A educação privada é um anacronismo

ANÍSIO TEIXEIRA

 

O aspecto mais característico do novo Substitutivo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em processo de votação na Câmara Federal, é o de conceder categoria pública ao ensino privado. Realmente, parece que algo de incoercível compele o país a fazer do público o privado, ou seja, a dar ao privado as regalias e privilégios do público.

Já observei, certa vez, que as origens dessa tendência mergulham em nosso passado colonial. Os primeiros donatários deste país já eram exemplos desse público que se faz privado. Os donatários tinham o poder público, mas para gozo e uso privado. Enquanto que na colonização inglesa as sociedades colonizadoras, a princípio puramente comerciais, pouco a pouco se faziam públicas, na colonização portuguesa, as capitanias eram instituições públicas que pouco a pouco se faziam privadas. Com os ingleses, o privado tendia a se fazer público; com os portugueses, o público tendia a se fazer privado.

Guardamos o velho vinco, o velho hábito, a antiga mazela e eis que ressurge ela agora na lei básica da educação nacional. Vale a pena rápida reconstituição histórica, para marcar a forma com que a velha deformação nacional vem repontar no quadro do sistema público de educação brasileira.

Todos sabemos com que resistência o Estado, no Brasil, vem cumprindo a obrigação constitucional de ministrar educação. Em toda a monarquia, podemos dizer que não passamos da ação acidental de criar e manter alguns institutos de educação, com o caráter que se poderia chamar de “exemplar”. Ao Estado, cabia a ação de estímulo, no máximo de organizar as instituições “modelo”, “padrão”.

Com a República, tivemos modesta exaltação de consciência pública e lançamos as bases de um sistema dual de educação: a escola primária e profissional para o povo e a escola secundária e superior para a elite. O primeiro constituiria o sistema público; o segundo, o privado, dado por concessão pública, mas para ser mantido por meio de recursos privados. Os que o quisessem, que lhe pagassem o custo.

Com a integração do povo brasileiro e o desaparecimento progressivo da chamada elite, o sistema da escola secundária e superior a ela destinado vem-se fazendo, cada vez mais, um sistema de massa, um sistema popular, tão do povo quanto o especialmente organizado para ele.

Diante dessa manifesta evolução do sistema educacional brasileiro, tudo levaria a crer que a tendência do Estado seria para esquecer o velho dualismo e lançar-se à manutenção de um sistema público de educação unificado, do qual desaparece o caráter discriminatório anterior, passando o Estado a manter não só escolas primárias e profissionais, mas também escolas secundárias e superiores. E isto é o que vinha sucedendo. São Paulo já possui um considerável número de escolas públicas secundárias.

Contra isto é que agora se levanta o projeto de lei de Diretrizes e Bases, promovendo a oficialização dos colégios particulares e o reconhecimento do seu direito de participar dos órgãos de direção do ensino. À primeira vista, parece que a tendência é do particular se fazer público. Mas se aprofundarmos a análise, vemos que o particular não é convocado a agir como público, mas, muito pelo contrário, é convocado a participar dos órgãos públicos, no caráter de privado e para representar, dentro do público, o privado. Ora, isto é, exatamente, dar ao privado as regalias do público.

Não há nada mais fértil nem mais sutil que a iniquidade. O dualismo da sociedade brasileira não se conforma em desaparecer. Com o crescimento da classe média e a continuação da mobilidade social vertical, certo mimetismo dos novos elementos que estão a integrar essa nova classe média leva-os a reproduzir as atitudes de privilégio da reduzida e aristocrática classe superior, em vias de extinção. Com efeito, um sistema privado de educação oferece, indiscutivelmente, muito mais facilidade para o respeito a situações adquiridas e privilegiadas do que um sistema público, cujo áspero caráter competitivo tem seus aspectos desagradáveis.

Parece-nos ser esta a explicação para a nova lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. O fenômeno é dos mais curiosos e esclarecedores, e marca muito bem as distorções inesperadas de nosso próprio desenvolvimento democrático.

Antes de 1930, os colégios particulares do Brasil eram realmente particulares e resistiam vivamente a qualquer intromissão do Estado. Os de nível secundário pensariam em tudo, menos em pedir recursos ao Estado. Zelavam sobremodo pela sua independência e serviam a uma pequena classe média relativamente abastada e a pobres orgulhosos, que sofriam sua pobreza mas não desejavam esmolas, que tanto seriam consideradas as bolsas ou auxílios.

Com a Revolução de 30, começa a expansão da classe média brasileira. Essa expansão se faz, sobretudo, pela educação, pela escola não popular, isto é, a escola secundária e a superior.

Não se esqueça que a nossa sociedade substituiu a aristocracia de títulos hierárquicos pela de títulos de ilustração, pela aristocracia do “doutor”. Um sistema privado considerável de educação acabou por se constituir para fornecer tais títulos de ascensão social.

Mas a dinâmica social brasileira está cheia de contradições e, pouco a pouco, essa mesma classe, que se fez privilegiada pela educação, não se vê mais em condições de poder custear e manter, para os filhos, o seu sistema escolar. Empreende-se então um movimento para dar-lhe regalias públicas, sem perda do seu caráter privado, nessas regalias incluída a de participar da direção do ensino e a de poder ser substancialmente mantido com recursos públicos.

Mantém-se deste modo o caráter aristocrático da educação nacional, passando os recursos públicos a serem utilizados para a conservação da nova classe média. A própria divisão igualitária dos recursos federais para a educação superior, média e primária, que se apresenta como progresso democrático, só engana a quem deseja enganar-se. Sendo de 12 milhões o número de crianças de escola primária, a quem se deve educação, e de 6 milhões o número de alunos matriculados; de 1 milhão o número de alunos da escola média; e de 70 mil, o de ensino superior – a divisão dos recursos em partes iguais só ilude a quem quiser iludir-se. Na realidade, está-se ajudando o ensino médio seis vezes mais do que o primário e o superior cerca de mil vezes mais.

As tendências que vão ser fortalecidas pela nova lei serão as do desinteresse do poder público pela educação, do fortalecimento da iniciativa privada, da preferência pela educação de “classe”, da expansão da educação para os já educados, ou seja, a expansão, sem plano, das formas de educação mais aptas a promover certo “aristocratismo educacional”, eufemismo com que encobrimos a educação para lazer, o parasitismo burocrático e a promoção de status social.

Não é difícil demonstrar como irão tais tendências ser exaltadas. Comecemos pela do desinteresse do poder público pela educação. Sabemos quanto é velha essa tendência. Não se registra, na história do país, um só governo, local ou nacional, que tenha dado real importância à educação, se tal considerarmos tê-la considerado meta fundamental. Sempre foi assunto para discursos, nunca porém para a ação dominante de qualquer governo. Por isso mesmo, tem-se intrigado a alusão, várias vezes repetidas de certa prensa, à “honestidade intelectual” que teria presidido à elaboração do novo Substitutivo, em seu esforço de impedir o monopólio da educação pelo Estado. Em que época, em que província, em que Brasil enxergou alguém da Subcomissão esse perigo, para fazer dele o seu cavalo de batalha! Se, realmente, fosse de honestidade intelectual o espírito orientador do Substitutivo, este deveria bater-se pela caracterização do dever do Estado, jamais cumprido, de dar educação ao povo brasileiro. Ao invés disto, o Substitutivo cria o fantasma do monopólio estatal da educação e impregna o texto do projeto de dispositivos destinados a coibir a ação do Estado.

E evidente que não se estimulará deste modo a consciência do governo se não para que não intervenha, para que deixe ficar, para o laisser-faire mais desembaraçado no campo da educação.

Dir-se-á que exatamente isto é o que se deseja. Toda intervenção do governo é perigosa. Muito bem. Não se diga, porém, que a lei se destina a dar, afinal, educação aos brasileiros. A nova lei destina-se exatamente a impedi-lo, restaurando, justificando, santificando, enfim, a tradicional resistência do Estado a cumprir o seu dever constitucional de abrir escolas.

Longe de monopólio, o Estado brasileiro vem sistematicamente deixando para os particulares o encargo da educação. Com efeito, isto tivemos antes de 1930, assim continuamos pela revolução afora e, depois de 1946, valemo-nos da ausência da lei de Diretrizes e Bases para justificar atitude ainda mais acomodada quanto à inação oficial.

Enquanto não se votasse a lei de Diretrizes e Bases, nada havia a fazer. Nunca o laisser-aller educacional foi tão completo, tão ininterrupto, tão facilitado. Nem União, nem Estados nada podiam fazer. Faltava a lei, e quanto mais fosse esta adiada, tanto melhor.

O deixa-ficar generalizado não seria, contudo, paralisação. Deixa ficar é deixar passar. Algo entrou a acontecer. E esse algo foi exatamente a expansão desordenada e incongruente do ensino particular, promovido por bispos e sacerdotes cheios das mais puras intenções e sem recursos, por “inocentes” campanhas de educacionários gratuitos e, também, por espertos homens de empresa, como se diz hoje, que lobrigam no abandono público uma oportunidade de lucros ou prestígios fáceis… A ausência de iniciativa por parte do governo abrigava-se na desculpa de faltar-lhe a lei para a ação e as reformas necessárias… E, por isto mesmo, ficou-lhe mais fácil consentir em todos os esforços da “boa vontade”.

A lei que ora se elabora na Comissão de Educação virá santificar essa atitude, ou seja, deixar de fazer. A educação é assunto privado, a ser resolvido pela Família. Ao governo compete apenas pagar. É engano, pois, pensar que tal orientação seja nova, e que venha agora redimir-nos. A nova lei vem consolidá-la, santificá-la, exaltá-la, pois já domina ela a ação, melhor diria, a inação dos poderes públicos desde sempre e, com particular intensidade, desde 1946. A princípio, como já se disse, por não se ter lei nova e não valer a pena continuar-se com a legislação do Estado Novo e agora por termos lei que iria recomendar exatamente essa atitude.

 

A NOVA LEI

Paralisado, assim, o Estado, teremos o revigoramento da iniciativa privada e virá, esta, afinal, dar-nos a educação desejada senão suspirada? Novamente me permito alimentar as dúvidas mais sérias. Veja-se bem que não identifico educação privada ou particular com educação livre. Livre, pela Constituição, é a iniciativa privada de oferecer educação. Mas tal educação privada está, entre nós, mais do que a pública, sujeita a imposições alheias à própria educação. De modo geral, entretanto, as suas escravizações mais visíveis são, exatamente, ao preconceito e ao dinheiro. Quanto a este, a educação privada é, por excelência, uma educação barata. Precisa e tem de ser barata. Faz-se por isso mesmo rotineira, conservadora e hostil a inovações e experiências. Quanto ao preconceito, a escola privada faz-se escrava de sua clientela. Está ali para satisfazê-la, para atendê-la, para obedecer-lhe. Diz-se que isto é, exatamente, a nova doutrina do século XX, contra as tolices liberais do século XIX. A educação é livre porque atende aos preconceitos da família. A atrasada América do Norte, presa aos falsos ideais de igualdade do século XIX, deseja estabelecer nas escolas a integração racial. Está errada. O Governador [Orval Eugene] Faubus deve pedir as luzes do sr. Carlos Lacerda para obter a alforria da educação em Arkansas, nos Estados Unidos, autorizando afinal as suas escolas segregadas e custeadas pelos recursos públicos.

Está claro que se pode defender até a escravidão, mas o que se não pode é defendê-la em nome da liberdade. Pode-se dizer que é melhor, que é mais humana, que é mais segura, que é mais doce – mas não que seja mais livre. A escola particular, entre nós, mantida com recursos públicos, representará sempre uma escola mais conservadora, mais tradicional, menos disposta a experiência do que a escola pública. E isto, por motivos muito simples. Na América Latina, continente todo ele formado dentro dos propósitos colonizadores de metrópoles estrangeiras, a independência e a república representam esforços revolucionários, renovadores, propostos a implantação de novos comportamentos sociais e, sobretudo, desejosos de integrar sua população, dividida primeiro entre escravos e senhores e depois em dominadores e dominados, em um só povo democratizado, fraterno e livre. Ora, tal não se pode conseguir com um sistema de educação particular, pois esta jamais se caracterizou como educação renovadora.

A educação que a escola particular irá expandir terá, pois, de ser a educação chamada de “classe”, isto é, destinada a preparar os filhos dos já educados para sucedê-los em seus privilégios e direitos adquiridos. E a nossa Constituição liberalmente permite a sua existência. Mas entre isto e promovê-la, e custeá-la, vai um abismo!…

Existe algo de irreal e equívoco nessa afirmação de que cabe à família o controle da escola. Costumam os defensores dessa posição afirmar que a família é o grupo social natural e concreto e que o Estado é vago e abstrato. Ai de nós, que hoje é exatamente o contrário. Por mais desagradáveis que sejam certas realidades, há que aceitá-las e dispor as coisas à vista dos fatos, dos “teimosos fatos” de que falava William James. Respeitar os fatos é o começo de toda sabedoria.

Ora, os fatos são os de que a família já não é a antiga família, segura e sólida, capaz de arcar com as suas terríveis responsabilidades. Hoje precisa ela, acima de tudo, de ser ajudada. Cabe-lhe a educação dos filhos até a idade escolar e, depois, colaborar com a escola em tudo que lhe for possível, mas não lhe podemos entregar a própria responsabilidade da escola. O seu respeito hoje ao mestre não pode ser menor do que o respeito que deve ao médico. Um e outro a ajudam, mas não são seus criados, e sim profissionais independentes e autônomos.

 

COMENTÁRIO

O projeto de lei desejaria fazê-los serviçais da família. Seus servidores, sim, mas nunca seus serviçais. Tudo isto, porém, são ingenuidades de legislador, que acredita ainda na onipotência da lei. A lei hoje tem de obedecer aos fatos. Não há nenhuma família que não esteja ansiosa por contar e poder ouvir os conselhos do psicólogo e do mestre, cuja autonomia plenamente reconhece.

Em sociedade democrática, fundada na igualdade e na livre informação, não é possível a subordinação hierárquica que o sistema de controle das escolas pelas famílias exigiria. Esse sistema, com efeito, imporia o controle confessional, delegando as famílias à sua Igreja o controle da educação.

Ora, não é de esperar que os legisladores julguem possível essa restauração. Mas se fosse possível, que representaria ela?

Esse domínio das famílias sempre se fez mediante uma hierarquia de famílias. Na sua pureza, o regime importa sempre numa família real, nos casos extremos divina, que corporifica a abstração família. Abaixo da família real, vêm as famílias nobres, depois as burguesas e, por último, a plebe. Com a república, essa hierarquia das famílias brasileiras se estabeleceu entre “nossas boas famílias” e as outras. Com a restauração do regime, iríamos assegurar a educação dentro dessa ordem hierárquica. Primeiro, a educação das nossas boas famílias; depois, a das demais. Como os recursos são poucos, teríamos de ficar no primeiro grupo.

E outra coisa não irá acontecer no Brasil, desde que essa velha doutrina volte a ter os foros até de pensamento avançado. Não é avançado coisa nenhuma. É velhíssima. Mas isto não impede de vingar na América do Sul. Tudo leva a crer que este Continente está fadado a vir a encarnar o mundo antigo e, em face dos saltos para o futuro de quase todo planeta, efetuar esta parte da terra certos recuos providenciais para, ajudada pelas nossas santas tradições, ainda poder manter as doçuras e espiritualidades dos bons velhos tempos da injustiça e da desigualdade humanas.

Não deixa de ser melancólico assistir ao anacronismo, a que não falta sua ponta de insolência, do Brasil de hoje, que minha geração ainda julgava novo e que a geração seguinte, essa que hoje debate e vota as nossas leis, aposta em mostrar que não é nenhum país jovem, mas antiga e sábia nação, liberta de ilusões, solidamente reacionária, disposta a restaurar o privilégio e a desigualdade como formas realistas e superiores de organização social. Embora essa orientação seja aparentemente a dominante no legislativo federal, conforta-nos a segurança de que tais resistências à mudança acabam por aguçar a consciência social, preparando-nos assim, para mudanças possivelmente mais radicais. De nenhum outro modo poderá o Brasil enfrentar os tempos novos e a nova sociedade que, de qualquer modo, se vem formando neste país em plena expansão democrática.

 

Texto extraído da Hora do Povo, edição 12 de junho de 2013. Originalmente publicado com o título “A nova Lei de Diretrizes e Bases: um anacronismo educacional?”, pela revista “Comentário” (jan./mar. 1960, p.16-20).

Vulnerabilidade Ideológica e Hegemonia Cultural

SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES*

 

A sociedade brasileira se caracteriza por crônica vulnerabilidade externa com facetas econômica (a mais debatida), política, tecnológica, militar e ideológica. A mais importante, pois influencia todas as políticas e atitudes do Estado e da sociedade brasileira (empresas, associações, partidos, ONGs, igrejas, indivíduos etc.) que agravam aquelas outras facetas da vulnerabilidade, é a de natureza ideológica. É ela que, através de diversos mecanismos, mantém e aprofunda a “consciência colonizada” das elites dirigentes e até de segmentos das oposições políticas, intelectuais, econômicas, burocráticas. A consciência colonizada se expressa em uma atitude mental timorata e subserviente, que alimenta sentimentos de impotência na população, ao atribuir as mazelas brasileiras à “escassez de poder” do Brasil, à “incompetência” brasileira, ao nosso “caipirismo”, ao “arcaísmo” social, à “xenofobia”, enfim, à nossa inferioridade como sociedade. A vulnerabilidade ideológica está estreitamente relacionada com a crescente hegemonia cultural americana na sociedade brasileira, que se exerce em especial através do produto audiovisual, veiculado pela televisão e pelo cinema, articulado com a imprensa, o disco e o rádio.

A vulnerabilidade ideológica é de tal ordem que a opinião de um sociólogo francês ou de um economista americano ou os aplausos estrangeiros a um dirigente brasileiro ou a opinião de uma agência de análise de risco, ou de um organismo internacional, têm enorme impacto positivo ou negativo sobre a visão das elites sobre a situação e as perspectivas do Brasil, gerando manifestações auto-congratulatórias ou protestos de repulsa e lamentos de decepção. A sociedade brasileira é vulnerável ideologicamente porque parte majoritária de suas elites, ao invés de procurarem governar para o povo, preferem governar para os interesses internacionais de toda a ordem. Desejam essas elites serem “aceitas” como representantes de um “país normal”, de uma “sociedade jovem, mas civilizada”, que não “confronta” os interesses das Grandes Potências e com elas “colabora”. As opiniões sobre o Brasil de intelectuais, políticos ou empresários estrangeiros são recebidas com maior respeito, admiração e concordância do que aquelas emitidas por brasileiros (a não ser quando esses refletem a opinião estrangeira), por setores importantes da mídia, a qual repercute tais julgamentos, e pelas elites nativas de mentalidade colonial.

A vulnerabilidade ideológica faz com que as elites intelectuais e dirigentes procurem ver sempre em modelos estrangeiros as soluções para o subdesenvolvimento econômico, para o “atraso” cultural, para o “autoritarismo” político, para o “arcaísmo” institucional brasileiro. Vão elas buscar modelos institucionais no exterior (por exemplo, agências reguladoras, Banco Central autônomo etc.), estratégias econômicas (por exemplo, câmbio “fixo” e sobrevalorizado e agora as metas de inflação etc.), teorias militares (por exemplo, segurança cooperativa etc.), modelos educacionais (por exemplo, o currículo escolar, o sistema de créditos na universidade etc.). Esquecem que esses modelos e teorias foram desenvolvidos com base na experiência histórica de sociedades que tiveram evolução e características distintas da brasileira. Assim, esses modelos e teorias “transplantados” para o Brasil definham ou degeneram, para desespero de seus propugnadores colonizados. Há hoje juristas e intelectuais que defendem, por exemplo, a adoção pelo Brasil dos princípios da “common law” e das práticas de arbitragem, inclusive internacional, anglo-americana para organizar e reformar o sistema jurídico brasileiro, que seria, segundo eles, arcaico e moroso, por se basear no direito romano e germânico. E, assim por diante, os exemplos dessa mentalidade e atitude mimética são inúmeros.

A questão da vulnerabilidade ideológica é fundamental, pois ela se refere diretamente à coesão ou desintegração social, à construção ou fragmentação nacional, à autoestima ou auto-rejeição e à própria possibilidade de êxito de uma política de desenvolvimento econômico (não apenas de crescimento desigual), democrático (não oligárquico e não plutocrático) e social (cultural e espiritual) da sociedade brasileira.

A vulnerabilidade ideológica afeta a identidade cultural brasileira. Esta identidade é fundamental quando se admite que a sociedade brasileira se desenvolveu em um território geográfico específico, com uma composição étnica e religiosa distinta, com uma experiência histórica, política e econômica única. A consciência disto é essencial para que a sociedade possa encontrar soluções próprias para seus próprios desafios. A vulnerabilidade ideológica e a hegemonia cultural estrangeira impedem, dificultam e confundem os distintos segmentos da sociedade brasileira e tendem a eliminar a consciência de suas características específicas e da própria evolução dessas características, que é a sua história.

A consciência que a sociedade adquire de si mesma, isto é, a consciência de cada cidadão e dos grupos sociais sobre as características da sociedade em que vivem depende de uma representação ideológica, que depende, por sua vez, de manifestações culturais as mais distintas que interpretam e criam o imaginário nacional do seu passado, de seu presente e de seu futuro.

Essa criação do imaginário, dessa visão do passado, do presente e do futuro, é, em sua quase totalidade, alheia à experiência direta dos indivíduos. Quanto ao passado e ao futuro, porque não o “viveram” nem o “viverão”. E quanto ao presente, porque não podem dele participar, ter a experiência direta de todas as situações sociais pela impossibilidade da ubiquidade. Assim, a esmagadora maioria dos fatos e das interpretações que conhecemos sobre o passado do próprio Brasil e do mundo depende da elaboração intelectual e cultural de historiadores e artistas, em especial os criadores de obras audiovisuais e literárias, por mais que sejam elas consideradas como obras de ficção. Muito daquilo que um brasileiro imagina a respeito de situações e valores individuais e sociais é uma construção cultural/ literária/audiovisual/noticiosa, muitas vezes repleta de preconceitos e estereótipos. Tudo o que sabemos sobre a história da sociedade brasileira não foi vivido “por nós”, mas sim “elaborado” por terceiros.

A vulnerabilidade ideológica se acentua com a crescente hegemonia cultural norte-americana no Brasil. Na medida em que a elaboração, produção e difusão cultural brasileira, audiovisual ou não, está sujeita à hegemonia cultural estrangeira, a formação do imaginário nacional acaba se realizando de forma fragmentada e claudicante. As “interpretações” da realidade mundial elaborada pelas manifestações culturais hegemônicas norte-americanas passam a predominar, refletindo os preconceitos e os estereótipos daquela cultura e os interesses daquela sociedade. Daí as distorções decorrentes da hegemonia cultural estrangeira, no caso do Brasil, americana, a vulnerabilidade ideológica e suas consequências negativas para o Brasil.

A construção da identidade cultural decorre da produção de manifestações culturais que abrangem desde as atividades da imprensa à elaboração científica e artística, mas, em especial, devido ao seu extraordinário alcance, às manifestações audiovisuais (documentários, filmes de ficção, séries e noticiários de toda ordem). A construção desta identidade não se contrapõe à necessidade de diversidade cultural e muito menos ao diálogo com a cultura estrangeira. Contrapõe-se, isto sim, à hegemonia das manifestações culturais estrangeiras sobre a cultura brasileira no próprio território brasileiro. O estímulo e o acesso à diversidade das manifestações culturais permitiria à sociedade brasileira ter acesso a distintas e, muitas vezes, contraditórias visões do mundo, das relações interpessoais, das questões existenciais. A questão estratégica é, pois, imaginar mecanismos que ampliem o acesso de todos, sejam eles artistas, intelectuais, políticos ou simples brasileiros, à miríade de manifestações culturais brasileiras e de todas as sociedades que constituem a diversidade cultural planetária e fortaleçam e enriqueçam a nossa própria identidade, combatendo a hegemonia cultural de qualquer origem no Brasil. Trata-se de definir uma política cultural, de comunicação e de educação, não-assistencialista, integrada e voltada para o projeto de construção da sociedade brasileira. E para isto é indispensável discutir a questão cultural também em seus aspectos econômicos, políticos e sociais.

 

Cultura, comunicação e educação: compreensão

A cultura pode ser definida em sentido estrito como o conjunto de atividades humanas, de natureza não utilitária, que expressam e reproduzem a experiência individual ou coletiva, a disseminam no presente e a transmitem no tempo, de geração em geração.

Sendo a experiência humana variável no espaço, devido a circunstâncias geográficas, étnicas, políticas e econômicas distintas, há naturalmente culturas nacionais específicas que, todavia, não sendo estanques, se influenciam umas às outras. Não há culturas nacionais superiores, assim como não há raças superiores, mas pode haver um maior grau de elaboração das manifestações culturais em decorrência de circunstâncias históricas, do grau de acumulação de riqueza e de conhecimento técnico/artístico em determinadas sociedades e pode haver, por razões econômicas e políticas, maior capacidade de difusão e penetração social global de certas culturas.

A cultura corresponde a um conjunto de manifestações das diversas artes tradicionais, tais como a música, a escultura, a pintura, a literatura, a arquitetura, a dança, o teatro, o cinema, e de outras formas, como a gravura e a fotografia. As artes e as manifestações artísticas não se identificam com o seu suporte físico nem com o seu veículo de difusão, ainda que veículos e suportes específicos afetem a obra de arte e de certa forma alterem o seu conteúdo e o seu impacto social, econômico e político, e passem assim a ser de grande relevância para a definição e execução de uma política cultural eficaz.

A cultura popular se expressa igualmente através de manifestações das mesmas artes, porém de forma intuitiva, artesanal, sem o mesmo domínio do conhecimento técnico e sem a aplicação estrita de “regras” eurocêntricas que correspondem tradicionalmente a cada arte. Não se trata de discutir ou decidir se a cultura erudita é superior à cultura popular, pois elas se influenciam e têm funções sociais semelhantes. Um artista popular pode ser capaz de refletir de forma extraordinária a experiência humana, de um certo momento e meio social, enquanto que um artista erudito pode falhar nesse propósito, apesar de seu maior domínio, digamos, das técnicas tradicionais eurocêntricas. As características da obra de arte, da manifestação cultural e seu impacto dependem do nível técnico com que se realizam, mas também da criatividade individual do artista e do alcance do veículo de difusão.

