Getúlio lança a Petrobrás: “no petróleo, o controle nacional é imprescindível”

Em dezembro de 1951, quando enviou ao Congresso o projeto de criação da Petrobrás, na mensagem que o acompanhou, considerava o presidente Getúlio Vargas:

“É fora de dúvida, como o demonstra a experiência internacional, que, em matéria de petróleo, o controle nacional é imprescindível. O Governo e o povo brasileiros desejam a cooperação da iniciativa estrangeira no desenvolvimento econômico do País, mas preferem reservar à iniciativa nacional o campo do petróleo, sabido que a tendência monopolística internacional dessa indústria é de molde a criar focos de atritos entre povos e entre governos. (…) será essa empresa genuinamente brasileira, com capital e administração nacionais”.

Os motivos desta opção, além do que já foi dito, são demonstrados nesse mesmo documento – uma obra para ser não apenas lida, mas estudada – com fundamentação perfeitamente atual. Nele, também, Getúlio descreve a situação do Brasil, diante do problema do petróleo, naquela época. Trata-se de algo que seria angustiante, se não soubéssemos, até pela mera experiência cotidiana, que conseguimos superar àquela situação dificílima, exatamente devido à Petrobrás. Ao invés de se intimidar perante as dificuldades, Getúlio colocou o país no caminho de sua superação.

No entanto, hoje, quando a situação, com a descoberta do pré-sal, nunca foi tão fácil, reaparecem aqueles que não conseguem apreender as lições de mais de 60 anos atrás, colocadas em evidência – mais ainda – pelo contraste que foi o desastre tucano-entreguista na área do petróleo.

Por essa razão, achamos de bom alvitre seguir a sugestão de uma leitora – a ex-vereadora paulistana Lídia Correa – e publicar a mensagem em que Getúlio expôs a necessidade da Petrobrás. É um texto longo, mas, com exceção de alguns parágrafos referentes à relação da empresa com o Conselho Nacional do Petróleo, preferimos reproduzi-la na íntegra. O leitor perceberá por quê.

 

C.L.

 

GETÚLIO VARGAS

 

Senhores Membros do Congresso Nacional:

Tenho a honra de submeter à consideração de Vossas Excelências o anexo projeto de lei destinado a criar a sociedade por ações Petróleo Brasileiro S. A., para levar a efeito a pesquisa, a extração, o refino, o transporte de petróleo e seus derivados, bem como quaisquer atividades correlatas ou afins, através de empreendimentos à altura das necessidades nacionais de combustíveis líquidos.

Em complemento a esse projeto, submeto separadamente um outro, relativo aos recursos tributários essenciais ao programa nacional de combustíveis líquidos e lubrificantes, no qual se asseguram também recursos para a ampliação do Fundo Rodoviário Nacional. Constituem os dois uma unidade, mas ao Governo pareceu de bom aviso separá-los, para facilitar o trabalho legislativo, possibilitando, sem risco de dilações na discussão de questões novas, a aprovação, no menor prazo possível, do projeto que reajusta tributos já existentes e constantes do orçamento.

A análise da situação internacional e de todo o problema do suprimento regular de derivados do petróleo, de que dependem o desenvolvimento econômico e a segurança da Nação, levou o Governo a concluir que se impõe um grande esforço no sentido de acelerar e ampliar os empreendimentos nacionais, nesse setor de atividade. A base da experiência já adquirida no trato dessa questão e mantendo as linhas mestras da legislação cm vigor, cumpre empreender e levar a termo as tarefas que a política nacional de combustíveis líquidos reclama e as próprias circunstâncias internacionais tornam inadiáveis.

Ao Poder Executivo afigurou-se imperioso, em face dos interesses nacionais, apelar para os recursos financeiros e humanos da Nação, com o fim de reduzir, em prazo relativamente curto, o grau de dependência em que se encontra o País, quanto ao seu suprimento de derivados do petróleo. Esse o objetivo a alcançar com a execução das leis que ora solicito ao Congresso.

 

O PROBLEMA

O consumo nacional de derivados do petróleo acusa uma ascensão regular, que traduz o desenvolvimento das atividades do País, não só quanto ao transporte mas também quanto à indústria.

No entanto, como é ainda incipiente a produção nacional de petróleo, essa ascensão constante do consumo implica necessariamente num aumento das importações, com dispêndios crescentes de divisas, que poderão ser empregadas na compra de outras utilidades estrangeiras, quando o permitir a produção brasileira de óleo mineral. O crescimento das importações de derivados de petróleo processa-se, aliás, quanto a volume e valor, em ritmo mais acelerado do que o das outras mercadorias que adquirimos no exterior. A percentagem das divisas despendidas com a sua cobertura tende a aumentar, no tempo, de forma a causar apreensões em relação à regularidade futura de suprimento, ao País, de tais produtos.

De fato, a valor das importações de petróleo e derivados que, em 1939, correspondeu a 7% do valor da totalidade de nossas aquisições externas, em 1946 representou 7,6% e, em 1930, 11,3%.

No ano em curso, essa relação deverá ultrapassar 13%, apesar do aumento considerável das importações globais, aproximando-se de Cr$ 4,0 bilhões as compras externas do petróleo e derivados. Para todo o quinquênio 1951-1955, as previsões são de ordem de Cr$ 27 bilhões, à base dos preços atuais.

Em volume, o consumo nacional de derivados do petróleo, quase totalmente suprido através das importações, cresceu em média de 6,4% de ano para ano, no decênio de 1931 a 1940. No decênio seguinte, 1941-1950, o crescimento médio anual foi de 11,9%. Desde o término da II Grande Guerra, porém, o aumento do consumo entrou a acelerar-se, ainda mais, acusando a média de 19,5% de ano para ano, no quinquênio 1946-1950. De 1949 para 1950, esse aumento atingiu 22,3%, havendo indício, entretanto, de que se atenuará de forma a situar-se em menos de 20% nos próximos anos. Esse ritmo de aumento de consumo é, por um lado, alarmante, embora, por outro, altamente auspicioso.

O estudo do problema permite prever a duplicação do consumo nacional de derivados do petróleo de 1950 para 1955. O consumo, expresso na unidade comumente usada, atingiu no ano passado a cifra de 100 mil barris por dia, devendo alcançar ou ultrapassar 200 mil barris ao findar o quinquênio 1951-1955.

Esses algarismos mostram que as refinarias em construção ou concedidas, até agora, não bastarão para industrializar sequer 50% do petróleo necessário ao consumo do País em 1955. Quanto à frota de petroleiros, já adquirida, tem capacidade para suprir, nas distâncias médias em que os transportes deverão processar-se, somente cerca de 20% dos volumes a serem então consumidos. A produção atual do óleo bruto, na única província petrolífera em exploração, corresponde, apenas, a 2,5% do consumo interno, embora sua capacidade seja maior e considerável sua importância para o nosso suprimento, dada a qualidade do óleo bruto baiano.

É evidente, portanto, que o problema apresenta-se como de suma gravidade, em face das perspectivas de perturbação no comércio internacional de petróleo e da própria limitação da capacidade de pagamento do Brasil, mesmo que haja disponibilidade do produto no exterior. Não podemos desprezar os reflexos da crise anglo-iraniana e de toda a conjuntura internacional, sobre o suprimento de combustíveis do nosso País.

Na realidade, portanto, o problema não comporta solução à base exclusiva da importação da matéria-prima em bruto, para ser refinada no País. Já os preços do petróleo bruto, atualmente vigentes no mercado internacional, limitam os lucros da industrialização e, assim, reduzem em pouco o dispêndio de divisas com o refino da matéria-prima importada. Somente a produção interna, em volumes compatíveis com o consumo, permitirá assegurar o desenvolvimento da economia nacional naquilo que dependa dos combustíveis líquidos. Para esse fim torna-se indispensável adotar medidas econômicas de amplitude correspondente à extensão e à complexidade do problema.

Cabe acentuar que o problema nacional do petróleo não se limita ao atendimento da demanda atual ou da prevista, conforme as linhas acima, até 1955: a produção do petróleo, dentro das possibilidades que tivermos, está entre aquelas produções básicas que, voltadas para as necessidades nacionais, marcarão o compasso do nosso desenvolvimento geral.

Nossa indústria, ainda incipiente quanto às possibilidades a curto prazo, mas já com uma elevada taxa de crescimento, e as condições geográficas do País, que impõem a expansão do tráfego rodoviário e aéreo, além do emprego de combustíveis líquidos em navios e locomotivas, tendem a agravar cada vez mais a nossa dependência em relação ao petróleo.

Para podermos acelerar o progresso do País, desenvolvendo os transportes rodoviários, aeroviários, a dieselificação das ferrovias, a navegação, a mecanização da agricultura e as indústrias básicas e de consumo, numa taxa maior do que se verifica presentemente, o consumo de derivados do petróleo deverá aumentar ainda mais. As rodovias dependem do petróleo para a pavimentação de suas pistas e para os seus veículos. A solução do próprio problema da casa popular está intimamente relacionada com a produção de cimento e de outros materiais de construção, que implicam em alto consumo de combustíveis. Muitas indústrias de alimentação também dependem em alta escala do petróleo. Poderíamos multiplicar exemplos.

Cabe ainda não esquecer a polimorfa contribuição do petróleo e seus derivados para o desenvolvimento da indústria química e as novas perspectivas abertas pela produção de sintéticos, estreitamente vinculada à técnica da industrialização do óleo mineral.

Os índices do consumo nacional de petróleo são ainda muito baixos, em comparação com os de outros países. Esse consumo em 1950 foi, per capita, de 0,6 de barril por ano, enquanto, com base nos dados de 1947-1948, esse índice foi na Argentina de 2,9, no Uruguai de 1,5, na média da América do Sul de 1,6 e nos Estados Unidos de 14 barris. No balanço energético do País, a contribuição do petróleo está em cerca de 100/0, enquanto que a lenha ainda contribui com 80%. Nos Estados Unidos, aquela percentagem é de 42%, ficando 46% para o carvão mineral.

Dessa forma, é o petróleo um fator básico para a emancipação econômica e o bem-estar social do nosso povo.

Não podemos, portanto, mostrar fraqueza ou retardo na verificação e aproveitamento das nossas jazidas de óleo mineral, em escala compatível com os recursos financeiros e técnicos que pudermos mobilizar, sob perfeito controle, e devidamente considerada a expansão dos outros ramos da economia do País. E devemos pensar até na produção de excedentes para exportação, melhorando assim nossa capacidade de importar outros bens essenciais à produção e ao consumo. Nessas condições, a produção do petróleo influirá decisivamente na posição internacional do Brasil.

 

EMPREENDIMENTOS

Tendo em vista as necessidades mais urgentes e as possibilidades de captação de recursos financeiros para inversão em empreendimentos relativos ao petróleo, determinei a elaboração de um programa para a atuação do poder público, de 1952 a 1956, com o fim de lançar essa indústria, através da empresa cuja criação ora é proposta, em bases tais que lhe assegurem condições para se consolidar e desenvolver, em curto prazo e na escala suficiente.

Visa-se, essencialmente, intensificar a pesquisa nas áreas potencialmente petrolíferas, avaliar as jazidas já descobertas na Bahia, desenvolver a produção nessas jazidas e nas que forem identificadas noutras regiões, como resultado dos trabalhos de pesquisa; enfim, realizar os empreendimentos necessários à extração do petróleo bruto nas áreas reconhecidas como potencialmente produtoras. Os depósitos já identificados na Bahia avaliam-se em cerca de 50 milhões de barris de óleo bruto, ou seja, o equivalente a pouco mais de um ano de consumo atual do País. Há necessidade urgente de delimitar e avaliar toda a província petrolífera, para fundamentação da política de refino a ser seguida, à base do óleo parafínico baiano. No Maranhão, na Amazônia e na bacia do Paraná, os trabalhos de pesquisa mal se iniciaram e precisam adquirir um ritmo capaz de possibilitar a revelação pronta da existência, ou não, de óleo mineral em quantidades comerciais.

Ao lado desse programa de pesquisa e exploração dos recursos petrolíferos da Nação, é desejável, com o fim de poupar divisas, ampliar a rede de refinarias em construção ou concedidas, para que disponhamos, até fins de 1956, de uma capacidade aproximada de refino superior, em cerca de 100 mil barris diários, à prevista atualmente. Dessa forma, as diversas regiões consumidoras irão sendo dotadas de instalações de desdobro do óleo bruto importado ou produzido no País, encaminhando-se o problema para a solução adequada, à base da exploração das jazidas nacionais.

A ampliação da frota petroleira, para que se tenha assegurado o transporte de uma parte substancial do óleo bruto e dos derivados consumidos no País, é um terceiro ponto do programa elaborado. Caso se inicie e se desenvolva a produção nacional, reduzir-se-á a expansão necessária na tonelagem marítima em confronto com a que seria reclamada pelo carreamento dos produtos importados do exterior. É de presumir que a própria operação dessa frota proporcione recursos para a sua manutenção e ampliação.

Além dos três pontos assinalados, a programação dos empreendimentos relativos a petróleo abrange a intensificação das pesquisas e a industrialização do xisto betuminoso.

Para a progressiva execução do conjunto do programa exposto, irá sendo preparado pessoal técnico de nível superior, mediante estágios nos países em que a indústria do petróleo se acha mais desenvolvida, bem como operariado qualificado nacional.

O trabalhador brasileiro tem revelado, nos trabalhos de campo e de refinação de petróleo, confirmando aliás o que se tem verificado em outras indústrias, capacidade de apreender rapidamente as técnicas modernas. Promover-se-á ainda a pronta ampliação dos quadros, mediante contrato e fixação de elementos técnicos, o que permitirá intensificar a preparação do pessoal nacional.

O conjunto desses empreendimentos, para ser levado a efeito, exige recursos financeiros de vulto, que se torna indispensável captar e aplicar, de forma adequada e em tempo hábil.

 

INVESTIMENTOS

Numa estimativa preliminar das inversões a serem realizadas, durante os próximos anos, chegou o Governo à conclusão de que são necessários, pelo menos, Cr$ 8 bilhões de novos recursos líquidos, para os empreendimentos programados e com perfeita possibilidade de execução. Essa estimativa compreende inversões em refino num montante aproximado de Cr$ 2 bilhões, de cerca de Cr$ 1 bilhão em equipamentos de transporte e de cerca de Cr$ 5 bilhões em pesquisas e produção, ou seja, para este último setor de atividades, Cr$ 1 bilhão, em média anual, de 1952 a 1956.

O programa básico é moderado, face à magnitude e importância do problema, conquanto as cifras globais se afigurem de grande vulto; é que os dispêndios se estenderão por todo um quinquênio, compreendendo mesmo o primeiro ano do próximo período governamental, de forma a assegurar o pleno desenvolvimento dos planos iniciais e possibilitar a formulação, pelo novo Governo, com tempo suficiente, do programa ulterior. O Governo, porém, se empenhará em ampliar e antecipar a realização do programa, contando com os recursos extraordinários possíveis e previstos no projeto de lei, inclusive os resultantes das aplicações imediatamente rentáveis.

Evidentemente, a aplicação dos recursos deverá processar-se de maneira flexível, conforme a marcha da execução do programa, que poderá reclamar a concentração de esforços numa nova província petrolífera descoberta. Nesse caso, os recursos financeiros mobilizados poderão apresentar-se até mesmo insuficientes; mas tal será o significado econômico da descoberta, que a captação de recursos financeiros adicionais poderá ser levada a efeito em bases diferentes daquelas agora propostas.

