciso que cada um de seus filhos seja um soldado da grande causa. Rio Grande, de pé pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heróico!”

O apelo foi atendido prontamente. Em poucos dias, cerca de 50.000 voluntários se alistaram para a luta. As tentativas de reação das forças federais, no interior do estado, restringiram-se a Rio Grande, Bajé, São Gabriel, Alegrete, Itaqui, São Borja e Passo Fundo, e foram rapidamente debeladas. O Rio Grande estava pronto.

 

5. Sucessão de Washington Luís

Getúlio Vargas assumiu o governo do Rio Grande do Sul em 25 de janeiro de 1928. Desde a campanha eleitoral, no ano anterior, conseguira a pacificação do estado, sendo apoiado por chimangos e maragatosRepublicanos e libertadores, pela primeira vez na história da República, trocavam as armas pela busca do entendimento. Da rica experiência política vivida pelo país, ao longo da década de 20, Vargas tirara a convicção de que o Rio Grande dividido deixava a oligarquia cafeeira de mãos livres para impor seus interesses ao conjunto do país. E estes tornavam-se cada vez mais estreitos e excludentes.

política de valorização do café convertera-se numa bomba de efeito retardado. A safra de 1927 fora de 28.334.000 de sacas, para um consumo mundial de 23.536.000. O governo sustentava artificialmente o preço, comprando o excedente com recursos obtidos através de empréstimos nos bancos ingleses e norte-americanos. Em dez anos, o número de pés de café havia passado de 2.000.000, para 2.579.000.  A safra de 1929 ameaçava atingir a casa das 38.000.000 de sacas. Uma violenta crise despontava no horizonte, antes mesmo de sobrevir o crack da bolsa de Nova Iorque.

Diante dessa situação, a oligarquia cafeeira paulista decidiu ignorar o pacto que previa a transferência da presidência da República a um aliado mineiro, nas eleições de março de 1930. A manutenção de seus privilégios, num quadro de crise aguda, implicaria na imposição de maiores sacrifícios aos demais setores da sociedade, daí a necessidade de um presidente paulista, nada menos que o governador do estado, ainda que isso provocasse a ruptura da tradicional política do café-com-leite.

 Pela segurança de que seus privilégios seriam preservados sem hesitação, a oligarquia cafeeira estava disposta a pagar o preço do isolamento político. Considerava que o sistema eleitoral vigente lhe garantiria a vitória em quaisquer circunstâncias. Além do voto a bico de pena – aberto e não secreto – que propiciava a  intimidação dos eleitores, a designação de todos os componentes das mesas era de responsabilidade exclusiva dos presidentes das casas legislativas. Depois de colhidos e contados, os votos eram incinerados, restando as atas, cuja validação e totalização também estavam sob estrito controle dos presidentes dos legislativos.

Em poucas palavras, Getúlio Vargas resumiu o funcionamento desse sistema:

“Na maior parte dos estados do Brasil, as eleições são lavradas em atas falsas, feitas nas casas dos apaniguados dos governos locais, sem interferência do povo”.

Se isso não fosse o bastante, no caso das eleições aos cargos de presidente da República, deputados e senadores, a comissão de verificação de poderes da Câmara Federal, também nomeada pelo presidente da casa, se encarregaria da degola – termo pelo qual celebrizou-se o ato de transformar candidatos derrotados em vencedores e vice-versa.

À frente do governo de Minas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, reagiu à pretensão da oligarquia paulista, de impor o nome de Júlio Prestes, retirando-se da disputa e selando uma aliança, em 17 de junho de 1929, pela qual o Partido Republicano Mineiro e o Partido Republicano Rio-Grandense vetariam a candidatura do dr. Julinho e se unificariam em torno de Getúlio Vargas.

 

6. Aliança Liberal

A proposta das forças dominantes nos estados que detinham o primeiro e o terceiro maior colégio eleitoral do país seria submetida ao presidente Washington Luís, através de carta firmada por Vargas, em 11 de julho de 1929, da qual foi portador o senador Flores da Cunha. O calejado general dos corpos provisórios rio-grandenses admitiu que “o estado de espírito do presidente me perturbou”:

“O Sr. Washington Luís leu rapidamente a carta. Pelo seu ar de assombro observei que estava sob a impressão de um homem que houvesse caído das nuvens de seu sonho, no chão duro da realidade”.

O presidente da República anteviu a tempestade que iria colhê-lo, no final de seu mandato. Ele não nutria especial simpatia pela candidatura do dr. Júlio Prestes, e sentia que sua obra administrativa, dedicada à estabilização monetária, estava a pique de ser sacrificada pela pressão por novas emissões e empréstimos capazes de absorver os gigantescos excedentes da produção cafeeira. Limitou-se, porém, a cumprir os desígnios de sua classe. Despachou emissários ameaçando de retaliações as forças políticas que ousassem alinhar-se aos estados rebelados.

Em 31 de julho, a comissão executiva do Partido Republicano Mineiro lançou publicamente as candidaturas de Getúlio Vargas e do governador da Paraíba, João Pessoa, à presidência e vice-presidência da República. As forças que as apóiam organizam-se, no início de agosto de 1929, na Aliança Liberal, composta pela Frente Única Gaúcha, englobando republicanos e libertadores, pelos partidos republicanos de Minas e da Paraíba, e pelas forças oposicionistas nos demais estados. Contavam com 70 deputados federais e 12 senadores, aproximadamente a terça parte do Congresso Nacional.

A 12 de setembro, o Partido Republicano Paulista secundado pelas agremiações situacionistas de 16 estados homologa as candidaturas de Júlio Prestes e do baiano Vital Soares à presidência e vice-presidência da República.

A convenção da Aliança Liberal realizou-se a 20 de setembro no Palácio Tiradentes, sede do Câmara Federal. Em seu discurso, Antonio Carlos procuraria desencorajar iniciativas governamentais para a subversão da vontade popular, afirmando:  

“… sem as razões morais… que impeliram os nossos maiores a fundar as instituições republicanas… a ordem material e a política… não passarão de um remanso estagnado, em cujo seio se opera lentamente, em todos os países escravizados, a transformação da submissão em revolta”.

O líder da bancada gaúcha, João Neves, dissera o mesmo de forma mais direta, na sessão da Câmara, de 5 de agosto:

“Vencidos num pleito liso, reconheceremos com prazer a nossa derrota; mas vencedores…  ninguém conseguirá esbulhar o país na sua escolha!”.

 

7. Preparação da Insurreição

No mês de agosto, enquanto a Aliança Liberal tomava forma, Osvaldo Aranha estabeleceu a ligação entre os homens que governavam o Rio Grande do Sul e os oficiais que haviam promovido as revoluções de 1922 e 1924Ambos eram velhos conhecidos. Por três vezes o próprio secretário de Interior e Justiça havia terçado armas contra seus novos interlocutores. Em novembro de 1924, batera João Alberto e Juarez Távora, em Alegrete, e Siqueira Campos, em Itaqui. Dois anos mais tarde, fora derrotado por Alcides Etchegoyen, nas proximidades de Santa Maria.

“Jamais houve ressentimento entre nós, tal o cavalheirismo que mantínhamos depois da luta”, escreveu João Alberto. O coronel relata o desdobramento desses contatos:

“Prestes a instância de Siqueira Campos veio a Porto Alegre encontrar-se com o dr. Getúlio Vargas, a fim de estabelecer as bases da nossa colaboração. Começamos a restabelecer os contatos com os nossos amigos nos diferentes estados, dando-lhes instruções para que fizessem discretamente os preparativos para o levante e emprestassem todo o apoio político à candidatura do dr. Getúlio Vargas… Porto Alegre tornou-se um forte centro de conspiração. Ninguém supunha que o resultado das eleições favorecesse o candidato oposicionista. A máquina eleitoral do governo e o sistema tradicional de fraude nas urnas eram bem conhecios. Não havia alternativa. A luta pelas armas era inevitável…”

Luís Carlos Prestes entrevistou-se secretamente com Vargas, no palácio do governo, por duas vezes,  nos meses de setembro e novembro. As condições que ele apresentou, como representante do movimento tenentista, para aceitar a chefia militar da revolução, foram aprovadas por Getúlio. Osvaldo Aranha entregou-lhe o primeiro documento de falsa identidade: Manoel de Souza. Os recursos solicitados foram enviados, através de um banco em Buenos Aires – 800 contos de réis.