Sendo as manifestações culturais o modo como a experiência humana, que se verifica em uma certa dimensão geográfica, se transmite no tempo, a questão da cultura, da produção e da difusão cultural, está estreitamente vinculada à formação e à permanência da nação como conjunto de indivíduos, que em geral habitam um mesmo território, que compartilham uma experiência histórica comum e que têm a aspiração de construir um futuro comum, ainda que as visões sobre este futuro possam ser distintas.

A nação, a sociedade, se organiza como Estado, que pode ser definido como um conjunto de instituições que elaboram normas, as executam e as sancionam, com o objetivo de disciplinar as relações de toda ordem entre seus integrantes, para que sejam pacíficas e consensuais, e de defender e promover seus interesses e direitos em suas relações com as demais sociedades e Estados. O enfraquecimento da produção cultural de uma nação leva ao enfraquecimento dos laços que vinculam seus integrantes, de sua memória do passado, da experiência comum e de sua aspiração de construção de um futuro compartilhado. Naturalmente que o enfraquecimento da cultura nacional diante da hegemonia de outras manifestações culturais de outras sociedades, que são necessariamente distintas e que não correspondem às experiências daquela nação em sua trajetória histórica, corrói sua autoestima e enfraquece a capacidade do Estado de promover e defender os interesses nacionais.

A maior parte das imagens que os indivíduos formam sobre as experiências humanas individuais e coletivas e que constituem a base para suas ações não decorre de sua experiência direta, mas sim são o resultado de informações que se transmitem pela mídia escrita e audiovisual e que utilizam recursos artísticos, culturais. A maior parte dos valores sociais é construída, elaborada, transformada e destruída através da influência de um fluxo contínuo de manifestações culturais transmitidas pelos meios de comunicação e difundidas socialmente.

Assim ocorre com a obra literária, que inclui o jornalismo, com a música, com as manifestações audiovisuais em suas distintas formas, tais como o teatro e o cinema, transmitidas pelos instrumentos da mídia que constituem uma indústria que recolhe, produz, distribui e divulga as manifestações culturais. Seus diferentes setores são constituídos pelas editoras, as empresas jornalísticas, as rádios, as companhias de teatro, as produtoras e distribuidoras de filmes para cinema e TV, as redes de televisão aberta e a cabo etc. A obra do escritor, do músico, do diretor de cinema não tem impacto e função social (e nem mesmo cultural) se ela não chega ao público, à sociedade. Para que isto ocorra, é necessário que se transforme em um produto, o mais importante da atividade humana, pois alimenta o processo contínuo de reconstrução do passado, de tempos que os indivíduos que formam a sociedade atual não viveram; de interpretação do vastíssimo presente do qual os indivíduos conhecem diretamente apenas ínfima parcela; e de formação de visões do futuro, cuja forma concreta que vier a assumir dependerá desde já do que se pensa que ele será ou que poderá ser.

Assim, a manifestação cultural tem de ser transformada em produto econômico, isto é, em resultado de processos específicos de produção e de distribuição física lato sensu, para que venha a ter impacto social e político.

 

Política Cultural: reflexões

A maior parte dos produtos de consumo, tais como geladeiras, sapatos e automóveis, tem efeito político e social diminuto sobre o consumidor e seu valor social corresponde ao de seu suporte físico, que resulta do seu processo produtivo, que empregou fatores de produção e gerou renda. O suporte físico do produto cultural, ao contrário, tem um valor infinitamente inferior ao seu valor cultural e a seu valor econômico. Basta comparar o valor do papel em que está impressa uma obra literária ou o valor da película onde está registrado um filme para se constatar esta divergência. O valor social do produto cultural não se esgota com o seu consumo individual, mas se reproduz no tempo, enquanto o valor social de um produto comum se esgota com o seu consumo.

A manifestação cultural transformada em produto cultural tem um custo de produção e, portanto, gera emprego e renda, e tem um mercado onde se confrontam as empresas que o comercializam e onde se encontra com o seu público. Os mercados para os diversos produtos culturais têm características muito distintas e podem vir a ser, com maior ou menor intensidade, oligopolizados e a sofrer distorções decorrentes de práticas de concorrência desleal, e, assim, permitirem margens de lucro extremas. Sem a compreensão do produto cultural como um fenômeno cultural/econômico/político complexo, não é possível a definição de uma política cultural que leve em consideração o extraordinário potencial de geração de emprego, de lucro e de divisas da produção e da distribuição cultural, mas também seu papel político fundamental de formação do imaginário social, da vitalidade da Nação e do poder do Estado.

A produção cultural tem importância fundamental na política internacional. Nem mesmo os principais dirigentes e intelectuais da nação mais poderosa do mundo têm conhecimento direto de mais do que uma parcela ínfima da miríade de eventos que ocorrem a cada dia em cada sociedade. Todas as decisões desses dirigentes que afetam profundamente a realidade são tomadas a partir de informações e de elaborações culturais que interpretam eventos e que os transmitem através de manifestações culturais sob a forma de livros, filmes, notícias, relatos, fotografias, e que vão formar o seu imaginário em confronto com sua experiência pessoal limitada e sua capacidade teórica de processar informações e de encaixá-las em uma “visão de mundo”.

Assim, as imagens dos países, inclusive de seu próprio, das sociedades, dos Estados e de seu poder são formadas através de um vasto e contínuo processo multifacetado de elaboração cultural que gera nos diferentes setores sociais essas imagens. A ausência de imagem própria, ou a existência de imagem distorcida, fragmentada ou incompleta, afeta não somente as decisões de dirigentes de terceiros Estados em suas relações com o Estado cuja imagem é fraca, mas também a própria sociedade desse Estado, com efeitos sobre sua autoestima, sua capacidade de apoiar seus dirigentes e a capacidade desses dirigentes de agir para enfrentar os seus desafios internos e externos.

Daí a importância que as grandes potências, e em especial os Estados Unidos, conferem a sua indústria cultural lato sensu e a prioridade que atribuem ao objetivo de garantir o livre acesso de seus produtos culturais aos mercados culturais de todos os países, isto é, o acesso a todas as estruturas e meios de produção e de difusão de produtos culturais e de formação do imaginário das sociedades de terceiros países, com objetivos de natureza cultural, econômica e também política.

Nos mercados culturais, a estrutura dos mercados e suas características específicas de produção e distribuição fazem com que as dimensões das empresas tenham, como em mercados de produtos “normais”, enorme importância. Assim como nos mercados de produtos de consumo, cabe ao Estado impedir a monopolização, a oligopolização, a formação de cartéis e a prática de concorrência desleal, no interesse de proteger o consumidor individual de preços abusivos e a sociedade da geração de lucros excessivos. Com maior razão, cabe a ação do Estado nos mercados culturais onde os produtos, além de sua importância econômica, têm uma importância política fundamental.

Cabe ao Estado garantir a livre competição em cada mercado cultural com muito mais rigor do que nos mercados de produtos “comuns” de consumo, tendo em vista os efeitos sociais e políticos dos produtos culturais sobre a sociedade, com os objetivos de evitar a hegemonia cultural de outras sociedades; de estimular a mais ampla e diversificada troca de informações culturais com o exterior; de promover a produção cultural doméstica, única capaz de fortalecer e articular o conhecimento da sociedade de si mesma, o qual é indispensável para a formulação de um projeto de futuro e para definir a estratégia e os meios físicos e políticos para implementá-lo, em especial em grandes Estados de periferia, como o Brasil.

A sociedade brasileira se encontra hoje sob a hegemonia cultural estrangeira, em especial da produção cultural norte-americana, que decorre das estruturas de mercado que se criaram ao longo do tempo, devido à incompreensão, miopia e omissão dos governos em relação à política cultural, de comunicação e de educação. Esta omissão de política cultural, ou melhor, esta miopia da função política da cultura e das inter-relações entre produção cultural, estruturas econômicas de produção e de comercialização cultural fizeram que, em nome da liberdade de expressão e de manifestação cultural, se condenasse a ação corretora do Estado e se permitisse a formação e a ação de estruturas oligopolísticas. Ao mesmo tempo, mantinha-se viva, porém em estado de asfixia, a produção cultural brasileira, sem criar os instrumentos que permitissem sua competição com a produção cultural estrangeira que, ao se realizar e se difundir através de mega-empresas multinacionais, oligopoliza o mercado consumidor pelo exercício de controle e influência sobre as estruturas de difusão cultural, tais como editoras, gravadoras, exibidoras e redes de televisão.

O Estado brasileiro tem limitado sua ação a um modesto apoio assistencialista, colonizado e envergonhado à produção cultural de elite ou de pequeno impacto social, através de isenções fiscais, sem se preocupar em promover e garantir a livre competição nos mercados culturais de massa, onde se forma o imaginário social, essência da própria existência da Nação brasileira e da possibilidade de esta se organizar para enfrentar seus extraordinários desafios e realizar seu potencial.

A questão do imaginário social e, portanto, da política cultural e de comunicação está profundamente vinculada à questão do sistema educacional. Este sistema tem sido articulado pelo governo como um processo de formação de indivíduos como produtores de maior ou menor qualificação técnica, e não como um processo de formação de cidadãos. Os valores transmitidos pelo sistema educacional são os valores da produção material e da maximização do consumo individual, do ser humano como unidade de trabalho, e não como cidadão político solidário, digno de uma vida espiritual superior, para além dos programas degradantes e idiotizantes de televisão, atividade que consome em média mais de quatro horas diárias do cidadão brasileiro. Se deduzirmos o tempo médio de trabalho, de transporte, de alimentação e de repouso, essas quatro horas significam mais de 70% de seu tempo diário, digamos, livre. Este é o tempo de que pode dispor para seu aperfeiçoamento como cidadão, como trabalhador e como ser humano. Esse tempo foi “capturado” pela televisão, que os Estados e os governos têm tratado como uma atividade econômica “normal”, e não como um veículo com influência extraordinária sobre a sociedade e seu imaginário. A situação se agravou com a emenda constitucional que permitiu a participação do capital estrangeiro na propriedade dos veículos de comunicação e com a ausência de regulamentação do artigo 221 da Constituição federal que se refere à programação das emissoras de rádio e televisão.

Por outro lado, quaisquer que sejam os métodos, a qualidade e os esforços utilizados para aperfeiçoar o sistema educacional formal, são eles frustrados, pois as crianças e os jovens utilizam grande parte de seu tempo fora das salas de aula em frente à TV de programação mais ou menos comercial, mas onde há um permanente, ainda que difuso, processo de transmissão de um imaginário estrangeiro, além de estímulos ao consumo conspícuo, ao individualismo, à violência, à banalidade, ao culto do corpo.

Assim, a escola tem de ser reconstruída como o veículo de transmissão de valores culturais brasileiros, enquanto a televisão e os meios de comunicação em geral podem e devem ser estimulados a diversificar sua programação de modo a ampliar a gama de influências culturais brasileiras e estrangeiras a que deve ter acesso a sociedade brasileira, e assim ampliar sua margem de escolha e de reflexão sobre os valores sociais. Os recursos da coletividade, que são arrecadados através de impostos, devem estar a serviço de uma política cultural que amplie a competição entre produtos culturais de diferentes origens, estimule a produção cultural brasileira e diversifique as influências culturais. Aquelas empresas de produção e difusão cultural que não desejem diversificar a origem dos produtos culturais com que trabalham e que desejem privilegiar a produção cultural estrangeira podem, têm o direito de fazê-lo, mas com seus próprios recursos e não com os recursos da coletividade.

É necessário distinguir, na elaboração de uma política cultural, os aspectos de preservação do patrimônio material e imaterial, de apoio e estímulo à produção cultural dos artistas, da ação junto às empresas de produção e difusão cultural de massa para estimular a diversidade cultural e impedir a hegemonia de manifestações culturais de uma origem específica sobre a manifestação cultural brasileira em cada setor. Os estímulos à preservação do patrimônio e à produção cultural individual não terão impactos sociais, políticos e econômicos se não forem conjugados com a possibilidade de sua difusão através dos veículos econômicos. A atual legislação de concessão de isenções fiscais a empresas para investimentos em atividades culturais (as leis Sarney, Rouanet, a legislação audiovisual) possibilitam modestos recursos sociais à produção cultural, mas não garantem sua difusão e, portanto, o cumprimento de sua função social.

A distinção entre manifestações culturais de público restrito e as manifestações culturais de massa não pode ser feita de forma absoluta, pois não somente as manifestações culturais se influenciam umas às outras de forma muito importante, como às vezes se combinam ou servem umas de matéria-prima para outras. Assim, a manifestação cultural de público restrito, como, por exemplo, uma obra literária, pode servir de matéria prima para manifestações culturais de massa, como o filme e a novela de televisão.

Uma política cultural eficaz deve estar articulada com as políticas de comunicação e educação e deve ter como seu objetivo estratégico permanente a redução da hegemonia cultural de qualquer manifestação estrangeira face à produção cultural brasileira e a ampliação da diversidade de oferta cultural à disposição da sociedade brasileira. Além das diversas medidas e da legislação hoje existente, que devem ser aperfeiçoadas, podem ser imaginadas diversas ações na área da difusão cultural.

A legislação pode e deve estabelecer tratamento fiscal diferenciado e mais favorável às empresas produtoras e às empresas difusoras de produtos culturais que em suas atividades e programação ampliassem a participação das manifestações culturais brasileiras.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos maiores bancos de investimentos do mundo, pode e deve estabelecer linhas de crédito especiais para financiar investimentos e a operação de empresas que assumam o compromisso de diversificar sua atividade de produção e difusão cultural e de garantir a igualdade de participação do produto cultural brasileiro face ao produto cultural de qualquer outra origem.

A legislação pode e deve estabelecer limite máximo de ocupação do mercado para produtos audiovisuais quando há situações de oligopólio e integração vertical com risco não só de hegemonia cultural como de exclusão do produto cultural brasileiro. O limite do número de cópias por lançamento de filme é um exemplo desse tipo de medida.

Na área da educação, a legislação deve ampliar gradativamente o número de horas de permanência dos estudantes na escola, para reduzir sua exposição à TV, assim como incluir entre as atividades escolares obrigatórias a programação cultural brasileira e fornecer os meios a cada escola pública e privada de ter acesso a videotecas, a discotecas e a bibliotecas básicas. A instituição de concursos públicos, nos diversos níveis de ensino, sobre temas culturais brasileiros, com prêmios para professores e alunos, e a difusão por meios de comunicação de massa de seus resultados estimulariam o uso daquele material. O ato de prestigiar de forma sistemática os produtores e difusores culturais brasileiros com a presença das mais altas autoridades brasileiras a eventos culturais significativos, assim como hoje prestigiam atletas, teria grande importância simbólica.

Na esfera internacional, a organização de concursos internacionais de música e literatura, com prêmios significativos, sobre temas, autores e compositores brasileiros, teria importante impacto para o conhecimento da cultura brasileira, dentro e fora do Brasil, com consequências relevantes para a formação da imagem do Brasil.

Finalmente, toda a atenção deve ser prestada para evitar a participação do Brasil em acordos internacionais, regionais ou multilaterais, de cunho aparente apenas econômico, cuja consequência seja limitar ou eliminar a possibilidade de o Estado ter instrumentos de política para promover a diversidade cultural a que deve ter acesso a sociedade brasileira e estimular as manifestações culturais brasileiras e, portanto, a formação do imaginário social e a autoestima brasileira, indispensáveis a um projeto de desenvolvimento econômico, político e social mais justo e mais duradouro.

 

*Embaixador, Samuel Pinheiro Guimarães foi Secretário-Geral das Relações Exteriores, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, foi Alto Comissário do MERCOSUL de janeiro de 2011 a junho de 2012 e ministro de Assuntos Estratégicos.

 

Publicado originalmente em capítulos pelo semanário brasileiro Correio da Cidadania.

 

Fonte: http://resistir.info.

Revolução de 1924 – Nas barrancas do Rio Paraná

“Nas lindes acidentes do Paraná alguns milhares de compatriotas vão selando com o seu sangue o protesto contra a tirania!”

 

1.      Introdução

2.      Sertões Paulistas

3.      A Coluna da Morte

4.      O Papel da Imprensa

5.      Reorganização em Bauru

6.      Plano de Campanha

7.      Porto Tibiriçá

8.      A Conquista de Guaíra

9.      Preparando a Frente Sul

10.  Chimangos e Maragatos

11.  Isidoro desautoriza João Francisco

12.  Insurreição no Rio Grande do Sul

13.  A Revolta do Encouraçado São Paulo

14.  Nas Trincheiras de Catanduvas

15.  A Guerra de Posição

16.  Reveses em Alegrete e Itaqui

17.  O Leão de Caverá

18.  Protetor de Chimangos

19.  A Guerra de Movimento

20.  Marcha para o Norte

21.  Deserção do Tenente Gay

22.  Ataque a Formigas

23.  Conversações de Paz

24.  Operação Clevelândia

25.  Queda de Catanduvas

26.  O Encontro das Divisões

27.  O Comandante Paraguaio

28.  Epílogo

 

1. Introdução

À  1h15 do dia 5 de julho de 1922, os canhões do Forte Copacabana, no Rio de Janeiro, anunciavam a primeira de uma sucessão de rebeliões que culminariam com a liquidação do domínio exercido pela oligarquia cafeeira sobre a vida nacional.

A submissão aos  interesses do imperialismo inglês, e a conseqüente renúncia à industrialização do país, empurrara a oligarquia  a um beco sem saída.  Sua insistência na valorização artificial do café, às custas do empobrecimento dos demais setores da sociedade, provocara uma crise sem precedentes.

Os tenentes sonhavam com um Brasil renovado pelo voto secreto,  educação pública, moralidade administrativa, erradicação da miséria. Para isso era necessário libertá-lo dos grilhões da monocultura cafeeira.

A segunda onda revolucionária teria início em 1924, também na mesma data, 5 de julho. As guarnições do Exército da capital paulista e parte do contingente da Polícia Militar se insurgem. Com o apoio da população civil,  assumem o controle da cidade, depois de quatro dias de combates. À frente do levante estão o capitão Joaquim Távora, veterano de 1922; o major Miguel Costa, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar; o coronel João Francisco Pereira de Sousa; o general reformado Isidoro Dias Lopes; e diversos tenentes e ex-alunos da Escola Militar de Realengo, que tiveram seu batismo de fogo na Revolução de 1922.

A 13 de julho levanta-se a guarnição federal de Sergipe, sob o comando do tenente Maynard Gomes. Dez dias depois, subleva-se o 27º Batalhão de Caçadores, sediado em Manaus. Os tenentes Alfredo Augusto Ribeiro Júnior e Magalhães Barata destituem os representantes do clã Rego Monteiro, e instituem um governo revolucionário. Em 26 de agosto é a vez da guarnição de Belém derrubar o governo estadual.

As rebeliões no Nordeste e Norte são dominadas pelo governo central, ainda no mês de agosto. Porém a revolução iniciada em São Paulo se estenderá por um período de quase três anos, marcando profundamente a vida política do país, preparando o advento da terceira e decisiva ofensiva revolucionária, em 1930.

 

2. Sertões Paulistas

Durante os primeiros dias em que a luta era travada na cidade de São Paulo, os insurretos assumiram o controle de Rio Claro, Jundiaí e Campinas, através do 5º Batalhão de Caçadores e do 2º Grupo de Artilharia de Montanha, unidades respectivamente sediadas na primeira e segunda localidades.

A partir do dia 18 de julho, três destacamentos revolucionários foram lançados sobre os principais eixos ferroviários do estado. Sob o comando do capitão Otávio Guimarães, o primeiro destacamento seguiria pelas ferrovias Paulista e Mogiana, na direção Oeste, com o objetivo de neutralizar as penetrações governamentais vindas de Mato Grosso. O segundo, comandado pelo tenente João Cabanas, tomaria o rumo Norte, através da Mogiana, visando conter infiltrações procedentes do sul de Minas. O outro, chefiado pelo capitão Paulo Francisco Bastos, marcharia na direção Sul, pela Sorocabana, para impedir ou retardar a progressão de forças provindas do Paraná.

Essas providências foram decisivas para evitar o cerco da capital e manter aberto o caminho para a retirada das tropas revolucionárias – opção que, naquele momento, começava a afigurar-se como único meio de salvar São Paulo da destruição provocada pelo criminoso bombardeio levado a cabo pelas forças governistas. Apesar de não produzir baixas significativas entre as forças revolucionárias, o bombardeio, iniciado em 12 de julho, espalhava o pânico e a morte entre a população civil. Em dezesseis dias, mais de 1.800 edificações foram arrasadas, entre as quais uma centena de fábricas e estabelecimentos comerciais.

O destacamento de Otávio Guimarães – tenente do Exército, comissionado na função de capitão – dirigiu-se para a estratégica cidade de Bauru, ponto de convergência de três estradas de ferro, onde havia uma forte oposição disposta a prestar integral apoio aos revolucionários.

O inquérito realizado pela Polícia Militar de São Paulo atesta que a missão foi realizada com êxito. Diz o documento:

“Fazendo de Bauru o centro de suas proezas… mandara ocupar, desde logo, Agudos, Dois Córregos, Jaú e Bocaina, o que foi realizado com felizes incursões pelo civil dr. José Giraldes Filho, comissionado tenente… Determinou o delegado militar de Jaú a ocupação de Mineiros do Tietê e Bica de Pedra… Tomaram a Estrada de Ferro Douradense, cujos empregados, levados pela propaganda revolucionária, aderiram francamente ao levante, passando a obedecer o delegado militar de Jaú”.

A ameaça de infiltração de tropas paranaenses não se efetivou. Poucos dias depois o destacamento do capitão Paulo Francisco Bastos retornava a São Paulo.

 

3. A Coluna da Morte

O tenente João Cabanas, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar – denominada, na época, Força Pública Paulista – tinha um problema difícil de ser resolvido através dos meios convencionais de combate.

À frente de um destacamento composto de 95 homens, sua missão era bloquear o general Martins Pereira, que vindo de Minas ocupara Mogi-Mirim, Jaguari e Itapira com 800 soldados que compunham a vanguarda de sua tropa. Dispunha ainda a força invasora de 1.000 homens estacionados em Ribeirão Preto, e 1.200 que haviam atingido as cidades mineiras de Jacutinga e Pouso Alegre. O general tencionava atacar Campinas, fechando o cerco aos revolucionários na capital.

Dispondo de poucos elementos para desestabilizar e fazer recuar uma tropa cujos efetivos totais chegavam a 3.000 homens, o tenente Cabanas deslocava-se com estudado espalhafato, tendo chegado a se valer de um trem especialmente preparado para parecer armado dos mais mortíferos engenhos militares da época. Na verdade, o veículo era uma réplica cenográfica do trem blindado utilizado semanas antes pelas forças revolucionária no ataque à estação de Vila Matilde, na cidade de São Paulo. No vagão da frente, um imponente e temível canhão de 155 mm. Só observando-o bem de perto se perceberia o logro. Segundo afiança o tenente, o artefato fora fabricado “com a melhor peroba produzida no solo paulista, enegrecida com algumas pinceladas de piche”.

Assim, antes mesmo de ser atingido pelos disparos dos comandados de Cabanas em seus desconcertantes ataques, o general Martins Pereira era fustigado pela nascente lenda da Coluna da Morte.

Antecedido pela fama que começara a granjear, o batalhão do tenente Cabanas, em sua marcha para Mogi-Mirim, surpreendeu os ocupantes da cidade com arrasador telegrama endereçado a uma cidade vizinha:

“Seguimos madrugada, mil homens, seis peças de artilharia, vinte metralhadoras.  Providencie, urgente, alojamentos para tropa”.

Incontinenti a Coluna da Morte atacou e dominou as posições mais fracas do inimigo, em Jaguari e Itapira. Foi o suficiente  para que o general governista ordenasse a desocupação de Mogi-Mirim, aliviando a pressão sobre Campinas.

Perdendo o respeito pelo adversário, Cabanas decidiu persegui-lo, marchando sobre Ribeirão Preto, onde conseguiu dispersar a força inimiga valendo-se dos mesmos métodos.

Contida a ameaça de infiltração das tropas de Minas, o tenente solicitou autorização para ampliar o raio de ação da Coluna da Morte. Pretendia acossar e dispersar as quatro brigadas formadas pelos próceres do PRP – Partido Republicano Paulista. Concentradas em Itapetininga e Sorocaba, essas forças irregulares, compostas de jagunços e peões capturados a laço, levavam o nome de seus ilustres organizadores: Washington Luís, Fernando Prestes, Júlio Prestes e Ataliba Leonel – respectivamente, o ex-governador, o vice-governador, o futuro governador e um senador estadual.

A autorização não foi concedida. Já a essa altura contando com  200 combatentes, a Coluna da Morte voltou-se então para Espírito Santo do Pinhal, onde o general Martins Pereira procurava reorganizar suas forças. Derrotado mais uma vez, o general abandonou no campo de batalha 1.200 fuzis, 14 caixas de munição de artilharia, duas metralhadoras pesadas e farta munição de infantaria.

 

4. O Papel da Imprensa

Sob o impacto das investidas de Otávio Guimarães e João Cabanas, as autoridades revolucionárias comandaram também a ocupação de São Carlos, Araraquara, Jaboticabal, Limeira, Araras, Pirassununga e Descalvado.

Batida no campo de batalha por modestos tenentes, a oligarquia cafeeira empenhou-se em estigmatizá-los através da imprensa.

Otávio Guimarães era apresentado como um celerado que saqueava, em proveito próprio, os cofres das estações ferroviárias, prefeituras e câmaras municipais.

De Miguel Costa diziam que desviava produtos requisitados para suprimento das forças revolucionárias. Sob o título “Busca e apreensão na casa da irmã de um dos chefes dos bandoleiros”, o Correio Paulistano forjava, em 31 de julho, a prova do crime:

“O sr. dr. Edgard Botelho, delegado da 1ª circunscrição da capital… realizou ontem, às 13h, uma busca na casa da rua Tabatingüera, 84-A, residência da irmã  do major Miguel Costa, chefe dos elementos sublevados da Força Pública Estadual, o `remodelador da moral republicana brasileira`, onde apreendeu as seguintes mercadorias: 1 caixão de latas de sardinhas, 2 caixões de cebolas, 1 saco de milho, 2 caixões de sabão, 3 sacos de sal… 1 pneumático, 5 réstias de alho, 16 galinhas, 1 peru, 2 leitões, 15 latas de atum, 2 latas de pescada, 4 latas de leite condensado, 1 lata de vaselina… Um verdadeiro armazém!”.

Já o tenente Cabanas foi contemplado com pérolas do seguinte quilate:

“Na torva galeria dos malfeitores que a revolta engendrou destaca-se, num fundo rubro-negro, ora a rir como jogral num circo, ora a gesticular como epilético em paroxismo trágico, a figura do tenente Cabanas, da Força Pública de São Paulo…

Cabanas surgiu no ambiente lôbrego da revolta como seu mais perfeito símbolo. No cérebro onde se fluidificam vapores de insânia e de delírio perpassam-lhes como relâmpagos visões trágicas e grotescas… Para a execução dos planos sinistros e instantâneos que idealiza todos os meios lhe servem”.