 

RECURSOS

Na busca de fontes onde obter os recursos de que o Brasil necessita, para empreender e levar a cabo o programa de trabalhos acima expostos, o Governo teve em vista ligar aos empreendimentos estatais referentes a petróleo aquelas atividades econômicas ou parcelas da população que não podem prescindir dos derivados do óleo mineral, e, do mesmo passo, recorrer a fontes de financiamento que não impliquem em desviar capitais necessários a outros empreendimentos públicos e privados de importância para a economia nacional.

A tarefa da conquista do petróleo pelo nosso povo, sob a direção do Governo nacional, torna indispensável não só um considerável esforço técnico, mas um vigoroso esforço financeiro do País.

Os cidadãos são convocados a participar da solução do problema dos combustíveis líquidos minerais, mediante captação tributária e subscrição de títulos da Petróleo Brasileiro S. A. – que será o eficaz instrumento para enfrentar decisivamente o problema.

Os recursos próprios da Sociedade terão a seguinte origem:

1 – bens da União pertinentes a petróleo e incorporados ao capital;

2 – receita federal sobre parte do imposto de combustíveis líquidos e sobre a importação e o consumo de automóveis, cujas taxas deverão ser elevadas, bem como sobre a parte não vinculada ao Fundo Naval do imposto vigente sobre remessa de valores para o estrangeiro, destinado ao pagamento de automóveis e acessórios;

3 – indiretamente, do produto de uma taxação sobre artigos de luxo;

4 – parte da receita estadual e municipal do imposto sobre combustíveis líquidos, com opção, por essas entidades, de seu emprego em empresas petrolíferas subsidiárias;

5 – tomada compulsória de títulos pelos proprietários de automóveis e afins;

6 – subscrição voluntária pelos particulares e entidades públicas.

Pretendeu o Governo, na medida do possível, que a participação dos cidadãos se fizesse através de uma tributação suave e da subscrição voluntária de títulos.

Não faltaria para isso a consciência pública da magnitude e urgência do problema. Mas as possibilidades de tributação são limitadas, num país de economia ainda incipiente, com enormes encargos de desenvolvimento e com um aparelhamento tributário que muito deixa a desejar. Ao lado disso, a insipiência do mercado de títulos e as dificuldades práticas desse meio limitariam muito as possibilidades de a subscrição voluntária aglutinar os recursos necessários.

 

PARTICIPAÇÃO

Assim, embora o Governo apele para a subscrição voluntária de títulos da empresa mista, e apoie financeiramente o programa nacional do petróleo, sobretudo no esquema tributário, que é o objeto do programa complementar, em bases equilibradas, justas e suaves insuscetíveis de causar dano à economia nacional – não pode fugir de convocar ainda, à subscrição compulsória de ações ou obrigações, os proprietários de veículos automóveis e outros dotados de motores, que têm interesse direto no problema, assegurando assim a participação, na grande empresa nacional, de uma massa que poderá atingir a centenas de milhares. Realiza-se sua participação através da tomada de títulos, embora sob a forma de poupança e investimento compulsórios, como o impõe a urgência do problema, tão clara na consciência de todos.

Dessa maneira, apesar de alguns inconvenientes práticos imediatos, que seriam afastados pela simples tributação, o Governo associa, como acionista, ao êxito dessa empresa um grande número de cidadãos. Dá-se assim autêntico caráter nacional a esse empreendimento, que não se confunde, pelo seu cunho e envergadura, nem mesmo com os mais audaciosos projetos industriais do Estado noutros setores.

A subscrição de ações da Sociedade não é somente um ato de patriotismo. Para maior garantia dos demais subscritores do capital, o Governo Federal abre mão da participação nos dividendos, enquanto aqueles não auferirem 8% sobre o capital que integralizarem. Dessa maneira, o risco da pesquisa recairá praticamente sobre o capital integralizado pela União.

A própria pesquisa, num amplo programa distribuído por várias zonas com probabilidades de produzir óleo, e utilizando os métodos mais modernos, terá o seu risco específico bastante diminuído. As demais aplicações deverão produzir lucros consideráveis aos preços atuais.

Dada a expectativa do êxito financeiro da empresa, os títulos constituirão fonte de renda para os seus tomadores. Estes poderão, ademais, negociá-los, dentro das limitações estabelecidas no projeto de lei.

A integralização do capital da empresa, pelos particulares, além da subscrição voluntária, deverá processar-se mediante pagamentos parcelados feitos pelos proprietários de veículos a motor, segundo uma tabela progressiva, baseada na capacidade de contribuir.

Estabelece-se, entretanto, limite para a subscrição de ações ordinárias, com voto. Acima desse limite, os subscritores voluntários, as entidades de direito público e os proprietários de automóveis participarão da formação dos recursos da Sociedade mediante a tomada de ações preferenciais sem voto ou de obrigações, estas a juros fixos e com prazo certo de resgate. Trata-se, ademais, de títulos negociáveis, nos casos previstos no projeto de lei.

Houve o cuidado de conceder o máximo de opção, entre três títulos diferentes, aos subscritores, voluntários ou não.

Uma participação adequada na Diretoria e no Conselho Fiscal constitui também um dos traços da nova empresa industrial mista, na qual, embora sob o controle oficial, o Governo deseja imprimir o estilo das organizações privadas.

Dessa forma, dentro do sistema elaborado no projeto de lei, fica assegurada a participação do público no grande empreendimento nacional, possibilitada a obtenção de um complemento importante aos recursos de fonte tributária, e preservado, o quanto conveniente, o caráter de empresa privada na organização mista, sem que, de um lado, sejam necessárias as restrições extremas que são essenciais em empresas comuns concessionárias ou autorizadas a operar na produção petroleira, e, de outro, possa prevalecer sequer o receio quanto a controle ou influência nociva ou estranha ao interesse nacional.

 

PODER PÚBLICO

O Governo Federal deverá deter um mínimo de 51 % das ações com direito a voto.

Os bens pertencentes ao Governo Federal e peculiares à atividade da empresa, como refinarias, petroleiros, oleodutos, material de pesquisa e produção, jazidas de petróleo e de gases naturais já descobertas, etc, são estimados preliminarmente em cerca de Cr$ 2,5 bilhões, mas sua avaliação para incorporação ao capital social estará sujeita às normas legais.

Das fontes tributárias previstas, estarão assegurados os recursos necessários não só para a imediata integralização, pela União, do capital inicial de Cr$ 4,0 bilhões, mas para a elevação deste, até 1956, ao nível mínimo de Cr$ 10,0 bilhões, como requer o programa do petróleo. Fica assegurada, assim, desde já, a realização do programa básico.

Além das fontes indicadas expressamente, uma vez acrescida a receita prevista para o plano nacional de reaparelhamento econômico com a contribuição de 3% sobre os lucros retidos, o Governo poderá destinar a parte respectiva à subscrição de capital da Petróleo Brasileiro S. A.

Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão no capital da Sociedade, como é de esperar, a quota do imposto sobre combustíveis líquidos, que o projeto de meios destina a petróleo. Espera-se que a subscrição dessa fonte ultrapasse Cr$ 2,0 bilhões, embora sejam também acrescidas as respectivas quotas do Fundo Rodoviário. Dessa maneira, ficará consideravelmente ampliado o patrimônio dos Governos locais.

É de prever ainda a tomada de títulos da Sociedade pelas autarquias federais e estaduais.

 

GESTÃO

Para que a captação e a aplicação desses recursos se façam com a flexibilidade indispensável à realização dos empreendimentos programados é que o Governo propõe a organização de uma empresa, nos moldes do projeto, e que agirá diretamente, ou através de subsidiárias, como o impõem a gestão de grandes recursos e a complexidade da indústria.

Com os parcos recursos com que tem contado, o Conselho Nacional do Petróleo realizou uma obra considerável, não obstante as dificuldades que lhe antepõe o regime de gestão das verbas orçamentárias, mesmo dentro das normas fixadas pelo Decreto-Lei nº 538, de 1938. Empreendimentos como a Refinaria de Mataripe, em operação, e a de Cubatão, que está sendo construída, ou como a Frota Nacional de Petroleiros, para proporcionarem pleno rendimento, necessitam ser administrados como entidades industriais. A medida que novos empreendimentos forem sendo lançados e concluídos, a direção harmônica do conjunto das entidades e a administração de cada uma delas em particular terão de ser conduzidas necessariamente dentro de normas e com objetivos de natureza econômica que reclamam maior utilidade de ação do que é possível aos serviços públicos comuns.

A Sociedade por ações preconizadas no projeto de lei atenderá, por certo, a essa necessidade, haja vista a experiência da Companhia Siderúrgica Nacional, criada em 1940, e cujos benefícios para a economia do País e sucesso financeiro são incontestáveis.

Depende o êxito da empresa, obviamente, não só dos responsáveis pela sua direção, mas também da própria natureza da atividade a que ela se dedicará. O empreendimento visa principalmente à pesquisa e à produção de óleo mineral no território brasileiro. É, portanto, uma empresa de risco; mas o risco decorrente da própria pesquisa de jazidas minerais perde de significado, em parte, diante da envergadura do empreendimento, que possibilita levar a sua atividade a grandes e variadas áreas potencialmente petrolíferas, como as formações sedimentares do Nordeste, do Meio-Norte, da Amazônia e da bacia do Paraná.

Na Bahia, a existência do petróleo já é comprovada; na Amazônia há sedimentos de espessuras consideráveis, em que se encontraram amostras de óleo e gás; no Sul, a ocorrência de arenitos betuminosos prova a presença de petróleo, que a pesquisa e a perfuração trarão provavelmente para o âmbito comercial.

Incorporados à Sociedade, deverão organizar-se, ademais, empreendimentos imediatamente rentáveis, como os destinados à exploração das indústrias do transporte e do refino. Convenientemente orientados, esses empreendimentos assegurarão lucro às empresas associadas à Sociedade, ainda que demorem, acaso, as descobertas de novos campos de petróleo.

Cabe, porém, conciliar o instrumento flexível de execução do programa nacional do petróleo com a plena segurança de sua operação, indene de perigos. É fora de dúvida, como o demonstra a experiência internacional, que, em matéria de petróleo, o controle nacional é imprescindível. O Governo e o povo brasileiros desejam a cooperação da iniciativa estrangeira no desenvolvimento econômico do País, mas preferem reservar à iniciativa nacional o campo do petróleo, sabido que a tendência monopolística internacional dessa indústria é de molde a criar focos de atritos entre povos e entre governos. Fiel, pois, ao espírito nacionalista da vigente legislação do petróleo, será essa empresa genuinamente brasileira, com capital e administração nacionais.

O real perigo a evitar seria o de que, através da participação do capital privado, agissem grupos monopólicos de fonte estrangeira ou mesmo nacional. Tal possibilidade foi, no entanto, tecnicamente anulada no projeto, seja pelo sistema de limitação na subscrição de ações com voto, seja pela limitação de diretores eleitos pelo capital privado, bem como através da escolha, pelo Presidente da República, do presidente da Sociedade, com direito a veto, e dos demais diretores-executivos, e ainda pela necessidade de decreto para homologar qualquer reforma de estatutos; sem mencionar a esmagadora maioria dos poderes públicos no capital social, o próprio controle inicial da sua totalidade, e, finalmente, enorme difusão da parcela do capital, percentualmente limitada, em poder do público.

Com essas medidas, parece ao Governo que a gestão dos recursos financeiros a serem captados, conforme os projetos de lei, poderá processar-se da forma mais adequada à consecução dos objetivos em vista, através da Petróleo Brasileiro S. A., como projetada.

 

COORDENAÇÃO

Para enfrentar, em todos os aspectos e fases essenciais, problema tão vasto e complexo como o do petróleo, não há fugir à mobilização de meios – em recursos financeiros e organização – em escala proporcional à amplitude e extensão do próprio problema. Qualquer alternativa mais restrita seria inócua ou contraproducente.

Consciente dessa necessidade está o Governo, no entanto, alertado para as dificuldades de ordem técnica que um empreendimento dessa magnitude apresentará, praticamente, como problema de administração. Mas essas dificuldades são superáveis – outros países e outras empresas as enfrentaram com sucesso -, e embora não tenhamos ainda, realmente, experiência administrativa de direção e gerência de organizações congêneres desse porte não há por que duvidar da nossa capacidade de dirigir grandes empreendimentos industriais ou comerciais, sem deixá-los cair, fatalmente, nos males do gigantismo burocrático. Ainda que para evitar esses males, muito dependa o empreendimento dos homens que o dirigirem, as suas próprias bases, estrutura e diretrizes já foram concebidas com esse propósito. Para impor flexibilidade de atuação, foram previstas entidades subsidiárias e a possível articulação com empresas privadas, de modo a impedir que a Sociedade se torne demasiado compacta ou rígida, desenvolvendo-se, antes, com o caráter de uma estrutura de coordenação.

O próprio poder da direção da empresa, e, em particular, de seu presidente, está sujeito a um sistema de freios e contrapesos que, sem tornar sua autoridade menor que a responsabilidade, limita-a e equilibra-a, harmonicamente, com a do Conselho Nacional do Petróleo. A estrutura da empresa preconizada imprime unidade ao conjunto dos empreendimentos em marcha ou a serem por ela iniciados, de forma a assegurar a integração das atividades econômicas peculiares aos vários setores da indústria. Todas as grandes empresas de petróleo, privadas ou estatais, existentes nos outros países, mantêm sob direção unificada os serviços de pesquisa, produção, refino e transporte.

Dessa forma, a gestão coordenada das empresas industriais pertinentes ao petróleo, em que o poder público tenha participação preponderante, ficará assegurada com a execução da lei ora submetida, em projeto, à consideração do Congresso. Restará regular, porém, de modo geral, a gestão coordenada de outras empresas industriais do Estado ou paraestatais, instituindo normas condizentes com a sua finalidade econômica e dispondo sobre o seu funcionamento harmônico, inclusive em relação aos empreendimentos privados.

Com efeito, a indústria do petróleo, lançada em bases amplas, como o preconiza o projeto de lei, deve articular-se não só dentro de seu campo específico, mas também com outros setores da economia nacional. Ao Governo não escapou a necessidade dessa articulação e medidas já vêm sendo tomadas no sentido de estimular as atividades industriais relacionadas com as do petróleo, como as de produção de aço laminado, de tubos, de cimento, etc. O programa pertinente aos combustíveis líquidos minerais não se chocará, portanto, com os planos de inversões públicas em outros empreendimentos de natureza econômica; ao contrário, os completará, como urgia.

Por outro lado, de modo algum o programa contrariará a vigente política de estabilização do valor da moeda. Este ponto é de excepcional importância em face do vulto do empreendimento planejado, que se lançará justamente no momento em que o Governo está considerando planos para o reequipamento econômico do País, planos esses que exigirão esforços e sacrifícios, a fim de serem executados dentro de um regime de relativa estabilidade monetária.

O presente projeto consistirá essencialmente no aproveitamento de recursos de receita ordinária e na transferência, para investimentos de fundamental interesse nacional, de fundos relativamente improdutivos, em termos de benefícios para a Nação. Esse deslocamento da aplicação de fundos seria inevitável, pois é irrealístico supor que um empreendimento com as características do proposto possa realizar-se somente com a utilização de recursos ociosos. Para a existência de grande massa de fundos inativos seria necessária uma renda per capita mais alta, que exigisse menores oportunidades para investimentos especulativos e maiores incentivos para poupar do que existem atualmente. Por outro lado, dadas as características e tendências das classes que serão chamadas a prestar o seu concurso ao empreendimento, esses fundos, se permanecessem em seu poder, seriam, na sua quase totalidade, provavelmente utilizados na compra de artigos de consumo suntuário ou em atividades virtualmente improdutivas para o bem-estar coletivo. Assim, uma vez canalizadas essas disponibilidades para investimentos de alta produtividade potencial, seu efeito inflacionário a curto prazo ficará muito reduzido, enquanto, ao contrário, deverão constituir-se, no período subsequente, num fator de estabilização monetária, mediante o aumento direto e indireto da produção.