A 13 de outubro, vindo de Buenos Aires e passando por Montevidéu, Juarez Távora chega a Porto Alegre, onde se encontra com Siqueira Campos e João Alberto. Sua missão, previamente acertada com Prestes e Miguel Costa, era deslocar-se para o Nordeste, a fim de assumir o comando das operações militares naquela região. Antes porém recebeu a incumbência de avistar-se com o governador de Minas  – na época, o termo empregado era presidente do estado:

”Demorei-me em Porto Alegre pouco mais de uma semana tendo tido oportunidade de ser apresentado ao presidente Getúlio Vargas, por Osvaldo Aranha, no próprio Palácio Piratini… Antes de deixar Porto Alegre, recebi, com Siqueira Campos, a missão de entender-me, em nome do governo do Rio Grande do Sul com o presidente Antonio Carlos, de  Minas Gerais, a respeito de contribuição que devia caber a este estado, para a compra de armamento no estrangeiro”.

Após a missão junto ao governo mineiro, Siqueira Campos se fixa em São Paulo. Para reforçar o levante em Minas Gerais, é designado o capitão Leopoldo Néri da Fonseca. João Alberto concentra a sua atividade no Rio Grande do Sul. Nelson de Mello no Distrito Federal. Juarez, antes de seguir para o Nordeste, passou pelo Rio de Janeiro, tendo sido preso e encarcerado na fortaleza de Santa Cruz. Só no dia 28 de fevereiro, véspera de carnaval, depois de empreender uma fuga espetacular, é que consegue retomar a viagem para Pernambuco. O coronel Estilac Leal, que o acompanhara na escapada, segue para Porto Alegre.

           

8. Campanha Eleitoral

Os principais pontos do programa de Getúlio Vargas – anistia aos revolucionários de 1922 e 1924, voto secreto, liberdade de imprensa, educação pública e legislação trabalhista – davam um caráter popular à campanha da Aliança Liberal e colocavam seus partidários na ofensiva em relação às forças que permaneciam atadas a velhas teses sintetizadas pelo presidente da República, na conhecida sentença:

“A questão social é um caso de polícia”.

A maioria governista decidiu então esvaziar as sessões parlamentares, impedindo a manifestação dos deputados aliancistas. Mas estes replicaram passando a promover comícios nas escadarias do palácio Tiradentes. A temperatura se eleva. No dia 26 de dezembro, o deputado situacionista Manuel Francisco de Sousa Filho ataca com um punhal o deputado gaúcho Ildefonso Simões Lopes e seu filho Luís, na entrada da Câmara. Na luta, Ildefonso disparou dois tiros contra o deputado pernambucano, que morreu no local. O gaúcho era vice-presidente da comissão executiva da Aliança Liberal. A imprensa governista procura criar um clima de comoção. O líder da bancada do Rio Grande chega a telegrafar a Vargas recomendando o adiamento de sua viagem  à capital da República.

Quatro dias depois, Getúlio desembarca no Rio de Janeiro. Viera proceder a leitura de sua plataforma, como já o fizera Júlio Prestes, no saláo do Automóvel Clube do Brasil, cumprindo uma antiga tradição da vida política nacional. Logo após a sua chegada, Vargas procura desanuviar o ambiente, fazendo uma visita ao presidente Washington Luís.

No dia 2 de janeiro de 1930, ao lado de João Pessoa, o candidato promove a leitura da plataforma, em praça pública, perante multidão de proporções sem precedente concentrada na esplanada do Castelo. Vargas esclarece o significado da nova liturgia que emprestara ao ato, com a seguinte afirmação:

“Apesar de nem sempre terem dos fatos uma visão de conjunto, são realmente as classes populares sem ligações oficiais as que sentem com mais nitidez, em toda a sua extensão, por instinto e pelo reflexo da situação geral do país sobre as condições de vida, a necessidade de modificação dos processos políticos e administrativos”.

Deixando o Rio, a comitiva aliancista embarca num trem para São Paulo. O convite para que Getúlio Vargas participasse de uma manifestação pública na capital paulista fora feito pelo Partido Democrático – dissidência do Partido Republicano Paulista que havia aderido à Aliança Liberal.

Realizado o comício, no dia 4 de janeiro, sábado, a dissidência se mostra surpresa e assustada com o prestígio de Vargas em“seu” território, conforme expressa o relato de Paulo Nogueira Filho, um dos próceres do Partido Democrático que estivera no Rio de Janeiro para discutir a organização do ato:

“… o cortejo se pôs em marcha pela Avenida Rangel Pestana no Brás, o bairro industrial. Muita gente postada na calçada… O que começou a surpreender foi que, aclamado o candidato, aquela gente toda, ao invés de regressar às suas casas, se incorporava ao cortejo que ia se avolumando espantosamente…

Assim que por volta das 20h despontou o cortejo na várzea do Carmo, tive um arrepio. Não era possível o que via! Caminhava não um cortejo, mas uma imensa multidão. Que sucederia quando aquela gente toda se encontrasse com a que estava acima da ladeira? A multidão, como nunca São Paulo vira igual, repetia: Nos queremos Getúlio, nós queremos Getúlio! Daí por diante tudo foi de roldão… Falaram com extrema dificuldade os oradores escalados. Era um vozerio só e imenso  a se alçar nos céus de Piratininga. A não ser aqui ou ali, os acordes do Hino Nacional, nada mais se ouviu a não ser: Nós queremos Getúlio. Nós queremos Getúlio!”.

Na semana seguinte, 8 de janeiro, Siqueira Campos, responsável pela chefia militar da revolução em São Paulo, esvazia a sua pistola contra policiais que o localizaram e tentaram capturá-lo. Auxiliado por populares, consegue empreender a fuga, chegando até a sede do jornal O Estado de São Paulo, onde Júlio de Mesquita, integrante do Partido Democrático, lhe presta apoio. São presos seus colaboradores Emídio Miranda, Djalma Dutra e Aristides Correa Leal, veteranos de 1924. O aparelho da rua Bueno de Andrade 101, centro da conspiração, era freqüentado também pelos tenentes Ricardo Holl e Oswaldo Leite Ribeiro. Alertados por Siqueira de que uma delação levara a polícia até o local, eles restringem seus contatos com os elementos do Partido Democrático, passando a priorizar a articulação com o grupo integrado por Maurício Goulart e Oscar Pedroso D’Horta. 

 

9. O Amigo da Onça

Também em Minas Gerais e nas principais cidades do Norte e do Nordeste as caravanas da Aliança Liberal realizaram um amplo trabalho de agitação política. A pressão do governo federal provocara uma cisão no Partido Republicano Mineiro, encabeçada pelo vice-presidente da República, Melo Viana, e outra na Paraíba, dirigida pelo ex-governador João Suassuna e pelo deputado José Pereira, ambas de reduzida expressão eleitoral.

A Aliança Liberal realizara uma campanha contagiante. Impossível compará-la com a insossa e burocrática performance da chapa oficial.

Porém, no dia 19 de março, antes mesmo de concluídas as apurações, o presidente do Partido Republicano Rio-Grandense, dr. Borges de Medeiros, em meio às denúncias generalizadas de fraude, se antecipa e, em entrevista ao jornal carioca A Noite, dá uma declaração visando paralisar os preparativos revolucionários, com os quais estava em desacordo. Com a autoridade de quem já governara o estado por cinco vezes, sendo sucedido por Vargas em 1928, diz o amigo da onça:

“Devemos, pois, reconhecer com franqueza e lealdade que o sr Júlio Prestes está eleito… O Rio Grande do Sul… reconhecerá lealmente a derrota de seu candidato, que é, também, o seu presidente. E, portanto, reconhecerá como legal o governo do dr. Julio Prestes… esses elementos que mais ardentes e apaixonados se mostraram durante a campanha igualmente nada farão. Também eles compreendem a situação e se subordinarão à maioria, pois são homens inteligentes bem-educados e disciplinados.”

O pronunciamento recomendava a aceitação da fraude eleitoral como um fato irreversível. Ondas de protesto voltaram-se contra ele. Manhosamente, Borges o retifica admitindo o prosseguimento da luta, porém exclusivamente pela via da ação parlamentar e da pregação doutrinária.

No dia 22 de março, o mineiro Virgílio Melo Franco e o gaúcho Batista Luzardo viajam a Petrópolis, no Rio de Janeiro, e depois a Belo Horizonte, para conversar com o ex-presidente Epitácio Pessoa, tio do governador da Paraíba, e com Antônio Carlos. Pretendiam certificar-se da disposição desses líderes em apoiar a via revolucionária.