A síntese desses juízos foi expressa pelo Correio Paulistano, através do seguinte epíteto:

 “O famigerado João Cabanas, a alma danada da revolução”.

Empenhavam-se os escribas em compor o perfil de um ser maligno, sanguinário ao extremo, que se comprazia em torturar prisioneiros cortando-lhes a  língua e arrancando-lhes os olhos a ponta de espada. Em breve estariam circulando histórias de que Cabanas protegia-se das balas cobrindo-se com uma invulnerável capa negra que lhe fora presenteada pelo próprio Satanás.

Alheio às maledicências, o tenente ultimava os preparativos para a realização de um plano de invadir o triângulo mineiro e marchar sobre Belo Horizonte, quando foi informado que os revolucionários começavam a retirar-se de São Paulo, devendo a Coluna da Morte tomar o rumo de Campinas, para alcançar o grosso da força revolucionária em deslocamento para Bauru.

 

5. Reorganização em Bauru

Às 22h do dia 28, as forças revolucionárias iniciaram a retirada estratégica pelo eixo ferroviário São Paulo-Campinas-Bauru. São treze composições ferroviárias, com quatorze a dezesseis vagões, cada uma delas, conduzindo homens e material bélico. Toda a tropa, seis baterias de artilharia com seus acessórios e munição, duzentos cavalos, metralhadoras pesadas, equipamento de infantaria e cavalaria, viaturas, tudo foi embarcado com incrível rapidez, sem dar chance ao inimigo de perceber o que estava acontecendo. Os trens correram com um sincronismo tal que não houve embaraço nas linhas, ao longo de vinte e quatro horas.

Os dias seguintes são dedicados à reorganização da tropa e à definição do plano de campanha para as novas condições de luta.

Os 3.000 homens, originários das unidades do Exército, Polícia Militar e Batalhões Patrióticos – formados por voluntários civis – são organizados em três brigadas, um regimento de cavalaria, um regimento misto de artilharia, escolta do QG e Estado-Maior.

O contingente militar do estado era de pouco mais de 11.000 homens, dos quais 7.538 da Polícia Militar e 3.700 do Exército. Cerca de um terço integravam agora as fileiras revolucionárias. Nos quartéis, pelo menos outro terço simpatizava abertamente com a revolução.

A 1ª Brigada, sob o comando do general Bernardo de Araújo Padilha, é composta pelo 1º e 2º Batalhão de Caçadores, chefiados pelos majores Luís França de Albuquerque e Tolentino de Freiras Marques. Padilha era coronel e comandava o 5º Batalhão de Caçadores, de Rio Claro.

O comandante do 2º Grupo de Artilharia de Montanha, de Jundiaí, tenente-coronel Olinto Mesquita de Vasconcelos, assume, no posto de general, a chefia da 2ª Brigada, integrada pelo 3º e 4º Batalhão de Caçadores, comandados pelos majores Juarez Távora e Nelson de Mello.

A 3ª Brigada, tendo à frente o general Miguel Costa, é composta pelo 5º, 6º e 7º Batalhão de Caçadores, respectivamente comandados pelos majores Coriolano de Almeida, João Cabanas e Arlindo de Oliveira.

O Regimento de Cavalaria tem no comando o general João Francisco. O Regimento Misto de Artilharia segue as ordens do tenente-coronel Newton Estilac Leal. O chefe do Estado-Maior do general Isidoro é o coronel Mendes Teixeira.

Todos os oficiais investidos nas novas funções de comando foram promovidos a postos superiores aos que ocupavam quando o levante teve início.

 

6. Plano de Campanha

O plano de campanha previa o deslocamento da Divisão São Paulo para Porto Tibiriçá, última estação da Sorocabana, situada na margem esquerda do rio Paraná, divisa com o estado de Mato Grosso.

Dali, a opção preferencial do general Isidoro, comandante da Divisão, era a de subir o rio e penetrar no Mato Grosso, através de Três Lagoas. A adesão da guarnição de Campo Grande, previamente comprometida com a revolução, propiciaria a ocupação de toda a região que corresponde hoje ao estado do Mato Grosso do Sul.

O general João Francisco tinha uma opinião diferente. Acreditava que de Porto Tibiriçá as forças revolucionárias não deveriam subir o rio, mas descê-lo, invadindo os sertões paranaenses e ocupando a faixa que vai de Guaíra a Foz do Iguaçu, zona produtora de sólida situação estratégica. A razão principal da escolha se devia ao fato dessa posição favorecer uma futura junção com as forças revolucionárias do Rio Grande do Sul, em cuja insurreição o general depositava suas maiores certezas e esperanças. Em seu modo de ver, a abertura da nova frente renovaria e ampliaria as forças revolucionárias, criando as condições para que elas retomassem a ofensiva. Sem que isso ocorresse, o movimento, condenado à defensiva, acabaria por definhar.

Prevaleceu, no entanto, nesse primeiro momento, a opção por Mato Grosso. Foram então mobilizadas as unidades que deveriam dar cobertura ao deslocamento da coluna.

 

7. Porto Tibiriçá

Otávio Guimarães dirigiu-se para Araçatuba, com 150 homens. Sua missão era fixar no terreno as forças do general governista Nepomuceno Costa, até que fosse completada a entrada de toda a tropa em Mato Grosso.

Para a realização da marcha de Bauru até Porto Tibiriçá, era preciso dar uma volta, recuando para Botucatu, até Rubião Júnior, e depois avançando pelo ramal da Sorocabana que passa por Avaré, Ourinhos, Presidente Prudente e Presidente Epitácio.

O Batalhão Cabanas toma então posição em São Manoel e nos arraiais de Toledo, Redenção e Igualdade – na direção de Dois Córregos. O Batalhão Távora segue para Botucatu. A missão de ambos é impedir que as forças do general Azevedo Costa embaracem a progressão da Divisão.

No dia 31 de julho inicia-se o deslocamento, na seguinte ordem: Brigada Padilha, Brigada Mesquita, Cavalaria do general João Francisco, QG, Brigada Miguel Costa. Às 22h do dia seguinte estava terminado o escoamento de todas as unidades em Rubião Júnior. Às 23h, embarcam na esteira do grosso o Batalhão Távora, seguido pelo Batalhão Cabanas, designado para fazer a retaguarda.

Através da longa travessia os revolucionários são estimulados pelo entusiasmo da população. Avaré, Cerqueira César, Ourinhos,  Salto Grande vibram com a sua passagem.

Em 5 de agosto chegam a Assis. São recebidos com festas e missa campal – naquele dia se comemorava um mês de luta revolucionária. Foi realizado um comício e editado o primeiro número do jornal O Libertador, que teria mais quatro edições produzidas naquela cidade.

A 6 de agosto, a vanguarda da Divisão, composta pela Companhia Gwyer, do 1º Batalhão de Caçadores, reforçada por uma seção de metralhadoras, atinge Porto Tibiriçá. Num ataque relâmpago aprisiona os vapores Guaíra, Paraná, Rio Pardo, Brilhante e Conde de Frontim.

Na retaguarda, comandando um batalhão composto de 380 praças, bem armados e municiados, quatro metralhadoras pesadas e uma peça de artilharia, o major Cabanas dinamita pontes e provoca obstruções na via férrea, para retardar a marcha das forças que vêm no encalço da coluna. Em seu relato, ele considera que esse trabalho foi facilitado pela “anarquia nas tropas governistas”. Uma das razões que aponta é a seguinte:

“Na minha estadia em Mandurí, recebia informações detalhadas do que se passava em Avaré. Nesta cidade pararam os comboios que conduziam a vanguarda da perseguição,,, cujos oficiais faziam preceder os respectivos trens de alguns vagões repletos de prostitutas, requisitadas a 100 mil-réis, diários e por cabeça, recrutadas nos bordéis de Sorocaba e Botucatu”.

Vencendo duas escaramuças, em Salto Grande e Indiana, e dois combates de maior vulto, em Santo Anastácio e Cayuã, o Batalhão Cabanas atinge Porto Tibiriçá, no dia 13 de setembro.

Nos 38 dias decorridos entre a chegada da vanguarda da Divisão e de sua retaguarda ao rio Paraná, a marcha dos acontecimentos ditou a alteração dos planos revolucionários. Fracassara a invasão do Mato Grosso. Todas as esperanças voltavam-se para a conquista de Guaíra.

 

8. A Conquista de Guaíra

O Batalhão Távora fora batido, em 18 de agosto, na margem mato-grossense do rio Paraná, quando tentava ocupar Porto Independência, passo preliminar para a conquista da cidade de Três Lagoas.

Conta o seu comandante que o batalhão fora “reforçado pela Companhia Gwyer e Companhia Azhaury, ambas do 1º Batalhão de Caçadores,  e uma seção de artilharia comandada pelo capitão Felinto Muller, somando um efetivo global de 570 homens”.

A tropa era numerosa e experiente. No entanto, sofreu um grave revés, conforme relata o major Távora:

“Deixava o Batalhão, no campo de combate, entre mortos, feridos e prisioneiros, um terço de seu efetivo, aí incluídas as duas seções de metralhadoras pesadas”.

Uma semana depois da trágica investida, começa a descida do rio Paraná. O plano é escoar a Divisão em escalões sucessivos, em direção à Guaíra.

A vanguarda, sob o comando do general João Francisco, é  composta pelo 3º e 4º Batalhão de Caçadores, da Brigada Mesquita de Vasconcelos, reforçada por uma seção de artilharia montada e um piquete de cavalaria. O 3º Batalhão de Caçadores, debilitado pelas baixas sofridas em Mato Grosso, fora reorganizado, absorvendo a Companhia Azhaury que antes integrava o 1º Batalhão.

Embarcada em três navios e um pontão, a expedição aprisiona, no dia 26 de agosto, a lancha Iguatemi, da Companhia Mate Laranjeira, que conduzia uma patrulha governista.

Os prisioneiros informam que o capitão Dilermando Cândido de Assis, responsável pela defesa de Guaíra, mantinha 200 homens em Porto São José, na margem paranaense do rio, três léguas abaixo da foz do Paranapanema – divisa do estado de São Paulo. Na outra margem, o grileiro Quincas Nogueira dominava Porto São João. Nogueira era um homicida disputado pela Justiça do Rio Grande do Sul, de Rosário – Argentina – e Santa Rosa – Uruguai. Fugira da cadeia de Corrientes, em outubro de 1913, instalando-se nos ervais mato-grossenses. O governo, em seu esforço de guerra,  concedera-lhe a patente de tenente-coronel da reserva do Exército.

A força revolucionária dividiu-se para enfrentar a nova ameaça – um destacamento continuaria pela via fluvial, outros seguiriam por terra, para surpreender os elementos governistas entrincheirados nas duas margens do rio Paraná.

A iniciativa valeu a conquista de Porto São João, em 30 de agosto, e Porto São José, no dia seguinte.

Em 14 de setembro, após um confronto com as forças do capitão Dilermando, na ilha do Pacu, os revolucionários conquistam Guaíra. Haviam descido 200 km do rio Paraná, em 20 dias. Percorreriam outros tantos, nas duas semanas seguintes.

 

9. Preparando a Frente Sul

A cidade era uma sólida cabeça-de-ponte para a concentração do grosso revolucionário no sudoeste paranaense. O escalão de vanguarda tratou logo de alargá-la, ocupando Porto Mendes, situado 60 km abaixo de Guaíra – nesse mesmo trecho, paralela ao rio corria a estrada de ferro da empresa Mate Laranjeira. No dia 15 de setembro, a Companhia Azhaury ocupou também Porto São Francisco, 20 km ao sul de Porto Mendes.

Acometido de pneumonia dupla, o capitão Azhaury de Sá Brito morreria poucos dias depois. Azhaury era tenente, no 5º Regimento de Infantaria, de Lorena. Enviado para combater a rebelião na capital paulista, levantara sua companhia integrando-a às hostes revolucionárias.

A 26 de setembro, depois de haver ocupado Porto Britânia, o 3º Batalhão de Caçadores chega a Foz do Iguaçu, fazendo o percurso através de picadas que margeiam o rio Paraná. Nessa cidade se realiza, em 5 de outubro, o encontro longamente esperado pelo general João Francisco. Emissários estabeleciam contato com a Divisão, a fim de coordenar os esforços para promoverem um levante de grande envergadura no estado do Rio Grande do Sul.

Para a abertura da nova frente, o general João Francisco acreditava poder contar com diversas unidades do Exército situadas nas fronteiras sul e oeste daquele estado. Além disso, esperava também a adesão dos generais maragatos e seus lendários cavaleiros. Embora agindo cada qual por conta própria, os chamados caudilhos manifestavam especial consideração pelas opiniões do dr. Assis Brasil, chefe da Aliança Libertadora.

João Francisco nascera e se formara nas lides da fronteira gaúcha. A adaga da qual não se afastava, sempre visível entre o cinturão e a túnica, não deixava dúvida quanto às suas origens. Sobrevivente da Guerra Federalista de 1893, cavalgara com os chefes  maragatos.

A delegação que acabara de chegar para a reunião confirmava as suas expectativas. Ao lado do tenente Siqueira Campos, herói do Forte Copacabana,  sentavam-se os majores maragatos Alfredo Canabarro e Anacleto Firpo, representando os generais Honório Lemes, Zeca Neto e o dr. Assis Brasil. A situação, segundo eles, estava madura. A rebelião poderia ser iniciada em menos de um mês. Esperavam apenas a manifestação da Divisão Paulista sobre a oportunidade de deflagrá-la.

         

10. Chimangos e Maragatos

No final do século 19, uma profunda divisão entre os gaúchos dera origem a sangrentas disputas.

Os chimangos detinham o controle do governo do estado, desde a proclamação da República, com Júlio de Castilhos e, em seguida, Borges de Medeiros.

Nas eleições presidenciais de 1922, o chefe do Partido Republicano Rio-Grandense marchara contra a candidatura oficial, sustentada pela oligarquia paulista. Visando enfraquecê-lo, os maragatos apoiaram o candidato oficial, Artur Bernardes, e lançaram Assis Brasil ao governo do Rio Grande do Sul.

Contestando o resultado das eleições ao governo do estado, iniciaram os maragatos, em janeiro de 1923, uma rebelião armada para derrubar Borges de Medeiros.

O governo federal escusou-se de intervir na contenda, permitindo que ela se aprofundasse. Em seguida, passou a costurar um pacto segundo o qual os partidários de Assis Brasil aceitariam que Borges concluísse o mandato, em troca de não mais poder submeter sua candidatura à reeleição.

O Pacto de Pedras Altas, celebrado em dezembro de 1923, no entanto, não  pacificou o Rio Grande.

Acreditando que a oligarquia paulista havia estimulado sua rebelião com o intuito de utilizá-la em benefício próprio, como instrumento para submeter Borges de Medeiros, os maragatos estavam dispostos a voltar suas armas contra ela.

 

11. Isidoro desautoriza João Francisco

O general João Francisco não perde tempo. No dia 8 de outubro, os emissários estão de volta. Em sua companhia viaja o major Távora. O general Mesquita, que havia transferido o comando da 2ª Brigada ao tenente-coronel Estilac Leal, assumindo a função de superintendente-geral do Serviço de Transporte, também foi mobilizado para uma operação delicada: a de transportar os recursos financeiros para a aquisição de armas e munições necessárias aos revolucionários gaúchos.

Dias depois as providências tomadas por João Francisco dão origem a um sério desentendimento entre ele e o general Isidoro.

O grosso da Divisão ficara sitiado por vários dias nas ilhas situadas pouco acima de Porto São José, perdendo o contato com a vanguarda. Os combates travados produziram muitas baixas – a principal delas foi a perda completa do 7º Batalhão de Caçadores.

Além de defrontar-se com o inimigo tradicional, os revolucionários eram castigados por um novo adversário ao qual não estavam ainda adaptados, e que assim foi descrito pelo tenente Cabanas:

Dormir alguém em uma ilha, embora respirando a fragrância de flores desconhecidas ou embalado pelo rumorejar das águas é quase um sacrifício; nuvens de mosquitos em formação aérea de combate nos atacam aos grupos… Depois os carrapatos de diversos físicos… Além, a infantaria das formigas, num desfilar incessante, ferrão em riste… as urtigas, a unha de gato, a tiririca, o agulheiro de taquarussu, o vespeiro que aprece ao quebrar-se um galho, as aranhas monstruosas, a taturana, a manada furiosa de queixadas e caetetus, o bicho do pé que aos milhares irrompem dos excrementos do tapir.

Em razão desses percalços, só em 20 de outubro o general Isidoro consegue chegar a Guaíra e Porto Mendes, onde encontrou-se com João Francisco, pela primeira vez, desde que este partira de Porto Tibiriçá.

A discussão foi áspera. João Francisco argumenta que a situação do Rio Grande do Sul exigira uma decisão rápida. Isidoro contesta, considera especialmente absurdo o fato dele haver utilizado três quartas partes dos recursos financeiros da revolução numa “aventura”.

Isidoro envia depois uma carta a João Francisco informando que vai desautorizar suas iniciativas  junto aos revolucionários gaúchos. Ele diz:

Vou agir e deliberar de acordo com o meu modo de ver e vou também entender-me diretamente com os amigos do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande, a fim de combinarmos uma ação conjunta.

 Antes que João Francisco possa ler a missiva, estoura o levante no Rio Grande do Sul.

 

12. Insurreição no Rio Grande do Sul

No dia 29 de outubro, o primeiro manifesto das forças revolucionárias anunciava a eclosão da revolução no estado:

“Hoje… levantam-se todas as tropas do Exército das guarnições de Santo Ângelo, São Luís, São Borja, Itaqui, Uruguaiana, Alegrete, Santana, Dom Pedrito; Jaguarão e Bagé; hoje, irmanados pela mesma causa e pelos mesmos ideais, levantam-se as forças revolucionárias gaúchas de Palmeira, de Nova Wuertemburg, Ijuí, Santo Ângelo, e de toda a fronteira até Pelotas. E hoje entram em nosso estado os chefes revolucionários Honório Lemes e Zeca Neto, tudo de acordo com o grande plano organizado”.

O plano previa o levante simultâneo das unidades do Exército e dos chefes maragatos. O objetivo era formar duas colunas, a do Sul e a do Oeste, que marchariam, respectivamente, sobre Santa Maria e Cruz Alta. Realizadas essas operações, as forças revolucionárias se deslocariam para o Norte, visando a capital da República, batendo de passagem as tropas que pressionavam a Divisão São Paulo, no Iguaçu. A movimentação dentro do Rio Grande do Sul deveria realizar-se com a máxima rapidez, para reduzir ao mínimo o contato com as forças de Borges de Medeiros, a fim de concentrar o esforço revolucionário contra o governo federal e seu sustentáculo, a oligarquia cafeeira.

Nem tudo correu conforme o esperado.

Na zona oeste, o capitão Luís Carlos Prestes e o tenente Mário Portela Fagundes sublevaram o Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo. O tenente João Pedro Gay levantou o 3º Regimento de Cavalaria Independente, de São Luís Gonzaga das Missões. Os tenentes Siqueira Campos e Aníbal Benévolo assumiram o controle de São Borja, levantando o 2º Regimento de Cavalaria Independente. Porém a guarnição de Itaqui, situada entre São Borja e Uruguaiana, não aderiu à revolução. A ofensiva sobre Itaqui, para consolidar o controle sobre o Oeste, desarticulou parte importante das forças revolucionárias de São Borja, custando a vida do tenente Benévolo.

Na fronteira sul, apenas Uruguaiana cerrou fileiras com a revolução. O major Távora e o tenente Edgard Dutra foram os responsáveis pelo levante do 5º Regimento de Cavalaria Independente, que guarnecia a cidade.

Violentos combates, na faixa da fronteira uruguaia, arrastaram-se durante dois meses. As forças revolucionárias, compostas pelos gaúchos dos generais Honório Lemes e Zeca Neto, pelo 5º Regimento de Cavalaria, de Uruguaiana, e uma seção do Regimento de Artilharia a Cavalo, de Alegrete, acabaram se chocando pesadamente contra os corpos provisórios que constituíam a nata da força militar chimanga. Reunindo cerca de 10.000 homens, agrupados em cinco brigadas, essas unidades tinham entre seus principais organizadores Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Paim Filho, Claudino Nunes Pereira e Getúlio Vargas.

As forças que marcharam unidas, a partir do Rio Grande do Sul, seis anos mais tarde, para promover a Revolução de 30, se defrontavam, naquele momento, no campo de batalha.

 

13. A Revolta do Encouraçado São Paulo

A insurreição no Rio Grande do Sul foi um chamamento para que outras ações revolucionárias fossem desencadeadas.

No dia 5 de novembro, o encouraçado São Paulo se revolta seguido pelo contratorpedeiro Goiás. Atacados pelos canhões das fortalezas de Santa Cruz e Copacabana, o Goiás se rende. O São Paulo contra-ataca e silencia as duas fortalezas. Os 600 marinheiros revolucionários comandados pelo tenente Hercolino Cascardo, apoiado por seis tenentes, haviam tido grande dificuldade para dominar o navio, em razão da resistência oferecida por parte da tripulação que navega, agora, devidamente trancafiada: praças e sargentos no paiol, os oficiais em seus respectivos camarotes.

O São Paulo e o Minas Gerais, duas das mais potentes belonaves da época, eram o orgulho da Marinha. Para o povo, constituíam-se num importante símbolo das nossas potencialidades. Por seis dias, o encouraçado rebelado navegou seguido da esquadra capitaneada pelo Minas Gerais. Ambos evitaram o duelo que poderia pô-los a pique. A 11 de novembro o São Paulo fundeou em Montevidéu. Metade dos marinheiros sublevados por Cascardo decidem juntar-se às forças revolucionárias em luta no Rio Grande do Sul.

Poucos dias depois, a 15 de novembro, na residência do major Martins Gouveia de Feijó, rua Cabuçu, número 58, a polícia apreendeu grande número de bombas de 10 e 15 kg fabricadas com dinamite. Foram detidos também o Capitão Costa Leite e o farmacêutico João Ferreira Chaves. A rede revolucionária, na capital da República, era extensa, possuindo bases sólidas no 15º Regimento de Cavalaria, 1º Batalhão de Engenharia, Regimento de Artilharia de Montanha, Companhia de Carros de Assalto e Escola Militar de Realengo.

A 4 de janeiro dezenas de prisões desarticularam, em São Paulo, a execução do plano revolucionário de atacar o edifício da Imigração, transformado em cárcere político. Lá se encontravam presos o general Ximeno de Villeroy e o major Arlindo de Oliveira – genro do general João Francisco e comandante do 7º Batalhão de Caçadores da Brigada Miguel Costa. O plano previa o ataque simultâneo ao Comando Geral da Polícia Militar, Polícia Central, QG do Corpo de Bombeiros, por ex-oficiais de Itu, membros da Polícia Militar e civis.

Até o final de 1926, as tentativas de promover novos levantes em apoio à ação do exército revolucionário não cessaram, lotando as cadeias com milhares de presos políticos, dos quais 1.200 foram enviados para a Colônia Agrícola da Clevelândia, situada no Oiapoque, divisa com a Guiana Francesa. Só 179 saíram de lá com vida.

 

14. Nas Trincheiras de Catanduvas

Desde a ocupação de Guaíra, o general João Francisco promovia o alargamento da cabeça-de-ponte conquistada não só em direção à Foz de Iguaçu. Logo nos primeiros dias um pelotão de cavalaria era lançado, rumo leste, pela estrada carroçável que liga Porto São Francisco à Catanduva.

O arraial encravado no alto da serra, única via de penetração direta do planalto para o cânion do médio Paraná, estava situado sobre a estratégica rodovia que liga Guarapuava a Foz do Iguaçu.

Progredindo por essa rodovia, em direção à Guarapuava, o pelotão ocupou a localidade de Lopeí, a 90 km da barranca do rio Paraná.

Posteriormente,  o 4º Batalhão de Caçadores, comandado pelo major Nelson de Mello, estendeu o domínio sobre a rodovia, atacando as forças governistas em Formigas. Estas recuaram, indo entrincheirar-se na Serra do Medeiros, defronte à localidade de Belarmino.

Em Belarmino foi fixada a 2ª Brigada, com dois batalhões de Infantaria, reforçados pelo regimento de cavalaria e uma seção de artilharia. O posto de comando foi instalado em Isolina, na estrada Iguaçu-Cascavel. Também na mesma carroçável, situada atrás das linhas revolucionárias, duas seções de artilharia, enfermaria, intendência e oficina mecânica reforçavam as unidades sob comando de Estilac Leal.  A localidade era conhecida pelo nome de Depósito Central.

Em Foz do Iguaçu instalou-se o QG da Divisão. Em Guaíra, a Brigada Padilha. Entre Porto Mendes, Porto São Francisco e Santa Helena, a Brigada Miguel Costa.

Uma picada que vinha em curva de Guarapuava até Porto Mendes, cruzando o rio Piquiri e deixando Catanduvas à sua esquerda, expunha o flanco revolucionário. A 23 de outubro, o Batalhão Cabanas foi incumbido de guarnecê-lo. O ponto em que a picada cruzava o Piquiri, situado 32 léguas a leste da margem do Paraná, ficava dentro dos ervais do latifundiário argentino Júlio Allica. Em regime de trabalho escravo, cerca de 1.000 mensus – paraguaios contratados como mensalistas – eram ali violentamente explorados. Cabanas libertou-os depois de aplicar uma “surra de espada” no capataz Santa Cruz, cunhado de Allica. O capataz e os jagunços foram expulsos do local. Cerca de 200 trabalhadores incorporaram-se ao 6º Batalhão de Caçadores – esses homens, afeitos ao serviço de abertura de picadas, seriam de grande importância nas futuras ações do batalhão. A partir desse episódio a Companhia Mate Laranjeira, concorrente de Allica na região, redobrou a deferência que passara a dispensar aos revolucionários desde que estes haviam ocupado localidades e portos vitais para a companhia.

 A região sob domínio das forças revolucionárias no sudoeste paranaense possuía área equivalente ao território da Suiça. A produção interna e a fronteira com dois países, Paraguai e Argentina, tornava viável as possibilidades de abastecimento.

A única mudança significativa nas posições ocupadas pela Divisão São Paulo foi o recuo da linha avançada, de Belarmino para Catanduvas, no início do mês de janeiro, após combates iniciados em 15 de novembro.