 

MAGNITUDE

Ao submeter à consideração do Congresso Nacional o projeto de lei assim fundamentado, cumpre-me reiterar a importância do problema de que ele se ocupa e cuja solução deve ser procurada com a mais enérgica diligência, para que não se comprometam a segurança e o desenvolvimento econômicos da Nação, em futuro próximo. Sem o firme propósito de levar a termo empreendimentos de vulto, mediante a aplicação de recursos financeiros consideráveis, o País poderá, dentro de um decênio, defrontar-se com sérios embaraços à defesa nacional e com a contingência de racionar o consumo de derivados do petróleo, em face da impossibilidade de adquirir no exterior os volumes de que necessita, cerceando, dessa maneira, seu desenvolvimento.

Como é sabido, a inelasticidade característica da procura internacional dos produtos primários e gêneros alimentícios, que constituem a massa das exportações brasileiras, conduz a um grave círculo vicioso. De um lado, em curto prazo, o simples aumento de volume das nossas exportações, a partir de certo ponto, poderá provocar uma queda dos seus preços proporcionalmente maior do que o aumento do volume, com uma redução total das receitas de exportação; por outro lado, se bem que a redução do volume deva, dentro de certos limites, produzir um aumento mais do que proporcional de preços, a partir desses limites, que são relativamente restritos, qualquer diminuição de volume reduzirá o valor total das exportações.

Essa característica da procura internacional de produtos primários em geral constitui, assim, empecilho de difícil transposição para o aumento de nosso poder de compra no exterior.

Considerando-se a elevada taxa de crescimento do consumo de produtos de petróleo no Brasil e a existência desse teto relativamente baixo para o aumento das exportações dos nossos produtos clássicos, somos obrigados a concluir que encontraremos brevemente grandes dificuldades em atender ao aumento das nossas importações daqueles produtos. Além dessas dificuldades, outras poderão sobrevir em virtude de déficits da produção estrangeira, quer resultantes do consumo mundial em ascensão, quer de perturbações de ordem política internacional.

No entanto, mesmo com otimismo e afastando estas duas últimas hipóteses, parece óbvio que estamos caminhando certamente para um impasse, devido à desproporção existente entre a possibilidade de aumento do nosso poder de compra no exterior e do aumento substancialmente maior do valor dos produtos de petróleo consumidos no Brasil. A não ser que tomemos agora as providências indispensáveis, nas dimensões adequadas, terá o País que considerar em futuro não muito afastado a necessidade do racionamento de combustíveis líquidos e do uso de substitutivos, voltando possivelmente a experiências penosas, como as que, numa menor escala de consumo, fomos compelidos a adotar durante a guerra passada. Em qualquer caso, para que o desenvolvimento econômico do País não se interrompa ou se reduza, a pesquisa e a extração do óleo mineral se afiguram como a medida lógica e mais promissora para a solução do problema.

Qualquer cooperação a ser pedida nos próximos anos ao público consumidor dos produtos do petróleo redundará, em última análise, em seu proveito, pois os pequenos sacrifícios agora exigidos não se poderão de forma alguma comparar com os que advirão se tivermos de voltar permanentemente ao sistema de racionamento.

O programa de trabalhos pertinentes ao petróleo constitui, portanto, um conjunto de medidas da maior importância para a solução dos problemas básicos do País. Surge depois do Plano do Carvão Nacional, ora em estudo no Congresso, e deverá completar-se com outros projetos de leis pertinentes aos demais setores do aproveitamento das fontes de energia de que dispõe o País. Nos termos da minha primeira Mensagem anual ao Congresso, o Governo promoverá as medidas legislativas necessárias não só ao aproveitamento desses recursos, mas também à coordenação da política oficial de energia, com o fim de assegurar o desenvolvimento harmônico das atividades dependentes do balanço energético nacional. Parece ao Governo indispensável a aprovação do projeto referente às fontes tributárias, bem como a do referente à criação da sociedade mista Petróleo Brasileiro S.A., no menor tempo possível, como é imperioso face à conjuntura internacional e às necessidades do País, naturalmente sem prejuízo do valioso concurso com que, para sua maior eficiência, contribuirão os debates no Congresso Nacional.

 

Texto publicado na Hora do Povo – Edições 3.189, 3.190, 3.191

Euzébio: a derrota dos entreguistas na luta pela criação da Petrobrás

Publicamos abaixo, entrevista feita com Euzébio Rocha, deputado autor da lei 2.004, que criou a Petrobrás instituindo o monopólio estatal do petróleo.

Euzébio participou do premiado documentário “Pega Ladrão”, produzido pelo CPC-UMES.

Os entrevistadores são Plínio de Abreu Ramos e Margareth Guimarães Martins, e o artigo foi publicado na Hora do Povo, edições 3.198 e 3.199. Confira o artigo abaixo:

 

Nos últimos dias, estamos vendo alguns fenômenos espantosos.

Alguns, na mídia, chegaram à conclusão de que a Petrobrás está sendo terrivelmente sacrificada por ter, pela lei, uma participação mínima de 30% no pré-sal e ser a operadora única. Zelosos pelo destino de nossa empresa, querem retirar dela esse sacrifício para dar-lhe mais saúde, terrivelmente afetada pelas imensas reservas de petróleo que descobriu. O remédio, dizem eles, não pode ser outro, senão entregar o petróleo que a nossa empresa descobriu às multinacionais. Aí, sim, a Petrobrás será um titã de tanta saúde.

É o primeiro caso de uma companhia de petróleo que tem a sua saúde afetada porque achou uma cornucópia de petróleo. Por que será que isso só acontece no Brasil.

Um elemento – que outrora jactava-se de nacionalista, agora rebaixado à prostituição entreguista mais rampeira – declarou que foi muito justo proteger nosso petróleo do cartel das petro-multinacionais no passado, quando não havia petróleo nem Petrobrás, ou quando esta não havia ainda descoberto reservas consideráveis. Agora, que a Petrobrás é uma da maiores companhias da Terra e já descobriu mais de 60 bilhões de barris em reservas, é hora de entregar o petróleo para o cartel.

Realmente, antes não havia o que entregar. Por isso é que o elemento era a favor de proteger o que não havia…

Outros fazem cálculos e mais cálculos para provar que vamos ficar com 70%, 75%, 80% ou 85% (percentagens muito rigorosas, como o leitor pode constatar) “da renda” de Libra (seja lá o que isso queira dizer) através de entregarmos a maior parte do lucro em óleo às companhias estrangeiras. Dentro em breve esses calculistas receberão a medalha Fields – apelidada “o prêmio Nobel da matemática” – pelas sensacionais descobertas que revolucionaram a tabuada e provaram que 70% é igual a 85% (ou, mais sensacional ainda, que 41,65% de 45% pode ser qualquer coisa menos 18,74%, resultado a que somente os sectários das quatro operações podem chegar).

Paremos por aqui, leitores, porque essas novas descobertas não são tão novas assim.

Com a palavra, o criador da lei 2004, que instituiu o monopólio estatal do petróleo. O depoimento de Euzébio Rocha que condensamos, nesta e na próxima edição, não é o mesmo que citamos na edição passada: em 1987, Euzébio concedeu uma segunda entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Diferente da primeira, de 1984, que teve como tema a política em geral durante a vigência da Constituinte de 1946, esta foi centrada especificamente na campanha pelo controle nacional do nosso petróleo – pela criação da Petrobrás – pois fazia parte do Projeto Memória da Petrobras.

Os excelentes entrevistadores foram Plínio de Abreu Ramos e Margareth Guimarães Martins. Mantivemos a forma de perguntas e respostas, embora tenhamos resumido tanto as primeiras quanto as segundas.

 

C.L.

 

P – Eusébio, como se deu inicialmente o seu envolvimento com o problema brasileiro do petróleo?

Euzébio Rocha – Meu envolvimento com a questão do petróleo se deu mais ou menos quando cheguei na Constituinte. Eleito deputado federal e bastante jovem, o que foi há muito tempo, consequentemente…

 

P – Você era o mais novo constituinte.

E.R. – É, estava com 26 anos. Comecei a examinar o problema energético e fiquei horrorizado ao verificar que mais ou menos toda a base das fontes energéticas do país era lenha, que contribuía com cerca de 78%. Então me pareceu imediatamente que o país não teria condições de se desenvolver sem resolver o problema energético. Daí eu me voltei para a questão energética.

O interessante é que minha primeira preocupação não foi diretamente com o petróleo. Minha primeira preocupação foi com o problema das areias monazíticas, que eu sabia que continham o tório, porque havia feito estudos a respeito. Então fiz um projeto proibindo a exportação de areias monazíticas, que deu um show internacional: o Departamento de Estado mandou um pedido de informação, porque o projeto, proibindo a exportação de areias monazíticas, comprometia a utilização de tório, o que prejudicava a política internacional dos Estados Unidos. Cheguei até a receber um adido da embaixada para o setor de minério, que veio me dizer que o meu projeto acabava tendo o sentido de uma dificuldade para o mundo ocidental, porque só os Estados Unidos tinham condições de desenvolvimento da energia nuclear.

Foi quando esclareci a ele que não, que eu achava que os Estados Unidos não podiam assumir sozinhos a responsabilidade da defesa da democracia, que o Brasil deveria participar disso. Então eu tinha aberto uma válvula do meu projeto, que era a permissão da exportação em troca de absorção de tecnologia nuclear, porque achava que o país devia dominar também a tecnologia nuclear como condição para resolver o problema energético. Tive um convite para ir aos Estados Unidos, mas parece que depois, como fiquei muito intransigente no projeto, que acabou aprovado, eu não fui aos Estados Unidos. Mas o projeto foi aprovado. [risos]

Contei surpreendentemente com o apoio de um destacado líder industrial, que era o Simonsen, o bom, evidente, Simonsen, o bom; o Roberto Simonsen, que chegou a ser senador. Sem confusões de nomes, porque ele era um homem íntegro, nacionalista. [risos] Vamos deixar sem confusão nenhuma: era Simonsen, o bom. Ele me deu uma cobertura muito grande, e eu encontrei também no Estado-Maior do Exército um apoio muito grande.

 

P – Naquelas eleições de 1944 no Clube Militar, o problema do petróleo já foi ventilado durante a campanha?

E.R. – É evidente que já. A questão do petróleo já se colocava sobretudo pela ação do general Horta Barbosa junto com o general Góis Monteiro e com outros generais…

 

P – Estevão Leitão de Carvalho.

E.R. – Leitão de Carvalho e outros generais já colocavam o problema do petróleo como fundamental para a segurança nacional e para o desenvolvimento do país. Eu não tenho dúvida que quem levou o problema para dentro das Forças Armadas foi o general Horta Barbosa, que conseguiu imediatamente o apoio do Góis Monteiro e do Dutra. O Dutra se ligava a este grupo que considerava que o Brasil não deveria fazer concessões sobre o petróleo. Indiscutivelmente.

 

P – A coisa explodiu de fato dentro da Constituinte?

E.R. – É, explodiu dentro da Constituinte, e depois com o Estatuto do Petróleo. Evidentemente, havia na Constituinte um conflito de tendências. Homens como o presidente Artur Bernardes, como [Domingos] Velasco, eu e outros representávamos um grupo que achava que minério não dá segunda safra e que considerava fundamental uma política prudente de minério, em que as exportações não comprometessem nem no presente nem no futuro o interesse industrial do país. E esse grupo lutou de uma maneira muito intensa.

Entretanto, houve um lobby muito importante, que foi o lobby do Schoppel. Paul Schoppel hospedou-se aqui no hotel Glória, e do hotel Glória ele tinha telefone direto com a embaixada americana e com vários deputados. E representava realmente um desejo norte-americano de abrir a questão aos grupos estrangeiros. Aí é que realmente se deu uma luta muito intensa, uma luta muito grande em torno da tese de que a exploração de petróleo deveria ser feita só por brasileiros ou por empresas constituídas por brasileiros.

Entretanto, um deputado de quem eu vou dar somente as iniciais, por uma questão de elegância, um deputado da UDN, Ernâni Sátiro [risos], apresentou – acho que por coincidência ou por influência de sessão espírita, não sei, ele apresentou coincidentemente uma emenda que era exatamente a emenda que Schoppel desejava: uma emenda que alterava aquela linha nacionalista anterior do presidente Getúlio Vargas.

 

P – O artigo 153.

E.R. – O artigo 153, exatamente. A emenda transformou-se no artigo 153 da Constituição de 46. E isto foi de uma importância decisiva na colocação do problema da participação das empresas organizadas no Brasil. O problema básico foi realmente esse: o da emenda das sociedades organizadas no Brasil.

 

P – Ou empresas organizadas no país.

E.R. – Ou empresas organizadas no país, diz textualmente isso. A emenda foi apresentada por Ernâni Sátiro e denunciada depois pelo presidente Bernardes, pelo [senador Domingos] Velasco e por mim como uma intromissão de grupos estrangeiros na elaboração da Carta constitucional. E abria realmente aos grupos estrangeiros a exploração das riquezas minerais do país.

 

P – Nós fizemos uma entrevista com o Drault Ernanny e ele nos contou esse episódio um pouco diferente. Disse ele que a expressão “ou empresas organizadas no país” foi acrescentada, no final, quando a emenda tinha chegado na Comissão de Redação da Câmara, e ninguém sabe realmente quem foi que acrescentou.

E.R. – Foi o Ernâni Sátiro. Eu me lembro bem, eu me recordo bem disso: a emenda foi do Ernâni Sátiro, não tenho dúvida nenhuma. Foi realmente uma posição do Ernâni Sátiro.

 

P – O Drault Ernanny nos contou também que o Melo Viana reuniu os líderes dos partidos para pedir que silenciassem a respeito do assunto e o Bernardes disse que não silenciaria.

E. R. – É lógico. O Bernardes teve uma posição muito clara nesse sentido, uma posição muito correta, uma posição muito corajosa. Acho que isso foi indiscutível.

 

P – O senhor falou do lobby do capital estrangeiro. Esse lobby chegou a procurar pessoalmente algum dos deputados do grupo nacionalista?

E.R. – Acho que não. Eles eram bastante inteligentes para saber que era uma perda de tempo e até um comprometimento.

 

P – Agora, esse dispositivo não é novo, porque ele repetiu o texto da Constituição de 34.

E.R. – Repetiu o texto da Constituição de 34, mas contrariou a de 37. A Carta de 37 estabelecia nesse sentido a participação de empresas constituídas por brasileiros. Então mantinha realmente a tese nacionalista na sua pureza e na sua exatidão.

 

P – Quer dizer que o senhor considera que houve um retrocesso em relação à Carta de 37?

E.R. – Houve indiscutivelmente um retrocesso nesse sentido. Houve um grande retrocesso. E o surpreendente é que o sr. Schoppel acabou condecorado com a Cruz do Cruzeiro do Sul em 5 de novembro de 1946, por sugestão do sr. João Neves da Fontoura. [risos] Mas a emenda do Ernâni Sátiro é exatamente a seguinte: “As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros” – acho que o patriotismo está completamente satisfeito – “ou empresas organizadas no país, assegurada ao proprietário preferência quanto à exploração”. Esta redação prevaleceu na Constituição de 1946 e equivaleu ao artigo 119 da Constituição de 1934.