Luzardo retornou a Porto Alegre,  comunicando a Vargas e Osvaldo Aranha o resultado favorável. No dia seguinte, Luís Aranha, irmão de Osvaldo, parte com a incumbência de  fechar o acordo – que já havia sido antecipado por Siqueira Campos e Juarez Távora, em outubro de 1929 – acerca da compra de armamentos na Tcheco-Eslováquia. Para o pagamento desse  material, no valor de 16.000 contos, o Rio Grande do Sul daria 8.000 – solicitava à Minas a contribuição de 6.000 e à Paraíba 2.000. Nessas conversações se reafirmou que a direção militar da insurreição ficaria sob responsabilidade de Juarez Távora, no Norte, do capitão Leopoldo Néri da Fonseca, em Minas Gerais, de Siqueira Campos, em São Paulo.

A cizânia aberta pelo presidente do Partido Republicano Rio-Grandense, no entanto,  inoculara o vírus da incerteza no coração do governador de Minas. Este decide então enviar o seu secretário do Interior, Francisco Campos, ao Rio Grande, para parlamentar com Borges de Medeiros.

Borges era osso duro de roer. Dispunha ainda de considerável influência. Muito próximos a ele se encontravam o comandante da poderosa Brigada Militar, coronel Claudino Nunes Pereira, os senadores Paim Filho e Vespúcio de Abreu, os deputados federais Barbosa Gonçalves, Domingos Mascarenhas, Carlos Penafiel e Lindolfo Collor. O último havia adiantado a Vargas seu ponto de vista sobre  a via revolucionária, em carta datada de 12 de agosto de 1929:

“Vencida a revolução estaremos desmoralizados e exaustos. Vencedora, quem terá vencido? Nós ou os revolucionários de escala?…  Inclino-me, por isto, contra a possibilidade de levarmos a luta a extremos de violência material. Digo por isto para não fazer aqui uma explanação doutrinária perfeitamente descabida, tendente à demonstração, que está no espírito de todos nós, que um mau governo é ainda preferível à vitória de uma insurreição…”.

O secretário de Antônio Carlos retornou do Rio Grande no dia 27 de abril. Não se pode dizer que voltara de lá entusiasmado.

 

10. Defecção de Prestes

No início do mês de maio, um novo golpe atingiria as fileiras da revolução. Emídio Miranda, que conseguira evadir-se da prisão, encontra-se com Siqueira Campos, em São Paulo. Traz a minuta de um manifesto que Prestes redigira. O documento preconizava o rompimento com a Aliança Liberal, a partir da autocrítica de terem os tenentes se deixado usar como joguetes das disputas interoligárquicas “apoiadas e estimuladas pelos dois grandes imperialismos que nos escravizam e aos quais os politiqueiros brasileiros entregam, de pés e mãos atadas, toda a Nação”.

Siqueira comunica-se com João Alberto e Miguel Costa. No dia 8, estão os três em Buenos Aires, a fim de expressarem ao velho companheiro seu integral desacordo com a idéia.

Prestes permanece irredutível. Como a quase totalidade dos comunistas latino-americanos, na época, com os quais passara a conviver em Buenos Aires, sua compreensão das idéias marxistas era precária. A estratégia política que julgava derivar delas não ia além de uma fantasia sectária. Mas ele aferrou-se a ela. Depois de uma penosa discussão que varou a noite, o máximo que  conseguiram obter dele foi o adiamento da publicação do manifesto, por um mês, e o compromisso de transferir recursos financeiros que estavam sob sua guarda.

João Alberto e Siqueira Campos, ainda insones e não refeitos do golpe, embarcaram à 1h55, do dia 10 de maio, no monomotorLaté 28, número 914, da companhia francesa Aeropostale, com capacidade para cinco passageiros. O vôo faria escalas em Montevidéu, Porto Alegre, Santos e Rio de Janeiro. O avião viera de Santiago – Chile –  e atrasara sua chegada em mais de oito horas. Voar sobre o Prata, no escuro e com más condições de tempo, não era o que recomendava a prudência. A três quilômetros de Montevidéu, o avião perdeu altitude e mergulhou nas águas geladas. João Alberto fez um pungente relato do episódio:

‘Despertei com um golpe na cabeça. O avião boiava na água, agitado pelas ondas que contra ele se quebravam… Antes de deixarmos o pouco que restava do nosso ‘Laté 28’ lembrei-me de que trazia comigo cerca de dez contos, que Prestes me havia dado… Pedi a Siqueira que os guardasse, pois tinha maiores possibilidades de chegar à terra do que eu. Siqueira protestou, dizendo que iríamos vencer juntos mais aquela parada… Eu não era grande nadador… Mal havia recuperado a calma (talvez decorridos uns dez minutos de nado), ouvi, perto de mim, o grito angustiante de Siqueira. ‘Espera João!’   Voltei-me ainda em tempo de o ver, a um metro de mim, ser tragado por uma onda. Desapareceu sem estender um braço para pedir auxílio… Veio então o desespero. Nadei violentamente, com todas as minhas forças, na direção das luzes da cidade. Tinha a impressão de que Siqueira fora vitimado por um peixe… Ele era um grande nadador… Jamais poderia eu supor naquele momento que o vitimara um ataque de angina, conforme foi constatado, mais tarde, pela autópsia….A idéia de que um peixe investira contra Siqueira não me deixava um instante. Sentia-o a perseguir-me… Parecia que tudo estava acabado e chegara também a minha vez. Mas uma onda bateu-me em cheio no rosto… Era preciso agir com calma, nadar com método, economizar energia e, sobretudo, não pensar em peixes. Se houvesse tubarões eu não tinha como me defender… O importante era nadar, até alcançar aquelas luzinhas esbatidas pela cerração que baixava cada vez mais.

João Alberto conseguiu chegar a Montevidéu. Havia sido o único sobrevivente do trágico acidente. Prestes acompanhou os trabalhos para o resgate do corpo daquele que  fora o seu amigo mais próximo. Velou-o por duas semanas, até o dia 24 de maio, quando o corpo embalsamado foi embarcado num navio francês, com destino ao Rio de Janeiro. No dia 29 de maio, o Diário da Noite estampava em suas páginas o documento Prestes.

 

11. Manifesto de Vargas

Pressionado a reconhecer a legitimidade do pleito e encerrar o questionamento do seu resultado, Getúlio Vargas rompe o silêncio de dois meses e publica, no dia 31 de maio, o manifesto À Nação Brasileira. Com a habilidade necessária a quem não se encontrava ainda em condições de deflagrar a insurreição, Vargas mantém a bússola orientada nessa direção, ao afirmar que o governo negara-se a fornecer-lhe as condições para que se considerasse derrotado, mas que esse julgamento, na verdade, não cabia a ele, e sim ao povo.

“Por intermédio de procuradores tentei examinar os trabalhos de reconhecimentos para que pudesse conscientemente confessar de público a minha derrota, se dela me convencesse. Negaram-me vista. Não me assiste o direito de julgar por causa própria. Como candidato, devo acatar a decisão dos poderes competentes instituídos para a apuração e o reconhecimento das eleições. Não se confunda este escrúpulo com deserção… Tratando-se de uma campanha de feição nitidamente popular, como a que apoiou a minha candidatura, cabe ao povo manifestar-se se está ou não de acordo com o seu encerramento”.

O manifesto conclui denunciando os “atos de prepotência praticados contra a Paraíba e Minas Gerais” – pelos mesmos poderes competentes que proclamaram a vitória de Júlio Prestes. Define essas ações como “a mais deplorável incompreensão do momento histórico”:

“Punem-se dessa forma sumária, com a truculência dos reconhecimentos, dois estados da Federação, que não supunham constituir delito, num país republicano, pleitear desassombradamente a vitória nas urnas em favor dos candidatos de suas preferências”.

Sob orientação de Washington Luís, a maioria governista no Congresso promovera a degola nas bancadas de Minas e da Paraíba.  A bancada do Partido Republicano Mineiro sofreu um corte de 14 deputados, sendo diplomados em seus lugares os candidatos da Concentração Conservadora que apoiara Júlio Prestes. O partido perdeu também a presidência de todas as comissões que detinha na Câmara. Na Paraíba, nenhum dos candidatos apoiados por João Pessoa foi diplomado. O objetivo do golpe era legitimar a ação de Suassuna e José Pereira que, a 26 de fevereiro, havia proclamado o Estado Livre de Princesa,preparando o caminho para uma intervenção federal destinada a depor o governador João Pessoa e seus aliados políticos.