 

15. A Guerra de Posição

O general Cândido Rondon, comandante da guarnição militar dos estados de Santa Catarina e Paraná, assumira o comando geral dos 12.000 homens das forças governistas mobilizadas para combater os revoltosos.

Nos seus 43 anos de vida militar, o general havia obtido respeito e admiração de seus patrícios pelo trabalho pioneiro que desenvolvera como pacificador de indígenas e desbravador de uma imensa área do território nacional, enquanto cumpria a extenuante missão de estender 2.270 km de linhas telegráficas através da região amazônica.

Em 1922, Rondon havia apoiado Nilo Peçanha contra Bernardes, nas eleições para presidente da República, tendo inclusive chegado a participar das articulações que visavam impedir a posse do segundo por meios insurrecionais, conforme relata o general Flores da Cunha:

“Posso depor quanto à participação ativa dos republicanos rio-grandenses para articular um movimento violento contra o governo da República e o candidato por ele sustentado. Dentre outros recebi em Uruguaiana visitas alternadas dos generais Cândido Rondon, Ximeno de Villeroy e o tenente Adalberto Moreira, recomendados pelo dr. Borges de Medeiros… Dos visitantes era o general Rondon o mais reservado, sem ocultar entretanto a mais formal repulsa aos processos de compressão praticados com flagrante desvirtuamento do regime republicano”.

Assim como Borges de Medeiros, Rondon recuara dessa posição. Os insurretos, porém, mantinham a expectativa de que o general não se deixaria usar pela oligarquia cafeeira a ponto de assumir o comando da ação repressiva. Foi com pesar que eles viram essa esperança se desvanecer.

O plano de Rondon para enfrentá-los era aumentar gradativamente a pressão sobre as linhas revolucionárias, acumulando o maior número possível de homens e armamento, a fim de forçá-los a retroceder, passo a passo, em direção às fronteiras da Argentina e Paraguai, onde pretendia encurralá-los e obrigá-los a escolher entre a rendição e o exílio. Punha em prática a doutrina da guerra de posição, adotada amplamente na 1ª Guerra Mundial. Desde 1920, a Missão Militar Francesa, comandada  pelo  general Maurice Gamelin, repassava aos militares brasileiros sua comprovada experiência nessa matéria.

 

16. Reveses em Alegrete e Itaqui

Em 29 de outubro, quando estourava a rebelião nos quartéis do Rio Grande, o tenente João Alberto, servindo no 3º Regimento de Artilharia a Cavalo, de Alegrete, estranhou que o comandante de sua unidade, ao invés de dominar a força policial e assumir imediatamente o controle da cidade, tenha ordenado o seu deslocamento, com uma seção do regimento, até a ponte sobre o rio Capivari. O objetivo era guarnecer a posição até a chegada do trem que viria transportando forças do 5º Regimento de Cavalaria Independente de Uruguaiana, mobilizadas pelo major Távora para promover a ocupação de Alegrete.

Chegando às imediações cidade, na madrugada do dia 31, com 300 homens, o tenente João Alberto e o major Távora são surpreendidos pela violenta reação de uma tropa composta de 1.000 homens, comandados pelo dr. Osvaldo Aranha. Vindos de Santa Maria e Quaraí, esses integrantes dos corpos provisórios, haviam ocupado Alegrete.

Depois de renhido combate, a força atacante recua, dividida em duas metades que perdem contato entre si. Separadamente, João Alberto e Távora conseguem chegar a Uruguaiana depois de diversas peripécias – o primeiro na noite do dia 31, o segundo dois dias depois.

Mal acabara de repousar, uma ligação telefônica informa ao major Távora que Siqueira Campos e Aníbal Benévolo iam atacar Itaqui, na madrugada do dia 4, e pediam o seu apoio. Acompanhado dos tenentes Edgard Dutra e João Alberto, ele parte para a região, com um destacamento de 200 homens. Porém as duas forças não conseguiram estabelecer contato. Diz ele:

“Como na manhã seguinte nenhum indício do ataque anunciado fosse observado, resolvi retornar a Uruguaiana, onde a situação não me parecia muito segura”.

O desencontro foi fatal. Vindo de São Borja, com um esquadrão de 140 homens do  2º Regimento de Cavalaria Independente, Siqueira Campos estava nas proximidades de Itaqui, aguardando reforços para desfechar o ataque. A defesa da cidade, que sediava o 4º Grupo de Artilharia a Cavalo, fora acrescida de 400 provisórios comandados por Osvaldo Aranha, que rapidamente se deslocara de Alegrete e pela segunda vez se interpunha no caminho de seus futuros aliados. De Santiago, marchava outro contingente de provisórios,  para imprensar a força atacante entre dois fogos. As unidades do Batalhão Ferroviário, mobilizadas de São Luís em seu socorro, pelo tenente Mário Portela Fagundes, não puderam evitar o desastre.

O tenente Benévolo, que cobria a retaguarda de Siqueira, com 70 combatentes, resiste por três horas ao ataque do adversário, até tombar sem vida. Siqueira e Portela retiram-se para o rio Ibicuí, 30 km ao sul. Na iminência de serem cercados, dispersam a tropa em pequenos grupos que retornam cavalgando para São Borja ou se internam nas matas do rio Uruguai, visando atravessá-lo, para chegar à Argentina. Ao atingir a margem, o grupo de 54 homens que seguia com Siqueira não encontra embarcação disponível. O tenente Mário Portela Fagundes, relata o desfecho do episódio:

“Siqueira estava porém disposto a salvar as suas tropas…E resolveu então praticar um gesto que o deixou altamente dignificado perante os companheiros que já se haviam habituado a admirar-lhe a valentia… tomou um pneumático, amarrou-o ao peito e atirou-se sozinho  às águas do Uruguai, frias e revoltas… Após duas horas e meia de natação entre piranhas e jacarés, Siqueira atingiu a margem e trouxe uma chalana que fez várias viagens, até que todos os homens alcançassem a margem portenha”

 

17. O Leão de Caverá

O general Honório Lemes chegara a Uruguaiana no dia 30 de setembro, pouco antes de o major Távora haver partido para a frustrada missão em Alegrete. Veio acompanhado de 550 cavaleiros gaúchos, agrupados em três corpos. Poucos dias depois, um emissário de Santana do Livramento transmitiu-lhe o pedido de oficiais do 7º Regimento de Cavalaria Independente, ali sediado, para que aproximasse sua tropa da cidade, pois a presença da 2ª Regimento da Brigada Militar, impedia que eles assumissem o controle da localidade, sem o reforço solicitado.

O 5º Regimento de Cavalaria Independente, comandado pelo tenente Ambirre Cavalcanti, comissionado tenente-coronel, foi integrado à tropa chefiada pelo general Honório Lemes. O major Távora tornou-se o chefe de seu Estado-Maior.

A coluna iniciou a sua marcha no dia 5, com 1.000 cavaleiros e 2.000 cavalos de remonta.

Na manhã do dia 8, quando se preparava para deixar o acampamento de Guaçu-Boi, 10 léguas a leste de Alegrete, os corpos provisórios, sob o comando de Flores da Cunha, atacaram. A marcha noturna realizada pelo general Honório por atalhos desconhecidos, para encobrir a posição da coluna, fora detectada pela força atacante. Colhidas de surpresa, as tropas não conseguem organizar-se para o confronto.

Conta o tenente João Alberto:

“O chão estava coberto de objetos diversos que caíam das carroças viradas. Instrumentos de música, bombos, sanfonas, cornetas, misturavam-se a lanças barracas e panelas… Honório galopava de um lado para o outro, no meio das balas, gritando: ‘estende linha, estende linha’ “.

A derrota foi dura. Restaram da antiga coluna menos de 200 homens. A maioria havia se dispersado para evitar o massacre, inclusive o tenente João Alberto, que retorna com um grupo para Uruguaiana e atravessa a fronteira argentina.

Mas Honório Lemes dá uma prova de porque merecera o título de Leão de Caverá. Penetrando naquela região, se reabastece e recompõe o seu exército, em menos de uma semana.

No dia 15, a coluna, com 800 homens, já está em marcha para a Estação de Remonta do Exército, em Saicã. Depois de dominar a guarnição, o general Honório armou uma emboscada contra o reforço de 300 provisórios que se deslocara de Rosário para o posto de remonta.

No dia 18, a coluna chega a Cacequi e destrói a estação telegráfica local. Honório Lemes manobrava para atrair em sua perseguição o 2º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar, estacionado em Santana do Livramento. O coronel Januário Correia aceita o desafio. As duas colunas manobram, cada qual procurando despistar e envolver a oponente.

No dia 22, o general Honório envia o major Távora a Santana do Livramento, com a missão de alertar o 7º Regimento de Cavalaria de que atacaria a cidade no dia 24. Mas, no último momento, decide emboscar o coronel Januário, no desfiladeiro da Conceição. Na manhã de 23 de novembro, travou-se ali um sangrento combate, do qual saíra ferido o coronel Januário Correia, perdendo Honório seus dois melhores comandantes de corpo – os coronéis Catinho Pinto e Teodoro de Meneses.

Desfalcado de seus efetivos, o general maragato, rumando para Caçapava e depois para Camaquã, reuniu suas forças às do general Zeca Neto. Após muitas correrias, marchas e contra-marchas destituídas de objetividade estratégica, sem munição e acossados pelos provisórios, emigram ambos, com os remanescentes de suas forças, para o Uruguai.

 

18. Protetor de Chimangos

Isolado em Santana do Livramento, o major Távora decide atravessar a rua que separa aquela cidade de Rivera, sua vizinha no Uruguai. Considerando esgotado seu papel na Frente Sul, o major prepara-se para retornar ao oeste paranaense. Antes, porém, faz uma visita à octogenária mãe de seu comandante de Brigada, durante a descida do Rio Paraná, o general João Francisco.

Ao apresentar-se, conta ele, foi “brindado com a seguinte declaração”:

– Já conheço a sua fama de protetor dos chimangos.

Perguntei-lhe  meio perplexo porque me atribuía tal fama.

– Porque o senhor acha que os chimangos podem degolar os soldados maragatos, mas nossos maragatos não podem degolar os chimangos…

O major Távora lembrou-se então que após a emboscada contra os provisórios em Saicã, percorrendo o campo de batalha, ele verificara, com tristeza, que alguns adversários vencidos haviam sido degolados pelos vencedores. Protestara junto ao general Honório e dissera que não se sentiria à vontade          como chefe do Estado-Maior de sua coluna se ele não fixasse uma proibição terminante àquele tipo de prática. Evidentemente, sua reprovação era extensiva aos atos de mesmo teor praticados pelas tropas adversárias, como o perpetrado em Los Galpones, ali nas proximidades de Rivera, quando sete marinheiros do encouraçado São Paulo, entre os quais um sobrinho do dr. Assis Brasil, haviam sido degolados ainda em território uruguaio. O desfecho de seu relato porém mostra que a velhinha era dura na queda:

“Meu esclarecimento não pareceu demover a senhora Pereira de Sousa de seus pontos de vista, pois treplicou-me, sem pestanejar:

– Aí é que está o seu engano. O senhor pode fazer chegar o seu pito aos nossos soldados, por intermédio do general Honório. Mas não pode fazer o mesmo aos chimangos por intermédio de sinhô Cunha e outros de seus comandantes de degolas.

Achei mais prudente calar-me para pôr termo ao incidente”.

 

19. A Guerra de Movimento

As derrotas em Itaqui e na fronteira uruguaia levaram as forças revolucionárias a concentrar-se na região de São Luís Gonzaga das Missões, distante 150 km da estrada de ferro mais próxima. Acampadas ali, duas unidades do Exército e centenas de gaúchos aguardavam a chegada dos remanescentes dos destacamentos que, abaixo do rio Ibicuí, haviam cometido a imprudência de reeditar aquilo que se pretendia evitar: as velhas peleas entre chimangos e maragatos.

João Alberto retornara da Argentina por São Borja. Permanecera fora do país apenas o tempo necessário para embarcar num trem e descer na cidade fronteiriça de São Tomé. De São Borja parte para São Luís, com 200 combatentes, originários do 2º Regimento de Cavalaria Independente, que iriam constituir-se no núcleo do 2º Destacamento, a força que estaria sob seu comando, na marcha daDivisão Rio Grande para o Paraná.

Poucos dias depois chegava Siqueira Campos. O grande desafio, segundo relata João Alberto, era “transformar os insucesso e malogros de grupos desordenados em organização militar disciplinada, eficiente…”. A maior dificuldade era convencer os coronéis, majores e capitães maragatos a se enquadrarem numa estrutura militar única, combatendo de acordo com um plano estratégico geral, dentro do qual  cada unidade tinha o seu papel determinado a cumprir.

Aos poucos os jovens tenentes foram superando os obstáculos, ajudados por figuras como o major Nestor Veríssimo, que aceitou o encargo de subcomandante do 2º Destacamento.

Outro dos gaúchos que mais contribuíram para o êxito dessa empreitada foi o coronel Luís Carreteiro, do qual João Alberto apresenta um significativo retrato:

“Era aproximadamente da minha altura (1,80), mas cheio de corpo. Bigode e barba. Cabelos abundantes e grisalhos. Tez escura, denotando mestiçagem… Trajava espetacularmente. Prendia as suas amplas bombachas de pano riscado um cinto largo, cheio de medalhas e enfeites de prata, que lhe caíam sobre as botas pretas, novas e altas, de sanfona. Esporas de prata com corrente e grandes rosetas tilintantes anunciadoras de seus movimentos. Ainda seguros ao cinto, dois revólveres calibre 38 e uma quantidade de balas. Circundava-lhe o pescoço um grande lenço vermelho… Do chapéu de abas largas, também novo, cinza escuro, pendia-lhe uma fita vermelha, onde se podia ler a frase: ‘não dou nem pido ventaje’”.

Toda a tropa foi distribuída em três destacamentos sob comando do coronel Luís Carlos Prestes, com o tenente  Siqueira Campos na chefia do Estado-Maior. Prestes recebera a promoção das mãos do general João Francisco, no início do mês de novembro, em São Borja. Foi o último ato do general, antes de seguir para o exílio.

O 1º Destacamento da Divisão Rio Grande foi confiado ao tenente Mário Portela Fagundes, o 2º Destacamento a João Alberto. O comando do 3º Destacamento coube ao tenente João Pedro Gay. Eram 2.000 homens. O bastante para refutar a afirmação de Isidoro na carta que provocara o afastamento do general João Francisco da Divisão São Paulo:

“Não creio nos três ou quatro mil homens que o senhor ficou de nos mandar para voltarmos pelo Paraná a São Paulo”.

Renovaram-se as esperanças. A estratégia adotada seria a da guerra de movimento, enunciada por Prestes em carta ao general Isidoro com as seguintes palavras:

“Com a minha coluna armada e municiada, sem exagero julgo não ser otimismo afirmar que conseguirei marchar para o Norte, dentro de pouco tempo atravessar o Paraná e São Paulo, dirigindo-me ao Rio de Janeiro, talvez por Minas Gerais. Se a Divisão São Paulo igualmente movimentar-se, em vez de aceitar a guerra de trincheiras, e se marchar conosco em ligação estratégica, e talvez, em algumas circunstâncias, mesmo tática, impossível será ao governo obstar a nossa marcha”.

Siqueira Campos, João Alberto e Prestes eram revolucionários desde o levante que abalara a capital da Republica em 1922. Siqueira comandara a lendária marcha dos 18 do Forte. Exilado na Argentina, logo estabelecera contato com os quartéis da fronteira gaúcha. João Alberto fora preso em razão do malogro do levante da Vila Militar, onde servia na 2ª Bateria do 1º Regimento de Artilharia Montada. Passara cinco meses na prisão, antes de ser transferido para Alegrete. Prestes contraíra tifo, às vésperas do 5 de julho, ficando impossibilitado de promover a sublevação do 1º Batalhão Ferroviário. Desta feita, porém, tomara todo o cuidado para que a saúde não lhe pregasse outra peça.

 

20. Marcha para o Norte

Na véspera do Natal, a coluna se pôs em marcha. Depois de organizada, aguardara ainda algumas semanas, em São Luís, pelas armas que viriam através da Argentina – enviadas pela Divisão São Paulo. Metade da tropa estava bem armada, outra metade não.

Constatada a impossibilidade da remessa dos armamentos, os revolucionários decidem atacar Tupanciretã – 100 km a leste de São Luís. O 7º Regimento de Infantaria da Brigada Militar recém chegado à cidade repele o ataque. A 27 de dezembro, evitando uma manobra de envolvimento realizada por sete colunas governistas, a Divisão Rio Grande toma a ponte sobre o rio Ijuí e embrenha-se na zona da mata, marchando por antigas picadas abertas pelos colonos alemães. Ultrapassando a região agreste, retornam ao campo aberto. No dia 3 de janeiro são alcançados pelas forças perseguidoras de Claudino Nunes Pereira, no Boqueirão de Ramada. O combate é feroz. As baixas nas fileiras revolucionárias são de 50 mortos e 100 feridos. Mas o adversário bate em retirada para Palmeiras. No dia 4, os revolucionários alcançam as matas marginais ao rio Uruguai, pelas quais prosseguem em direção à Santa Catarina.

Prestes assinala que:

“As matas dos rios Uruguai e Iguaçu são talvez as mais densas do Brasil, não se podendo marchar a não ser através de picadas abertas a facão… Era difícil fazer com que os homens andassem pela mata mais de três ou quatro quilômetros por dia”.

As condições da marcha são penosas, particularmente para os gaúchos acostumados a desmontar apenas para comer churrasco e beber chimarrão ao redor do fogo. A carne de panela tomou o lugar do churrasco. A cavalhada foi se enfraquecendo com a falta de pasto, e o terreno úmido embaraçava a caminhada. Com seus ponchos transformados pela chuva constante em verdadeiras“cangalhas”, os gaúchos patinam e atolam na lama suas botas sanfonadas. Trazem o cavalo pelas rédeas e se obrigados a desfazer-se dele carregam a sela nas costas.

Sofrendo na própria carne as conseqüências desse tipo de marcha, o pernambucano João Alberto revelou que em certos momentos de maior dificuldade, chegara mesmo “a concordar com opreconceito gaúcho contra a infantaria”. Em seguida, afirma:

“Marchar a pé não requer valentia, Mas tenacidade, estoicismo, dureza de fibra. São outras qualidades de caráter”.            

No final de janeiro, a vanguarda da Divisão, composta pelo 2º Destacamento, atravessa o rio Uruguai e chega a Porto Feliz, em Santa Catarina. A travessia do grosso é lenta, feita em dezenas de canoas e leva vários dias. A medida que as tropas vão chegando, providenciam abastecimento e descansam. Tinham ainda um longo caminho pela frente: Mais de 30 léguas, pela densa mataria, até atingirem o estradão que serve de divisa entre os estados do Paraná e Santa Catarina e de ligação entre as cidades de Barracão e Palmas.

 

21. Deserção do Tenente Gay

A dureza da marcha produziu uma diferenciação entre os participantes. Temperou o ânimo da maioria. Mas abateu o de considerável número de combatentes. Ao longo de três semanas, desde que abandonaram o campo aberto, após o combate no Boqueirão de Ramada, diversas deserções aconteceram. Na Colônia Militar do Alto Uruguai, pouco antes da transposição do rio, mais de 200 gaúchos solicitaram permissão – e receberam – para abandonarem a tropa e passarem à Argentina.

Mais grave porém foi a atitude do tenente João Pedro Gay, até aquele momento comandante do 3º Destacamento da Divisão Rio Grande.

No dia 3 de fevereiro ele foi preso, a fim de ser submetido a um Conselho de Guerra. Dias antes de sua prisão, Prestes havia convocado uma reunião com os oficiais em função de denúncias que circularam sobre os maus propósitos do tenente.  Ele foi advertido de que poderia ir embora, esse era um direito que,  naquele momento, estava facultado a todo e qualquer combatente. Não poderia, no entanto, levar o armamento e a munição, por serem indispensáveis àqueles que optaram por prosseguir na luta. A reação do tenente foi chorar, dizendo estar sendo vítima de uma infâmia.

Mais tarde, interrogados por Prestes os soldados confirmaram que Gay, valendo-se da posição de comandante do Destacamento,  estava procurando organizar uma deserção em massa.

A decisão do Conselho de Guerra foi a condenação do oficial à morte, por fuzilamento.

A sentença não foi executada. Dois dias antes da data marcada, o tenente Gay fugiu. Prestes contou à sua filha, Anita Leocádia, que anos depois tomara conhecimento de que João Alberto se apiedara daquela alma e facilitara a sua fuga. Mas não há outros testemunhos que referendem a exatidão da assertiva.

O comando do 3º Destacamento foi assumido pelo tenente Siqueira Campos.

 

22. Ataque a Formigas

No dia 6 de janeiro, o major Cabanas participa de uma reunião com os oficiais que respondem pela defesa de Catanduvas. O front havia sido recuado de Belarmino para aquela localidade. Embora a posição fosse mais segura, seus 600 defensores estavam sob pressão das tropas do coronel Álvaro Mariante, compostas de 2.200 homens. A conferência avalia a conveniência de um ataque a Formigas, atrás das linhas das forças sitiantes. O plano previa também uma incursão simultânea, a partir de Formigas e de Catanduvas, sobre as linhas do coronel Mariante, com o intuito de desorganizá-las. Como o general Rondon passava grande parte do tempo no acampamento de Formigas, acompanhando de perto a evolução da situação na frente de batalha, a possibilidade de capturá-lo dava novo alento às forças revolucionárias.

A única possibilidade de execução dessa ousada ofensiva estava na exploração do elemento surpresa. Seria, portanto, indispensável a abertura de uma picada de 30 km, na mata, partindo do rancho de Sapucaï, nas proximidades de Santa Cruz,  até o acampamento inimigo..

Cabanas iniciou a marcha no dia 11, com duas companhias do seu batalhão, a terceira seguiria dois dias depois. Eram ao todo 280 homens. O restante do 6º Batalhão de Caçadores continuaria a guarnecer a antiga posição, no rio Piquiri. No dia 18, haviam rasgado 25 km de mata e construído quatro pontes, uma das quais com 16 metros, sobre o rio Ano Novo. O ataque ocorreu na madrugada do dia 21. Surpreendida, a guarnição não pode fazer valer o peso de sua superioridade numérica.

O comandante geral das forças governistas, porém, não foi encontrado. Conta o major Cabanas:

“O primeiro prisioneiro que fiz deu-me a informação que o general Rondon, devido ao desconcerto de sua limusine, retardou a chegada a Formigas onde já deveria estar”.

Embora espetacular, a investida não surtiu o efeito desejado. Nas imediações do acampamento, o comando governista já havia concentrado forças de efetivo muito superior ao esperado pelos revolucionários.. Em pouco tempo, 600 homens do 2º Batalhão de Caçadores e 1.200 do coronel Varella convergem sobre ele. Durante toda a tarde, Cabanas resistiu ao assédio. À noite conseguiu escoar suas forças para a mata. Nem o general Rondon fora aprisionado, nem pode Cabanas atacar as linhas do coronel Mariante. E encontrou muitas dificuldades para retornar a Santa Cruz, o que só ocorreu em 1º de fevereiro.

 

23. Conversações de Paz

O deputado Batista Luzardo chegou a Foz do Iguaçu em 13 de fevereiro. Veio acompanhado de um capitão do Exército que trazia carta do general Eurico de Andrade Neves, comandante da 3ª Região Militar, sediada no Rio Grande do Sul. A carta propunha a abertura de conversações de paz, na cidade argentina de Posadas, onde já se encontrava o deputado João Simplício de Carvalho.

Luzardo e Simplício representavam o Rio Grande na Câmara Federal. Mas seguiam orientações políticas distintas. O deputado Luzardo fora, até recentemente, um dos principais coronéis da força militar que combatia sob a bandeira do general Honório Lemes.

Em Posadas, para onde se desloca o general Isidoro, a conferência se estende nas preliminares sem chegar a um acordo.

Ainda que as conversações não tenham chegado a estabelecer um cessar-fogo, na prática ele vai se impondo no front de Catanduvas. No dia 24 de fevereiro, os 300 metros que separam as trincheiras inimigas são atravessados por soldados desarmados, de ambos os lados, dando início a uma grande confraternização que se prolonga por mais de quatorze horas. Não é sem dificuldade que os oficiais revolucionários e os governistas trazem seus comandados de volta às posições originais.

No dia 6 de março recomeçam as negociações, em Passo de los Libres. Simplício apresenta a proposta que recebera diretamente do presidente da República.

Pelas condições estabelecidas, os insurretos deveriam entregar todo o armamento em seu poder. O governo se comprometia a “deixar cair no esquecimento esse período de sacrifício e de luto”, empenhando-se para que o Congresso Nacional formulasse uma lei de anistia. Enquanto ela não fosse aprovada, os rebeldes deveriam entregar-se nas cidades indicadas pelo governo. O acordo de paz deveria ser assinado na cidade de Uruguaiana.

Os revolucionários consideraram inconsistentes as garantias oferecidas pelo governo. Firmam em documento a posição de que não baixariam as armas enquanto não fosse revogada a Lei de Imprensa e adotados o voto secreto e o ensino público obrigatório.

Os negociadores solicitam tempo para novas consultas. Porém não voltariam mais a reunir-se formalmente.

 

24. Operação Clevelândia

A 7 de março a Divisão Rio Grande chega em Barracão, no estado do Paraná, fazendo junção com as forças do coronel Fidêncio de Mello. Estabelecido como fazendeiro na região, o coronel era amigo do general João Francisco. Comandando uma força de 78 homens, havia providenciado a abertura de uma picada de Santo Antônio, em Santa Catarina, até a vila paranaense de Benjamin Constant, situada do outro lado do rio Iguaçu, de modo a permitir a ligação das duas divisões.

Barracão fica na antiga região do Contestado. De lá, até Foz do Iguaçu, onde estava instalado o Estado-Maior da Divisão São Paulo, a distância era de 90 km. Uma picada entre as duas localidades, aberta na mata por uma turma do Batalhão Cabanas, dirigida pelo tenente Gastão Maitre Pinheiro, estava em fase final de conclusão.

Mas a última coisa que passava pela cabeça de Prestes era atravessar o  Iguaçu, conduzindo suas tropas ao interior do cerco montado pelo general Rondon à Divisão São Paulo.

Os destacamentos de Siqueira Campos e João Alberto foram lançados sobre Clevelândia e Palmas, na direção Leste, buscando uma junção com os 170 homens das forças paulistas que, dois dias antes da chegada da Divisão Rio Grande à região, haviam dispersado e perseguido o contingente governista que guarnecia Santo Antônio, Barracão e Campo Erê. O objetivo da manobra era prosseguir até a Colônia Mallet e golpear a retaguarda de Rondon, de modo a forçar a abertura de uma brecha que permitisse o escoamento da Divisão São Paulo.