 

P – O senhor se lembra qual era a diferença entre autorização e concessão?

E.R. – Bom, eu tenho a impressão que o problema de autorização e concessão é tão somente uma questão de um estrutura de direito. A autorização é mais incondicional, quer dizer, você autoriza, e evidentemente essa autorização fica um pouco ao arbítrio da autoridade. Ao passo que a concessão, não. Você entrega a concessão por 30, 20, 25 anos. Acho que essa é a grande diferença.

 

P – O clima foi muito agitado?

E.R. – Ah, foi. Disso você não tenha dúvida. Porque o mínimo que se disse foi que isso era uma traição ao país, e que ofendia a todos os constituintes, ofendia a todos os brasileiros o fato de haver um constituinte estrangeiro, por interesse do lobby das empresas petrolíferas, redigindo a Constituição brasileira.

Na fase do grande trabalho do Horta Barbosa dentro do Exército, quando o dr. Getúlio baixou dois decretos-leis fundamentais, um deles, o Decreto-lei 366, de 11 de abril de 1938, que tornou a atividade privativa de brasileiro nato. Isso é de muita importância, porque nesse momento a Venezuela abria o seu petróleo aos grupos estrangeiros, os ditadores latino-americanos entregavam as suas riquezas aos grupos internacionais, e o presidente Getúlio Vargas, mostrando uma formação de estadista, tornava privativa de brasileiro nato a exploração de petróleo, impossibilitando a participação estrangeira. E em seguida ao Decreto 366, em 29 de abril de 1938 ele criou o Conselho Nacional do Petróleo, cujo primeiro presidente foi realmente o Horta Barbosa.

Então temos esta fase e chegamos em 45; Getúlio caiu e Linhares assumiu. A queda do Getúlio, em 45, a gente fica sem entender. Porque em 1930 o Brasil era um país superendividado, sem dinheiro para importar o mínimo necessário. E exatamente em 45, o Brasil tinha uma estabilidade monetária muito grande, tinha uma das moedas mais fortes do mundo, tinha-se conseguido o início de Volta Redonda, quer dizer, o país tinha toda essa estrutura.

É verdade que tinha ferido os interesses da United States Steel e de vários grupos americanos.

Mas exatamente nessa ocasião Getúlio foi destituído. E um dos primeiros atos do Linhares foi exatamente revogar a lei anti-truste, a lei malaia, como chamavam, e abrir a perspectiva para as refinarias particulares.

Foi quando o Dutra fez o Decreto 9.881 criando a Refinaria Nacional de Petróleo de Mataripe, que produzia dois mil barris diários, mas que teve uma importância muito grande. Com essa medida do Dutra, pode-se sentir a alternância dos problemas, porque quem estava no Conselho Nacional nessa ocasião era o Barreto…

 

P – João Carlos Barreto.

E.R. – … que sustentava a participação de grupos estrangeiros no setor petrolífero. Então eles fecharam os olhos completamente a essa participação. Tenho a impressão que isto é o que eu poderia dar a vocês de elementos básicos para a luta que nós travamos nessa parte toda até 48.

Depois veio a proposta do Dutra. Veja você a questão do Estatuto do Petróleo: a mensagem nº 61, de 31 de janeiro de 1948, e a nº 62, de 4 de fevereiro de 1948. O presidente Dutra mandou o Estatuto do Petróleo mais ou menos como Pilatos, porque na mensagem ele dizia: “Significativas correntes nacionais consideram importante a participação do capital estrangeiro. Assunto de tamanha relevância não devo resolver sozinho. Torna-se necessário a participação do Congresso brasileiro para tal decisão”. E mandou o Estatuto.

Foi aí que, pela primeira vez, eu, que tinha apoiado o Dutra para a Presidência da República logo de início, fiz um discurso contra ele. E recebi um telefonema do Gabriel Monteiro da Silva reclamando: “Mas, como? Você é amigo do Dutra e faz um discurso contra ele!”. Eu disse: “Não, eu não fiz contra ele. Fiz contra o Estatuto do Petróleo”. “Mas ele ficou muito sentido”, essa questão toda.

O Mário Bittencourt Sampaio conseguiu introduzir-se – ele era muito amigo do Dutra, tanto que foi presidente do Plano Salte, e era um homem de muito boa formação nacionalista. Eu sei que pouco a pouco o Dutra foi-se convencendo que o Estatuto não convinha aos interesses nacionais. O fato é que o Estatuto ficou congelado e acabou arquivado.

 

P – Mas a maioria dutrista, o PSD e tal e os partidos coligados, não pediam à mesa a inclusão na ordem do dia?

E.R. – Pedir, eles tentavam pedir, mas nós criávamos as maiores dificuldades. Eu mesmo levei o projeto para minha casa e fiquei com ele três meses. Nós criávamos todas as dificuldades. Até que chegou o momento em que o próprio Dutra mandou, através do Plano Salte, a construção da Refinaria de Cubatão.

 

P – Mas o Estatuto chegou a passar pela Comissão de Constituição e Justiça e pela…

E.R. – Passou, passou por várias comissões. Mas foi passando, foi passando e passou.

 

P – O relator era o Costa Neto.

E.R. – Exatamente, o relator era o Costa Neto, de São Paulo. O fato é que a Refinaria de Cubatão foi uma grande vitória nossa, porque 45 mil barris diários eram realmente alguma coisa séria. E nisto há um fato muito interessante: o Mário Bittencourt Sampaio foi mandado à França para utilizar os nossos recursos congelados lá na construção da refinaria.

O Mário foi para a França, conversou com o ministro francês e o ministro disse a ele: “Olha, realmente nós temos os recursos, estamos devendo ao Brasil e vamos pagar. Mas infelizmente não podemos fazê-lo dando assistência à construção de uma refinaria. Porque o embaixador americano disse que se a França já está tão forte que pode ajudar o Brasil a construir refinarias para estabelecer concorrência com as empresas americanas, então não está precisando mais de ajuda do Plano Marshall”. Em virtude disso, foi vetado o fornecimento desses recursos à refinaria.

O Mário Bittencourt Sampaio pediu então ao embaixador que fizesse um coquetel de despedida. E, nesse coquetel, o embaixador americano perguntou diretamente a ele: “o senhor então viaja amanhã para o Brasil?”. Ele disse: “não, amanhã eu vou para a Tchecoslováquia. Tenho ordens do presidente Dutra de que o Brasil tem que construir a sua refinaria de petróleo, e a Tchecoslováquia tem condições técnicas de nos oferecer a construção da refinaria. Então eu vou para a Tchecoslováquia”.

Surpreendentemente, no dia seguinte, o ministro francês telefonou dizendo que tinha havido uma reconsideração e que a França ia oferecer recursos para construirmos. Você vê que diferença dos homens, dos Delfins Netos atuais, etc., etc.

 

P – Em 1947, quando o Centro Acadêmico 11 de Agosto lançou as primeiras torres de petróleo no Largo de são Francisco, em apoio à tese Horta Barbosa, você já estava ligado às campanhas de rua?

EUZÉBIO ROCHA – Já.

 

P – Nessa época você já se ligava às campanhas populares?

E.R. – Já, e até anteriormente. Logo que o Estatuto [do Petróleo] chegou, nós iniciamos dentro da Câmara uma luta contra ele, que precedeu a luta de rua. Imediatamente depois, o [general] Horta começa a tomar posição no Clube Militar, e houve as duas grandes conferências: a primeira foi do Juarez [Távora] defendendo a participação dos grupos estrangeiros, e depois a do Horta, combatendo. Então a luta veio do Clube Militar e depois se projetou para a União Nacional dos Estudantes, para os trabalhadores e até para setores de federações de indústrias. A de Minas, por exemplo, teve uma posição muito boa logo no início, favorável ao monopólio estatal do petróleo. Isso foi criando uma consciência nacional.

 

P – Do Congresso é que extrapolou para a área militar e a área estudantil.

E.R. – Exatamente isso. Assim que o Estatuto chegou, recebeu o combate de vários deputados. O presidente Bernardes, eu, [Domingos] Velasco, e outros, combatemos. E o Horta Barbosa fez o grande discurso no Clube Militar, praticamente em resposta ao Juarez Távora. De modo que o Congresso teve realmente uma participação muito importante no combate ao Estatuto do Petróleo.

 

P – Como se dava o relacionamento entre a área parlamentar e a área militar?

E.R. – Eu tive um contato muito grande com a área militar mais moça, porque fui aluno do Colégio Militar no Rio de Janeiro, e o pessoal todo que seguiu a carreira manteve muita amizade comigo. Depois passei a ter um grande contato com o Horta Barbosa, de quem me tornei muito amigo. O entrosamento era tão grande que eu fiz duas conferências no Clube Militar defendendo o monopólio estatal do petróleo.

Ao longo da minha vida, tenho tido que combater alguns militares. Mas quando combato o general Geisel, combato pelos erros cometidos na Petrobrás e na Presidência da República. Eu combato o general fulano de tal, mas não a instituição militar, porque ela apresenta em si muitos elementos identificados… Como a sociedade civil. Vamos dizer que a sociedade civil não tem um Roberto Campos? Então, dentro da área militar pode haver alguns Robertos Campos! O grupo nacionalista do Exército cresceu muito e se entrosou com o grupo nacionalista [civil]. Lógico que com divergências muito grandes, mas nós fizemos da luta pelo monopólio estatal do petróleo o denominador comum! “É em torno disto que nós estamos. O resto, depois a gente discorda, segue outros rumos. Nós vamos lutar por isso. Isto é o fundamental”.

 

P – Não houve conflito de convivência entre o meio político, o meio estudantil e o meio militar em torno desse denominador comum a que você se refere?

E.R. – Não, não houve. Houve discordâncias. Por exemplo: evidentemente eu não concordava com o Juarez Távora. [risos] Tive discordâncias violentas com o Juarez Távora. Eu me recordo de um programa de rádio… Era habitual de quando em quando a gente ir para o rádio discordar, dávamos aqueles socos na mesa, aquelas coisas todas, e eu levava sempre muito argumento. Uma vez eu fiquei surpreendido, porque quando abri o Jornal do Brasil tinha uma página toda em que estava escrito o seguinte: “O petróleo debaixo da terra não traz benefícios a povo nenhum”. [No] Estado de S. Paulo, a mesma coisa. [No] Correio da Manhã, que ainda existia, uma página inteira! Eu digo: “Então o debate de hoje tem outro sentido. Acho que os trustes querem realmente fazer disso um negócio muito sério”.

Procurei apressadamente reunir dados – resolvi pegar dados estatísticos da ONU sobre a Venezuela. E tive um grande debate com o general Juarez Távora a respeito. E a tantas, eu disse ao general Juarez Távora: “General, a Venezuela é um grande país, não é? Felizmente seu povo vive uma vida boa, razoável”.

Então ele deu um daqueles seus socos típicos na mesa e disse: “Deputado, o senhor esta completamente errado! Eu estive na Venezuela! O povo vive numa miséria absoluta!”.

“Então, general, quer dizer que o petróleo debaixo da terra e na mão da Standard não traz benefício a povo nenhum!” [risos]

No dia seguinte os jornais não deram quase noticia do nosso debate. [risos]

 

P – Mas há um detalhe importante nesse processo todo, que é o seguinte: inicialmente o truste insistia na inexistência de petróleo no Brasil.

E.R. – Exatamente isso.

 

P – Depois, numa segunda etapa, ele passou para essa posição que você está falando: o petróleo debaixo da terra não serve a ninguém. Então, como não tínhamos recursos, na suposição deles, e eles tinham…

E. R. – Como não tínhamos tecnologia, segundo diziam Juarez e os trustes…

 

P – Pois é, mas há uma mudança de estratégia muito grande: primeiro, não existia; depois, passou a existir, mas havia falta de tecnologia, havia falta de recursos, que só eles tinham, então só eles podiam tirar. Como se processou essa passagem de uma fase estratégica para outra?

E.R. – Muito fácil! Porque depois que surgiu o petróleo na Bahia, depois que os poços começaram a ser perfurados pelo Conselho Nacional do Petróleo, finalmente, quando o Conselho Nacional terminou, atingimos mais ou menos uma produção de 2.500 ou 2.700 barris diários, se não me engano, em torno disso. Quer dizer, se estávamos produzindo 2.500 barris, não era possível continuar com a mesma tese de que não havia petróleo! Os trustes são safados, mas não são burros. São desonestos, mas não são burros. Então compreenderam que a estratégia tinha que ser mudada. Não podiam dizer: “Não há petróleo no Brasil” – como tentaram fazer sempre. Passaram a dizer: “Há petróleo mas… vocês não têm recursos, vocês não têm tecnologia” – era o argumento deles. Eles não eram sociedades beneméritas e só aplicavam com muitas vantagens. E estas vantagens poderiam ficar para o nosso povo lutar contra a miséria.

 

P – Os defensores do Estatuto usavam o argumento da importância da transferência de tecnologia devido à nossa defasagem em relação aos países estrangeiros. O que os nacionalistas previam fazer para diminuir a defasagem?

E.R. – Primeiro: quando se conseguiu fazer a refinaria de Mataripe, que se pagou no primeiro ano, nós provamos ao Brasil que a atividade petrolífera era autofinanciável. E com relação à questão da tecnologia, nós mostrávamos que havia no mercado mundial inúmeros técnicos de geologia que, se nós pagássemos bem, deixariam os seus empregos, porque eles têm uma formação capitalista, estão onde pagam melhor. Então, teríamos esses elementos que formariam técnicos nacionais. Nós mostrávamos a evidência de que podíamos resolver o problema de uma forma absolutamente nacional! Eu achei que isso foi muito importante. Nós evoluímos e conseguimos convencer. Tanto que a tendência, pode ver qual foi: acabou se fazendo a refinaria de Cubatão.

 

P – Era aquela tese do general Horta Barbosa, então, de que os lucros de uma refinaria seriam aplicados na pesquisa, que essa era a maneira mais prática de se explorar o petróleo de uma forma autônoma, não é isso?

E.R. – Exatamente, lógico. A atividade petrolífera é indiscutivelmente autofinanciável e, além de ser autofinanciável, gera grandes excedentes econômicos.

Vejam o seguinte: as recentes ocorrências de Marlim e daquela área próxima dão como reservas recuperáveis em torno de três milhões e meio de barris. Quer dizer, mais do que nossas reservas atuais. A Petrobrás gastou para localizar esse número de barris 250 milhões de dólares. Então é uma mentira se dizer que a atividade petrolífera é de grande risco. Porque hoje, através dos processos de magnometria, sismometria, geofísica, geologia, você tem condições de localização muito maiores. De modo que é por isso que a gente mostra que não é verdade. E se você acha petróleo… petróleo é dólar! Localizado o petróleo, você não tem mais problema financeiro.

 

P – E a respeito da criação do Centro do Petróleo?

E.R. – O Centro de Defesa…

 

P – Centro de Estudos e Defesa do Petróleo.