 

12. Volta por Cima

O manifesto de Vargas e as grandes manifestações no Rio de Janeiro e São Paulo, nos dias 4 e 5 de junho, que vêm render a última homenagem ao herói do Forte Copacabana, contrabalançam os reveses e dão novo alento à revolução, até que, a 17 de junho, tem início uma fatídica troca de telegramas entre Francisco Campos e Osvaldo Aranha:

17 de junho – “Movimento inteiramente sem articulação e preparado com deficiência… Presidente (de Minas) igualmente inclinado pensar toda a conveniência de João Pessoa pedir intervenção ao estado, certo presidente da Republica proceder com correção”. (Francisco Campos)

19 de junho – “Se governo Minas prefere desistir luta armada, deve dizê-lo francamente, pois acataremos sua opinião. Urge resposta franca”. (Osvaldo Aranha)

21 de junho – “Balanceada situação, presidente é de parecer adoção como diretiva exclusiva ação política sobre base aliança três estados, agora e no futuro governo”.  (Francisco Campos)

23 de junho – “Nosso pensamento única solução ante cegueira, brutalidade governo e corrupção política geral ser ação saneadora movimento armado… Minas responsabilizado desistência. Rio Grande submete-se império circunstâncias, determinando cessação preparativos. Meu pensamento situação pior que dos negros que sofreram escravidão com menos ridículo”. (Osvaldo Aranha)

Sem o apoio do governador de Minas, as chances de vitória do levante eram remotas. A única porta que Antônio Carlos deixara aberta para a aceitação da luta armada era a de uma eventual deposição do governador da Paraíba, na qual ele antecipadamente declarava não acreditar.

De Minas, Virgílio Melo Franco ainda telegrafa a Aranha, procurando relativizar as conseqüências do recuo do chefe.

“23 de junho – Único chefe vacilante é o próprio presidente. Minha convicção porém se Rio Grande exigir cumprimento compromisso ele próprio não falhará”. (Virgílio)

Osvaldo Aranha explode:

“24 de junho – Minha convicção você e eu vitimas mistificação vergonhosa. Estou farto dessa comédia, impossível continuar sob direção chefe tão fraco que desanima próprios soldados. Minha disposição inabalável abandonar definitivamente vida política”. (Osvaldo Aranha)

Comunicado por Aranha de sua intenção, o coronel João Alberto, conforme relato de Juarez Távora, “endereçou carta aos seus companheiros renunciando a liderança militar do movimento e indicando-me para nela substituí-lo”. João Alberto havia assumido a função após a defecção de Prestes e a morte de Siqueira Campos, com muitas dúvidas sobre a sua capacidade de exercê-la efetivamente.

A 27 de junho, Osvaldo Aranha deixou a secretaria de Interior e Justiça. João Alberto já havia se retirado para Buenos Aires. A disposição de Juarez não era mais animadora. Ele relata: 

Desalentado, no dia 5 de julho, enviei carta circular aos meus companheiros militares de conspiração no Norte do país comunicando-lhes as más notícias que acabava de receber do Sul, e minha intenção conseqüente de interromper, por tempo indeterminado, a missão revolucionária de que fora incumbido junto a eles… Estava decidido… a entregar-me às autoridades militares para saldar velhas e novas contas com a justiça… escrevi à minha prima Nair, comunicando-lhe aquela minha decisão e indagando-lhe se me aceitaria como seu noivo, mesmo diante da precária perspectiva de só podermos nos avistarmos, nos próximos anos, no confinamento de uma prisão”.

As reservas da revolução não tardaram a se movimentar. O abalo durou poucos dias. Juarez revela que “a partir de meados de julho” recebeu “notícias mais animadoras, resultantes de entendimentos havidos entre Osvaldo Aranha e os elementos militares então liderados por Estilac Leal”, o que o levou a desistir do intento anunciado e retomar o trabalho conspiratório.

João Alberto, porém, só voltaria a ação em 14 de agosto. A liderança militar das operações seria assumida, em setembro, pelo tenente-coronel Góis Monteiro – oficial que comandava a guarnição de São Luís Gonzaga das Missões, e não participara das Revoluções de 1922 e 1924. Sua adesão foi obtida no mês de agosto, após o dr. Borges de Medeiros haver decidido, finalmente, curvar-se à vontade da maioria.

         

13. Assassinato de João Pessoa

No dia 26 de julho, João Pessoa se encontrava em Recife. Há exatos cinco meses, ele enfrentava os bandos de jagunços e cangaceiros que comandados pelo ex-governador João Suassuna e pelo deputado José Pereira haviam transformado o município sertanejo de Princesa em “estado livre”.

Logo no início do conflito, o Ministro da Guerra respondera ao pedido de permissão do governo da Paraíba para a importação de 100.000 cartuchos necessários ao aparelhamento de sua polícia, impondo condições destinadas a inviabilizá-la. João Pessoa denunciaria a manobra tornando público o seguinte telegrama:

“Essa exigência, revele-me Vossa Excelência, é, bem sei, um embaraço que cria para, privado dos recursos de defesa, seja eu forçado a entregar o estado a facínoras e salteadores profissionais da espécie de Tocha, Sinhô, Salviano, Caixa de Fóeforos, Asa preta, Mocinho, Bode, Luís Triângulo, Possidônio, Mourão, José Fausto,  Augusto Antas, José Soares, Manoel Virgolino, João Mourão e outros, a fina flor do cangaço recrutado por José Pereira”.

Após as eleições, a maioria governista no Congresso negou-se a diplomar os candidatos apoiados pelo governador, proclamando como vitoriosos os seus rivais. Depois de amarrar as mãos do governo e estimular a desordem no estado, o dr. Washington Luís passara a ameaçar a Paraíba com uma intervenção, para restabelecer a ordem pública.

A atitude do governo federal havia produzido profunda repulsa na opinião pública que apoiava com crescente admiração a resistência de João Pessoa. Armas e munições obtidas através de contribuição popular eram enviadas ao pequeno mas valente estado nordestino – conforme era carinhosamente chamado.

Em Recife, João Pessoa visitou o Diário da Manhã, avistando-se com seus correligionários aliancistas, Carlos e Caio de Lima Cavalcanti. Em companhia do último, saiu para tomar sorvete na Confeitaria Glória. Ali, às 17h, foi baleado de surpresa e à queima-roupa por três tiros desferidos pelo advogado João Dantas, que foi dominado, em seguida, pelo motorista do governador assassinado.

Aliado de Suassuna e José Pereira, João Dantas já havia sido processado por crime de morte, ocorrido em função de conflitos coronelísticos na cidade de Mamanguape, durante o governo de Sólon de Lucena. Pouco antes de transferir-se para Olinda, em Pernambuco, a polícia paraibana havia apreendido em sua residência vários rifles e farta munição destinadas ao abastecimento dos cangaceiros de Princesa.

A alegação de que o crime fora cometido por razões de ordem pessoal não convenceu a população. A versão patrocinada pela imprensa governista  procurava reduzir o assassino à condição de vítima, ao sustentar que ele apenas reagira ao fato da polícia haver divulgado cartas amorosas apreendidas na busca realizada em sua residência. Isso só fazia aumentar a ira do povo, revoltado com a manobra pela qual se pretendia fazer de João Pessoa o responsável por seu próprio assassinato.

Em Recife, o desabafo do juiz de direito, dr. Cunha Melo, no velório do mártir, correu de boca em boca até chegar às páginas dos jornais:

“Vivo não te venceram. Morto não te vencerão!”

Juarez Távora, que se encontrava na capital da Paraíba, descreve o impacto inicial causado pelo crime:

“Ao cair da noite, pude pressentir, no porão em que me encontrava, a fúria ululante do povo, a agitar-se, enraivecido pelas ruas. Dentro de poucas horas a cidade se transformara num pandemônio de ódios e desesperos desaçaimados. Não demorou muito para que o clarão dos incêndios imprimisse tons trágicos à iluminação da capital…”.

A informação chegou a Porto Alegre no momento em que Osvaldo Aranha estava sendo homenageado num banquete. Ele não se faz de rogado:

Já que outros não podem manter a ordem republicana, frente aos desmandos do Catete, a nós, rio-grandenses, cabe fazê-lo”.