Conta o tenente João Alberto:

“Durante cinco ou seis dias, Siqueira e eu… marchamos juntos. Ao fim da semana, quando já nos aproximávamos do campo de Clevelândia,,, escalamos nossa tropa e coube-me a vanguarda. No mesmo dia, o 2º Destacamento chocou-se com uma coluna inimiga que… marchava em sentido oposto ao nosso.

Daí por diante foi um continuar de pequenos combates…”

Impossibilitados de cumprir a missão, Siqueira e João Alberto tratavam agora de retardar a  progressão da tropa governista em direção a Barracão, fazendo uma “guerra de emboscadas” ao longo de “180 quilômetros”.

Frustrada a tentativa de efetuar a junção com o grosso da Divisão São Paulo fora do cerco estratégico, a Divisão Rio Grande prepara-se para iniciar a marcha para o Norte em direção ao rio Iguaçu. Siqueira e João Alberto são avisados para evitar o contato com o inimigo e rumar também para o Norte.

Em Barracão a situação é delicada. Convergem sobre o 1º Destacamento duas fortes colunas governistas. A primeira vem seguindo os revolucionários, através da mata, desde Porto Feliz. Na luta para retardá-la, ainda em Santa Catarina, tombara em combate, no dia 27 de janeiro, seu comandante, o tenente Mario Portela Fagundes. A outra, vinda do leste, é a que acabara de fazer abortar o ataque à retaguarda de Rondon.

Prestes aguarda até o último instante. Ao anoitecer do dia 24 de março, simula um avanço do 1º Destacamento, sobre a coluna que vinha do Sul, obrigando-a a fixar-se à espera do ataque, na localidade denominada Maria Preta. Em seguida retira-se, sem permitir que a manobra seja detectada. Na escuridão da noite, as duas colunas governistas acabaram por se chocar, passando a trocar tiros entre si. Só na madrugada puderam verificar que o fogo amigo provocara 200 baixas.

         

25. Queda de Catanduvas

Três dias depois, visando antecipar-se à junção das duas divisões revolucionárias, as forças governistas desencadeiam uma violenta ofensiva contra a cidadela de Catanduvas.

A cada 20 segundos uma granada de artilharia explode nas trincheiras revolucionárias. Os combatentes que as defendem são assediados por 4.000 soldados comandados por 17 generais.

O major Cabanas assim descreveu os últimos dias de Catanduvas:

“A artilharia inimiga rompeu vivíssimo fogo, contra nossas posições, ao mesmo tempo em que a infantaria caía com violenta carga de baionetas em todas as trincheiras e destacamentos isolados. Ao primeiro embate foi tomada, na ala direita, nossa posição denominada Cajati… no dia seguinte, o inimigo enveredou pelas matas, abrindo picadas contornou as trincheiras da ala (esquerda)e foi satir a 2.500 metros, na retaguarda… interceptando completamente nossa ligação entre Catanduvas, minha coluna em Floresta e o posto de comando do general Costa… A noite avançava; os nossos soldados detonavam seus últimos cartuchos e a situação era gravíssima… Assim reuniu-se a oficialidade em conferência e tomaram a única solução viável no caso: a entrega da praça, devendo pôr-se imediatamente a salvo como pudessem o coronel Estilac Leal e o capitão Felinto Müller… Ao amanhecer de 30, o inimigo sabendo não existir mais um cartucho, dá o sinal de carga de infantaria, e na nossa trincheira principal, da frente, agita-se tristemente uma bandeira branca”.              

A notícia do desastre colheu João Alberto em plena transposição do rio Iguaçu. Prestes, que já completara a travessia, movimenta o 1º Destacamento em marcha forçada para proteger o cruzamento da estrada Catanduvas-Cascavel- Benjamin-Iguaçu pelos destacamentos de Siqueira Campos e João Alberto. As tropas governistas, no entanto, não progrediram pela estrada, estacionando na posição conquistada. Sobre a rodovia foi então organizada uma nova frente de cobertura às forças revolucionárias que se concentraram em Santa Helena, porto fluvial sobre o rio Paraná, entre Porto Mendes e Foz do Iguaçu.

Logo após a travessia do rio Iguaçu, ainda em Benjamin Constant, no dia 3 de abril, o coronel Prestes e o general Miguel Costa mantiveram um encontro, no qual firmaram o compromisso de prosseguirem na luta, levando as tropas das duas divisões a movimentarem-se continuamente através do território nacional, até reunirem as forças necessárias à derrubada do governo. Para isso, seria necessário romperem imediatamente o cerco, passando ao estado do Mato Grosso.

 

26. O Encontro das Divisões

No dia 12 de abril, em Foz do Iguaçu, realiza-se o encontro decisivo entre diversos oficiais da Divisão São Paulo e o comandante da Divisão Rio Grande. A reunião contou com a presença do marechal Isidoro, que retornara da Argentina dois dias depois da queda de Catanduvas. O comando das forças paulistas que fora transferido ao general Padilha, na ocasião em que Isidoro recebera a promoção, estava agora sob a responsabilidade do general Miguel Costa.

Miguel Costa e Prestes sustentaram a posição do deslocamento imediato para o Mato Grosso. Mas a tarefa não era simples. Guaíra, posição revolucionária mais avançada ao norte e porta de acesso àquele estado, fora evacuada. A ordem, da qual Miguel Costa só tomou conhecimento após a execução, partira do marechal, que considerara inútil manter a cidade, depois da rendição de Catanduvas e de sufocados os levantes das guarnições mato-grossenses de Campo Grande e Ponta-Porã. As rebeliões do 17º Batalhão de Caçadores e do 11º Regimento de Cavalaria tinham sido deflagrados em 27 de março, dia do início da ofensiva governamental sobre Catanduvas.

A síntese das decisões é relatada por Juarez Távora nos seguintes termos:

“1. Considerar frustradas as tentativas de pacificação começadas, por iniciativa dos chefes do governistas, em 16 de fevereiro.

 2. Prosseguir as operações de guerra de acordo com as diretrizes baixadas pelo general  Miguel Costa.

3. Grupar numa divisão, sob o comando do general Miguel Costa, os remanescentes das forças paulistas, sob comando do tenente-coronel Juarez Távora, e os elementos chegados do Rio Grande do Sul, sob o comando do coronel Luís Carlos Prestes”.

O tenente-coronel Cabanas acrescenta:

“… sendo o plano da nova campanha de grande movimentação, acordaram os oficiais superiores, atendendo à idade e ao abatimento físico do marechal Isidoro, do general Padilha e bem assim ao delicado estado de saúde do coronel Estilac Leal, pedir aos três que ficassem no estrangeiro até que fosse possível retornarem ao exercício revolucionário”.

Estilac havia sofrido um ferimento, por estilhaço de granada, no  pescoço.

Concentradas em Santa Helena, as forças revolucionárias escoaram suas tropas por uma picada de 30 km, passando por Porto Artaza até Porto Mendes, correndo a 5 km da margem do Paraná para evitar os cânions dos rios São Francisco Falso e São Francisco. A abertura dessa picada havia sido ordenada pelo general Miguel Costa ainda na primeira semana do mês de abril.

Constatada a impossibilidade da retomada de Guaíra, ao norte, Miguel Costa e Prestes decidiram atingir o Mato Grosso, passando através do território paraguaio. Para que a travessia do rio Paraná não fosse embaraçada pelas forças governistas que se aproximavam perigosamente de Porto Artazas, através da carroçável que partia de Lopeí, a leste, as forças revolucionárias desferiram um contra-ataque que as fez recuar 10 km.

 

27. O Comandante Paraguaio

João Alberto foi encarregado de apresentar ao comandante da guarnição paraguaia de Puerto Adela uma carta na qual os revolucionários expunham as suas razões:

“Por circunstâncias excepcionais e inapeláveis entramos armados no território de vossa Pátria.

Não nos move, neste passo extremo a que nos impelem as vicissitudes de uma luta leal, porém intransigente, pela salvação das liberdades brasileiras, nenhuma idéia de violência contra nossos irmãos da República do Paraguai”.

Datado de 26 de abril, o documento levava as assinaturas do general Miguel Costa; coronel Luís Carlos Prestes; tenentes-coronéis João Alberto, Juarez Távora, Cordeiro de Farias, João Cabanas;  majores Coriolano de Almeida, Paulo Kruger da Cunha Cruz, Virgílio Ribeiro dos Santos; capitães Djalma Dutra, Ricardo Holl, Ary Salgado Freire, Lourenço Moreira Lima e Emídio Costa Miranda. Deixaram de assiná-lo, o tenente-coronel Siqueira Campos e outros oficiais que  se achavam empenhados em ações de cobertura do grosso revolucionário.

O comandante da guarnição paraguaia, porém, não era homem de muita conversa, conforme relata o próprio portador da carta:

“Os motores fracos do Assis Brasil demoraram muito para vencer os 400 metros que nos separavam da margem oposta. Isso bastou para que o capitão paraguaio, comandante da tropa (50 homens) que vigiava e defendia a fronteira da república vizinha, pressentindo nossas intenções de invadir seu território, tomasse posição para repelir o nosso desembarque.

Eu não tinha nenhuma alternativa… desembarquei com o Nestor e uns poucos homens. O resto da tropa ficou detida a bordo… Confabulamos a igual distância de nossas tropas. Ele exigia que eu depusesse armas ou regressasse para o Brasil… Por duas vezes ele abandonou as negociações e voltou para junto de seus homens, dizendo que iria reagir… Pensei então em entrar em luta corporal com o capitão paraguaio a fim de evitar que ele me fuzilasse”.

Afinal o capitão acedeu ao pleito revolucionário. Mas só depois de João Alberto assinar um documento no qual reconhecia que a anuência do comandante se devia à inferioridade numérica em que ele se encontrava frente às tropas brasileiras.

A travessia foi realizada em dois vapores: o Assis Brasil, recondicionado, meses antes, pelos revolucionários, em Porto Mendes, e o Bell, requisitado por eles em Puerto Adela. O deslocamento de toda a Divisão – 700 homens da Brigada São Paulo, 800 da Brigada Rio Grande, 600 animais de carga, sela e tração, todo o material bélico, inclusive uma bateria de artilharia – levou setenta e duas horas.

No dia 30 de abril, depois de marcharem 125 km, em território paraguaio, penetravam no estado de Mato Grosso pelos campos de Amambaí.

 

28. Epílogo

Iniciava assim, sob o comando do general Miguel Costa, a terceira fase da Revolução de 1924: a Grande Marcha de 25 mil quilômetros, através de dez estados brasileiros, ao longo de quase dois anos.

As forças revolucionárias não conseguiram reunir o apoio necessário para derrotar a oligarquia cafeeira. Esta, porém, também não teve força para impor-lhes uma derrota estratégica. 

Em 1927, candidato ao governo do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, realiza a proeza de unificar chimangos e maragatos. Aí começa a gestação da nova onda revolucionária, que, em meados de 1929, se materializaria no amplo leque de forças que se aglutinou em torno de sua candidatura à presidência da República. Nele estariam reunidos os revolucionários de 22 e 24 e alguns de seus mais duros oponentes, no passado. 

Isolada, a oligarquia paulista não hesita em apelar mais uma vez para a fraude eleitoral. A resposta será a Revolução de 3 de outubro de 1930.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído da Hora do Povo

Revolução de 1924 – São Paulo Cidade Aberta

 “Nunca vi morte tão de perto como na madrugada de hoje”

 

1.      Antecedentes

2.      Personagens

3.      1º  Plano Geral de Campanha

4.      2º  Plano Geral de Campanha

5.      São Paulo em 1924

6.      O Início do Levante

7.      Reação do General Abílio de Noronha

8.      A Disputa da Capital

9.      Miguel Costa Confronta Isidoro

10.  Acordo com a Associação Comercial e a Prefeitura

11.  Chuva de Bombas sobre São Paulo

12.  A Intensificação do Bombardeio

13.  A Morte de Joaquim Távora

14.  Batalhões Patrióticos

15.  Aviação Ataca São Paulo

16.  Condições de Paz

17.  Revoltosos Derrotam Tanques

18.  Mais Destruição

19.  Com o Dr. Carlos de Campos em Guaiaúna

20.  A Retirada Estratégica

21. Epílogo

 

1. Antecedentes

A marcha heróica dos 18 do Forte, arremetendo contra 4.000 mil soldados da força governista, encerrara a primeira Revolução Tenentistaocorrida nos estados do Rio de Janeiro e Mato Grosso, em 5 de julho de 1922.

Dois anos depois, mais experientes e mais fortalecidos, os tenentes voltariam à carga, retomando a ofensiva. Desta vez o centro do levante seria a cidade de São Paulo. A oligarquia cafeeira que assumira o controle da República, com Prudente de Moraes, em 1894, não teria mais condições de exercer tranquilamente o seu poder autocrático. Seguidamente contestada pelos movimentos cívico-militares, seria apeada do poder em 1930, levando de roldão o império da fraude eleitoral, do boicote à industrialização, da manutenção artificial dos lucros do café, da afrontosa submissão aos interesses do imperialismo inglês.

As articulações entre militares e civis, para a Revolução de 1924, começaram no primeiro semestre do ano anterior. Estimulados pela adesão do ex-presidente Nilo Peçanha, e empurrados pela perseguição do recém-empossado governo federal, os tenentes tecem as malhas de uma vasta conspiração, envolvendo principalmente os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, o Sul de Minas Gerais e o Rio de Janeiro.

Nos últimos meses de 1923, o capitão Joaquim Távora assume de forma incansável o comando das articulações. Estabelece contato com oficiais sediados no Sul, e percorre todas as unidades do interior de São Paulo, Mato Grosso e Rio de Janeiro.

Távora havia participado do levante de 1922, no estado do Mato Grosso. O tenente João Alberto, que o conhecera na prisão, onde conviveram de julho a dezembro daquele ano, assim o descreveu:

“Alto de porte, calva à mostra, juntava o vigor físico à bravura moral… Socialista ardoroso, explicava-nos os acontecimentos políticos à luz da economia. Já preparava, nessa época, a próxima revolução”.

         

2. Personagens

Em São Paulo, Joaquim Távora fora morar na casa do Tenente Custódio de Oliveira, do 2º Grupo Independente de Artilharia Pesada, de Quitaúna.

Transformada em autêntico quartel-general revolucionário, a residência da Rua Vauthier, número 27, sediava as reuniões dos líderes do levante. Frequentavam-na o major Miguel Costa, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar  – denominada, na época, Força Pública Paulista –, e diversos oficiais do Exército que serviam em unidades sediadas em São Paulo como o major Cabral Velho (fiscal do 6o Regimento de Infantaria, de Caçapava), o capitão Newton Estilac Leal (chefe de material bélico da 2ª Região Militar), os tenentes Asdrúbal Gwyer e Castro Afilhado – ambos do 4o Batalhão de Caçadores, situado no bairro de Santana.

Outro aparelho utilizado para discussões sobre os planos revolucionários era a residência dos tenentes Ricardo Holl e Vítor César da Cunha Cruz, na Travessa da Fábrica, número 6. A exemplo de Joaquim Távora, ambos haviam se transferido para São Paulo. Outros militares que também se encontravam fora da tropa, em virtude dos processos judiciais originados pelo levante de 1922, tomaram opção idêntica, visando fortalecer o comando revolucionário. Entre eles, figuram os tenentes Joaquim Nunes de Carvalho, Otávio Guimarães, Eduardo Gomes, Juarez Távora – irmão mais novo de Joaquim – e os ex-alunos da Escola Militar de Realengo, Emídio da Costa Miranda e Diogo Figueiredo Moreira Jr.

A escolha de um militar de alta patente, que assumisse publicamente o comando das operações no momento da deflagração do levante, era considerada pelos revolucionários um elemento estratégico indispensável ao êxito do movimento. Fixaram-se em Isidoro Dias Lopes, general do Exército, reformado, que mantinha conversações com o ex-presidente Nilo Peçanha, desde 1923.

 

3. 1º  Plano Geral de Campanha

O primeiro Plano Geral de Campanha, elaborado por Joaquim Távora, pretendia antecipar-se ao golpe preparado pelo governo federal contra J.J. Seabra, que procurava manter o controle sobre o governo da Bahia apoiando Raul de Leoni à sua sucessão. Seabra era o governador do estado – na época, o termo era presidente do estado. Fora candidato à vice-presidência da República, em 1922, na chapa encabeçada por Nilo Peçanha contra o candidato situacionista Artur Bernardes. A luta para impedir a vitória e, em seguida, a posse de Bernardes, resultado de um processo eleitoral estruturalmente fraudulento, fora o estopim da Revolução de 1922.

Segundo o plano, o movimento deveria ser deflagrado no dia 28 de março, com início simultâneo no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Sul de Minas, podendo, em seguida, receber o apoio de elementos das guarnições do Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás.  O núcleo principal era a cidade de São Paulo. As guarnições do Exército, circunvizinhas da capital, em ação conjugada com elementos da Polícia Militar, a tomariam, enquanto os corpos de tropa aquartelados no Vale do Paraíba, reforçados por elementos vindos do Sul de Minas, avançariam até Cruzeiro, abrindo as portas para a invasão do Rio de Janeiro. Às forças paulistas caberia também a missão de barrar, na costa Leste da Serra do Mar, a progressão das unidades contra-revolucionárias, partidas de Santos. A rebelião no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná visava, principalmente, impedir que o contingente situado em Porto Alegre marchasse contra São Paulo ou que o mesmo fosse feito por elementos desembarcados em Paranaguá e São Francisco.

O principal fator que bloqueou e adiou sine die a execução do projeto foi o que Juarez Távora denominou, diplomaticamente, de “resistência passiva de um dos conspiradores mais graduados e influentes entre as guarnições comprometidas”. Na verdade, a defecção do major Bertoldo Klinger

O mês de março, conta ainda Juarez, “findava, assim, com uma rajada de desalentos”. Klinger desertara, Seabra fora humilhado e forçado a abandonar o governo da Bahia, um dia antes de expirar seu mandato. Quase simultaneamente, se apagava do cenário nacional o vulto estimulador de Nilo Peçanha. Morto em 31 de março de 1924, Nilo foi enterrado levando sobre o seu coração um dos pedaços do pavilhão do Forte Copacabana, que o tenente Siqueira Campos havia dividido em 29 partes para que cada combatente pudesse tê-lo consigo no momento final da luta. Nilo não apoiara a insurreição de 1922, porém, logo no momento seguinte, desdobrou-se na defesa política e jurídica dos revoltosos, radicalizando paulatinamente suas posições.

 

4. 2º  Plano Geral de Campanha

Mas os reveses não desanimaram os tenentes. Joaquim Távora trabalha com energia redobrada. No início do mês de maio, já está pronto o novo plano para a deflagração do movimento revolucionário.

Ao invés do levante simultâneo de unidades militares em diversos estados, como projetado anteriormente, a ação deveria iniciar-se pela tomada da cidade de São Paulo. As demais guarnições do Estado incorporar-se-iam num segundo momento. As do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais só revelariam sua adesão à revolução na medida em que fossem enviadas para combatê-la.

A primeira parte do plano, execução do levante em São Paulo, foi preparada em dois tempos:

1º – assédio e assalto do bloco de quartéis policiais da Luz (1º, 2º e 4º Batalhão de Infantaria, Corpo Escola, Cadeia Pública e Regimento de Cavalaria – este previamente comprometido com a revolução). A ação seria executada pelo 4º Batalhão de Caçadores e pelo Regimento de Cavalaria, com apoio de fogo do 2º Grupo de Artilharia Pesada, de Quitaúna. Isso conseguido, ocupar-se-iam as estações ferroviárias, o telégrafo e a telefônica.

2º – o assalto dos demais bastiões da defesa governista, localizados em vários pontos da cidade – 3º e 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Secretaria de Justiça, Palácio do Estado e Quartel-General da Guarda Cívica. A ação seria realizada por patrulhas do 4º Regimento de Infantaria, transportadas de Quitaúna para São Paulo em automóveis.

A segunda parte do plano, defesa e ampliação das posições conquistadas, seria iniciada antes do amanhecer do dia 5 de julho. O capitão Joaquim Távora avançaria com 500 homens, pela Estrada de Ferro Central do Brasil, em direção a Barra do Piraí (RJ), incorporando durante a marcha os efetivos de  unidades do Exército já comprometidas com o movimento. Outro destacamento seguiria para Santos, através da São Paulo Railway, a fim de ocupar o Porto. Se a cidade não pudesse ser ocupada, os revolucionários abririam trincheiras na Serra do Mar, para barrar a progressão de tropas vindas do litoral contra São Paulo.

Esperava-se que uma vez ocupada a capital paulista, bloqueado um ataque governista mediante desembarque de tropas em Santos, e aberto o Vale do Paraíba à ofensiva das tropas revolucionárias sobre o Rio, seria quase certa a adesão das unidades do Exército enviadas de outras guarnições para combatê-las.

Concluído o plano, Joaquim Távora dirigiu-se ao Rio, para apresentá-lo ao general Isidoro. Este aceitou-o sem ressalvas. A data da deflagração do  movimento foi fixada inicialmente para o dia 28 de maio, depois 26 de junho e, finalmente, zero hora de 5 de julho de 1924.

 

5. São Paulo em 1924

Embora a escolha de São Paulo como centro do levante tenha se dado principalmente pela avaliação da correlação de forças no terreno militar, o ambiente de descontentamento que predominava entre os 700 mil habitantes da cidade não escapava à percepção dos revolucionários.

Três questões políticas galvanizavam as atenções, no primeiro semestre daquele ano. A truculência empregada por Washington Luís,  para fazer de Carlos de Campos seu sucessor no governo do estado. As greves operárias provocadas pela carestia, ocorrida em função da alta artificial dos preços do café. Os objetivos da Missão Inglesa que, antecipando as do FMI, promovia, com o beneplácito do governo, minuciosa inspeção na economia nacional.

A ação de Washington Luís forçando o PRP (Partido Republicano Paulista) a recuar da indicação da candidatura do senador Álvaro de Carvalho, primeiro para o governo e depois para o senado, provocara, em 22 de janeiro, o desligamento de Altino Arantes, governador no período 1916-1920,  e o surgimento do grupo dissidente denominado Os Coligados, do qual se aproxima Júlio de Mesquita, com seu jornal O Estado de São Paulo.

No final do mês de janeiro tem início também uma greve na maior indústria têxtil da cidade, o Cotonifício Rodolfo Crespi. Pressionados pela carestia, os trabalhadores reivindicam 40% de reajuste salarial. A paralisação se alastra por todo o setor, envolvendo 12.000 operários durante várias semanas. Violências, perseguições, prisões, deportações e um aumento de 10% são o resultado do movimento. Porém a discussão sobre as causas e soluções para o problema da carestia não cessam com o seu encerramento.

No dia 29 de junho, ultrapassando as piores expectativas dos que desde a sua chegada, em dezembro de 1923, denunciavam a humilhante ingerência, a Missão Inglesa publica um relatório no qual recomenda a privatização do Banco do Brasil, do Lloyd e da Estrada de Ferro Central do Brasil, ou seja, de todas as estatais dos anos 20. Para renegociar a dívida e conceder novos empréstimos, a missão cobrava também do governo um rígido arrocho fiscal e medidas que favorecessem o ingresso de capitais externos, considerados indispensáveis ao desenvolvimento do país – antigo filme que viria a ser reprisado inúmeras vezes, sempre apresentado como a última palavra em matéria de modernidade.

 

6. O Início do Levante

Um atraso de doze horas na chegada do general Isidoro impediu que a segunda parte do levante transcorresse conforme o plano estabelecido. Porém, a primeira – a mais importante –, embora só iniciada por volta das cinco horas da manhã, estava praticamente concluída, sem incidentes, em pouco mais de quarenta minutos, ao clarear do dia 5.

Isidoro havia se comprometido a chegar, em São Paulo, na manhã do dia 4. O local marcado para o encontro era a estação da Luz. No entanto, na última hora, decidiu saltar na estação do Brás, provocando os desencontros e atrasos que prejudicariam a execução das operações.

Só às três e meia da manhã, Joaquim Távora consegue chegar ao 4º Batalhão de Caçadores, de Santana, encontrando a tropa já rebelada pelo trabalho de persuasão realizado pelo capitão Newton Estilac e os tenentes Asdrúbal Gwyer e Castro Afilhado. Uma hora depois, armada e municiada, a força marchou reunida até a Ponte Pequena,  onde se separaram as diversas patrulhas de assalto aos quartéis da Luz. Às cinco horas da manhã completou-se o cerco dessas casernas. O Regimento de Cavalaria, comandado pelo major Miguel Costa, foi o primeiro a soar o toque de formatura, sinal de adesão à causa revolucionária.  Enquanto isso, Índio do Brasil e Castro Afilhado penetram no 4º Batalhão de Infantaria;  Estilac Leal e Thales Marcondes no 2º; Eduardo Gomes e João Batista Nitrini no 1º; Asdrúbal Gwyer e Arlindo de Oliveira no Corpo Escola. Sem que tenha sido preciso o disparo de um só tiro, a bandeira da revolução tremulava triunfante sobre o principal reduto governista.

No entanto, seis núcleos da defesa governamental – 3º e 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Guarda Cívica, Secretaria da Justiça e Palácio do Estado – não puderam ser atacados em virtude do desencontro entre as forças do tenente Juarez Távora e o tenente Custódio de Oliveira, o que retardou a tomada do 4º Regimento de Infantaria, de Quitaúna, base de onde partiriam tais ataques.

Assim, ao amanhecer os revolucionários ainda não haviam logrado apoderar-se da cidade. Mas seus efetivos contavam 1.500 homens, 100 automáticas, 2 milhões e 500 mil cartuchos e as baterias do Grupo de Artilharia Pesada de Quitaúna, ocupando posição no Campo de Marte. O efetivo do governo não chegava a 1.000 homens, sem artilharia e sem cavalaria.

 

7. Reação do General Abílio de Noronha

Alertado da eclosão do movimento pelo Capitão Grimualdo Fávila, o general Abílio de Noronha, comandante da 2ª Região Militar,  que passara a noite no Hotel Esplanada, participando dos festejos do Independence Day, promovidos pelo consulado norte-americano, dirigiu-se, na manhã do dia 5, ainda insone, ao recém-sublevado quartel do 4º Batalhão de Caçadores. Como os oficiais revolucionários haviam se deslocado para o Centro, não foi difícil ao general retomar o quartel. Com os elementos que lá encontrou organizou uma força e marchou rumo aos quartéis da Luz.