E.R. – … e da Economia Nacional, depois foi acrescentado, exerceu uma função fundamental. Dentro da campanha, eu citaria o Jornal de Debates, que teve uma função histórica muito importante, porque concentrava realmente as informações. E tínhamos um jornal que exerceu uma influência muito grande, que foi o Diário de Notícias. O Diário de Notícias tinha uma posição nacionalista. Eu me lembro que uma vez, almoçando com o Dantas [Orlando Ribeiro Dantas, dono do “Diário de Notícias”] e com o jornalista que escrevia sempre…

 

P. – O Rafael.

E. R. – … o Rafael Correia de Oliveira, o Rafael brincou com o Dantas e disse: “Quando é que você vai me dar aumento?”. O Dantas respondeu: “Você é o jornalista mais bem pago do Brasil. Porque por sua culpa eu perdi toda a publicidade da embaixada americana.” [risos] Eu realmente me lembro bem disso. E recordo mais ainda: quando houve aquela luta contra a Última Hora, que foi feita aquela campanha contra a Última Hora e foi instituída uma comissão parlamentar de inquérito, o dr. Getúlio me chamou e lembrou que a Última Hora era o único jornal que o defendia. E eu então disse ao dr. Getúlio que gostaria de pensar um pouco para lhe dar uma resposta. E sustentei que, em vez de tentar fazer qualquer defesa da Última Hora, era melhor que eu fizesse uma emenda, ao projeto da criação da comissão parlamentar de inquérito, propondo que se apurasse não só as relações do governo com a Última Hora, mas também a relação de toda a imprensa com grupos econômicos internacionais.

A minha proposta deu um editorial do Dantas congratulando-se comigo, dizendo que separava-se de mim por um abismo, porque eu era amigo do ditador e ele inimigo irreconciliável, mas que dessa vez eu tinha razão [risos]. Era preciso distinguir realmente a imprensa livre, como o Diário de Noticias, que tinha sido prejudicado, essa questão toda, e a outra imprensa que se vendia aos grupos internacionais e defendia os interesses antinacionais. De modo que é muito interessante essa contribuição do Dantas, mostrando o problema da luta ao nível da imprensa e a importância que o Diário de Notícias e o Centro de Defesa do Petróleo exerceram.

Houve, inclusive, o grande congresso realizado na ABI, que deu talvez o maior impacto da Campanha do Petróleo. Porque, com a maior das boas vontades e pureza, ao encerrar o congresso, alguém sugeriu que levássemos as flores que ornamentavam a mesa ao marechal Floriano Peixoto, que havia dito que receberia a esquadra inglesa à bala.

Muita gente acha que isso foi prosopopeia do Floriano Peixoto. Eu acho que não foi. Hoje as ilhas Malvinas estão ocupadas pela Inglaterra, e a nossa ilha não foi ocupada. Por quê? Será que foi só a frase dele? Não. Ele soube o que fez! Eu presumo que ele agiu como estadista. Porque é evidente que a esquadra inglesa poderia facilmente derrotar o Brasil, mas ocupar o Brasil, não. E os interesses financeiros que a Inglaterra iria perder com uma guerra dessas? Não compensava ocupar a ilha! Então a resistência de Floriano salvou o Brasil de ter um problema como a Argentina tem hoje. Consequentemente, é preciso que se faça justiça ao presidente Floriano! Eu não tenho visto uma análise dentro desse prisma, que eu acho fundamental que se faça! É daí que nós vamos criar uma consciência nacional e vamos mostrar que este país não é quintal de ninguém, que temos condições de criar realmente uma nação livre, uma nação liberta, uma nação que possa construir um destino não só para si, como para o Terceiro Mundo, e que possa ser a nação líder de uma luta de renovação.

Por isso mesmo nós fomos depositar as flores. Mas os grupos econômicos internacionais, que não vêm carimbados, manipularam a polícia, e a polícia começou a espancar os trabalhadores que estavam depositando as flores. Só não espancaram os deputados nem os generais, porque seria mais humilhante. E houve realmente incidentes. Eu mesmo tive que advertir um delegado, que puxou um revólver para mim, mas não teve coragem de atirar. Repelimos violentamente esta situação, até que o capitão Horta Barbosa, filho do general, trouxe o pessoal do Exército e pôs a polícia para correr. Eu estava inclusive com os olhos vermelhos do gás lacrimogêneo e com um galo enorme. Mas mesmo assim fui ao pronto-socorro, onde estava sendo atendida gente que queriam prender em seguida. Foi quando telefonei para o [ministro da Justiça] Adroaldo Mesquita – aliás, foi a senhora dele que atendeu – às três horas da manhã e consegui que afastassem a polícia. No dia seguinte, o fato sacudiu a Câmara. Então a Campanha do Petróleo galvanizou o país de Norte a Sul, em parte por causa desse incidente, no qual houve uma participação do Centro de Defesa do Petróleo.

 

P – O senhor falou sobre uma coisa interessante, que foram as manifestações públicas organizadas pelo Centro. Existia alguma composição? Eram manifestações de trabalhadores, estudantes…? Qual era a composição?

E.R. – Eu tenho a impressão que a campanha foi crescendo e empolgando vários setores. Evidentemente tinha uma base grande de trabalhadores. Mas uma base estudantil imensa! Uma base estudantil muito grande!

 

P – Era predominante?

E.R. – Era. Havia uma base estudantil muito grande. Tínhamos até manifestações de federações de indústrias apoiando o monopólio estatal do petróleo. E de guarnições militares! Oitenta e cinco por cento da guarnição militar do Rio de Janeiro manifestaram-se pelo monopólio estatal do petróleo em telegrama ao general Horta Barbosa! De modo que foi um movimento que, pouco a pouco, foi empolgando a nação toda. Não poderíamos dizer que era só trabalhador, só de estudante. Realmente a nação foi-se empolgando, se empolgando, e foi isso que fez o Estatuto ficar arquivado. Foi essa pressão. Porque só o povo mobilizado e organizado constitui uma força capaz de conter as pressões externas dos trustes.

 

P – Há uma outra particularidade muito interessante: a quantidade imensa de câmaras municipais que se manifestaram a favor do monopólio estatal.

E.R. – Exatamente isso! eu, por exemplo, adotei por critério, sempre que fazia um pronunciamento, mandava-o para todas as câmaras municipais do Brasil, porque tínhamos franquia postal. O único sacrifício era o sacrifício da impressão, que não ficava cara porque, ao falar na Câmara, já estava impresso. Então eu utilizava aquela impressão feita no Diário [Oficial] para imprimir milhares de pronunciamentos e mandar para todas as câmaras municipais, para vários sindicatos etc. Eu adotava muito, em minha estrutura de participação, todos os meus companheiros, amigos, que faziam trabalhos de várias naturezas: um datilografava, outro ajudava, outro ia ao correio… Tínhamos, assim, uma equipe que fazia isso sistematicamente. Tenho a impressão que o Centro muitas vezes também fez isso. Então acho que isso criou uma situação, porque eu me lembro que muito deputado chegava perto de mim e dizia: “Olha que interessante, Euzébio. Eu estive em tal município, leram lá o seu discurso e todo mundo lá é nacionalista, também está com o petróleo! Eu também estou com vocês, ouviram?”. Quem ia ficar contra os vereadores? Isso era um argumento muito convincente e criou realmente uma estrutura de nós esmagarmos o Estatuto do Petróleo.

 

P – O problema petrolífero em si teve alguma influência, alguma determinação no resultado das eleições de 50?

E.R. – Creio que sim. Eu não diria que foi ele que elegeu o Getúlio, de jeito nenhum. O dr. Getúlio tinha por tradição uma luta nacionalista – Volta Redonda, Lei de Remessa de Lucros, denúncia do esmagamento dos interesses nacionais, posição corajosa quando a United States Steel, procurou impedir a construção de Volta Redonda, que ele foi para o navio capitânia do Brasil e deu aquela entrevista, que o Sumner Wells [subsecretário de Estado de Roosevelt] achou que ele ia virar a mão para o lado da direita fascista e disse: “Que quer o enigma do Sul?”. E Roosevelt, muito mais inteligente que Sumner Wells, no dia seguinte, considerou a construção de Volta Redonda prioridade dos Estados Unidos. E aí conciliaram-se os interesses, o Brasil tomou posição na guerra e as tropas saíram de Natal para vencer.

Quer dizer, Getúlio era um patriota. E essa imagem de Getúlio nacionalista-patriota casou-se com a Campanha do Petróleo. Se tivesse havido um conflito, não sei o que poderia acontecer. O campo das hipóteses, eu tenho muito medo de ficar nele. Mas posso garantir que, como havia um casamento, desse casamento proliferou a vontade nacional. Eu acho que a Campanha do Petróleo foi um coeficiente, porque Getúlio era favorável ao monopólio estatal do petróleo. E Eduardo Gomes, ao contrário; o estatuto da UDN era textualmente favorável à participação de grupos estrangeiros na exploração do petróleo.

A ENGENHARIA NACIONAL E A SAGA DA PETROBRÁS

Em 1972, trabalhando na Light, ainda pertencente ao grupo canadense Brascan, eu me sentia frustrado por não trabalhar como engenheiro, pois a engenharia da companhia era muito desorganizada e incipiente. Estava, havia três anos, lotado na Divisão de Distribuição Estadual, que abrangia a Baixada Fluminense e os municípios de Volta Redonda, Barra Mansa, Barra do Piraí, Três Rios, Paraíba do sul e outros. Não fazia nada de engenharia. Então, surgiu um concurso para a Petrobrás. Sem ser informado da data do concurso, me esqueci dele. Um dia, num sábado, estando na praia com a família, vi a convocação da prova do concurso. Vesti a roupa e fui. Passei em primeiro lugar. Isto me levou a ser escolhido pelo Departamento de Produção (DEPRO), onde trabalhei até me aposentar. Não consegui sair desse Departamento. Gostava dele.

A mudança para a Petrobrás, mesmo ganhando menos, foi uma bênção. Mandaram-me logo para Aracaju – 3.000 empregados, nenhum engenheiro eletricista. Eu não conhecia nada de petróleo, até chamava tubo de “cano”. O “petrolês” era a tônica das reuniões e eu voava alto. Foi duro no começo, mas os desafios eram grandes e motivadores. Assim, em pouco tempo eu estava dominando o “idioma”: bomba Reda (bomba de fundo de poço), relés em geral, estação coletora, cavalo-de-pau (unidade de bombeio em terra), recuperação secundária, bombeio hidráulico, disjuntores a vácuo, Centro de Controle de Motores, sistemas de partida e proteção dos motores, áreas classificadas, recuperação secundária e outros. Dominado o “idioma”, a vida ficou mais fácil. Em um mês fiz mais engenharia do que em três anos trabalhando na Light. Estava empolgado. Era tudo o que eu queria.

Nessa ida a Aracaju, visitei as três plataformas marítimas do campo de Guaricema que tinham sido instaladas para serem apenas satélites de produção, mas mudou-se o conceito e resolveu-se que elas seriam de processamento, tornando-se necessário instalar uma planta de processo em cada uma: era uma nova e desafiadora engenharia. Daí pra frente, muitas novidades.

Uma curiosidade logo me surgiu: olhando a estação coletora de Atalaia, eu questionava por que os tanques de petróleo tinham o teto cônico. Curioso, perguntei a várias pessoas, pois precisava saber. Várias respostas dadas não me convenciam. Fui investigar mais a fundo e descobri: o projeto da estação coletora era importado, e, nos EUA, os tanques tinham teto cônico para evitar o acúmulo de neve. Ou seja, era preciso elaborar os projetos aqui e voltados para as nossas condições e necessidades. Era também muito necessário “tropicalizar” a tecnologia importada. Trabalhamos muito nesse sentido.

Assim, os projetos das plantas de processo das plataformas já foram feitos por empresas nacionais, sob a fiscalização de engenheiros com experiência de produção em terra. Deu certo e, a partir daí, com novas descobertas nos campos de Camorim, Caioba (SE) e Ubarana (RN), resolvemos projetar e fabricar as plataformas no Brasil. As duas primeiras tiveram os projetos copiados das americanas. A partir destas, começamos a fazer os projetos aqui.

Como fiscal da construção da primeira plataforma, enfrentei grandes problemas com o fornecimento de materiais e com o estaleiro construtor. Este estava acostumado a fazer obras sem muito rigor nos quesitos de qualidade e segurança. Quando começaram as nossas exigências – eu contava com a assessoria de uma sociedade classificadora internacional, a Lloyds Register, e procurava seguir as normas internacionais de fabricação, montagem, segurança, soldagem e pintura – houve reação.

Com muito bom senso, mas com rigor na fiscalização, deixamos o estaleiro em polvorosa. Como os oito dirigentes do estaleiro eram comandantes reformados da Marinha, eles tentaram me enquadrar como antimilitarista. Eu só procurava alertá-los todo o tempo de que era deles toda a responsabilidade pelos eventuais problemas futuros da plataforma, mas eles eram imediatistas. Queriam construir para faturar. Com o rigor das nossas exigências, e das normas internacionais, despreparado, o estaleiro – Inconav era o seu nome – acabou indo à falência.

Instaladas as plataformas e prontos os projetos de plantas de processo, começamos as instalações. Era gratificante constatar a competência, a dedicação e a motivação das nossas jovens equipes. Muita criatividade, sempre com respeito às normas técnicas.

No início da década de 80, eu estava um pouco preocupado com a falta de integração da engenharia do DEPRO – Departamento de Produção, onde eu trabalhava – com os demais órgãos de engenharia da Petrobrás. De repente, me veio às mãos um boletim da AEPET, onde havia uma matéria sobre a constituição de um grupo de trabalho da entidade que se propunha a estudar a Função Engenharia da Companhia. Procurei a entidade e ofereci a minha colaboração como representante do DEPRO. O grupo era formado por engenheiros de vários órgãos, a saber: Diomedes Cesário (CENPES) – coordenador – Guaraci Correia Porto (SEGEN), Oscar Filizola de Souza (DEPIN), Ângelo Francisco dos Santos (CENPES) e eu, pelo DEPRO.

Durante dois anos esse grupo entrevistou vários gerentes de órgãos ligados à engenharia da Petrobrás e, ao final, elaborou um documento com propostas de melhoria e integração da engenharia. O coordenador Diomedes apresentou este documento, uma proposta de reestruturação de toda a engenharia da Petrobrás. O trabalho foi muito bem aceito e várias de suas sugestões foram implementadas.

Assim eu fiquei conhecendo a AEPET e me inteirei de suas propostas de atuação. Era uma entidade nacionalista que tinha como objetivos: 1) defender o Monopólio Estatal do Petróleo; 2) defender a Petrobrás e 3) defender o corpo técnico da Petrobrás. E também, claro, a Soberania Nacional. Era a sintonia com o que eu pensava. Estava na época de eleições para a nova diretoria da entidade e eu fui convidado a integrar a chapa que acabou sendo eleita.

Minha primeira tarefa foi investigar as ações do diretor de Produção da Petrobrás, engenheiro Joel Rennó, cujo mandato estava se encerrando. A AEPET não estava satisfeita com o desempenho daquele diretor. Apresentei as informações que, juntadas a outras, formou um dossiê que subsidiou um pedido ao Ministro das Minas e Energia, doutor Aureliano Chaves, para não reconduzir Rennó. O pedido logrou êxito, Rennó não foi reconduzido. Infelizmente, alguns anos depois, já no governo Itamar Franco, Aureliano recomendou Rennó e ele foi indicado para presidir a Companhia. Teve um desempenho razoável na gestão Itamar, mas veio o governo Fernando Henrique e Rennó que havia ajudado, por ordem de Itamar, a defender o monopólio, passou a defender a sua quebra, dando uma oportunista guinada de 180 graus.

Estudei com afinco a história da AEPET e fiquei sabendo da corajosa atuação de vários de seus presidentes. Tanto na época da sua fundação quanto durante a ditadura militar, a entidade sempre se posicionou com coragem e desprendimento no cumprimento dos seus objetivos. Na gestão do Sr. Shigeaki Ueki à frente da Petrobrás, os dirigentes da AEPET com cargo de chefia na Companhia foram destituídos de seus cargos e ameaçados de demissão. No governo Collor também. Mas a entidade jamais deixou de se manifestar e de se posicionar com coragem e discernimento.