No distrito federal, Lindolfo Collor assume a tribuna da Câmara para dizer:

“Caim, o que fizeste do teu irmão? Presidente da República, o que fizeste do presidente da Paraíba?”.

 

14. Preparativos Finais

O enterro de João Pessoa, realizado no Rio de Janeiro, foi acompanhado por uma enorme multidão em ambiente de intensa comoção. A capital da Paraíba logo recebeu o seu nome. O estado ganhou nova bandeira, na qual se inscrevia o dístico NEGO, evocando a altivez com que o seu pranteado filho respondera às pressões da poderosa oligarquia paulista para que ele aderisse à candidatura de Júlio Prestes.

Tais acontecimentos ampliaram o isolamento do governo. Em agosto, Antônio Carlos e Borges de Medeiros incorporam-se às hostes revolucionárias. A 11 de setembro, Osvaldo Aranha deu por encerrados os preparativos, entregando a Vargas a responsabilidade de fixar a data para a deflagração do movimento. Lindolfo Collor é enviado ao Rio de Janeiro para parlamentar com os generais Tasso Fragoso, Alfredo Malan d’Angrogne e Andrade Neves. A missão é de amaciamento. Tratava-se de fazer chegar aos altos mandos militares a idéia de que resistir à revolução seria uma atitude inútil e insensata.

Em 25 de setembro, Vargas apresenta a Aranha a data escolhida. A 3 de outubro, a revolução, com ramificações em todos os estados do país, explodiria principalmente no Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco, convergindo sobre São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, onde se esperava encontrar maior resistência.

 

15. Colunas Avançadas

4 e 5 de outubro. Vargas registra em seu diário:

“… continuam chegando notícias do avanço de nossas tropas de vanguarda – leste, centro e oeste de Santa Catarina…

As notícias do Paraná determinaram-nos a acelerar a remessa de tropas selecionadas para aquela zona, a fim não só de amparar os companheiros, como de apressar o desfecho da ação que se desenhava evidente, pelo choque com as governo neste estado ou São Paulo. João Alberto seguiu, levando pequena força da capital e recebendo vários contingentes em sua passagem ao longo da via férrea. Houve grande entusiasmo no embarque.Seguiram cerca de quinhentos homens…”.

Assim que a revolta eclodiu, o território de Santa Catarina foi invadido em três pontos pelos destacamentos ligeiros comandados por Miguel Costa, pelo general maragato Felipe Portinho e por Trifino Correia.

O primeiro, seguindo pela estrada de ferro Rio Grande do Sul – São Paulo, havia transposto o rio Uruguai em Marcelino Ramos e depois de choques com a Polícia Militar de Santa Catarina seguia, rumo a Porto União da Vitória, na fronteira do Paraná. O segundo transpusera a fronteira gaúcha na Serra de Erechim e incorporara-se ao primeiro, seguindo para o mesmo destino. O terceiro marchava pelo litoral, sobre Bragança, depois de haver ocupado a cidade de Tubarão.

No dia 5, irrompe a insurreição na capital paranaense. O coronel Tourinho e o capitão Amorety Osório sublevam o 9º Regimento de Artilharia Montada, de Curitiba. Em seguida telefonam ao governador Afonso Camargo aconselhando-o a não resistir, pois iriam marchar sobre o quartel da Polícia Militar. Camargo ordenou ao comandante que depusesse armas, evadindo-se em seguida para Bom Jesus do Iguape, São Paulo. O 15º Batalhão de Infantaria, o 5º Regimento de Cavalaria Divisionária, ambos de Curitiba, e o 13º Regimento de Infantaria, de Ponta Grossa, também se integram à revolução. O coronel Mário Tourinho assume o governo do estado.

No mesmo dia, parte do Rio Grande do Sul o primeiro destacamento pesado, composto por tropas das três armas, com um efetivo de 2.800 homens, sob o comando do tenente Alcides Etchegoyen, comissionado no posto de coronel.

João Alberto, designado delegado militar da revolução nos estados de Santa Catarina e Paraná, partiria também no dia 5, acompanhado pelo mineiro Virgílio Mello Franco.

As colunas avançadas progridem aceleradamente. Penetram no Paraná, onde recebem a adesão do 1º Regimento de Infantaria de Porto União e do 5º Batalhão de Infantaria de Palmas. As tropas governistas de maior expressão permanecem na defensiva, fixadas na ilha de Florianópolis.

A 6 de outubro, Vargas escreveria:

“Começo a fazer meus preparativos a fim de seguir para o teatro de operações, no Paraná. Desejo fazê-lo porque esse é o meu dever, decidido a não regressar ao Rio Grande se não for vencedor. Em Osvaldo Aranha encontro apoio decidido a essa idéia”.

 

16. Revolução em Minas

Em Belo Horizonte, a revolução eclodiu no mesmo dia e hora em que as forças gaúchas realizaram o assalto ao quartel-general da 3ª Região Militar, em Porto Alegre. Os mineiros iniciaram o movimento prendendo o tenente-coronel José Joaquim de Andrade, comandante do 12º Regimento de Infantaria e comandante interino da 8ª Brigada de Infantaria. Mineiramente, o detiveram quando se encontrava em sua residência.

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada deixara o governo, no mês anterior, sendo substituído por Olegário Maciel, que inicialmente havia se declarado partidário da revolução, desde que ela fosse deflagrada enquanto Antônio Carlos ainda estivesse exercendo o mandato de governador do estado. Delicado era o quebra-cabeças que envolvia Artur Bernardes, Venceslau Brás, Antônio Carlos, o governador eleito e demais componentes da vasta plêiade de lideranças maiores do estado. Mas quando as peças se encaixaram, os mineiros marcharam unidos e lutaram bravamente.

Os focos de resistência se concentraram no 12º Regimento de Infantaria, de Belo Horizonte; no 10º Batalhão de Caçadores, de Ouro Preto; no 11º Regimento de Infantaria, de São João del Rei; no 4º Regimento de Cavalaria Divisionária, de Três Corações; e na guarnição de Juiz de Fora, sede da 4ª Região Militar.

Os 385 homens do 12º  Regimento de Infantaria renderam-se no dia 7 de outubro. Obtendo o controle da capital mineira, os revolucionários, que contavam com as tropas da Polícia Militar e da Guarda Civil, conclamaram a população a ingressar nos batalhões de voluntários. No dia 9, as forças governistas eram batidas em Ouro Preto. Parte delas deslocou-se para São João del Rei, integrando-se ao 11º Regimento de Infantaria, que resistiu até o dia 15. A luta mais prolongada ocorreu em Juiz de Fora. A bandeira branca só foi hasteada a 23 de outubro. No dia 14, quando a vitória da revolução no estado já estava praticamente assegurada, colunas mineiras partiram em direção ao Espírito Santo, ocupando Vitória, no dia 19 de outubro. As ligações por terra entre o Distrito Federal e a Bahia estavam cortadas.

O tenente Gwyer, veterano de 1922 e 1924 penetra no estado do Rio e toma Miracema, progredindo até São Fidelis. Outras colunas mineiras vão conquistando o interior fluminense. Preparam um ataque sobre a cidade de Campos.

O chefe militar da revolução em Minas Gerais foi o tenente-coronel Aristarco Pessoa, irmão de João Pessoa, apoiado por Leopoldo Néri da Fonseca e Cordeiro de Farias, integrantes do estado-maior. Na luta travada em torno da cidade de Três Corações, tombou Djalma Dutra, veterano da Revolução de 1924, que transferira sua base de operações de São Paulo para Minas Gerais, após a morte de Siqueira Campos.

 

17. Revolução no Nordeste – 1

5 de outubro:

“À noite chegam excelentes notícias da Paraíba: Juarez Távora a frente de 8 mil homens, queda de Recife, Natal, marcha sobre Alagoas e Ceará, tropas paraibanas de um moral magnífico”.

6 e 7 de outubro:

“Chegam comunicações de grandes vantagens conseguidas no Norte: rendição do Ceará e Maranhão, depostos os respectivos governadores; Távora, dirigindo 30 mil homens, começa a rumar em direção a Bahia”.

Por equívoco, Juarez Távora fixara o levante no Nordeste e Norte para a madrugada do dia 4, ao invés das 17h30 do dia 3, acreditando que o mesmo ocorreria em todo o território nacional. Em conseqüência, os minuciosos planos que haviam sido elaborados para tirar proveito do elemento surpresa tiveram que ceder lugar à capacidade de improvisação de chefes e subordinados.