Chegando ao 4º Batalhão de Infantaria, cuja maior parte da tropa também já se encontrava em missões fora do quartel, tomou-o e reintegrou no comando os oficiais que haviam sido presos pelos revolucionários. Dali seguiu para o Corpo Escola, onde tentou fazer o mesmo, mas foi barrado pelo capitão Joaquim Távora que lhe deu voz de prisão. Houve troca de palavras ásperas que só cessou com a chegada providencial do general Isidoro e do coronel João Francisco, a cuja ordem de prisão acabaram se submetendo o general Abílio e os oficiais de seu séquito. Aí terminou a ação contra-revolucionária do comandante da 2ª Região Militar, mas não os seus efeitos.

Desconhecendo o que ocorrera no 4º Batalhão de Infantaria, para lá se dirige Joaquim Távora, seguido dos tenentes Juarez Távora, Castro Afilhado e do capitão Índio do Brasil. São presos e sumariamente condenados à morte por fuzilamento, pelo secretário de Justiça Bento Bueno. Mas acabam libertados na tarde do dia 10, após o abandono da cidade pelas tropas do governo. Na mesma ocasião foi libertada a aviadora Anésia Pinheiro Machado, também detida na unidade por haver lançado flores e panfletos sobre a cidade no início da rebelião.

Com a prisão de Joaquim Távora, a estratégica descida do Vale do Paraíba, em direção a Barra do Piraí, que deveria iniciar-se na manhã do dia 5, sob seu comando, foi sendo adiada e acabou suspensa. O prolongamento da luta pelo controle da capital provocaria outras alterações nos planos revolucionários.

 

8. A Disputa da Capital

Na noite de 5 de julho começa a definir-se a linha de contato das tropas adversárias. No Centro, as estações da Luz e Sorocabana, sob comando do tenente João Cabanas, da Polícia Militar; o hotel Terminus sob o comando de Estilac Leal; a estação do Brás sob o comando do tenente Arlindo de Oliveira; a da Cantareira comandada pelo tenente Eduardo Gomes; e, no flanco esquerdo, o 4º Batalhão de Caçadores, retomado pelo tenente Gwyer de Azevedo.

Os dias 6 e 7 são marcados por intensos combates. Forças federais penetram na cidade visando um contra-ataque. Três dessas unidades aderem à revolução: o 2º Grupo de Artilharia da Montanha, vindo de Jundiaí, o 6º Regimento de Infantaria, de Caçapava, sob o comando do major Cabral Velho, e uma companhia do 5º Regimento de Infantaria, de Lorena, sob o comando do tenente Azhaury de Sá Brito e Sousa. O efetivo que passa para o lado dos revoltosos, com essas adesões, é superior aos reforços governistas chegados de Santos e Pirassununga – 400 marinheiros, com uma seção de canhões Armstrong, 75; o 3º Grupo de Artilharia de Costa, com uma bateria Krupp, 75; e 200 homens do 2º Regimento de Cavalaria Divisionária. Essas forças realizam um bombardeio de pouca eficácia sobre o quartel-general das forças revolucionárias, instalado na região da Luz, e tentam um avanço ao longo do Tamanduateí. A ação é repelida. Seus executores são forçados a entrincheirar-se na usina da Light, da Rua Paula Sousa.

Os ataques dos revoltosos ao Palácio dos Campos Elísios, onde o governador Carlos de Campos mantinha a sede do governo, foram todos rechaçados, nos dias 5 e 6 de julho. Porém, durante a madrugada do dia 7, os rebeldes penetram silenciosamente nos palacetes abandonados pelos moradores, nas imediações do Palácio. A partir de posições bem protegidas, nos forros dos telhados, desatam intensa fuzilaria sobre as forças governistas. Pegas de surpresa, as tropas abandonam as barricadas em atropelo e são obrigadas a permanecer acuadas, dentro do prédio. O governador decide então transferir-se, sigilosamente, para a Secretaria da Justiça, no Largo do Tesouro. Mas o edifício, devido a sua posição elevada, se constituía num excelente alvo para a artilharia revolucionária que, mesmo sem conhecimento de tão ilustre presença, atacou-o com rara eficácia. Carlos de Campos, quase atingido pelas granadas, decide, então, retirar-se com seus auxiliares imediatos para a localidade de Mogi das Cruzes e dali para Guaiaúna – nas proximidades da estação de Vila Matilde, situada, na época, nos limites da capital. A fuga foi efetuada no dia 8 de julho. Os revolucionários, porém, só tomaram conhecimento do fato na manhã seguinte.

 

9. Miguel Costa Confronta Isidoro

A luta ininterrupta travada dia e noite dentro da capital paulista, desde o amanhecer de 5 de julho, se constitui num verdadeiro teste para os nervos dos dois adversários. Desconhecendo a fuga do governador, o general Isidoro, na noite do dia 8, comunica sua decisão de abandonar a cidade e concentrar as tropas revolucionárias em Jundiaí. Para lá deveriam marchar também o 4º Regimento de Artilharia da Montanha, de Itu, e o 5º Batalhão de Caçadores, guarnições que haviam aderido à revolução e estavam aquarteladas em Rio Claro.

O major Miguel Costa se insurge contra a decisão.  Não vê sentido numa retirada quando as possibilidades de vitória ainda eram promissoras. Não aceita que se deixe para trás, na prisão, sob ameaça de execução sumária, o principal organizador do movimento, o capitão Joaquim Távora. Considera que a retirada naquele momento seria um golpe fatal no moral das tropas e provocaria a desagregação das forças revolucionárias. Declara que as unidades da Polícia Militar, sob seu comando, não acatariam a ordem e prosseguiriam em suas posições, dentro da cidade. Isidoro retira-se do quartel-general abalado, mas mantendo a decisão de promover a retirada na manhã do dia seguinte.

Miguel Costa foi o primeiro a tomar conhecimento da fuga de Carlos de Campos e do consequente colapso das forças governistas, ocorrido na madrugada do dia 9. Prontamente pediu ao tenente Simas Enéas, assistente de Isidoro, que fosse procurá-lo para que se reconciliassem. A divergência estava superada. São Paulo fora conquistada.

 

10. Acordo com a Associação Comercial e a Prefeitura

Os dias 9 e 10 de julho transcorrem em relativa tranquilidade. As forças revolucionárias contêm rapidamente a onda de saques iniciada com a fuga das autoridades governamentais e realizam entendimentos com a Associação Comercial e a Prefeitura de São Paulo.

A Associação Comercial, presidida por José Carlos de Macedo Soares,  representava os grandes industriais e comerciantes paulistas.  No dia 7 de julho, havia publicado manifesto de apoio a Carlos de Campos, que conclui com as seguintes palavras:

“A Associação Comercial de São Paulo aconselha às classes conservadoras que acompanhem com a máxima simpatia e apoio a heróica resistência que vem desenvolvendo o governo do Estado. E se mantenham confiantes na ação resoluta do presidente Carlos de Campos”.

Mas, considerando a retirada do governador para Guaiaúna e a impossibilidade das empresas das ditas classes conservadoras seguirem o mesmo caminho, acharam estas prudente reconhecer a situação de fato, criada pela conquista revolucionária da cidade. As principais decisões que emergiram dessas conversações foram a manutenção do prefeito Firmino Pinto no cargo e a assinatura do Ato 2424, criando a Guarda Municipal – uma força desarmada, organizada pela Prefeitura, destacada para apoiar o policiamento da cidade.

Em boletim datado do dia 10, o doutor Firmino Pinto, prefeito da capital,  apresenta o seu ponto de vista sobre a questão:

“O prefeito de São Paulo, diante da situação de fato, de ter sido tomada a cidade pelas forças revolucionárias, foi pessoalmente à presença de seu chefe responsabilizá-lo pelo serviço de policiamento e abastecimento desta capital. Tendo o chefe dos revolucionários declarado que não embaraçaria a atuação da autoridade municipal, o prefeito continuará no seu posto a tomar as providências que se tornem necessárias”.

No mesmo dia, os jornais publicam com destaque o Comunicado dos Chefes do Movimento Revolucionário, sinal de que a imprensa também mudara o tom em relação ao levante.

 

11. Chuva de Bombas sobre São Paulo

Mas a paz terminaria no dia seguinte, 11 de julho, quando os 700.000 habitantes de São Paulo assistem estarrecidos o início do capítulo mais negro da história da cidade. Os bairros do Brás, Belenzinho,  Mooca e o Centro começavam a sofrer tremendo bombardeio. Seguidamente os obuses e granadas de vários calibres varavam casas pobres, matando, ferindo, destruindo, apavorando. Os moradores dessas zonas atingidas, acometidos de pânico, juntavam o que podiam e se retiravam sem rumo certo, invadindo outros bairros em busca de abrigo e socorro.

Francisca Spinelli, moradora de um dos bairros atingidos, em carta à amiga Leopoldina Ferreira, de Piracicaba, revela a angústia e a perplexidade da população frente à violência do choque:

“Nunca vi a morte tão de perto como na madrugada de hoje… As balas passam sobre as nossas cabeças assobiando terrivelmente. Espera-se a todo momento ser-se vítima de uma dessas monstruosas granadas. Já morreram diversas pessoas aqui na rua e aqui ficam, sem o auxílio de ninguém… Temos nos escondido no porão”…

A ação causa centenas de baixas civis e nenhuma baixa militar. Há uma multidão de feridos e desabrigados. A Associação Comercial lança um dramático apelo:

“O canhoneio de ontem, tendo alarmado a  população desta capital, determinou o êxodo dos moradores… fazendo com que dezenas de milhares de pessoas abandonassem seus lares… A Associação Comercial de São Paulo pede aos habitantes desta generosa cidade que recebam em suas casas, na medida de suas forças, as mulheres velhos e crianças desamparadas”.

O arcebispo Metropolitano D. Duarte Leopoldo da Silva mandou franquear igrejas, cedeu conventos, escolas, casas e paróquias, para a abertura de hospitais. No próprio dia 12, é criada uma comissão para pedir a intervenção do governo federal a fim de cessar o bombardeio. A comissão é composta pelo arcebispo D. Duarte; o prefeito Firmino Pinto; o presidente daLiga Nacionalista, Vergueiro Steidel; o diretor do jornal O Estado de São Paulo, Júlio Mesquita; e José Carlos de Macedo Soares. Prontamente  telegrafam ao Ilustre Presidente da República, dr. Artur Bernardes:

“Pedimos V. Excia. intervenção caridosa para fazer cessar bombardeio contra inerme cidade de São Paulo, uma vez que as forças revolucionárias se comprometem a não usar seus canhões em prejuízo da cidade. A comissão não tem intuito algum político,  mas exclusivamente a compaixão pela população paulista”.

A resposta vem assinada pelo ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho, diz:

“…não é possível assumir nenhum compromisso nesse sentido. Não podemos fazer a guerra tolhidos do dever de não nos servirmos da artilharia contra o inimigo… Os danos materiais podem ser facilmente reparados, mormente quando se trata de uma cidade servida pela fecunda atividade de um povo laborioso. Mas os prejuízos morais, esses não são suscetíveis de reparação”.

Carlos de Campos, em mensagem à Câmara de Deputados, é ainda mais explícito e enfático:

“Estou certo de que São Paulo prefere ver destruída sua formosa capital antes que destruída a legalidade no Brasil!”.

Na verdade, a oligarquia cafeeira, ao concluir que iria perder a sua capital para os revolucionários, decidiu sacrificá-la. Ao mesmo tempo em que comandou a retirada de Carlos de Campos, fez gestões junto ao governo federal para que o bombardeio fosse iniciado imediatamente. Washington Luís e o vice-governador, coronel Fernando Prestes, bancavam o jogo nos bastidores. Carlos de Campos, ex-líder do governo na Câmara Federal, havia sido o principal articulador da candidatura Bernardes. Washington Luís foi quem garantiu a sua posse na presidência da República, em 1922, quando o próprio Epitácio Pessoa pregava “a desistência do Bernardes” como “solução” para a crise. Este não se encontrava em condições de negar-lhes nada.

O bombardeio prossegue quase ininterruptamente, à razão de 130 disparos por hora. As descrições encontradas em relatos da época são  impressionantes:

“No Cemitério Municipal, onde centenas de pessoas vagam como zumbis a procura de desaparecidos, 64 corpos não identificados aguardam os coveiros, para serem enterrados em covas rasas. Cerca de 200 mortos anônimos se amontoam também numa baixada do Cemitério do Araxá a espera de sepultamento… Alguns corpos, há mais de 24 horas insepultos, são enterrados sem as formalidades legais até mesmo em terrenos descampados. Muitas famílias sepultam os seus mortos em quintais”.

Nova tentativa de suspender o bombardeio, feita no dia seguinte, 13 de julho, por uma delegação dos representantes diplomáticos sediados em São Paulo, também não obteve êxito. A noite é de grandes incêndios. Labaredas com mais de dez metros de altura devoram a fábrica de biscoitos Duchen, na Mooca. As chamas destroem também o Fórum Criminal, três casas na rua Tabatinguera, a companhia Duprat, os armazéns de Nazareth Teixeira e da Companhia de Comércio e Navegação. No dia 14 os bairros mais atingidos são Campos Elísios, Vila Buarque, Vila Mariana, Aclimação e Liberdade. No dia 15, o Teatro Olympia, na avenida Rangel Pestana, que servia de abrigo para dezenas de famílias que haviam perdido suas casas foi duramente atingido. As colunas, teto e paredes desabaram sobre seus ocupantes, em sua maioria, mulheres, velhos e crianças – 30 mortos e 80 feridos em estado grave.

O escritor e compositor Cornélio Pires, mestre da poesia caipira, registrou em sua Moda da Revolução o ambiente de desolação provocado pelo bombardeio da cidade:

Quando cheguei em São Paulo

O que cortou meu coração

Eu vi a bandeira de guerra

La na torre da estação

Encontrava gente morto

Por meio dos quarterão

Dava pena e dava dó

Ai, era só judiação

 

12. A Intensificação do Bombardeio

A situação era terrível, mas ainda iria piorar. Em 15 de julho, trazida do Rio de Janeiro, entra em ação uma arma mais mortífera: os canhões de 155 milímetros. Até então a cidade havia sido alvejada por baterias de 75 e 105 milímetros.

O capitão Correia Lima, comandante da 2ª Bateria, recebendo Carlos de Campos em visita às tropas estacionadas nas proximidades da estação de Vila Matilde, ordenou ao municiador que abrisse a culatra do canhão e lhe mostrasse uma granada. Isto feito, ponderou:

Excelência, essa granada tem um raio de ação de 600 metros. Isso quer dizer que duas pessoas, distantes 1200 metros,  uma da outra, poderiam ser mortas por estilhaços de uma única granada. Numa ocasião como esta, sobre São Paulo,  o melhor uso desta bateria é ficar silenciosa.

A resposta de Carlos de Campos:

Destrua-se São Paulo, mas fique impoluto o princípio da autoridade.

 Nos dias que se seguiram, aquelas baterias não cessaram de despejar sua carga arrasadora sobre a cidade.

O jornalista Paulo Duarte, testemunha ocular dos fatos, observa que“as granadas caíam a esmo”:

“O bombardeio durava dias e noites sem cessar; a Santa Casa se enchia de mulheres e crianças, os cemitérios pejavam-se de cadáveres e as fileiras revolucionárias não perdiam um só homem.

A conclusão que se impunha era estarrecedora, porém incontestável:

“… a artilharia governista atirava sobre a cidade em geral, sem ponto certo”.

O alvo era a própria cidade. A finíssima e liberalíssima oligarquia cafeeira paulista praticava, contra sua capital rebelada, o cruel,  desumano e covarde bombardeio terrificante – ação tipificada como crime de guerra, perante a Convenção de Haia de 1917.

 

13. A Morte de Joaquim Távora

Na noite do dia 14, um contingente governista, partindo do Ipiranga, consegue atravessar os bairros de Aclimação e Vila Mariana, em caminhões  e automóveis, e acaba por entrincheirar-se naquelas redondezas, retomando e ocupando o 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, na rua Vergueiro; os largos do Paraíso e da Guanabara; o convento Santo Agostinho; e, na Brigadeiro Luís Antônio, o convento Imaculada Conceição.

Desde o início do levante, as forças governistas não haviam conseguido qualquer penetração, digna de nota, nas defesas revolucionárias. Esta era a primeira vez que isso acontecia. Reverter a situação tornou-se, então, uma questão vital, a fim de que o precedente criado não minasse o moral das tropas.

O contra-ataque é comandado pelo capitão Joaquim Távora. Depois de intensos combates, na manhã do dia 16 os revoltosos já haviam retomado o controle da área. A bandeira revolucionária voltava a tremular no 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar. Porém, saiu-lhes cara a vitória. Com indignação contida, um relato da época conta como o capitão Joaquim Távora tombou na luta pela retomada do 5º Batalhão.

“Vendo que a resistência era inútil, os legalistas acenaram o lenço branco. Aproximou-se do quartel um pelotão de rebeldes comandados por Joaquim Távora. Os defensores da lei, com flagrante deslealdade, atiraram sobre aquele oficial, atingindo-o em cheio no peito. O capitão Távora dois dias depois, falecia no Hospital Militar”.

 

14. Batalhões Patrióticos

Ao mesmo tempo em que Joaquim Távora recebia no próprio peito a demonstração do tipo de “princípios morais” pelos quais a oligarquia revelava tamanho zelo, o comando revolucionário abre inscrições para o voluntariado e convoca a população.

O resultado entusiasma os tenentes. O jornal A Plebe, porta voz do movimento anarquista, divulga um manifesto de apoio aos revoltosos – Moção dos Militantes Operários ao Comitê das Forças Revolucionárias. Ainda que considerando imprecisos e limitados os objetivos do levante, os anarquistas não tinham como deixar de acompanhar a onda de adesão das classes populares, especialmente da classe operária, que só fazia aumentar a cada granada disparada contra a cidade.

Alguns comícios já haviam se realizado, a exemplo do ocorrido no Largo do Arouche, cuja convocatória é representativa do clima que tomava conta de São Paulo:

“… o comício será de protesto contra o bombardeio da cidade – atentado de inaudita ousadia, perpetrado por aqueles que se dizem defensores da ordem e da legalidade. Falará sobre o acontecimento o dr. Lindolfo Barbosa Lima, fazendo-se ouvir outros oradores”.

Com a abertura para o recrutamento de voluntários, o apoio da população expresso em manifestações e outros gestos de simpatia, como as refeições servidas aos combatentes nas trincheiras,  poderia expressar-se de forma superior.

Os voluntários foram organizados em Batalhões Patrióticos. A afluência de imigrantes veteranos da 1ª Guerra Mundial, muitos sem saber o português, foi grande, o que levou os revolucionários a criarem três batalhões estrangeiros, organizados de acordo com as afinidades de idioma.

O batalhão húngaro, instalado na rua Tiradentes, número 15, inicialmente se responsabilizou pelo policiamento da cidade. Dos 122 combatentes alistados, 13 eram oficiais com experiência em campos de batalha. No número 88 da avenida Liberdade, foi instalado o Batalhão Patriótico da Colônia Alemã, sob o comando de João Joaquim Tuchen. O batalhão italiano, composto basicamente de anarquistas, tem em Lamberti Sorrentino, redator do jornal Il Piccolo, um de seus principais líderes.

O processo de adesão popular cresceu ininterruptamente. Até a véspera da retirada, encontravam-se panfletos com este teor:

“Ao proletariado em geral! Convida-se o proletariado para uma reunião neste Sábado, 26 do corrente, a rua Wenceslau Brás, 19, às 14h, onde ficará definitivamente assentado o seu concurso moral e material em favor da Revolução que ora sacode este Estado ao caminho de um amanhã de mais liberdade, justiça e bem-estar para as classes oprimidas. (O Comitê Operário)”

O caipira retratado por Cornélio Pires, na Moda da Revolução, que inicialmente se mostra consternado, melancólico, com a destruição observada em sua chegada à cidade, já na quinta estrofe aparece mergulhado na luta, de armas e bagagens:

Nós tinha um 42

Que atirava noite e dia

Cada tiro que ele dava

Era mineiro que caía

E tinha um metralhador

Que encangaiava com pontaria

Os mineiro com os baiano

Ai, c`os paulista não podia

 

15. Condições de Paz

Desde o início dos bombardeios, os representantes dos industriais e comerciantes apelavam ao general Abílio de Noronha,  preso pelos revoltosos no primeiro dia do levante,  para que aceitasse a incumbência de negociar com o governo federal uma solução para o conflito. Noronha, que até a rebelião era o comandante da 2ª Região e tinha alto prestígio na cúpula militar, pede que os revolucionários formalizem em carta as suas condições. 

Em 17 de julho, o general Isidoro encaminha a carta estabelecendo a condição básica:

“Entrega imediata do governo da União a um Governo Provisório composto de nomes nacionais de reconhecida probidade e da confiança dos revolucionários. Exemplo: Dr. Wenceslau Brás”.

A carta afirma ainda que: o “Governo Provisório convocará uma Constituinte, quando julgar oportuno”. E reafirma o compromisso com o “voto secreto” e a “educação pública”, bandeiras que sintetizavam as mudanças mais urgentes pelas quais os revolucionários se batiam.

Alegando não poder dirigir-se ao presidente da República para solicitar a sua renúncia, o general Abílio de Noronha recua da atribuição,  mas a carta se transforma numa espécie de plataforma revolucionária. É impressa, distribuída aos jornais e à população, obtendo ampla repercussão.

 

16. Aviação Ataca São Paulo

A 22 de julho já era insuportável a atmosfera em São Paulo. O canhoneio sistemático espalhava pânico e desespero entre a população civil. Cerca de 15 mil pessoas deixavam a cidade diariamente. Mais de 150 mil já a haviam abandonado. Esse número chegaria a 300 mil, quase a metade da população de São Paulo, na época.

Naquele dia fora atingida mais uma das grandes fábricas paulistas, o Cotonifício Rodolfo Crespi, estabelecimento têxtil dos mais bem montados da América do Sul. O povo olhava angustiado os rolos de fumaça que enegreciam o céu. Chamas colossais podiam ser vistas a quilômetros de distância.

Os revolucionários respondem com ousadia, estreando seu trem blindado. Produzido nas oficinas da São Paulo Railway, o invento se constituía de uma locomotiva entre dois vagões de carga revestidos com paredes duplas de madeira recheadas de areia, para amortecer as balas e proteger os soldados em seu interior. O vagão da frente transportava um reforçado limpa-trilhos e uma metralhadora pesada, no teto, dentro de uma torre de ferro. A 60 quilômetros por hora, o trem partiu da Luz em direção a estação de Vila Matilde, onde surpreendeu as forças governistas com um ataque relâmpago e retirou-se ileso.

Às três horas da tarde, aviões se aproximam de São Paulo, voando a baixa altitude. A cidade sofre o seu primeiro ataque aéreo. Cinco bombas de 60 quilos explodem nas ruas, destruindo casas e edifícios.

 

17. Revoltosos Derrotam Tanques

Em 23 de julho, pela primeira vez tanques irrompem no Belenzinho, produzindo um princípio de pânico nas forças revolucionárias.

Equipados com canhões,  automáticas e blindagem de 22 milímetros, os Renault F-17 eram imunes ao fogo de fuzis e metralhadoras. Nem as tropas do Exército, nem as da Polícia Militar tinham experiência em combatê-los.

O comando revolucionário age com presteza e mobiliza os três batalhões estrangeiros contra os tanques. Para veteranos da 1ª Guerra Mundial, tanques não eram novidade. Depois de cavarem fossos de dois metros de profundidade, para barrar a progressão dos veículos, verificam que eles haviam avançado sem apoio de infantaria, erro que já custara muitas perdas nos campos europeus. Então os batalhões estrangeiros envolveram os blindados,  passando a atacá-los pela retaguarda. Alguns alemães chegaram a trepar nos tanques, com o intuito de abrir as escotilhas e matar seus ocupantes. Quase capturaram dois.

A ofensiva, que prometia mudar o curso da batalha em questão de horas, por pouco não se transformou num pesadelo para as forças governistas. Os tanques se retiraram rapidamente do teatro de operações e não mais voltaram a ser utilizados.

 

18. Mais Destruição

Na madrugada do mesmo dia, densas colunas de fumaça brotavam do depósito de inflamáveis Mercansul e da fábrica de bebidas Antártica.

Em função dos incêndios sucessivos, o comando revolucionário põe em liberdade todos os bombeiros dispostos a prestar serviços profissionais. O Quartel-General do Corpo de Bombeiros tinha sido um dos bastiões da defesa governista nos primeiros dias do levante. Muitos dos carros de bombeiros haviam sido levados pelas tropas legalistas para Guaiúna, em sua retirada. A fim de reavê-los, a Associação Comercial envia carta ao general Eduardo Sócrates, comandante das forças que efetuavam a operação de cerco e aniquilamento da cidade. O material nada tinha de bélico. Mesmo assim a espera pela resposta é longa e inútil. A destruição prossegue de forma sistemática.

O número de indústrias e estabelecimentos comerciais atingidos, entre os quais as Oficinas Duprat, Motores Morelli, S/A Scarpa, Matarazzo, Magasins Generaux, Reickman & Cia, Ernesto de Castro, Moinhos Gamba, ultrapassa a uma centena. Até o fim do conflito, a quantidade de prédios destruídos chegaria à casa de dois mil.

No dia 26, panfletos ameaçadores são lançados por aviões, trazem a assinatura do ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho:

“Faço à nobre população de São Paulo apelo para que abandone a cidade… É esta uma dura necessidade que urge aceitar como imperiosa… Espero que todos atendam a esse apelo para se pouparem aos efeitos das operações que dentro de poucos dias serão executadas”.

           

19. Com o Dr. Carlos de Campos em Guaiaúna

No dia seguinte, o jornalista Paulo Duarte parte para Guaiaúna levando cartas do presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares, para Carlos de Campos e o general Eduardo Sócrates:

“… o aniquilamento do poder industrial do Estado de São Paulo prossegue todos os dias, pelo efeito destruidor das granadas e pelas chamas devoradoras de pavorosos incêndios… O ânimo da fiel e leal população de São Paulo está abatido,  mas compara com azedume o tratamento generoso que tem recebido dos revolucionários com a desumanidade inútil de ininterrupto bombardeio”.

A carta solicita uma trégua de 48 horas, “para que o general Abílio de Noronha possa parlamentar ainda hoje com V. Excia”, uma vez que os revolucionários haviam se disposto negociar a paz em troca de uma anistia ampla aos participantes dos levantes de 1924 e 1922.