PROCESSO DE NACIONALIZAÇÃO

Uma das minhas atuações muito gratificantes na Petrobrás foi a de ter participado na nacionalização de equipamentos e serviços para o setor petróleo. Nas décadas de 70 e 80, o governo autorizou a compra de equipamentos no mercado nacional até pelo dobro do preço. Assim, iniciamos uma grande campanha para nacionalizar equipamentos e serviços. Esta iniciativa fez com que os empresários nacionais investissem em novas tecnologias. Durante mais de dez anos visitamos fábricas e viabilizamos a adaptação de vocações identificadas nos pequenos industriais às nossas necessidades.

Além da vantagem da reserva de mercado, nós, da operação, da engenharia básica, do CENPES (que depois absorveu a engenharia básica), repassávamos tecnologia e conhecimento para esses fabricantes que iam adaptando e ampliando suas fábricas às nossas necessidades. Com isto, eles cresciam em tecnologia e capacitação. Tal estratégia chegou a consolidar um grande parque fabril de cinco mil fornecedores de equipamentos de petróleo. Eles chegaram a competir com empresas internacionais, ao nível do Estado da Arte. Além deles, alcançamos cerca de três mil fornecedores de serviço.

Veio então o governo Collor, que baixou as alíquotas de importação em 30%, em média. Isto diminuiu em muito a competitividade dos empresários nacionais. Depois, veio o governo FHC, que jogou a pá de cal: criou o Repetro, através do decreto 3161/98, que passou a isentar as empresas multinacionais do Imposto de Importação, sem que os Estados da Federação isentassem as empresas nacionais do ICMS correspondente. Resultado: Cinco mil empresas nacionais dizimadas. Um crime de “lesa-Pátria”.

NA AEPET

No governo Sarney, durante a vigência dos contratos de risco instituídos no governo Geisel, surgiram na imprensa reportagens de várias páginas dizendo que a empresa Texaco havia descoberto reservas gigantes na ilha de Marajó. As matérias diziam que era um novo Mar do Norte e que a Texaco estava disposta a vender as reservas para a Petrobrás por US$ 400 milhões. Os geólogos associados à AEPET nos deram informações de que aquela descoberta não era comercial e que a Petrobrás iria comprar campos sem petróleo. A AEPET levou essas informações para o ministro Aureliano Chaves. Ele, então, mandou suspender a compra e investigar melhor as informações dos geólogos, concluindo pela não aquisição das reservas; elas eram, simplesmente, irreais.

Ainda durante o governo de José Sarney, o então Ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, sob o pretexto de combater a inflação, iniciou um processo de achatamento das tarifas das empresas estatais, quebrando a sua capacidade de investir. Isto estava previsto nas diretrizes do Consenso de Washington para fazer a campanha do “Estado Falido” e “Estado Mínimo” (ver artigo de Paulo Nogueira Batista: “O Consenso de Washington”, no livro “Em defesa do Interesse Nacional” – pg. 99). Essa campanha do “Estado Mínimo” foi um dos alicerces do processo de privatização e, principalmente, desnacionalização. Tal ação levou as estatais a uma situação de inviabilidade. Assim, suas tarifas de comunicação, energia e siderurgia subsidiavam as empresas estrangeiras no País. A Companhia Siderúrgica Nacional, por exemplo, vendia chapas para a indústria automobilística, estrangeira, a um preço menor do que o custo de sua fabricação. Uma indústria que, mesmo assim, “jamais deu lucro”, sonegando impostos.

CONTRATOS DE RISCO

No governo Geisel, os investimentos na área de exploração e produção de petróleo caíram muito e, em consequência, a produção também caiu drasticamente. Assim, quando veio a crise de 1973, com a elevação dos preços do petróleo — de US$ 2 por barril para cerca de US$ 12 —, a Petrobrás e o país foram pegos de surpresa. O país já estava mergulhado numa grave crise financeira, pois no governo Médici o Ministro da Fazenda, Delfim Neto, de forma irresponsável, tomou empréstimos externos a juros flutuantes e quando os EUA, a pretexto de combater a inflação, elevaram os juros ao patamar de 23% ao ano, o Brasil e os demais países da América Latina sofreram graves perdas, passando a exportar capital e muita matéria-prima para o exterior. Essa estratégia americana, de endividar para controlar os países fornecedores de matéria-prima para os EUA é bem descrita no livro: “Confissões de um assassino econômico”. O objetivo é mantê-los sob controle econômico.

Portanto, dentro da estratégia americana, em 9 de outubro de 1975 o presidente Geisel, cedendo às pressões internacionais, foi à televisão e propôs a instauração dos contratos de serviço com cláusulas de risco, ato que contrariava a Soberania Nacional e os termos da Lei 2004/53, que não permitia esse tipo de contrato. Esta Lei foi fruto do maior movimento cívico do País: “O petróleo é nosso”. O presidente disse – visivelmente constrangido – em pronunciamento de 43 minutos na televisão: “Para um país da dimensão do Brasil e que precisa não perder tempo, antes apressar-se no setor petróleo, não seria justificável deixar de proporcionar à Petrobrás e à Nação os contratos de serviços com cláusulas de risco”. Era o mais forte golpe contra o Monopólio Estatal do Petróleo.

Em seguida, o ex-ministro das Minas e Energia, então presidente da Petrobrás, Shigeaki Ueki, nomeado por Geisel, usou massivamente os meios de comunicação tentando justificar a atitude do chefe, que infringia os preceitos da Lei 2004/53, usando varias falácias, entre elas as seguintes “justificativas”: “Tais contratos se revestem de todas as garantias para a Petrobrás e o Brasil”. Mas os contratos, que inicialmente eram apenas para exploração, de repente se transformavam e revelavam toda a intenção entreguista, na palavra do presidente da Petrobrás: “Após o desenvolvimento dos campos porventura descobertos, a empresa contratante poderá participar das operações de produção dos mesmos sob adequada fiscalização e controle da Petrobrás”. Continua Ueki: “A indústria e a mão-de-obra nacionais estão garantidas no contrato e são, de fato, estimuladas ao fornecimento de materiais e prestação de serviços”. O que o senhor Ueki não fez, mas deveria tê-lo feito, teria sido explicitar, entre outros, os seguintes fatos divulgados pela AEPET:

– além da Petrobrás, só empresas multinacionais tinham condições de assinar esses contratos;

– essas empresas, no caso de haver descobertas, receberiam um percentual médio de 35% do petróleo produzido (no contrato da Marathon Oil, por exemplo, o percentual era de 40%);

– a Petrobrás era realmente quem comprava no país (chegou a comprar 95% de bens e serviços). As multinacionais trazem materiais, equipamentos e mão-de-obra do exterior.

Durante a vigência dos contratos de risco, 243 contratos foram assinados com 35 das maiores e mais experientes empresas internacionais. Estas dispuseram, por força de diretriz superior, de 85% do total das áreas com rochas sedimentares passíveis de conter petróleo. Tais áreas, postas em licitação, foram divididas e subdivididas em áreas ou blocos, oferecidos com todas as informações geológicas e geofísicas até então coletadas pela Petrobrás.

Na ocasião, o Brasil produzia cerca de 170.000 barris por dia e era importador de mais de 1 milhão de barris por dia. Nesse ritmo, o País via suas preciosas divisas serem corroídas rapidamente. O Brasil, mergulhado numa longa crise financeira, teve ainda mais agravada tal situação. Nesse sentido, se aproveitaram o governo e o Ministro das Minas e Energia, César Cals, via telegrama, para explicitar a intenção real, dizendo que as empresas estrangeiras investindo grandes somas na exploração, aumentariam rapidamente a produção.

Disse o jornalista Ricardo Bueno, em seu livro “A Farsa do Petróleo”, no qual baseamos os textos acima sobre os contratos de risco: “No dia 29 de dezembro de 1979, o ministro César Cals encaminhou ao presidente da Petrobrás telegrama sugerindo ‘adaptações’ nos contratos de risco para beneficiar as multinacionais. Estas poderiam receber em óleo quando descobrissem um poço produtor e, além da exploração, teriam agora o direito à fase de produção (…) e recomendava à Petrobrás que fosse mais generosa…”.

Eis o telegrama:

“Conforme nossos entendimentos telefônicos retransmito teor meu despacho ontem com exmo. Senhor presidente República a respeito adaptações devem ser feitas nos modelos contrato risco estão sendo celebrados pela Petrobrás. Informo-lhe que senhor presidente aprovou referidas modificações. Para alcançar maior cooperação da iniciativa privada na prospecção de petróleo, propomos as seguintes modificações:

1 – Delimitar a área atual de prospecção que a Petrobrás está realizando com recursos próprios e abrir demais áreas para a iniciativa privada.(…)

2 – Oferecer às empresas privadas a possibilidade de ter acesso a bacias inteiras, inclusive proporcionando-lhes toda a informação geológica necessária sobre a área total das bacias, para que possam ser escolhidos os blocos que interessam a cada empresa.

3 – A participação da empresa contratante na fase de produção, como é de praxe internacional. Naturalmente, a Petrobrás exercerá a adequada fiscalização.

4 – Decisão conjunta sobre o nível comercial da reserva descoberta pela pesquisa objeto do contrato de risco.

5 – Garantia de reembolso e/ou remuneração em moeda estrangeira, com registro do contrato no Banco Central do Brasil.

6 – Admitir que parte da remuneração seja feita em petróleo, ressalvando os interesses nacionais em caso de crise.

7 – Estimular a participação de pequena e média empresa nacional, que poderiam, sob a forma de consórcio, ser contratadas, até mesmo, com assistência técnica da Petrobrás.

César Cals – ministro das Minas e Energia.

Esse telegrama é a “bíblia” para a atual atuação da ANP. Com todas essas benesses, depois de treze anos de vigência, o resultado desses contratos – em que cerca de 85% das áreas com potencial de ocorrência de petróleo foram entregues para a exploração a empresas estrangeiras – foi pífio. Durante esses treze anos, elas mantiveram tais áreas sob seu total controle. Mas, enquanto no mesmo período, a Petrobrás — que ficou com apenas 15% das áreas potenciais — investiu cerca de US$ 26 bilhões, aquelas empresas investiram cerca de US$ 1,6 bilhão apenas. Destes, US$ 900 milhões foram gastos pela aventura do governador de São Paulo, Paulo Maluf, através da empresa criada para o mesmo fim, a Paulipetro. Protagonizaram um rotundo fracasso.

Nada descobriram de petróleo, exceto um pequeno campo de gás, o campo de Merluza, na bacia de Santos. Queriam, todavia, detectar e mapear as reservas brasileiras. Ressalte-se que a área onde foi recém-descoberto o pré-sal esteve sob controle dessas empresas nesses treze anos. Isto atesta que, se não fosse a atuação da Petrobrás, o pré-sal jamais teria sido descoberto.

Todo o estardalhaço da grande mídia em favor dos contratos de risco, com promessas de um grande êxito das empresas estrangeiras, terminou num total silêncio diante do rotundo fracasso desses contratos. O silêncio foi ainda mais “ensurdecedor” quando, anos depois, a Petrobrás achou óleo e gás nos campos de Tubarão, Estrela do Mar e Caravelas na Bacia de Santos, áreas que haviam sido devolvidas pelas multinacionais detentoras dos tais contratos de risco.

A AEPET combateu tenazmente esses contratos utilizando toda a sua energia. Mesmo em pleno regime militar, opressor e punitivo.

CONSTITUIÇÃO DE 1988

Em 1987/88 houve o processo de elaboração de uma nova Constituição Federal do País, que acabou sendo o mais democrático e participativo da história do Brasil. A AEPET teve a ideia de elevar o capítulo da Lei 2004/53 que estabelecia o monopólio do petróleo para o nível da Constituição Federal. Esperávamos que uma vez aprovado, o monopólio jamais seria quebrado. Assim, a entidade promoveu vários eventos com a participação de líderes políticos e de várias entidades dos movimentos sociais. Com esta iniciativa – e sob o comando do insigne brasileiro, Barbosa Lima Sobrinho – o Congresso Nacional consagrou o monopólio no artigo 177 da Constituição de 88. Foi marcante o episódio do doutor Barbosa Lima: Ulisses Guimarães presidia a sessão conjunta do Congresso quando foi surpreendido com o plenário, de pé, aplaudindo freneticamente. Era o doutor Barbosa adentrando o recinto. Ulisses conduziu-o para a mesa diretora dos trabalhos e Barbosa desfraldou as bandeiras do Brasil e da Petrobrás para delírio dos parlamentares: resultado da votação: 441 votos a favor, 6 contra e 7 abstenções. A ideia, reafirmo, partiu da AEPET.

COLLOR

Ao assumir o governo, em 1990, o presidente Fernando Collor – eleito pela direita brasileira e apoiado pela mídia comprometida com o capital estrangeiro – recebeu do banco Credit Suisse First Boston um plano para privatizar a Petrobrás. Esse banco fora um dos coordenadores do processo de desnacionalização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales da Argentina. Partindo do princípio de que a Petrobrás era uma empresa emblemática, o plano consistia em privatizar as subsidiárias da empresa e depois dividir a “holding” em novas subsidiárias, para privatizá-las. Collor iniciou o processo, privatizando a subsidiária de fertilizantes, a de mineração e chegando à petroquímica. A AEPET entrou com várias ações na Justiça para impedir as privatizações e fez um bom combate às unidades de negócio, que naquela época não foram implantadas.

No governo do presidente Itamar Franco o processo foi interrompido, tendo Itamar, inclusive, ordenado à direção da Petrobrás e a outras estatais que enviassem técnicos ao Congresso Nacional levando dados gerados pelos órgãos dessas empresas para subsidiar os parlamentares por ocasião da revisão constitucional, em 1993 e 1994. Esse trabalho, também feito por técnicos das outras estatais, impediu a quebra dos monopólios de petróleo, de comunicações, da navegação de cabotagem e do gás canalizado, impedindo que aquela revisão – entreguista – fosse exitosa.

Itamar era um nacionalista e se opunha tenazmente às privatizações. Mas o “lobby” joga pesado. Assim, Itamar enfrentou diversas iniciativas contra si. Uma delas foi colocarem uma moça sem calcinha no camarote do presidente, no sambódromo do Rio de Janeiro, fotografada por um fotógrafo de “O Globo” num ângulo que somente ele captou a genitália despida. Depois Itamar falou com ela por um telefone do Hotel Gloria, tendo uma repórter de “O Globo” na extensão. Posteriormente, numa viagem à Colômbia, um sobrinho e assessor de Itamar apareceu morto de overdose. Diante de tais pressões, o presidente acabou aceitando privatizar a Companhia Siderúrgica Nacional.

Depois do governo FHC, tentando se candidatar a presidente, Itamar foi atraído pelo PMDB, já tendo sido atraído pelo PSB. Prevendo um melhor apoio do PMDB, fez sua escolha por ele. Resultado: foi traído de forma humilhante e não pôde se candidatar. FHC conseguiu a reeleição com compra de votos, emendas liberadas para quem o apoiasse. Mas Itamar se elegeu governador de Minas Gerais e impediu, dentre outras, a privatização de Furnas.