O governo federal havia deslocado diversos contingentes do Exército para a Paraíba, promovendo a intervenção no estado, após o assassinato de João Pessoa. O comandante da 7ª Região Militar, cuja sede era em Recife, transferiu-a para aquela cidade, passando a ocupar, com o seu estado-maior, o 22º Batalhão de Caçadores, ignorando ser aquela a unidade que contava com o núcleo revolucionário mais sólido em toda a região. Para João Pessoa, haviam sido deslocadas também três companhias de fuzileiros – do 24º Batalhão de Caçadores, de São Luís; do 25º, de Teresina; e do 28º, de Aracaju. Para o interior do estado foram enviados o 29º Batalhão de Caçadores, de Natal, que ficou estacionado em Santa Luzia do Sabugi; uma companhia de fuzileiros do 21º Batalhão de Caçadores, de Recife, que ocupou Campina Grande; o 23º Batalhão de Caçadores de Fortaleza, que ficou em Sousa. O Destacamento Facó, que contava com forças do 21º Batalhão de Caçadores de Recife, estacionou em Princesa.

Na hora marcada para o início do levante, Távora se encontrava no Recife, antormentado pela constatação de que em razão da eclosão da revolução no Centro-Sul, com oito horas de antecedência, o governo colocara a tropa em rigorosa prontidão. 

O plano previa a sublevação do 21º Batalhão de Caçadores, situado na rua do Hospício, e da tropa da Polícia Militar aquartelada no Derby. O primeiro objetivo seria conquistado através de ação simultânea realizada por elementos revolucionários daquela unidade e recrutas do Tiro de Guerra 333, comandados pelos sargentos  Heli Coutinho, Agapito de Moraes e Nelson Cavalcanti, que marchariam sobre ela. O capitão de polícia Muniz Viana, com um grupo de companheiros tomaria o quartel do Derby.

Verificando que nenhum dos dois objetivos havia sido alcançado, Távora retornou à Paraíba, em busca de reforços. Antes porém conseguiu passar ao capitão Muniz Viana, a instrução para que ele e seus companheiros se juntassem aos 50 atiradores do 333, que travavam cerrado e desigual combate com a tropa do 21º Batalhão de Caçadores. Deveriam retirar-se o quanto antes, buscando ocupar o quartel da Soledade, depósito de material bélico da 7ª Região Militar, que se encontrava fracamente guarnecido. Ali resistiriam até a chegada dos reforços.

A providência foi tomada. O sargento Heli narra o desdobramento:

“… encontramos quatro mil fuzis novos, dois mil usados, diversos fuzis metralhadoras e metralhadoras pesadas… e quem quer que fosse que passasse nas imediações do quartel da Soledade era conduzido para o mesmo e obrigado a pegar em armas, mesmo sendo contrário à revolução… e seriam 9h, quando as forças do governo iniciaram um forte ataque a nossa posição… Mas era tarde demais: eles dormiram e já nós tínhamos em armas 600 homens…”

 

18.  Revolução no Nordeste – 2

Ao atingir os arredores de João Pessoa, Távora começou a tranqüilizar-se com a informação obtida de um transeunte: “saiu a revolução depois de um tiroteio no 22º”. Na primeira barreira policial veio a confirmação:

“Sim, seu capitão. O Exército e a Polícia estão revoltados desde a madrugada. E o povo está pegando fogo”.

No  22º  Batalhão de Caçadores, de João Pessoa, o oficial-de-dia, tenente Agildo Barata Ribeiro, decodificara e interceptara todos os telegramas dirigidos ao general Alberto Lavenère Wanderley, comandante da 7º Região Militar, informando sobre a eclosão do movimento revolucionário. Também foi dele a iniciativa de antecipar a hora do levante. A 0h30 do dia 4, Agildo Barata o iniciava dando voz de prisão ao general que reagiu disparando duas vezes contra ele. Os tiros foram respondidos. Lavenère tombou mortalmente ferido com uma  bala no ventre. A luta foi feroz. Entre os diversos mortos estavam o tenente  Paulo Lobo e os dois ajudantes de ordem do general, os tenentes Sílvio Silveira e Paulo Reis.

Todas as unidades militares que se encontravam na Paraíba aderiram à revolução, com exceção do Destacamento Facó que retirou-se de Princesa e atravessou a fronteira pernambucana. Em Sousa, o coronel Pedro Ângelo, comandante do 23º  Batalhão de Caçadores, foi morto ao resistir  à sublevação de sua tropa.

Os revolucionários empossaram no governo da Paraíba o dr. José Américo de Almeida, secretário de Segurança Públicado governo João Pessoa. Uma coluna comandada por Agildo Barata partiu imediatamente para o Recife. Mas a rebelião na capital pernambucana tomara vulto. A resistência do sargento Heli Coutinho e do capitão Muniz Faria, no quartel daSoledade, galvanizara a população, ampliando os efetivos revolucionários. Quando chegaram os reforços, já estava empossado no governo o dr. Carlos de Lima Cavalcanti, conforme relata o sargento Heli:

“Às 18h mandei um portador ao quartel do 21º Batalhão de Caçadores avisar ao comandante daquela unidade… que às 4h da madrugada do dia 5, eu iria atacar o quartel com todos os elementos disponíveis. Diante dessa ameaça o comandante resolveu abandonar o quartel… o dr Estácio de Coimbra, então governador do estado, também abandonava o seu palácio e seguia no rebocador com seu nome, hoje ‘4 de Julho’, rumo a Maceió…”.

Seriam 13h do mesmo dia 5, quando avancei em direção ao quartel do Derby, onde se encontrava o grosso das forças do governo, quando a mim  chegaram dois sargentos daquele quartel dizendo-me que seu comandante queria entregá-lo, pois já havia hasteado a bandeira branca”.

Távora organizou então três brigadas revolucionárias.

A Brigada Mamede seguiu pelo interior de Pernambuco, para Petrolina, visando atravessar o rio São Francisco e penetrar na Bahia, tomando Juazeiro.

As tropas comprometidas com o governo federal estabeleceram na Bahia o quartel-general das Forças em Operação no Norte da República (FONR), sob o comando do general Antenor de Santa Cruz. Este mobilizara diversos destacamentos – Exército, Marinha, Polícia Militar e tropas coronelísticas de Franklin de Albuquerque e Horácio de Matos – para impedir o avanço das colunas revolucionárias em direção à capital federal. O aparato era vistoso. Mas, Instalando o posto de comando a bordo de um navio, o general Santa Cruz passava o recibo do grau de confiança que depositava no dispositivo militar sob sua direção.

 

19. A Caminho do Front

A 11 de outubro, Getúlio Vargas transferiu o governo do Rio Grande a Osvaldo Aranha. Acompanhado de todo o estado-maior civil e militar da revolução, embarcou num trem militar com destino ao norte do Paraná, onde se previam choques violentos com as tropas governistas comandadas pelos coronéis José Pais de Andrade e Palimércio de Resende.

No dia 14, Vargas registraria em seu diário:

A Brigada Sales tomou Natal e tinha a missão de consolidar as posições já conquistadas pelos revolucionários nos estados do Ceará, Piauí e Maranhão, abandonados por seus respectivos governadores. O passo seguinte seria ligar-se ao 26º Batalhão de Caçadores, em Bragança, para marchar sobre Belém do Pará.

A Brigada Juraci seguiu em direção a Alagoas. Com a adesão do 20º Batalhão de Caçadores, de Maceió, e a fuga do governador do estado, a coluna dirigiu-se para a Bahia passando por Aracaju. Não houve resistência em Sergipe, o 28º Batalhão de Caçadores aderiu à revolução.

“Recebemos a confirmação da primeira vitória importante das nossas forças próximas a Jacarezinho, no Paraná. Cinco horas de fogo e o inimigo retirou-se para Carlópolis, deixando em nosso poder apreciável material de guerra e prisioneiros – soldados e oficiais. As forças do inimigo compunham-se de elementos do exército e polícia paulistas, comandadas pelo coronel Paes de Andrade. As nossas do 7º Batalhão de Caçadores de Santa Maria sob o comando do Stoll Nogueira, da Brigada Etchegoyen”.

No dia 17, Miguel Costa inflige nova derrota às forças do coronel Paes de Andrade, em Jaguaraíva.

A linha revolucionária se estenderia, na fronteira paulista, em três frentes. De Cambará a Jaguaraíva estavam as forças comandadas por Alcides Etchegoyen. Miguel Costa fazia pressão sobre Itararé, e João Alberto sobre a zona do litoral até Capela da Ribeira.