O próprio portador lavrou para a história, com indisfarçável ironia, o insólito encontro que manteve com o Dr. Carlos de Campos:

“Com toda a pachorra esperei que o sr. Governador do Estado engraxasse as botas, e, em sua companhia, dei entrada depois no carro da Central, ambulante quartel-general das forças legais, sede provisória do governo de São Paulo…

Confortavelmente instalado numa das macias poltronas do majestoso carro… disse qual era a minha missão e entreguei a carta que trouxera… Ao  meio da carta, já o amável governador não pode mais esconder sua irritação, dizendo:

– Isso não são palavras de amigo!

E ao fim da leitura:

– Absolutamente! Aos revoltosos nada! Nós iremos até o fim… Eles aguardem as consequências…

– Mas Dr Carlos de Campos (aventurei), se V.Excia conhecesse a atual situação da cidade…

– Não será pior que a minha aqui.

Tive a ousadia de lamber com um olhar tímido o ambiente confortável do carro salão…

– Vocês, (retrucou S. Excia, ainda agitado) parece que estão fazendo causa comum com os revoltosos… Em vista dos termos desta carta vou mandar aumentar os bombardeios. A granada será a resposta!”

 

20. A Retirada Estratégica

Às 22h do dia 28, surpreendendo as tropas governistas com uma manobra ousada e precisa, as forças revolucionárias empreendem uma retirada estratégica pelo eixo ferroviário São Paulo-Campinas-Bauru. São treze composições ferroviárias, com quatorze a dezesseis vagões, cada uma delas, conduzindo homens e material bélico. Toda a tropa, seis baterias de artilharia com seus acessórios e munição, duzentos cavalos, metralhadoras pesadas, equipamento de infantaria e cavalaria, viaturas, tudo foi embarcado com incrível rapidez, sem dar tempo ao inimigo de compreender o que estava acontecendo.

Os trens correram com um sincronismo tal que não houve o menor embaraço nas linhas dentro de um espaço de tempo de vinte e quatro horas.

No derradeiro manifesto dirigido à população da cidade, os revolucionários agradecem o apoio recebido:

“Assim, pois, no desejo de poupar São Paulo de uma destruição desoladora, grosseira e infame… vamos mudar a nossa frente de trabalho e a sede governamental.

Avante paulista, que a hora da liberdade se aproxima! Deus vos pague o conforto e o ânimo que nos transmitistes”.

Durante o dia 29 concentraram-se na cidade de Bauru. Somavam 3.500 homens, entre soldados do Exército, Polícia Militar e voluntários civis, que passaram a se organizar em três brigadas, um regimento de cavalaria e um regimento misto de artilharia. Posteriormente se dirigirão ao Paraná, onde mantêm a luta por vários meses, até que, em maio do ano seguinte, com as fileiras engrossadas por tropas gaúchas, levantadas em outubro pelo capitão Luís Carlos Prestes e os tenentes Siqueira Campos e João Alberto, iniciam a longa jornada de 25 mil quilômetros, através de dez estados, ao longo de dois anos, sem serem derrotados em nenhuma das batalhas travadas.

 

21. Epílogo

Nos dias em que São Paulo esteve sob direção das forças revolucionárias, as baixas militares provocadas pelos bombardeios foram irrelevantes. Porém as vítimas civis atingiram proporções trágicas. Dos 700 mil habitantes da capital, 300 mil a abandonaram, refugiando-se no interior. O relatório preliminar, apresentado pelo prefeito Firmino Pinto, registra 500 mortos, 5.000 feridos, 1.182 prédios destruídos, entre os quais 103 estabelecimentos comerciais e industriais. Porém considera parciais os dados levantados e estima que numa apuração completa os números obtidos seriam muito superiores. No caso das edificações atingidas, chega a admitir “mais de 1.800”:

“A Inspetoria Geral de Fiscalização procedeu a um penoso trabalho de exame… dos prédios danificados… e apurou devidamente verificados 1.182. Por inspeção posterior pode-se asseverar que esse número vai a mais de 1.800”.

No entanto, com a consolidação do controle da cidade pelas forças contra-revolucionárias, a apuração das baixas produzidas pelo bombardeio foi bloqueada e abandonada, confirmando o preceito de que o interesse dos criminosos é sempre o de ocultar a extensão de seus delitos. 

Dois anos e meio mais tarde, a oligarquia cafeeira paulista guindaria  Washington Luís à presidência da República. O coronel Fernando Prestes também não seria esquecido. Seu filho, Júlio Prestes, o Dr. Julinho, assumiria o governo do estado de São Paulo. Carlos de Campos deixaria a cena mais cedo, falecendo antes da conclusão do mandato, em abril de 1927.

Quando a Revolução de 30 os varreu do mapa, Julio Prestes, mercê da habitual fraude que marcava o processo eleitoral, estava a pique de suceder Washington Luís na presidência da República.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído da Hora do Povo

 

A Revolução de 1922 – OS 18 DO FORTE

“Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?”

 

1. Às Portas da Revolução

Domingo, 2 de julho de 1922. O decreto de fechamento do Clube Militar, anunciado pelo governo, é debatido em Assembleia dirigida pelo marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube. Presentes cerca de 600 oficiais, em clima de grande agitação. Contra o tenente Gwyer de Azevedo, que discursa na tribuna, disparam apartes o major Euclides Figueiredo, o coronel Tertuliano Potiguara, os generais Setembrino de Carvalho, Napoleão Felipe Aché, Carneiro de Fontoura, membros da cúpula militar comprometida com a velha ordem que começava a desmoronar. O relato do episódio, firmado pelo próprio tenente Gwyer de Azevedo, é representativo da tensão que marcava a época. Oito anos e três meses mais tarde, a oligarquia cafeeira seria derrubada do poder pela Revolução de 1930.

Tenente Gwyer: … Os jornais noticiam que o senhor Presidente da República …vai mandar seus agentes fecharem amanhã o Clube Militar, baseado numa lei proíbe as sociedades de anarquistas, de cáftens e de exploradores do lenocínio…

Major Euclides Figueiredo: O senhor Presidente da República tem toda a razão.

Tenente Gwyer: Vossa Excelência concorda que o presidente feche o Clube Militar baseado naquela lei?

Major Euclides Figueiredo: Concordo.

Tenente Gwyer: Então Vossa Excelência é cáften? É explorador do lenocínio?Queira desculpar porque, francamente, eu não sabia.

Marechal Hermes: O senhor tenente Gwyer precisa modificar a sua linguagem…

Tenente Gwyer: … O que revolta é oficiais emprestarem seus galões a um bandido, … deixando-o cavalgar livremente o Exército e fechar o Clube Militar de maneira infame, injuriosa e opressora.

Coronel Tertuliano Potiguara: Vossa Excelência se atreve a chamar o senhor presidente da República de bandido?

Tenente Gwyer: Ele não é somente bandido, é ladrão também, está provado…

Capitão Teopon Vasconcelos: Vossa Excelência é indigno de vestir a farda do Exército. Não agrida seus superiores!

Tenente Gwyer: Eu falei com o coronel Potiguara, e não com o seu ordenança…

Capitão Teopon Vasconcelos: Vou lhe mostrar quem é o ordenança, seu cachorro…

Marechal Hermes: Se os senhores oficiais continuarem nessa linguagem, serei obrigado a suspender a sessão. Todos nós somos do Exército, e o que está se passando aqui depõe contra nossa cultura e nossa educação. Continua com a palavra o Tenente Gwyer de Azevedo.

Tenente Gwyer: A observação do senhor presidente atinge aqueles que me obrigam a responder com violência aos apartes violentos e indelicados…

Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um cretino.

Tenente Gwyer: Cretino é Vossa Excelência. Não estamos no Contestado, onde Vossa Excelência mandava fuzilar a torto e a direito…

General Setembrino de Carvalho: Fosse eu presidente do Clube, esse oficial não continuaria a falar.

Tenente Gwyer: … Como poderia ser presidente deste Clube um oficial-general que na campanha do Contestado roubou da nação dois mil e seiscentos contos, assinando recibos fantásticos de víveres e deixando os soldados morrerem de fome?

Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um caluniador:

Tenente Gwyer: Vossa Excelência toma as dores porque mandou encher de palha os 15 vagões que deveriam levar roupas para os soldados no Contestado, remeteu 30 volumes de pedras no lugar de 30 volumes de granadas  … fluidificou 20 mil pares de botas de montaria que nunca foram vistas, em ponto algum do planeta, a não ser nas algibeiras de Vossa Excelência, vastas como o oceano…

General Napoleão Felipe: Torna-se necessária uma reação da nossa parte, porque esse oficial está nos enxovalhando.

Tenente Gwyer: Vossa  Excelência também tem rabo de palha..

General Napoleão Felipe: Aponte uma irregularidade minha.

Tenente Gwyer: Vossa  Excelência, na França, requisitou dinheiro do Tesouro Nacional para pagar dívidas contraídas em consequência de jogo e libertinagem… Isso está no relatório do embaixador do Brasil enviado ao Ministério do Exterior.

General Napoleão Felipe: Mas esse embaixador é um canalha…

Tenente Gwyer: Não sou o culpado. Entenda-se com o senhor embaixador.

Marechal Hermes: Não posso aceitar os termos em que o senhor está se expressando…

Tenente Gwyer: Senhor presidente… Estamos às portas da revolução!

 

2. A República do Café

Em 1894, com a ascensão de Prudente de Moraes à presidência, a oligarquia cafeeira paulista assumira o controle da República.

A produção do café viera se expandindo continuamente, desde 1830. A partir de 1870, com a marcha para o Oeste paulista e a introdução da mão de obra assalariada, esse crescimento foi fortemente acelerado. Porém, no final do século, grandes dificuldades despontaram no horizonte.

Em 1893, a saca de café no mercado internacional estava cotada a 4,90 libras. Em 1899, o preço caíra para 1,48 libras – uma queda de 70% em seis anos. Sob comando dos cafeicultores, a resposta do governo era a desvalorização cambial. A oligarquia cafeeira recebia menos libras por cada saca de café. Mas compensava a perda no momento em que trocava as libras valorizadas pelos mil-réis desvalorizados.

Do outro lado da moeda, o preço, em mil-réis, dos produtos importados se elevava. Como a oligarquia não queria nem ouvir falar em política de industrialização, o país seguia importando quase tudo o que consumia. Portanto, quem acabava pagando a conta da política de manutenção dos lucros do café através da desvalorização cambial era o povo, assolado por uma inclemente carestia.

Em 1901, a produção nacional de café atingiu 16,3 milhões de sacas, enquanto o consumo mundial era de apenas 15 milhões. O problema tornava-se mais grave.

Em 1906, uma nova política foi inaugurada, através do Convênio de Taubaté. O governo paulista – secundariamente os de Minas e Rio -, com o aval do governo federal, contrairia empréstimos junto aos bancos ingleses e norte-americanos para comprar e estocar café, de modo a que a oferta excessiva do produto não acarretasse a redução dos preços.

O resultado era previsível: estoques invendáveis se acumulariam e os bancos não abririam mão de receber seus empréstimos. Para atendê-los o governo acabaria promovendo a socialização dos prejuízos, drenando os recursos do conjunto da sociedade.

Batizada de política de valorização do café, esse expediente arquitetado para garantir lucros à oligarquia cafeeira e ao sistema financeiro internacional, às custas da expropriação de todos os demais setores da sociedade, perdurou até a Revolução de 1930, convivendo, inclusive, em vários períodos com a desvalorização cambial.

Tal situação se refletiria diretamente sobre o sistema político. Na impossibilidade de mantê-la através de regras minimamente democráticas, seus beneficiários transformaram o processo eleitoral num grosseiro cambalacho.

Além do voto a bico de pena – aberto e não secreto – que propiciava toda a sorte de pressões, intimidação e encabrestamento dos eleitores, o sistema de apuração alterava escandalosamente o veredicto das urnas.

A designação de todos os componentes das mesas eleitorais era de responsabilidade exclusiva dos presidentes das casa legislativas. Depois de colhidos e contados, os votos eram incinerados. Sobravam as atas, cuja validação e totalização também estavam sob estrito controle dos presidentes dos legislativos.

Quando isso não se mostrava suficiente para alijar os candidatos oposicionistas, as comissões de verificação de poderes das Assembleias Estaduais e da Câmara Federal, nomeadas pelo mesmo critério, se encarregavam da degola: termo pelo qual celebrizou-se o ato de transformar candidatos derrotados em vencedores e vice-versa.

Tal sistema eleitoral, fraudulento até a medula, garantia às elites estaduais o controle sobre sua província e à oligarquia paulista, coadjuvada pela mineira, o controle sobre a máquina federal.

Só uma única vez, em 1910, uma cisão entre paulistas e mineiros produziu a brecha que levou à presidência da República um candidato fora do eixo café-com-leite, o marechal Hermes da Fonseca.

 

3. As Eleições de 1922

A pressão que a oligarquia cafeeira mantinha sobre a sociedade acabaria explodindo nas eleições presidenciais de 1º de março de 1922. Os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia lançariam Nilo Peçanha, contra o candidato oficial Artur Bernardes – a quem a voz do povo, revelando notável antipatia, logo carimbaria com os apelidos de Seu Mé e Rolinha.

O Clube Militar, presidido pelo marechal Hermes, coloca-se frontalmente contra a candidatura situacionista. Empurrado para um papel cada vez mais subalterno, desprestigiado pelos baixos soldos, mas cioso do papel preponderante que desempenhara na Abolição e na constituição da República, o Exército via com olhos cada vez mais críticos o rumo tomado pelo país.

A gota d’ água viria no dia 9 de outubro de 1921. O jornal carioca Correio da Manhã publica em primeira página uma carta de Bernardes dirigida a seu principal colaborador, o senador Raul Soares, lavrada nos seguintes termos:

“Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados, e de tudo que nessa orgia se passou… esse canalha precisa de uma  reprimenda para entrar na disciplina. Veja se o Epitácio mostra agora sua apregoada energia, punindo severamente esses ousados… A situação não admite contemporizações; os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões”.

Os protestos de Bernardes quanto à falsidade do documento não encontraram eco na oficialidade. Uma longa, desgastante e acirrada polêmica sobre a autenticidade da carta arrastou-se durante meses. A ideia que ficou pode ser resumida numa afirmação que revela o grau de radicalização atingido pelo confronto:

Se não escreveu, foi o que disse. E se não disse, é o que pensa.

Nos últimos dias de dezembro, o General Ximeno de Villeroy, depois de condenar com veemência a “desbragada delapidação dos cofres públicos” e a “onda de lama que ameaça submergir a República” lança um dramático apelo:

“Republicanos! Até quando sofreremos tanta ignomínia e abjeção? Uni-vos que é chegada a hora de fazermos justiça implacável! Discípulos de Benjamin Constant! Soldados de Floriano e Deodoro, que vos importam os insultos de um politiqueiro de baixa estofa?”

A campanha da Reação Republicava, nome pelo qual a chapa oposicionista evocava o compromisso com a causa pública contra o processo de privatização do Estado promovido pela oligarquia cafeeira, empolga as ruas. Era absolutamente nítido o contraste entre a vibração produzida pelas duas campanhas. No carnaval, cantada e tocada até a exaustão, apesar de proibida pela polícia, a marchinha de Freire Júnior e Careca, Ai Seu Mé, renovava as esperanças:

 Ai, Seu Mé!

Ai, Seu Mé!

Lá no Palácio das Águias, olé!

Não hás de pôr o pé!

               

4. Tribunal de Honra

Encerrada a votação, Nilo Peçanha começa a articular, com o apoio do Clube Militar, a criação de um Tribunal de Honra, para garantir a “apuração isenta” do pleito. Em favor da tese, é invocado o exemplo norte-americano das eleições presidenciais de 1876. 

Ao substituir a comissão de verificação de poderes do Congresso, o Tribunal de Honra poria em cheque o principal trunfo da oligarquia para produzir a vitória de seu candidato: a fraude.

A proposta ganha força na sociedade. Os pronunciamentos militares se sucedem. O presidente Epitácio Pessoa tenta contê-los através de atos administrativos, transferências, punições, o que só faz elevar a temperatura.

A oficialidade jovem revela-se cada vez menos disposta a aceitar que as eleições terminem num novo cambalacho. Os tenentes sonhavam com um Brasil livre dos grilhões da monocultura cafeeira, renovado pelo voto secreto, educação pública, industrialização, moralidade administrativa, erradicação da miséria. A fraude eleitoral significava o contrário. Uma ideia vai ganhando força nos quartéis: Tribunal de Honra ou Revolução!

No mês de abril, são presos quatro aviadores navais, sob a acusação de planejarem o bombardeio do trem presidencial, que transportaria Epitácio Pessoa em sua viagem de Petrópolis para o Rio de Janeiro, no dia 28.

Na noite de 1º de maio, o presidente realiza uma reunião de emergência, no Palácio do Catete, com os mentores da candidatura oficial, para avaliar a conveniência de, como resposta ao Tribunal de Honra, promover uma reforma no regimento do Congresso, para que a comissão de verificação de poderes ganhasse o caráter de comissão de arbitragem constituída por três representantes de cada candidato. Seria uma proposta de acordo, que contava com o apoio de Nilo Peçanha.

Os ministros da Guerra e da Marinha alertam para o estado agudo e explosivo da crise militar e consideram o acordo uma boa saída.

O senador Raul Soares – já eleito para substituir Bernardes no governo mineiro – contesta a ideia. Argumenta que tal comissão, por ser paritária, terminaria seu trabalho num impasse, não reconhecendo nenhum dos dois candidatos, o que acarretaria a anulação do pleito.

A bem da verdade, a renúncia dos candidatos e a convocação de uma nova eleição não estavam fora das cogitações de Epitácio. Em carta a Bernardes, Raul Soares relata o diálogo que manteve com o presidente:

–  O Artur Bernardes – é a minha convicção – não se aguentará 24 horas no Catete… É possível que aqui ainda obtenha certo apoio da guarnição, porque está organizada com o máximo de cuidado… Mas e os estados? As deposição de governadores partidários de Bernardes se sucederão. Não ficará um só governo de pé e o Bernardes não terá forças para restabelecer a ordem. Teremos, pois, a revolução, a anarquia e o mais que se pode prever.

– De acordo com a sua exposição só há uma solução: a desistência do Artur…

– Exatamente, a desistência de Bernades seria a solução.

O senador paulista Álvaro de Carvalho, que havia apoiado a tese do entendimento, comunica, no encerramento da reunião, o recado que Washington Luís lhe transmitira através de uma ligação telefônica: São Paulo não aceita nem reforma, nem renúncia, nem qualquer alteração das regras eleitorais. O pronunciamento do governador reafirmava os termos da nota do Partido Republicano Paulista, porta voz da oligarquia cafeeira, contra as tentativas de apaziguamento realizadas antes da eleição: 

“São Paulo, como sempre, assumiu atitude definida e definitiva”.

O assunto estava encerrado. No dia 7 de junho, o Congresso proclamaria a vitória de Bernardes. Porém, até a posse, em 15 de novembro, muita água ainda haveria de rolar por baixo e por cima da ponte.

 

5. O Plano Revolucionário

Fechadas as portas à saída política, a solução revolucionária passa ao centro da cena. O plano que vai sendo arquitetado tem por objetivo estratégico a obtenção do controle sobre 1ª Divisão de Infantaria, sediada na Vila Militar, para, com base nela, organizar uma coluna revolucionária que marchasse até o Catete e depusesse o governo.

Os revoltosos acreditavam que com apoio no 1º Regimento de Infantaria e em unidades situadas nas proximidades – Escola Militar de Realengo, Batalhão Ferroviário, Batalhão de Engenharia, Escola de Aviação – seria possível forçar o 2º Regimento de Infantaria e demais corpos da 1ª Divisão de Infantaria a se integrarem ao movimento.

Obtido esse resultado, o marechal Hermes, escoltado por um piquete do 15º Regimento de Cavalaria, assumiria o comando da coluna que iniciaria o seu deslocamento pelo eixo ferroviário da Central do Brasil. Na região do Méier, previa-se um confronto com as tropas da Marinha, do 1º Regimento de Cavalaria Divisionária, da 3ª Companhia de Metralhadoras Pesadas e do 3º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar.

A vanguarda revolucionária suportaria o choque, enquanto a retaguarda, tomando o rumo de Jacarepaguá, se deslocaria pela estrada do Pica-Pau, em direção à Tijuca, visando a Zona Sul, por onde avançaria sob a cobertura dos canhões do Forte Copacabana e da Fortaleza de Santa Cruz, também previamente sublevados, para alcançar o Palácio das Águias, bairro do Catete, sede do governo federal.

Hermes da Fonseca Filho, biógrafo do marechal, apresenta a seguinte avaliação:

“Esse plano não deixava de ser bem estruturado, pois enquanto o combate no Méier empolgasse as atenções do governo, levando-o a concentrar ali todos os reforços, o ataque revolucionário diversionista pelo lado Tijuca-Copacabana-Gávea desenvolver-se-ia a toque de caixa”.

O plano previa também a sublevação da guarnição federal de Mato Grosso, chefiada por seu comandante, o general Clodoaldo da Fonseca.

 

6. O Fechamento do Clube Militar 

Durante o mês de junho, a tensão política se eleva. O governador de Pernambuco protesta contra a intervenção de Epitácio Pessoa nas eleições daquele estado. O presidente alega inocência. O incidente, porém, desencadeia uma escalada que culmina no levante de 5 de Julho.

Uma concorrida Assembleia do Clube Militar, realizada no dia 28 de junho, aprova por aclamação o telegrama do marechal Hermes ao coronel Jaime Pessoa, comandante militar de Recife, recriminando a intervenção do Exército nos incidentes contra o governo estadual, provocados pelos Pessoa de Queirós, sobrinhos de Epitácio. Os jornais de Recife estampam o texto do documento. A violência em curso já havia provocado a morte do dentista Tomás Coelho, com um inconfundível tiro de fuzil mauser que convulsionara o estado.

Diz o telegrama:

“O Clube Militar está contristado pela situação angustiosa em que se encontra o Estado de Pernambuco, narrada por fontes insuspeitas que dão ao nosso glorioso Exército a odiosa posição de algoz do povo Pernambucano. Venho fraternalmente lembrar-vos que mediteis nos termos dos artigos 6º e 14º da Constituição, para isentardes o vosso nome e o da nobre classe à que pertencemos da maldição de nossos patrícios… Não esqueçais que as situações políticas passam e o Exército fica”.

Em sua resposta, o coronel Pessoa, também parente de Epitácio, comete a imprevidência de sublinhar que estava agindo por ordens superiores – “outro não é nem será meu intuito que obediência à lei e autoridades constituídas”. A indiscrição expõe e deixa furioso o presidente da República.

No dia seguinte, o coronel é forçado a pedir demissão do comando da 6ª Região Militar. Epitácio incumbe também o ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, de interpelar o marechal Hermes sobre a autoria do telegrama que considera desrespeitoso à sua autoridade.

Em 1º de julho, o marechal e a diretoria do Clube Militar reafirmam sua responsabilidade sobre o telegrama. O governo anuncia, então, duas decisões explosivas. O fechamento do Clube Militar por seis meses, baseado na Lei Adolfo Gordo, que autorizava a interdição – a bem da moral pública – de casas de tavolagem e lenocínio, antros de vigaristas e rufiões, sociedades de cáftens e anarquistas. A outra seria uma medida disciplinar, sob a forma de repreensão, contra o marechal Hermes, que repele pronta e energicamente a punição dirigindo-se à Epitácio nos seguintes termos:

“Considerando que a minha alta patente e a condição de chefe do Exército nacional me conferem tacitamente o direito de aconselhar e encaminhar na senda honrosa, sempre trilhada pelas forças armadas, àqueles oficiais que porventura possam ser mal orientados… declaro à vossa excelência que não posso aceitar a injusta e ilegal pena que me foi imposta”..

No dia 2 de julho, Hermes preside a tormentosa Assembleia do Clube Militar, na qual o tenente Gwyer lança a dramática advertência: “estamos às portas da revolução”. Naquele momento, mais que desejo ou vaticínio, essa era a constatação de um fato.

 

7. Preparativos Finais

Condenando o decreto de suspensão do Clube e a repreensão ao marechal Hermes, o Correio da Manhã publica um editorial incendiário, no dia 3 de julho, onde  afirma:

“Afinal o crime do marechal Hermes e do Clube Militar foi o de terem em documento público aconselhado o respeito a Constituição… Não é preciso mais nada para saber que entramos num estado revolucionário da pior espécie, aquele em que é o agente da ordem que o provoca e entretém. O fechamento do Clube Militar toma o caráter de uma medida em que só se vê o fel que amarga as resoluções de pura vingança”..

O ultraje aos militares e oposicionistas em geral não ficaria sem resposta.

No bairro do Leme, o general Joaquim Inácio em reunião com cem revolucionários, civis e militares de todas as armas, que vinham há meses preparando o levante, fixa o seu início para uma hora da madrugada do dia 5. 

Um dos presentes à reunião era o tenente Antônio de Siqueira Campos, brilhante oficial do Forte Copacabana. Nascido numa fazenda de café, em Rio Claro, interior de São Paulo, leitor assíduo de textos sobre a história do Brasil e a revolução mexicana de Villa e Zapata, ocorrida na década anterior, Siqueira, com 24 anos de idade, seria o protagonista da epopeia que o transformaria no grande baluarte do Movimento Tenentista.

Das seis fortalezas que guarnecem a baía da Guanabara, Copacabana (1ª Bateria Isolada de Artilharia de Costa) era a mais moderna. Com suas cúpulas protegendo gigantescos canhões de 305 milímetros, o Forte Copacabana era o que dispunha de maior poder de fogo. Sua guarnição estava sob o comando do capitão Euclides Hermes, filho do marechal Hermes.

Os revolucionários contavam também como certa a adesão da Fortaleza de Santa Cruz (2º Regimento de Artilharia). As demais – Vigia, Laje, São João e Pico – dependeriam da evolução dos fatos. Mas Copacabana e Santa Cruz, pela localização e potência de fogo, eram as principais unidades de artilharia da Capital da Federal.

A 3 de julho, o Forte acelera os preparativos para a revolução. A despensa é abastecida com víveres para um mês; barricadas com centenas de sacos de areia são erguidas em pontos estratégicos; a guarda é reforçada. Siqueira Campos minara diversas áreas do terreno, desde o portão da guarda até o farol. Concentra-se, agora, em recuperar o holofote da unidade.

 

8. A Prisão do Marechal Hermes

Às 23h, por ordem do Presidente da República, o marechal Hermes é preso e recolhido ao 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. A afronta viria colocar mais lenha na fogueira, e sua libertação, ao meio-dia do dia 4, não detém a marcha dos acontecimentos.

A truculência empregada pela oligarquia cafeeira para sufocar o questionamento à fraude eleitoral que patrocinara voltava-se contra ela.