Em 1992/3, FHC, como Ministro da Fazenda, ordenou que o Diretor do Departamento Nacional dos Combustíveis, Paulo Motoki, manipulasse a estrutura de preços dos derivados do petróleo. Nos seis meses que antecederam à URV, ele deu aumentos para as distribuidoras acima da inflação (32%) e, para a Petrobrás, abaixo da inflação (10%), o que fez com que a Companhia transferisse, anualmente, cerca de US$ 3 bilhões do seu faturamento para o cartel das distribuidoras. Com a implantação da URV e depois o plano Real, essa transferência ficou eternizada. O nosso diretor da AEPET, José Conrado, elaborou uma carta para o presidente Itamar, mostrando o absurdo. Comparando, inclusive, com a estrutura de preços americana, onde o refinador ficava com 65% do litro de gasolina vendido nos postos, enquanto que a Petrobrás, por aqui, ficava com apenas 14%. A desculpa do cartel era que eles tinham perdido o “floating”.

Mas o que vinha a ser esse “floating”? Outro absurdo: a Petrobrás comprava petróleo em dólar e vendia os derivados para as distribuidoras em reais. Elas tinham 30/40 dias para pagar à Petrobrás e aplicavam o dinheiro no mercado. Com a inflação galopante, ganhavam uma fortuna às custas da Petrobrás. E perpetuaram esse ganho com a manobra de FHC e o plano Real. De tanto a AEPET gritar, esse absurdo acabou sendo corrigido. Elas, sem fazer nada, ganhavam mais do que a Petrobrás, que: explorava, produzia, transportava e refinava o petróleo.

GASODUTO

Ainda no governo Itamar Franco, a empresa americana Enron junto com a British Gás, a Repsol e a Shell fizeram um forte lobby, através de FHC, para que a Petrobrás construísse o gasoduto Bolívia-Brasil com os seus recursos, financiando-o para elas.

Ocorre que essas empresas tinham reservas na Bolívia e o único mercado possível era o Brasil. Mas o gasoduto era inviável economicamente, pois tinha uma taxa de retorno de 10% ao ano e custos financeiros de 12% ao ano.

Assim, foi a Petrobrás forçada a retirar recursos da Bacia de Campos, onde a taxa de retorno era de 80% ao ano, em média, e aplicar nesse projeto, o que, na época, classificamos como o pior projeto da história da Petrobrás. A AEPET fez uma campanha muito forte, tendo editado um livreto explicativo sobre o tema.

Da forma como foi implantado, o projeto era ruim para a Bolívia, pois ela só recebia 18% pelo gás produzido; era ruim para o Brasil, que passou a usar um insumo energético poluente em detrimento de usinas hidrelétricas, pago em moeda forte e controlado por multinacionais.

Para a Petrobrás foi péssimo. Além de antieconômico, o contrato obrigava a empresa a assinar uma cláusula de “Take or Pay”, ou seja, mesmo não havendo para quem vender, ela era obrigada a comprar a quantidade contratada. Assim, durante 10 anos, ela importou cerca de 15 milhões de m3 por dia e era obrigada a pagar 25 milhões.

Depois de todo esse prejuízo, a ANP, dirigida por David Zilberstajn, obrigou a Petrobrás a ceder parte do gasoduto para a Enron e para a British Gas, com o consórcio das duas pagando valores bem menores que os pagos pela Petrobrás.

A Comgás, maior distribuidora de gás do País, foi leiloada pelo então secretário Zilbertajn e foi adquirida pela Shell e pela British, sendo que a Petrobrás Distribuidora foi impedida de entrar no leilão.

REVISÃO CONSTITUCIONAL

Seu relator foi o deputado Nelson Jobim. Ele se reunia todos os dias com o grupo de lobistas que defendiam os interesses estrangeiros, comandados por Jorge Gerdau, Afif Domingos e dirigentes da FIESP.

Jobim chegou a propor o fim do mar territorial de 200 milhas. O senador Antonio Mariz, da Paraíba, a pedido da AEPET, fez uma denúncia indignada no plenário do Senado e Jobim, então, retirou a proposta.

A Petrobrás, sob orientação do presidente Itamar Franco, criou um Grupo de Trabalho de empregados voluntários para que fossem ao Congresso Nacional levando muitas informações geradas pelos órgãos da Companhia, sob o comando do SERPLAN – Serviço de Planejamento -, visando a subsidiar os parlamentares. A AEPET participou desse grupo com três diretores, em média, indo a Brasília semanalmente, durante todo o período da revisão, nos anos 93 e 94, e ajudando com a sua experiência na abordagem aos parlamentares. Nesses contatos, os congressistas pediam que elaborássemos discursos sob o tema. Os companheiros nos traziam os pedidos e elaborávamos. Só eu cheguei a redigir cinquenta deles. Foram objetos de vários pronunciamentos nos plenários da Câmara e do Senado. Esse trabalho do GT teve um êxito extraordinário e junto com os trabalhadores da Telebrás e demais estatais envolvidas, conseguimos que a revisão não se concretizasse.

Nesse trabalho contávamos com um grande apoio do deputado Haroldo Lima, na época um nacionalista. No final do processo, já com nossa vitória garantida, surgiu um esforço do Centrão para uma negociação, tentando recuperar alguma coisa. Um dos líderes, nosso aliado, líder do PDT, nos informou que os lobistas estavam oferecendo R$ 10 milhões para os deputados da oposição que defendessem esse acordo. Coincidentemente, no ano seguinte, o deputado Haroldo Lima mudou totalmente de postura, quando FHC acionou o rolo compressor. Haroldo não mais nos ajudou: não sabia mais de nada e chegou a desativar a nossa base de apoio, a Frente Parlamentar Nacionalista, levando tudo para o seu gabinete, inclusive a secretária. Por grande coincidência, o líder do PT ganhou um grande prêmio na loteria e abandonou a política.

No ano seguinte, 1995, FHC fez um decreto e proibiu a ida de empregados de estatais ao Congresso. O decreto 1403, de 17/2/1995, instituiu serviço de inteligência/espionagem, que visava a informar a ida de algum empregado de estatal ao Congresso. Seria demitido. Assim, FHC passou o trator pelas reformas da Ordem Econômica (quebra dos monopólios, privatizações) que causaram um desastre ao País. Esse processo incluiu a indução dos petroleiros à greve, para massacrar os sindicatos em geral e desmontar uma grande resistência às suas reformas neoliberais e entreguistas. Calou os sindicatos e nadou de braçada nos seus objetivos de entregar o País.

Desde o início, o governo FHC deixou clara a sua posição e a forma arbitrária e autoritária como agiria. Em fevereiro de 1995, quando as emendas sobre a Reforma Constitucional começaram a tramitar no Congresso, o governo proibiu as estatais de fazer qualquer trabalho junto aos parlamentares.

Em discurso considerado o mais duro desde sua posse, Fernando Henrique preveniu: “Eu faço questão de advertir que não tolerarei que as empresas governamentais trabalhem contra o governo. Não tolerarei. Tenho certeza que posso contar com os presidentes e diretores destas empresas. Caso contrário, não estarão participando do governo e as consequências serão imediatas.” Ou seja, “quem não aderir, tá fora”.

O autoritarismo do presidente refletia sua insegurança. Isto porque, durante a Revisão Constitucional no governo Itamar Franco, o trabalho de esclarecimento feito pelos empregados da PETROBRÁS junto aos congressistas foi muito bem sucedido, tendo, inclusive, contado com o apoio do então presidente da empresa, Joel Mendes Rennó que, à época, mostrava-se contrário à flexibilização do monopólio estatal do petróleo. Veio FHC e ele deu uma guinada de 180 graus.

Ao mesmo tempo, FHC defendia a realização de uma ampla campanha, com o aparato de marketing eleitoral para pressionar o Congresso. Não chegou a tanto porque encontrou uma fórmula mais eficiente para fazer pressão: de um lado, ameaçava os aliados que não estavam apoiando o governo como ele queria (uma das formas utilizadas para pressionar aqueles parlamentares foi realizar devassa em suas empresas, colocando a estrutura da Receita Federal a serviço do lobbypresidencial/internacional); por outro lado, FHC empregava, com toda força, a política do “é dando que se recebe”. Assim, guardou todos os cargos dos segundo e terceiro escalões, prometendo distribuí-los apenas aos aliados fiéis. Era a volta, a pleno vapor, do fisiologismo político. Nas votações das reformas, era de impressionar a fidelidade das bancadas do PFL: maior que a do próprio partido do presidente, o PSDB. O início da distribuição de cargos no segundo e terceiro escalões se deu no mesmo período da votação da emenda que derrubou o monopólio estatal do petróleo.

BOB FIELDS

Em 1995, durante uma audiência pública para discutir a proposta do governo que iria mexer na Constituição, estivemos eu e um representante da FUP numa audiência pública para apresentar nossa posição contrária a essa mexida.

Fizemos ambos uma boa palestra e, durante a nossa falação, o deputado Roberto Campos espalhava um monte de papéis sobre a mesa do plenário e olhava para nós com um olhar ameaçador como se dissesse: “vou trucidar vocês”. Tranquilos, pois conhecíamos todas as falácias e sofismas que ele publicava na mídia, ficamos aguardando a sua intervenção.

Roberto Campos falou por 29 minutos marcados por mim no relógio, enquanto procurava alertar o presidente da sessão, deputado Alberto Goldman, de que iria querer o mesmo tempo para resposta. Ele concordava, contrariado com o falatório interminável de Roberto Campos.

Quando Campos terminou, eu usei o mesmo tempo e fui desmontando ponto por ponto as assertivas falaciosas e sofismáticas dele. Quando terminei, Roberto Campos, muito zangado declarou: “Vocês da AEPET têm a mania de achar que têm o monopólio do patriotismo. Quero dizer a vocês que eu também sou um patriota”.

Respondi: “Sabemos que o nobre deputado e o insigne Barbosa Lima Sobrinho são os dois maiores patriotas do nosso País. Só que vocês defendem pátrias diferentes”.

Campos, agora indignado, pegou os seus papéis e saiu sem ver o resto da audiência, que durou sete horas, devido às perguntas e respostas.

Levamos também o ex-Ministro Aureliano Chaves para outra audiência. Aureliano deu uma verdadeira aula de patriotismo e defesa da Soberania Nacional. Falou e respondeu perguntas durante sete horas seguidas, tendo repreendido o próprio filho, do PSDB, que defendia as mudanças de FHC.

O lamentável dessas audiências é que o relator da matéria na Câmara, deputado Procópio Lima Neto, não se fazia presente. Aparecia na abertura e se ausentava com 15 minutos, ou seja, Lima Neto já tinha o relatório pronto, redigido pelo lobby.

PAPEL DA MÍDIA

Em meados da década de 60, houve denúncias e se criou uma CPI sobre um contrato entre as redes Globo e Abril com o Grupo americano Time Life. A CPI apurou e constatou a veracidade das denúncias. Os contratos foram desfeitos, mas o estrago já se concretizara nos seus três anos de duração. A Organização Globo desmontou a TV Tupi e depois foi desmontando, um a um, os jornais concorrentes. Na época, tínhamos no Rio oito jornais da melhor qualidade: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário da Noite, Última Hora e outros. A Rede Globo virou uma potência e, sub-repticiamente, se transformou num veículo dos interesses americanos. A revista VEJA, principal veículo da Abril, desempenha as mesmas funções. Há quem diga que ela é a primeira revista americana editada em português, tal a sua tendenciosidade.

Durante o processo de revisão constitucional que antecedeu às reformas de FHC, a grande mídia fez uma campanha sórdida para desacreditar as empresas estatais.

No início de 1995, a revista VEJA fez uma matéria de dez páginas, batendo falaciosamente na Petrobrás. Isto, depois de entrevistar os seus diretores e também o Diomedes, então presidente da AEPET, a quem sucedi, e eu. O jornalista, Arnaldo Cesar, que era nosso amigo, alertou: “Olha, eu não sei se esta matéria vai sair como vocês esperam. Há um grupo de editores com a matéria pronta. Se eu pegar algum ‘furo’ de vocês, eles aceitam. Se não, nada disto sairá”. Dito e feito!

A VEJA fez uma matéria em que não havia uma única vírgula a favor da Petrobrás, nem da AEPET. Só paulada. Fizemos uma matéria, respondendo ponto a ponto. A VEJA sequer respondeu. A Petrobrás preparou matéria de dez páginas, respondendo ponto a ponto. A VEJA também não deu resposta. A Petrobrás fez, então, novo trabalho, de cinco páginas, para ser publicada na revista como propaganda; a VEJA recusou, dizendo que não iria se desmoralizar perante os seus leitores. Mas injuriou de forma grotesca a maior empresa nacional.

O Estadão e a Folha de São Paulo também batiam nas estatais em geral e quase diariamente na Petrobrás, em particular. O Globo também fazia matérias seguidas e todos usavam “slogans” e rótulos pejorativos do tipo “marajá”, para os funcionários das estatais ou “dinossauros” para os seus defensores, como Barbosa Lima Sobrinho ou outro qualquer que não fosse empregado, mas defendesse as estatais. O mote era defender “O Mercado”, que sabia de tudo e resolvia todos os problemas. A rede Globo usava as novelas para lançar mensagens subliminares. Fizemos um livreto, “Glossário neoliberal”, para denunciar as frases e “slogans” usados pela mídia na sua campanha difamatória e marqueteira do processo de privatização.

Alguns animadores de programas de TV, como Hebe Camargo, Ratinho, Gugu e outros, lançavam brados contra as empresas estatais. “Gente, vocês podem aceitar essa telefonia péssima que nós temos? Eu não aceito”. Certamente eram regiamente remunerados para isto. A festa midiática só cessou quando a farra da privataria acabou. O Brasil vendeu mais de oitenta estatais, recebeu uma importância ínfima e a dívida interna cresceu de R$ 60 para R$ 700 bilhões. Perdemos muito.

O Departamento Nacional dos Combustíveis, conforme um dos seus relatórios de inspeção, constatou que as distribuidoras de combustíveis – do cartel internacional – não retiraram as suas cotas de combustível das bases de distribuição da Petrobrás. O objetivo era culpar os petroleiros pelo desabastecimento. O TCU também registrou esse fato. O mesmo foi feito pelas distribuidoras de gás. Enfim, elas tiveram 23% de aumento, enquanto aos petroleiros nada foi concedido.

Em 11 de dezembro de 1995, o Relatório Reservado publicou a matéria“Orquestração do governo pega mal na Suíça”, revelando que o principal jornal suíço, o Neue Zurich Zeitung, criticou severamente a imprensa brasileira, por não informar que foram as distribuidoras multinacionais (Shell, Exxon, Texaco, Supergasbrás etc.) as responsáveis pela falta de combustíveis e gás de cozinha no país, quando da greve dos petroleiros. Dizia a reportagem: “O correspondente do jornal suíço no Brasil espantou-se que os mesmos jornais e televisões que atribuíram aos grevistas os dramas passados pela população pobre, sequer mencionaram o relatório final do inquérito do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a greve.”

Sem entender o silêncio do governo brasileiro diante da grave conclusão do TCU, o correspondente suíço perguntou ao gabinete do presidente FHC se haveria alguma retratação pública, recebendo a promessa, jamais cumprida, de que isso seria feito em breve. Além de classificar o governo Fernando Henrique como de centro-direita, neoliberal, o jornalista terminou sua matéria “decepcionado com o complô montado durante a aprovação da quebra do monopólio do petróleo”. Foi preciso a imprensa internacional se indignar, a nossa foi conivente.

A AEPET mandou essa matéria para vários jornalistas que condenaram os grevistas, entre eles, Villas-Boas Corrêa, Carlos Chagas, que atacavam furiosamente os petroleiros pela falta do combustível. Não houve resposta deles; nenhum pedido de desculpas ou admissão do erro.