Ao lado de Getúlio viajavam também Flores da Cunha, João Neves da Fontoura, Simões Lopes, Maurício Cardoso, Maciel Junior, o coronel Góis Monteiro, Estilac Leal e diversas personalidades do governo revolucionário que se formava.

A estrada de ferro Rio Grande – São Paulo atravessava 40 cidades gaúchas, catarinenses e paranaenses. Em todas a comitiva foi recebida com impressionantes e comoventes manifestações de confiança. Abraços, vivas, sorrisos, presentes, discursos, cantorias, homenagens, mesas de doces, o entusiasmo popular contagiava os revolucionários, reforçando neles a certeza de que justa era a causa pela qual se batiam. Com ânimo redobrado, seguiam para a batalha derradeira.

No dia 18, o comboio revolucionário chegou a Ponta Grossa. Dali Vargas seguiria até Curitiba, retornando, no dia 23, àquela cidade, onde o coronel Góis Monteiro instalara o estado-maior. Antes de seguir para a capital paranaense,  ele registraria em seu diário:

“…compareci à casa de Manoel onde acabava de chegar o corpo de seu filho Serafim, morto em combate… Os pais estavam desolados. Estendi sobre seu corpo um lenço de seda branca, tendo bordado o escudo do Rio Grande, que me haviam presenteado como lembrança da terra. Tratava-se de um conterrâneo meu de São Borja”.

O lenço branco era o símbolo dos chimangos, em cujas fileiras Vargas travara duras batalhas contra os maragatos que ostentavam os lenços vermelhos. O revolucionário paranaense César Ribas da Silva, testemunha ocular do fato,  acrescenta que:

“Imediatamente um dos presentes retirou o lenço encarnado que levava e o colocou em Getúlio”.

A união gaúcha estava, de fato, consolidada. Dias mais tarde, Getúlio desembarcaria no Rio de Janeiro, trazendo no pescoço o emblema maragato.

No dia 19, Vargas anotou:

“As nossas tropas atravessam o (rio) Itararé pela direita e a esquerda, enquanto o centro fixa o inimigo nas fronteiras”.

Eram os preparativos finais para o ataque que seria desfechado no dia 25 de outubro, abrindo o caminho para a invasão maciça de São Paulo pelas tropas revolucionárias. Itararé era o alvo estratégico. Pela cidade passava a ferrovia Rio Grande do Sul  – São Paulo.

                  

20. Deposição de Washington Luís

24 de outubro. Diário de Vargas:

“Pela manhã começamos a receber notícias esparsas, incompletas sobre a explosão do movimento revolucionário na capital da República. Essas notícias vão se precisando até conhecer-se que os generais Malan, Mena Barreto, Tasso Fragoso e o almirante Isaías de Noronha dirigem um movimento que triunfou facilmente, sem luta, resultando na deposição do presidente Washington Luís e prisão de alguns políticos, e na formação de uma Junta Governativa composta pelos generais Tasso Fragoso e Mena Barreto… nos elementos que me cercam surgem apreensões sobre os intuitos dos dirigentes do golpe de Estado, no Rio… Receia-se que os generais queiram aproveitar-se do nosso movimento indubitavelmente vitorioso para apoderar-se do poder, reduzindo a uma sedição militar o que iniciamos como uma revolução que traga reformas radicais de acordo com o programa da Aliança Liberal e as idéias da Revolução”.

O almirante Isaías de Noronha era o terceiro membro da Junta que exigira a renúncia do presidente da República depois de haver ordenado o cerco ao palácio Guanabara. Ante a negativa de Washington Luís, que confinado numa sala do prédio e armado de um revólver proclamava seus intuitos de resistir até as últimas conseqüências, os militares convocaram o cardeal Sebastião Leme que convenceu-o a seguir preso para o Forte Copacabana.

A Junta, buscando antecipar-se à Vargas, constituíra um governo provisório, nomeando  ministros. Investira também como interventor, no estado de São Paulo, o general Hastínflio de Moura, comandante da 2ª Região Militar. Dissimuladamente, procurava apresentar tais atitudes como medidas administrativas necessárias à manutenção da ordem pública. Mas o fato de fazê-lo sem consulta prévia aos líderes revolucionários revelava outros interesses. Enquanto isso, o chefe de polícia do Rio, coronel Bertoldo Klinger, prometia reprimir as manifestações públicas na capital em favor dos revolucionários.

No dia 25, Vargas registraria em seu diário:

“Recebo comunicação da Junta Militar do Rio, chamando-me com urgência. Respondo que enviem emissários, uma vez que a Junta não precisa seus intuitos. Esses emissários devem chegar amanhã..

O general Hastínflio assume o governo de São Paulo e me telegrafa pedindo para cessar as  hostilidades. Respondo (ser) necessária a ocupação militar daquele estado por tropas de confiança, e o estado-maior expede instrução para os exércitos da frente para que exijam a rendição dos adversários”.

Em sua resposta ao general Hastínflio, Vargas o adverte:

“Confraternização família brasileira só depende aceitação integral programa revolucionário. Quanto à solução definitiva da situação militar ficará subordinada à resolução definitiva da situação política”.

                      

21. A Batalha de Itararé

Mais duro e direto foi o telegrama que Getúlio expediu aos integrantes da Junta, também no dia 25, no qual afirma:

“Acho-me na fronteira de São Paulo com trinta mil homens de tropas do Exército e do povo dos estados do Rio Grande do Sul, do Paraná de Santa Catarina, perfeitamente armados e municiados, agindo em combinação com Minas e com o Norte… não para depor o sr Washington Luís, mas, apenas,  para realizar o programa da revolução. As tropas nacionais do Sul, que podem ser aumentadas para o dobro… têm plena consciência de sua missão como têm possibilidades materiais para realizá-la. Sou apenas uma expressão transitória dessa vontade coletiva. Membros da Junta do Rio serão aceitos caráter nossos colaboradores, porém não como dirigentes, uma vez que seus elementos participaram da Revolução quando ela já estava virtualmente vitoriosa…”

A esse petardo lançado sobre os obscuros planos dos ilustres generais seguiu-se outro: O coronel Paes de Andrade, responsável pela defesa das linhas de Itararé, rende-se a Miguel Costa, ainda no dia 25.

O Partido Democrático, no entanto, inclina-se para o lado da Junta Militar. Negocia com o general Hastínflio a criação de um secretariado formado por “eminentes cidadãos apolíticos” e próceres do partido, como Vicente Ráo e Henrique de Sousa Queirós, nomeados chefe de Polícia e secretário da Agricultura, a 25 de outubro. Em seguida, os democráticos propõem à Junta a substituição do general Hastínflio pelo dr. Francisco Morato, no comando do governo paulista. A manobra é camuflada através de um telegrama enviado ao chefe da revolução.

27 de outubro. Diário de Vargas:

“Recebo um rádio do professor Morato indagando se deveriam aceitar a presidência do general Hastínflio ou recusar colaboração. Respondi que mantivesse o estado de coisas estabelecido até a chegada do meu emissário. Tratava-se do coronel Joao Alberto”.

Embora não tivesse conhecimento do teor das negociações entre o Partido Democrático e a Junta, Getúlio pressentia a traição. A inatividade do partido no decurso dos 22 dias de luta revolucionária dava o que pensar, daí a sutil recomendação ao dr. Morato de que permanecesse inativo, até a chegada do emissário.

João Alberto, nomeado delegado militar em São Paulo, partira, no dia 26, para cuidar das questões relativas à ocupação do estado pelas tropas revolucionárias. Cabia-lhe também levantar as informações necessárias para que a formação do novo governo paulista pudesse ser decidida sem atropelos.

Antes de telegrafarem a Vargas, em 26 de outubro, aceitando subordinar-se incondicionalmente ao comando das forças revolucionárias, os membros da Junta haviam nomeado o dr. Morato para substituir o general Hastínflio. A posse do interventordemocrático foi anunciada para o dia 28. A oligarquia cafeeira e a dissidência de seu tradicional partido aproximavam-se aceleradamente, buscando impor à revolução um fato consumado.

Havia outro problema. Getúlio nomeara o general Miguel Costa para assumir o comando da Polícia Militar, no estado. Mas isso não demovera os partidários de sua candidatura a um posto mais elevado.

João Alberto relata:

“Da vanguarda das forças revolucionárias, anunciava-se o avanço do general Miguel Costa para São Paulo, à frente de seus homens, os quais pediam ao dr Getúlio Vargas que o nomeasse Interventor Federal naquele estado… Subentendia-se que a minha missão era apenas a de afastar as duas candidaturas, a fim de que o chefe da revolução vitoriosa tivesse tempo para escolher outro nome.

Fui encontrar Miguel Costa já em território paulista, acampado à minha espera… Conformou-se com a situação e aceitou, afinal, o convite que lhe fiz, de seguir em minha companhia até São Paulo…

O encontro com os próceres do Partido Democrático deu-se já nas proximidades da capital do estado… O dr. Morato repetiu-me o que já dissera a Miguel Costa sobre a escolha de seu nome para chefe do governo de São Paulo. Terminou puxando o relógio e perguntando-me se a sua posse podia realizar-se às quatro horas, como já fora anunciado pelos jornais da manhã… Vi-me forçado a declarar, vencendo certo constrangimento, que me parecia excessiva a pressa com que se procurava organizar o governo de São Paulo”.

O grupo de Maurício Goulart, do qual Siqueira Campos se aproximara a partir de janeiro, havia preparado uma recepção à altura do herói de 1924 que retornava vitorioso à cidade que fora o berço de sua jornada.

João Alberto comenta:

“A chegada do nosso trem à capital paulista foi uma apoteose à revolução e uma vitória para Miguel. Enquanto a multidão o carregava em triunfo, pelas ruas, nós todos, inclusive o secretariado paulista e o próprio dr. Morato, desembarcávamos despercebidos”.

         

22. Passagem por São Paulo

De volta ao trem militar, a caminho de  São Paulo, Vargas anotaria em seu diário:

“27 de outubro: Ao anoitecer passamos em Castro – grande manifestação popular. Depois chegamos a estação de Piraí – também um gupo numeroso de entusiastas me esperava… Apresenta-se-me o coronel Paes de Andrade, que comandava as forças adversas em Itararé, explicou-me muitas coisas interessantes sobre a luta, efetivos e surpresas que teve, sempre ignorando a verdade, pela atitude do estado-maior da Região. Encontrei-o um revoltado por essa atitude, que ele taxava de perversa.

Depois de atravessar a divisa, em Itararé, Getúlio seria saudado por populares no coreto da praça principal de Itapetininga, terra em que o dr. Julinho e seu pai, o coronel Fernando Prestes, possuíam suas fazendas. Júlio Prestes havia se asilado na embaixada inglesa.

A chegada de Vargas à capital paulista, às 24h do dia 29, é descrita pelo democrático Paulo Nogueira Filho não mais com surpresa, como o fizera por ocasião do comício do mês de  janeiro, e sim com visível ressentimento: 

“As ruas estavam apinhadas… a manifestação ao `Chefe Supremo` fora ainda maior e mais vibrante do que aquela que São Paulo fizera ao candidato da Aliança Liberal… Desci à rua incorporando-me feliz ao `zé povinho` frenético. A multidão incalculável, a maior até então reunida nas ruas de São Paulo, brandia e gritava. Ao ‘Nós queremos Getúlio!’  substituía o ‘Nós temos Getúlio!’. Getúlio, Getúlio, sempre Getúlio e só Getúlio!”.

A manifestação segue em cortejo até o palácio dos Campos Elíseos, onde João Alberto e os próceres do Partido Democrático o aguardavam para uma recepção. Vargas registra em seu diário que, antes de adentrar ao recinto tomado por“muitas famílias da melhor sociedade paulista”, mandara abrir os portões do palácio ao povo que ocupou inteiramente os seus jardins. Das escadarias ele  pronunciaria um comovido discurso de agradecimento, não deixando porém de sublinhar uma mensagem aos que insistiam em deter o aprofundamento do processo revolucionário:

“Não há direitos adquiridos contra a Nação!”.

No dia 30, Vargas conferencia longamente com João Alberto e o dr. Francisco Morato. A pretensão do último de ser investido como interventor federal em São Paulo foi descartada. O Partido Democrático já se encontrava representado no secretariado que deveria continuar agindo sob orientação do coronel João Alberto. O general Miguel Costa assumira o posto de Inspetor Geral da Polícia Militar e o general Isidoro Dias a chefia da 2ª Região. A ocupação militar do estado pelas tropas revolucionárias do Sul prosseguiria até segunda ordem. As forças eram compostas por 12 batalhões de infantaria,  8 regimentos de cavalaria e 7 companhias de artilharia distribuídos pelas cidades de Campinas, Jundiaí, Santos, Caçapava, Cruzeiro, Pirassununga, Bauru e Boituva.

 

23. Chegada ao Rio

31 de outubro. Diário de Vargas:

“Trinta e um à noite,  cheguei ao Rio, recebido pela Junta Governativa e altas autoridades, na gare. O Rio, durante todo o trajeto, desde a estação da Central ao Catete, recebeu-me com uma manifestação extraordinária de entusiasmo e impressionante pelo numero… Combinei com a Junta que só assumiria o governo a 3 de novembro. Não havia ainda organizado o Ministério e queria, com alguns dias de antecedência, observar o meio”.

Precedido por três mil soldados, Vargas desembarcou no Rio, de uniforme militar, lenço vermelho no pescoço e chapéu gaúcho de aba larga, sendo recebido por apoteótica manifestação de apoio popular.  Houve quem revelasse incômodo com a singela cena de um grupo de cavalarianos, amarrando calmamente suas montarias no obelisco da avenida Rio Branco. O povo achou divertido. O imaculado símbolo da cultura européia não se tornaria menos merecedor das admirações gerais por retribuir, com aquele pequeno serviço, ao esforço dos combatentes que haviam percorrido 1.300 km para chegarem à capital da República.

A 3 de novembro de 1930, Vargas tomou posse como chefe do Governo Provisório. No final do mês de outubro, ele havia trocado telegramas com Osvaldo Aranha. Este havia escrito propondo-se a assumir o governo para entregá-lo constitucionalmente a Vargas, no dia 15 de novembro, data em que oficialmente deveria ser empossado o sucessor de Washington Luís. O comentário de Getúlio ficaria registrada em seu diário:

“Respondo-lhe que as medidas excepcionais que precisam ser tomadas não comportam um governo constitucional”

De fato, o carcomido aparato político da velha república, erguido mediante processos eleitorais fraudulentos, deveria ser suprimido para dar lugar ao Brasil Novo.

O primeiro ministério do Governo Provisório, anunciado por Vargas incorporava três ministros nomeados pela junta militar em 24 de outubro: Leite de Castro (Guerra), Isaías de Noronha (Marinha) e Afrânio de Melo Franco (Relações Exteriores). Osvaldo Aranha ficou com o Ministério da Justiça; Juarez Távora foi designado para a pasta da Viação e Obras Públicas; José Maria Whitaker, membro do secretariado paulista, assumiria o Ministério da Fazenda; Assis Brasil, líder dos libertadores gaúchos, ficaria com a pasta da Agricultura. Para os dois novos ministérios criados com a vitória da revolução, o da Educação e Saúde Pública e o do Trabalho, Industria e Comércio, foram respectivamente nomeados o mineiro Francisco Campos e o gaúcho Lindolfo Collor. O chefe de Polícia do Distrito Federal passaria a ser o coronel maragato Batista Luzardo.

A revolução havia triunfado. Para Vargas, era o início de uma nova e mais importante jornada. Em seu discurso de posse ele afirmaria:

“É bem possível que esse governo não termine como acaba de estabelecer-se, entre aclamações gerais. Vamos contrariar, destruir mesmo a trama de interesses alimentadas em anos e anos de corrupção do regime.   Os descontentes surgirão. Os meus deveres são duros e as minhas responsabilidades imensas”.

 

24. Epílogo

A Revolução de Outubro de 1930 iniciaria um novo ciclo na vida do país. Em breve ela haveria de defrontar-se com a desesperada tentativa da oligarquia cafeeira paulista de retomar o poder político para recuperar os privilégios que compartilhava com os banqueiros ingleses e norte-americanos, às custas do sacrifício da população.

A caminhada para o controle nacional sobre as riquezas do país, a industrialização, a independência econômica e a justiça social estaria longe de ser um mar de rosas. As dificuldades levariam muitos protagonistas dessa aventura a perderem de vista tais objetivos, deixando-se arrastar pelo infatigável canto das sereias. Vargas jamais se desviaria deles.

NOSSO PAÍS E NOSSA HISTÓRIA!