A greve dos petroleiros foi a grande desculpa encontrada pelos deputados que, na primeira votação, apresentaram o movimento grevista como pretexto para votarem contra o monopólio do petróleo. O governo, a grande mídia e as multinacionais do cartel do petróleo jogaram pesado. FHC colocou tropas nas refinarias, numa irresponsável provocação aos petroleiros que, numa atitude sensata, não reagiram. As distribuidoras fizeram tudo para provocar a falta de combustível. O governo difamou e usou a greve. Se os petroleiros, massacrados, não decidissem suspender o movimento, apesar de fragorosamente derrotados, as consequências seriam imprevisíveis. Isto mostra o peso do jogo bruto e ditatorial usado pelo governo.

No auge da greve, a Rede Globo teve um veículo com explosivos apreendido pela Polícia Federal, próximo a uma refinaria (um novo Riocentro?). A tese de mestrado de Frederico Lisboa Romão mostra, na página 396:

“O dia 17.05 vai ser repleto de fatos favoráveis aos grevistas. Surge a denúncia no Jornal do Brasil (do mesmo dia) da apreensão pela Polícia Rodoviária Federal de um veículo da Rede Globo contendo explosivos próximo a REVAP, o fato ganha notoriedade, a deputada federal do PCdoB Jandira Feghalli cobra neste mesmo dia investigação da polícia federal. Um documento do Congresso Nacional assinado por 25 congressistas, do PT, PDT, PCdoB, PPS, PMDB, PTB, PSDB, PFL, PP, solicita a intermediação do ex-presidente Itamar ‘…no sentido de abrir canais de negociação com o governo…’ ” (cf. Frederico Lisboa Romão, “A greve do fim do mundo: petroleiros 1995 – Expressão fenomênica da crise fordista no Brasil“, Unicamp, 2006).

FHC aproveitou para provocar os petroleiros, tendo um dos ministros do TST, Almir Pazzianoto, seu aliado, tomado uma posição radical e até declarado que os petroleiros estavam sendo feitos de palhaços. Pura provocação.

O TST estabeleceu uma multa de R$ 100.000,00 por dia de greve, absurda, levando os Sindipetros de todo o Brasil a uma situação de inviabilidade. Esse massacre levou a uma derrocada do sindicalismo brasileiro: “Se o segundo maior sindicato do País sofreu essa derrota, o que nós sindicatos menores podemos fazer?”.

A LEI Nº 9478/97

Tendo violado a Constituição Federal no seu artigo 177, § 1º, que, em 1988, fora redigido pelo diretor da AEPET, Guaracy Correa Porto, FHC substituiu esse parágrafo por outro que retirou a exclusividade da Petrobrás de executar o monopólio da União, abrindo a porteira para empresas privadas, mormente estrangeiras, produzirem o petróleo nacional.

Para regulamentar a mudança, ele enviou um projeto de Lei que acabou se transformando na Lei nº 9478/97.

Essa lei, elaborada no auge do neoliberalismo, é uma lei ordinária em todos os sentidos, pois ela apresenta incoerência em vários dos seus artigos como, por exemplo: o artigo 3º diz que as jazidas de petróleo pertencem a União; o artigo 21 diz que o produto da extração do petróleo pertence à União. Mas o artigo 26, fruto de intenso trabalho do “lobby”, diz que quem produzir o petróleo passa a dono dele.

Os dois primeiros artigos obedecem à Constituição. O terceiro a contrapõe totalmente. Há outros artigos perniciosos, como o artigo 64, que foi posto para permitir que se transformassem as unidades de negócio (que Reischstul, depois, dividiu a empresa em 40 delas) em subsidiárias para posterior privatização e/ou desnacionalização.

O então deputado Elizeu Rezende foi o relator dessa matéria. Procuramos o deputado até na sua residência, em Belo Horizonte, junto com a FUP e outras entidades dos movimentos sociais. Mas acho que foi pior. Tudo que apontávamos de ruim, o deputado pedia sugestão por escrito e piorava o projeto. Por exemplo, o artigo 26 dizia: “conferindo-lhe a titularidade desses bens (petróleo) após extraídos”. Titularidade era bem melhor do que “propriedade”, que foi a palavra que o deputado colocou no lugar de titularidade, e entregou o petróleo para quem o produzisse.

Para piorar ainda mais a situação, FHC emitiu o decreto 2705/98, que estabeleceu as faixas para o pagamento das Participações Especiais: até 95.000 barris por dia, o produtor paga zero. A partir de 95.000 barris, começa a pagar 10% e chega a no máximo 40% do óleo-lucro, ou seja, abate-se do petróleo produzido os custos de produção e os royalties, aplicando-se os percentuais sobre o restante.

Com isto, o produtor paga à União, em dinheiro, no máximo 7% do óleo total produzido. Como essa medição é por campo, as multinacionais todas produzem menos de 95.000 barris por diaLogo, nada pagam de participação especial. Também não pagam imposto de exportação, dádiva concedida pela Lei Kandir.

No mundo, os países exportadores recebem, em petróleo, a média de 84% do óleo-lucro. Lembro que nos países do Oriente Médio, o custo de produção é baixíssimo e 84% do óleo-lucro é um valor acima de 70% para os países produtores.

ANP-ZILBERSTAJN

Implantada a Lei 9478/97, a Agência Nacional do Petróleo – ANP – foi entregue ao genro de FHC, David Zilberstajn, que, ao assumir, declarou em alto e bom som para um auditório lotado de dirigentes de empresas multinacionais ou seus representantes: “O petróleo agora é vosso“. E cumpriu, pois, ao dividir os blocos para licitação, estabeleceu suas áreas com um valor 220 vezes maior do que a dos blocos licitados no Golfo do México.

Tal era a pressa para entregar o ouro negro. E o processo de licitação começou com uma série de irregularidades, entre elas a não realização de audiências publicas para preparação dos leilões.

Em face disto, a AEPET entrou com ações judiciais contra esses leilões. Chegamos até o terceiro leilão, quando estas irregularidades foram sanadas. Tais leilões encontram-se “sub-judice”, mas a Justiça dificulta muito as nossas ações. Já no governo Lula, entramos com ações contra o sexto e o oitavo leilões.

FHC

FHC retomou o processo iniciado por Collor e interrompido por Itamar: a sugestão do Credit Suisse de privatização da Petrobrás voltou com tudo.

A AEPET trabalhou para impedir esse processo de desnacionalização, subsidiando a ação judicial movida pelo Sindipetro-RS contra a entrega/doação da Refap para a Repsol, interrompendo o processo.

Reichstul dividiu a Companhia em 40 Unidades de Negócio que, pela Lei 9478/97, artigo 64, poderiam ser convertidas em subsidiárias e privatizadas. A REFAP seria a primeira vítima. O golpe se daria através de uma troca de ativos, em que a Repsol cederia US$ 500 milhões em ativos seus e a Petrobrás outros US$ 500 milhões. Formariam assim, uma terceira empresa, REFAP S/A, privatizada.

Quando analisamos os ativos oferecidos, vimos que os ativos da Repsol valiam menos de US$ 200 milhões. E os ofertados pela Petrobrás, mais de US$ 2 bilhões. Nesse cálculo, estimamos um dos ativos da Petrobrás (30% da REFAP) em US$ 600 milhões. Agora, eles foram recomprados por US$ 800 milhões, confirmando nossa previsão.

A liminar dessa ação, ganha em primeira instância, interrompeu o processo perverso de desnacionalização da Petrobrás. A próxima vítima seria a REDUC. Depois, as plataformas.

PETROBRAX

Quando Reichstul, em 1999, trabalhava pela desnacionalização da Petrobrás, convidou a AEPET e a FUP para nos comunicar as providências de mudança de nome da Companhia. Falou das vantagens, entendendo que a medida facilitaria aos “gringos” a pronúncia do nome da empresa (o que seria sua nova aquisição). Eu e o Diretor da AEPET, Argemiro Pertence, na ocasião, perguntamos se ele havia se dado conta de que estaria rasgando a segunda Bandeira do Brasil, ao que ele respondeu: “convidei vocês para comunicar um fato e não para lhes pedir opinião“.

Respondemos: “então, presidente, prepare-se para arcar com as consequências“. Saímos da reunião e disparamos a informação para os jornalistas nossos conhecidos e colocamos no AEPET Direto — nosso informativo eletrônico diário, bem como em nossos boletins. A mídia toda repercutiu a matéria.

A reação nacional foi grande e Reichstul acabou voltando atrás e cancelando a insidiosa iniciativa. A Nação brasileira se apercebeu do golpe e mostrou a sua indignação. O presidente Reichstul em pouco tempo se tornou “ex-presidente”.

Aliás, Reichstul foi um péssimo presidente: desmontou a equipe de planejamento estratégico da Petrobrás, substituindo-a pela empresa americanaArtur D Little. Um desastre. A empresa levou a Petrobrás a comprar refinarias velhas na América do Sul e até uma nos EUA, com um passivo ambiental imenso. Definiu um novo plano de previdência, PPV, e dividiu a Petrobrás em quarenta unidades de negócio a serem privatizadas. Além disto, Reichstul conseguiu a ocorrência de 62 acidentes da Petrobrás em 2,5 anos contra uma média histórica de menos de um acidente por ano. Muitos desses acidentes, a nosso ver, foram sabotagens, inclusive o da P36. Nós solicitamos à Marinha e ao Ministério Publico que investigassem a respeito dessa hipótese. Lamentavelmente, nenhuma investigação foi feita.

Outra das facetas de Reichstul: a empresa Marítima havia contratado sete plataformas de perfuração para trabalhar para a Petrobrás. Ela estava atrasada e sujeita a uma multa de centenas de milhões de dólares, que se consumaria em um mês. O que fez Reichstul? De forma atabalhoada (proposital?), cancelou os contratos, dando à Marítima o direito de se safar da inadimplência e das multas e ainda processar a Petrobrás pedindo US$ 2 bilhões de indenização por cancelamento unilateral de contrato. Chegou a ganhar na 1a instância. Perdeu no STJ.

Reischstul dobrou a gratificação dos gerentes e a quantidade deles, ganhando apoio para suas falcatruas. Deu ainda aos gerentes um poder de decisão muito grande, podendo contratar empresas e pessoas terceirizadas. Cooptou a maioria para efetivar o processo de desnacionalização da empresa.

Em 2001, Reichstul, desgastado, dá lugar a Francisco Gros que, ao assumir a presidência da Petrobrás, num discurso em Houston, EUA, declara que na sua gestão, “a Petrobrás passará de estatal para empresa privada, totalmente desnacionalizada“; compra 51% da petroleira Pecom, da Argentina, por US$ 1,1 bilhão, embora a dita empresa tenha declarado, publicamente, um déficit de US$ 1,5 bilhão; cria um sistema para mascarar acidentes nos quais os acidentados não os possam reportar; tenta implantar um plano de Benefício Definido no Fundo de Pensão – Petros.

Faz, ainda, um contrato de construção de duas plataformas com a Halliburton, com uma negociação obscura, sem concorrentes, que resulta, além de um emprego maciço de mão-de-obra estrangeira, em dois atrasos superiores a um ano e meio. Estes atrasos fizeram com que, pela primeira vez na história da Petrobrás, houvesse uma queda de produção, fato ocorrido em novembro de 2004. Apesar desses atrasos, a Halliburton nada pagou de multa e ainda ganhou cerca de US$ 500 milhões de adicionais da Petrobrás, em tribunal americano. A AEPET denunciou esses fatos REITERADAMENTE.

VENDA DE AÇÕES

Em 2000, depois de seis empresas estrangeiras ficarem mais de um ano no 12º andar do Edifício-sede da Petrobrás, fazendo desfilar os gerentes com todas as informações que quisessem, analisando todos os dados estratégicos da Petrobrás, Reischstul, numa grande encenação, como se fosse preciso algum marketing, levou Pelé para a bolsa de Nova Iorque, objetivando a “venda” de ações da Petrobrás.

Em duas etapas, foram vendidos 36% das ações por US$ 5 bilhões, quando elas valiam mais de 15 vezes esse valor, sem contar as reservas do pré-sal a que esses acionistas passaram a ter direito, sem nada terem pago por elas. Foi uma doação do patrimônio potencial brasileiro. Até então, no País, entregara-se o que já fora ou estava sendo produzido. No contexto petróleo, com a venda das ações, passou-se a entregar o que ainda será produzido. Um caso típico de entrega hereditária.

MÍDIA

Parece que agora a Rede Globo e a mídia dominada vão recomeçar a campanha: a Revista ÉPOCA, da editora Globo, lançou uma matéria de sete páginas, em seu número de 13/06/2011, configurando uma retomada da campanha contra as estatais, os fundos de pensão e o governo.

Eis o começo da matéria: “A queda do Muro de Berlim [está no Glossário] parecia ter encerrado o debate sobre o tamanho do Estado na Economia. Com a vitória de um sistema baseado na livre-iniciativa — o capitalismo — sobre outro baseado no planejamento estatal — o socialismo —, a conclusão era cristalina: o governo deveria limitar ao mínimo a regulação sobre as atividades privadas e cuidar (bem) dos serviços básicos, como saúde, educação, justiça e segurança [outro slogan do Glossário]… Em setembro de 2008, porém, com a eclosão da crise global, os governos de quase todo o mundo tiveram de injetar trilhões de dólares para reanimar suas economias. Nos EUA, como em outros países, o Estado assumiu o controle de bancos, seguradoras e até mesmo montadoras de automóveis à beira da falência [a revista não fala, mas foi o colapso da falácia neoliberal do ‘Mercado”]… Vozes antes relegadas a um papel secundário no debate voltaram à cena com ares de protagonistas. Uma delas, o economista americano Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de economia em 2001, afirmou recentemente à Época: ‘Não é o tamanho do Estado que importa, é o que o governo Faz’“.

E a revista segue ressuscitando “slogans” e chega ao ponto fundamental: “A interferência do Estado na economia via estatais, BNDES, e fundos de pensão é tão intensa que durante a (nossa) pesquisa, ÉPOCA teve de atualizar dados de muitas Companhias que receberam recentemente dinheiro do governo…”. “O governo brasileiro é um dinossauro com apetite insaciável. Nunca tivemos um capitalismo de estado tão evidente“.

Esta matéria está em sintonia com diversas publicações na Internet que afirmam que o governo dos EUA está empenhado em combater a intervenção do governo brasileiro na economia através das estatais e dos Fundos de Pensão. Eles não querem que o Brasil se torne independente economicamente deles. O Brasil é o seu maior celeiro de matérias primas. Uma prova recente dessa intenção: nós, conselheiros eleitos da Petros, fomos a Brasília para uma audiência marcada com o diretor da PREVIC, autarquia que controla os fundos de Pensão. Não pudemos falar com o diretor. Ele foi convocado para uma reunião com o Banco Mundial. O que tem a ver a controladora dos Fundos de Pensão com o Banco Mundial? Teoricamente nada, mas é provável que faça parte do esquema do governo americano para enquadrar os Fundos de Pensão.

Não resta dúvida de que, no momento, o alvo principal é a Petrobrás, pois no projeto do governo Lula ela será a operadora única do pré-sal. O lobby internacional tentou mudar isto, mas não conseguiu. Mas eles nunca desistem e como disseram no Wikileaks: “O projeto do governo nos é desfavorável, mas o mudaremos com o auxílio do IBP, ONIP e FIESP, com cuidado para não despertar o nacionalismo dos brasileiros“.

 

Fernando Siqueira

Vice-Presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás

Artigo publicado no Jornal Hora do Povo em novembro de 2012

 

O PETRÓLEO É NOSSO!