O líder das bancada fluminense, senador Irineu Machado, pronuncia inflamado discurso que conclui dizendo:

“Espero dos acontecimentos e da história os grandes dias em que arrancaremos desse pântano mefítico a nossa nacionalidade. Será essa, ainda uma vez, a obra  grandiosa do Exército”.

Também o líder da bancada gaúcha na Câmara Federal, deputado Otávio Rocha, não poupa adjetivos para incentivar a resposta revolucionária que está prestes a ser desencadeada:

“De joelhos, nunca. De pé e de frente eu encaro o ditador…  fiquem para todo e sempre malditos os que… tiveram a ilusão de que os césares eram eternos e o poderio da Terra o supremo bem”..

A única pessoa a quem foi permitido visitar o Marechal Hermes, durante a sua estada de dezessete horas na prisão, foi o ex-presidente Nilo Peçanha. A conversa foi reservada e não há relato sobre o que foi discutido. Porém o marechal Hermes não deixou o 3º Regimento de Infantaria com a mesma firmeza de propósitos que havia demonstrado até antão. Talvez porque Nilo de alguma forma o tenha feito entender que tanto ele quanto o governador Borges de Medeiros, que até então vinham apoiando seus pronunciamentos, consideravam inoportuno o recurso à insurreição naquele momento.

Borges formalizaria essa posição em manifesto publicado no dia 7, no jornal gaúcho A Federação:

“Nada mais absurdo nem mais condenável do que corrigir uma violência com outra violência”…

Declarando-se “solidário com os vencidos”, Nilo Peçanha empregaria seus últimos vinte meses de vida na defesa dos tenentes rebelados, e em conversações que conduziriam à eclosão de novo levante, na cidade de São Paulo, dando início à Revolução de 1924.

                 

9. O Forte Está Pronto

À noite, cerca de duzentos oficiais, praças e voluntários civis começam a cruzar os portões do Forte, para reforçar a sua guarnição. Às 22h toda uma bateria do Forte do Vigia, situado na outra extremidade da praia de Copacabana, bairro do Leme, integra-se nesse esforço. São 54 homens comandados pelo tenente Fernando Bruce.

Às 23h30 o general Bonifácio Gomes, comandante do 1º Distrito de Artilharia de Costa, chega ao Forte com ordem expressa de destituir o capitão Euclides Hermes do comando da unidade. Vem acompanhado do capitão José da Silva Barbosa, a quem pretende investir na função. Ambos são presos.

Uma companhia do 3º Regimento de Infantaria, que havia sido deslocada para apoiar a missão do general, é intimada a recuar. O tenente Mário Carpenter, que integra a companhia, confraterniza com os revoltosos e também adere ao levante.

À 1h15 de 5 de julho, um disparo para o céu anunciava o compromisso do Forte Copacabana com a revolução. Conforme o combinado, as outras fortalezas deveriam confirmar o apoio disparando também os seus canhões. A resposta é o silêncio.

Mas o Forte não se deixa impressionar. Seus canhões alvejam a desabitada ilha de Cotunduba. Depois começam os tiros para valer: os dois primeiros, dirigidos ao 3º Regimento de Infantaria e ao Forte do Vigia.

 

10. O Levante da Escola Militar

Às 23h do dia 4 teve início o levante da Escola Militar de Realengo. Por iniciativa do corpo de oficiais instrutores, composto por diversos protagonistas das futuras rebeliões tenentistas, entre os quais os tenentes Victor César da Cunha Cruz, Ricardo Hall, Caio de Albuquerque Lima, Edmundo Macedo Soares e Juarez Távora, cerca de 600 cadetes de várias armas entram em forma e começam a ser armados e municiados.

Patrulhas foram destacadas para vigiar a residência de oficiais sabidamente contrários ao movimento.

Foram detidos o comandante da Escola, general Monteiro de Barros, e um cadete que se recusou a participar do levante.

À meia-noite, sob o comando do coronel Xavier de Brito, diretor da Fábrica de Cartuchos de Realengo e veterano da campanha de Canudos, a Escola deslocou-se pela estrada São Pedro de Alcântara em direção à Vila Militar – a 10 quilômetros de distância. Antes de alcançar a parada de Magalhães Bastos,  um elemento de ligação trouxe a informação de que toda a tropa aquartelada na Vila estava de prontidão, e sob o completo controle dos oficiais governistas.

Cinquenta anos mais tarde, Juarez Távora descreveria o episódio, com as seguintes palavras:

“Soube-se mais tarde que apenas alguns elementos de uma Companhia do 1ºRegimento de Infantaria haviam sido sublevados por um dos seus oficiais,o tenente Frederico Cristiano Buiz….

Diante dessa grave situação, o comando da Escola deslocou a marcha da Coluna para ocupar posição no morro da Caixa d’Água, com bom domínio sobre toda a Vila  Militar… Ao clarear do dia 5, o comando da Escola determinou o disparo de alguns tiros de shranpnel da artilharia, sobre os quartéis da Vila… A reação não demorou… Por volta das 9h, a situação estava claramente definida; toda a tropa da Vila se movimentava contra a Escola. Entre os elementos desta já havia um morto – o cadete Fedorval Xavier Leal – e um outro ferido… Seria insensato e desumano prosseguir naquele duelo desigual… A retirada foi feita em ordem”.

                       

11. Malogra a insurreição

Na Vila Militar estava aquartelado o 1º Regimento de Infantaria, principal corpo de tropa a partir do qual os revolucionários pretendiam irradiar o levante às demais unidades da 1ª Divisão de Infantaria.

O comandante do regimento era o coronel Nestor Sezefredo Passos, oficial governista que, às 22h15 do dia 4, recebeu ordens para prender diversos oficiais que haviam tomado o trem na Estação Central com destino à Vila Militar. O coronel Sezefredo incumbiu o tenente-coronel Álvaro Mariante de organizar patrulhas para aprisionar os insurretos, antes que esses sublevassem o regimento.

Assim, quando desembarcaram na Vila Militar, foram presos o capitão Agenor Aguiar, os tenentes Aníbal Duarte, Leônidas Hermes da Fonseca e outros três revoltosos. Também num alojamento da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, conhecida como Baiúca, as patrulhas do tenente-coronel Mariante detiveram vários oficiais. Desse modo, mais de uma centena de revolucionários foi sendo detida, desarticulando o levante.

O tenente João Alberto Lins e Barros, que poucos anos mais tarde se converteria num destacado expoente do Movimento Tenentista, integrava, na época, o 1º Regimento de Artilharia Montada, sediado na Vila Militar. Eis o testemunho que apresenta sobre o seu malogrado batismo de fogo:

“No dia 4 de julho, durante a noite, todos nós, revolucionários, estávamos a postos para erguer a tropa ao primeiro sinal… Éramos poucos, dentro de um regimento considerado legalista e precisávamos de um apoio vindo de fora do quartel para fazer o levante… fomos presos com a impressão de que o movimento abortara. Só depois de transferidos de unidade, quando nada mais podíamos fazer, soubemos que a Escola  Militar e o Forte Copacabana estavam revoltados”.

À meia-noite, no cassino do 1º Regimento de Infantaria, estavam reunidos vários grupos de oficiais. Entre eles encontrava-se o 2º tenente Frederico Cristiano Buiz. Pouco antes da 1h, Buiz dirigiu-se à sua companhia, armou os praças e formou dois pelotões. O  primeiro recebeu a missão de guarnecer a frente do quartel. Com o outro sob seu comando, retornou ao cassino. O objetivo era prender o coronel Sezefredo e os oficiais governistas que ali se encontravam.

O cassino foi cercado. Irrompendo pela porta, pistola à mão, seguido por praças de armas embaladas, Buiz surpreendeu os oficiais, mas não conseguiu dominar a situação. Após um cerrado tiroteio, no qual foi mortalmente atingido o capitão José Barbosa Monteiro, Buiz acabou dominado. Falhara o levante do 1º Regimento de Infantaria.

Nas demais unidades o quadro não era alentador. O capitão Luís Gonzaga Borges conseguiu sublevar a Companhia de Pontoneiros do 1º Batalhão de Engenharia, mas não logrou assumir o controle da unidade. O tenente Luís Carlos Prestes, outro futuro vulto da história nacional, responsável pela rebelião no 1º Batalhão Ferroviário, contraíra tifo, no dia 13 de junho, ficando fora de combate. Na Escola de Aviação Militar, quando os pilotos e observadores se dirigiam para o campo, a fim de experimentar os motores das aeronaves, um batalhão governista ocupou os hangares, neutralizando a rebelião. Também na Escola de Sargentos de Infantaria, Fortaleza de Santa Cruz e 15º Regimento de Cavalaria, unidades cuja adesão era esperada, os oficiais revoltosos retraíram-se frente aos reveses iniciais.

Às 6h do dia 5, o marechal Hermes da Fonseca e o general Joaquim Inácio são presos num sítio, onde aguardavam contato com os comandantes das unidades rebeladas. O sítio de propriedade de um dos quatro filhos do marechal, o deputado Mário Hermes, ficava próximo à Vila Militar, nas imediações da estação ferroviária cujo nome lhe rendia homenagem – Marechal Hermes.

A Escola Militar ainda sustentava um desigual duelo de artilharia com as forças da Vila. Às 9h empreenderia a retirada, seguida da rendição ao meio-dia. Só no Forte Copacabana a bandeira da revolução seguia desfraldada.

A guarnição militar do Mato Grosso havia cumprido o compromisso de sublevar-se, concentrando em Três Lagoas, na fronteira paulista, a Divisão Provisória Libertadora, formada a partir das diversas unidades rebeladas. No entanto, surpreendida pela evolução desfavorável dos acontecimentos no Rio de Janeiro, permaneceu estacionada até a deposição das armas, em 13 de julho

 

12. Falam os Canhões

Na manhã do dia 5 os disparos do Forte continuam a atingir pontos da cidade, com uma precisão que alarmou as autoridades e assombrou os membros da Missão Militar Francesa.

Durante a fase de organização do levante, Siqueira Campos e outros oficiais do Copacabana haviam preparado cuidadosamente novas tabelas para o tiro de canhões, com redução de carga, para modificar a trajetória dos projéteis, encurtando seu raio de ação. Os cálculos foram revisados por um antigo professor de balística da Escola Militar. Com isso os canhões do Forte tornaram-se aptos a atingir alvos da cidade considerados invulneráveis.

Às 9h, o general Carneiro de Fontoura, chefe da 1ª Região Militar, nomeia o coronel Nepomuceno da Costa comandante das Forças de Assalto ao Forte Copacabana, e encaminha uma intimação à sua guarnição.

A resposta foi um disparo sobre o quartel-general situado no edifício do Ministério da Guerra, na praça Duque de Caxias. O tiro não foi preciso, atingiu os fundos do prédio da Light and Power e a casa número 216 da rua Barão de São Félix.

O ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, tomou então a iniciativa de telefonar para o Forte, a fim de protestar contra o bombardeio. Calógeras não era militar. Não percebeu que sua reclamação indicava com precisão a localização do alvo atingido. Com a informação prestada pelo ministro, os revolucionários prontamente refizeram os cálculos, ajustaram a pontaria e realizaram novo disparo. O impacto do obus destruiu parte da ala esquerda do Palácio da Guerra. Em seguida, mais dois tiros explodiram no pátio interno do prédio, onde tropas do Exército e da Marinha estavam estacionadas, espalhando morte e destruição. Rapidamente o quartel-general foi transferido para o Corpo de Bombeiros, do outro lado do Campo de Santana,  e,  em seguida,  para o quartel-auxiliar do Largo de Humaitá.

 

13. O Forte esta isolado

Às 4h da madrugada do dia 6, o capitão Euclides Hermes reúne todos os oficiais que participam da defesa do Forte e expõe claramente a situação vivida. O levante da Vila falhara. A Escola Militar tinha deposto as armas. O mesmo ocorrera com o 15º de Cavalaria. A fortaleza de Santa Cruz não havia aderido. O marechal Hermes e o general Joaquim Inácio estavam presos. O Forte Copacabana era a única unidade que se mantinha rebelada. Estava completamente isolado. Poderia resistir por mais tempo, em virtude de seu imenso poder de fogo, mas as chances de vitória eram inteiramente nulas.

O capitão prosseguiu declarando que, em vista da precariedade da situação, não se considerava no direito de sacrificar seus companheiros. Facultava, portanto, a cada um, a opção pela resistência ou pela retirada.

Desse modo, dos 301 homens que iniciaram a insurreição do Forte Copacabana, restaram apenas 29 – cinco oficiais, dois sargentos, um cabo, dezesseis praças e cinco voluntários civis. Os demais deixaram as armas e se retiraram.

 

14. Contra-Ataque Mortífero

Pouco tempo depois, a Marinha inicia uma ofensiva contra o Forte.

Os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, escoltados pelo destróier Paraná, cruzaram a barra. Os revolucionários são atacados pelo fogo dos canhões de 305 milímetros do São Paulo. O impacto das granadas chega a estremecer o solo. Ao organizarem o contra-ataque, os 29 defensores constatam que o motor que movimenta seus canhões de 305 milímetros está inutilizado. Então, manobrando a braço os canhões de 190 milímetros, a guarnição responde ao fogo.

O São Paulo é atingido. O tiro disparado pelo tenente Siqueira Campos explodira na torre de comando. A esquadra recua para uma distância segura, e não volta a entrar em ação. O Forte faz novos disparos contra a Ilha das Cobras, o Forte do Vigia, o Palácio do Catete.

 

15. A Prisão do Capitão Euclides

 

Sensível às 72 toneladas de granadas de artilharia que abarrotavam os paióis da fortaleza, o ministro da Guerra propõe uma conversação de paz, aceita pelos insurretos.

O major Egídio Moreira de Castro e o tenente-aviador Pacheco Chaves são enviados pelo governo. No momento em que o tenente Newton Prado cruza o portão para recebê-los, dois hidroaviões da Marinha sobrevoam o forte, bombardeando-o. A missão de paz degenera em conflito verbal e físico entre os embaixadores.

Indignado, o capitão Euclides Hermes toma o telefone e protesta. Calógeras desculpa-se, argumenta que foi um engano: a Marinha não fora devidamente informada sobre a trégua. Lembrando as relações cordiais que mantinham até o início do levante, propõe um encontro pessoal entre ambos. A oferta é aceita pelos revolucionários.

Depois de passar o comando do Forte ao tenente Siqueira Campos, o capitão Euclides, a bordo do táxi 231, transpõe as linhas governistas sem ser molestado. Chegando à residência de seu pai, em Botafogo, telefona a Calógeras, que pede para aguardá-lo. Mas quem comparece é o capitão Marcolino Fagundes que lhe dá voz de prisão e o conduz ao Palácio do Catete. Lá, visivelmente embaraçado, Calógeras explica que: por decisão posterior do Presidente da República era forçado a prendê-lo, devendo também o Forte render-se incondicionalmente.

Às 12h30, o capitão Euclides, por telefone, comunica a Siqueira Campos o resultado da missão de paz:

Estou preso, Siqueira. Eles traíram a palavra de honra dada… Eles querem que os oficiais se rendam, que deixem o forte, marchando desarmados,  um a  um, até se entregarem às tropas legais.

As mais próximas se encontravam na Praça Serzedelo Correia, a mais de    um quilômetro de distância. A oligarquia cafeeira pretendia liquidar a fatura com uma lição exemplar e definitiva. Em troca de suas vidas, à guarnição rebelada não bastaria render-se. A humilhação era o preço a ser pago por haverem levado a luta até aquele ponto.

           

16. A Decisão que Mudou a História

Na sala de comando reúnem-se os quatro últimos oficiais que se mantinham em armas pela revolução. Todos eram tenentes. Nenhum tinha mais de 25 anos. Dois eram membros da guarnição original do Forte Copacabana: Siqueira Campos e Newton Prado. Outros dois haviam se juntado a ela no momento da sublevação: Mário Carpenter e Eduardo Gomes. Reinava uma paz temporária, pois o dispositivo legal recebera ordens de aguardar a rendição.

A decisão que sai da reunião é ousada, surpreendente, e muda o rumo da história, transformando a derrota do levante numa esmagadora vitória moral dos revolucionários.

Ao invés de rendição, a resolução é a de marcharem contra a tropa governamental, armados de fuzis e revólveres. Se fossem atacados, reagiriam. Se não, a parada seria no Palácio do Catete. O ânimo retorna e os preparativos são realizados em ritmo febril.

Siqueira pede ao sergipano Manoel Ananias dos Santos, o soldado 108, e ao praça José Olympio, que desçam a bandeira do Forte. Dividiu-a em 29 pedaços, dando um a cada revolucionário presente – cujos nomes foram gravados a prego e bala numa das paredes internas da fortaleza. O último guardou-o consigo, para o capitão Euclides. Todos se municiaram, enchendo os bolsos com cartuchos. Ninguém deixou de levar menos de 200 tiros. Os oficiais barbearam-se, ajustaram seus uniformes, e desfizeram-se das insígnias do grau militar. Naquele momento, eram todos soldados.

Às 13h30, antes de transpor as barricadas, Siqueira fala aos companheiros:

Eles têm que atirar primeiro… Não se dá nenhum tiro antes… Deixa eu conversar com quem chegar primeiro… Agora, se derem um tiro na gente, não precisam esperar ordem de fogo

           

17. Arrancada Final

Marcharam pela rua e a calçada que margeia a praia de Copacabana. A avenida Atlântica, na época, tinha poucas construções, mas não estava deserta.  No caminho falavam aos moradores sobre seus motivos. Lenços brancos eram acenados das janelas. De longe, oficiais e praças do 3º Regimento de Infantaria lhes gritavam que se rendessem. Foram assim até o hotel Londres, onde pararam para beber água. Já haviam percorrido mais de um quilômetro.

Ao reiniciar a marcha, Siqueira verifica que alguns haviam desistido. Mas isso já não tinha importância.

Antes de atingirem a rua Barroso, o jovem engenheiro gaúcho Otávio Correia se aproximou do grupo. Dirigindo-se a Siqueira, a quem conhecera na casa da escritora Rosalina Coelho Lisboa, falou:

Vou com vocês Antônio, preciso de uma arma…

Newton Prado entregou-lhe o fuzil que trazia e sacou a parabellum, que passou a empunhar na mão direita.

Ao chegarem na esquina da rua Barroso, hoje Siqueira Campos, uma surpresa. O tenente Segadas Viana, comandante de um dos três pelotões da 6ª Companhia do 3º Regimento de Infantaria, surge diante deles.

A 6ª Companhia, estacionada na praça Serzedelo Correia, havia recebido ordens de preparar-se para deter a marcha dos revolucionários, enquanto se providenciavam mais reforços. Seu comandante, o capitão Pedro Crisol Fernandes Brasil, dispôs então um pelotão na rua Barroso, comandado pelo tenente Segadas; outro na rua seguinte, Hilário de Gouveia, chefiado pelo tenente Miquelina; e o terceiro manteve na praça, sob comando do tenente Sawen.

Algum tempo depois, o tenente Segadas recebeu ordem de descer pela rua Barroso, em direção à praia, para observar a progressão dos reforços. Tendo atrás de si, a uns 30 metros, seu pelotão, logo que chegou na esquina deparou-se com os insurretos. Ao verem o tenente legalista, três soldados  tentaram dominá-lo. Ele sacou a arma, mas o tenente revolucionário Mário Carpenter, seu colega no 3º Regimento, ordenou aos praças que se detivessem. Enquanto isso, os 40 membros do pelotão apontavam suas armas contra os revoltosos e vice-versa.

Nessas circunstâncias iniciou-se um diálogo. Siqueira e Carpenter exortavam Segadas a acompanhá-los e este procurava fazer com que se rendessem. Esgotados os argumentos, o destacamento revolucionário retomou a marcha, mas, vindo da Hilário de Gouveia, surge o capitão Brasil que acaba dando a ordem de “fogo” ao pelotão do tenente Segadas. Um soldado obedeceu e disparou. A bala matou pelas costas o soldado Pedro Ferreira de Melo. Siqueira virou-se e devolveu o tiro. O combate começou.

 

18. Combate na Praia

Depois de sustentarem o tiroteio por alguns minutos em pé, na rua, os revolucionários pularam para a areia e se entrincheiraram por trás do paredão da calçada da avenida Atlântica. A esta altura, eram 15. Ali iriam se manter por mais de uma hora enfrentando o fogo combinado do Exército, da Polícia Militar e do Batalhão Naval.

Os pelotões do tenente Segadas e Miquelina, da 6ª Companhia, sofrem imediatamente várias baixas, inclusive seis mortes.

As forças legalistas acorrem em massa à praça Serzedelo Correia, em socorro aos pelotões do 3º Regimento de Infantaria. Até mesmo a tropa de guarda do Palácio do Catete foi deslocada para essa finalidade. Ao todo, 4.000 homens foram mobilizados contra os 18 do Forte.

Embora a desproporção entre as forças fosse esmagadora, o paredão representava excepcional proteção aos revolucionários. E a motivação com que pelejavam dava às suas ações a objetividade que faltava às forças governistas.

O voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior, que sobreviveu ao combate, relatou:

“O tiroteio foi renhido, mas atirávamos com calma e precisamente… as forças do governo avançavam lentamente”.

O primeiro revolucionário atingido pela fuzilaria foi Eduardo Gomes, o único que não sofreu um ferimento mortal. Teve o fêmur partido por uma bala, mas seguiu combatendo. Depois tombou o gaúcho Otávio Correia, com um tiro no coração.

Considerando a dificuldade de sufocar os revoltosos, foi cogitada a carga de baionetas. Os oficiais, no entanto, recusaram-se a empregá-la contra aqueles que, mesmo na condição de inimigos, lutavam tão corajosamente. Que se rendessem ou fossem mortos a tiros, nunca estripados.

A luta prosseguiu, até que a munição dos rebeldes se esgotou. Já havia caído o sargento José Pinto de Oliveira, com uma bala na fronte. O tenente Mário Carpenter, atingido no tórax, mergulhara na inconsciência. Estavam feridos também os praças Hildebrando da Silva Nunes e Manoel Antônio dos Reis – corneteiro, cujos toques de clarim vibravam duros golpes no moral das tropas governistas.

Siqueira Campos – com um ferimento na mão esquerda – e o tenente Newton Prado – baleado no abdome e na perna – ainda guardavam a última bala em seus revólveres. Aos demais combatentes já não restava nenhuma.

 

19. Retirada dos Praças

O tenente Siqueira Campos ordena, então, aos praças e voluntários civis, que que cada qual tome um rumo, mas não se deixem prender.

Dois conseguem fazê-lo com êxito.

O soldado 108, Manoel Ananias dos Santos, respirou fundo, saltou para cima do paredão e desviando-se das balas atravessou a avenida em busca de abrigo. “Os legalistas deram uma rajada contra mim, mas não acertaram”, conta ele, quarenta e dois anos mais tarde ao jornalista Glauco Carneiro, da revista O Cruzeiro. “Consegui alcançar e pular o  muro de uma casa… havia no  jardim uma corda estendida com vários calções de banho.” Disfarçado de banhista, ele conseguiu atravessar o túnel, por volta das 16h30, chegando em seguida à residência de um sargento, na rua Mena Barreto, Botafogo.

O voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior escapou pelo mar:

“Esgotada a minha munição, ordenou o tenente Siqueira Campos que eu me retirasse… Atirei o meu fuzil ao mar e logo adiante nadei até um lugar abrigado, onde alguns operários humanitários me vestiram à paisana”.

Preso, ao tentar romper o cerco, o soldado João Anastácio Falcão de Melo fez um significativo relato do acontecimento:

“Quando não tinha mais munição fui avançado, com um bruto ferimento na perna, mas com um punhal na mão. Me pegaram logo adiante e um oficial legalista me chamou de bandido. Aquilo moeu-me a alma. Lutara de peito descoberto contra gente armada em número muito superior e aquele homem a chamar-me de bandido! Depois, sendo da Paraíba, de uma terra em que  o  inimigo é seguro pelo nariz e degolado a frio, eu nunca tinha matado ninguém até aquele dia”.

O inquérito policial registra também as prisões dos soldados Francisco Ribeiro de Freitas, Benedito José do Nascimento, Heitor Ventura da Silva e do civil Lourival Moreira da Silva. Em seus depoimentos eles admitem que estavam na praia no momento dos combates, porém negam terem feito uso das armas que portavam.

 

20. A Última Bala

Como os revolucionários não respondiam mais aos disparos, o capitão Brasil e o tenente Segadas Viana suspenderam o fogo e iniciaram um avanço lento e cuidadoso em sua direção. Já tinham caminhado cerca de vinte metros quando, repentinamente, um contingente de 100 homens do 3º Batalhão de Infantaria da Policia Militar, sob o comando do coronel Tertuliano Potiguara, sai da rua Barroso, em veículos de transporte apelidados de viuvinhas. Em alta velocidade, chegam ao local onde se encontram Siqueira Campos e seus companheiros.

Calar baioneta! Avançar! Foi a ordem de Potiguara.

Debaixo de uma gritaria infernal os atacantes se precipitam contra uma fortaleza sem muralhas guarnecida por mortos e feridos. Mas a surpresa ainda os espera.

A última bala do tenente Newton Prado é certeira, derrubando para sempre o atacante mais afoito. Siqueira aguarda até o último instante para disparar a sua, atingindo na boca o sargento Lindolfo Garcia Godinho que lhe enterrara a baioneta no fígado.

Levantem os vivos! Os vivos levantem! – uivam os comandados de Potiguara, tomados de histérico frenesi.

Não há quem os possa atender.

Junto ao corpo inerte do tenente Mário Carpenter jaz o seu quinhão da bandeira do Forte. Nele está escrito:

“Forte Copacabana – 6 de julho de 1922

Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia…minha vida”.

 

21. Epílogo

O jornal Gazeta de Notícias foi o primeiro a dar a notícia de que o número de heróis que participaram da saga foi de 18. Não seria a primeira nem a última vez em que o rigor histórico haveria de ceder lugar à lenda. Cantado em verso e  prosa, o feito dos 18 do Forte incendiou corações e mentes e ganhou a força do mito.

Apesar de mortalmente ferido, Siqueira Campos sobreviveu. Em breve estaria comprovando que não fora precipitado o juízo expresso pelo escritor Coelho Neto, no artigo Arrancada Radiante. Mesmo opondo-se aos objetivos do levante, ele conclui:

“Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?”

A oligarquia cafeeira perdera as condições de exercer tranqüilamente o seu poder autocrático. Mais radicais e mais amplas, novas revoluções se sucederiam até a sua derrocada em 1930.

 

Sérgio Rubens de Araújo Torres

Texto extraído da Hora do Povo

Creative Commons advoga cultura do autor sem direitos

O deputado Paulo Teixeira (PT/SP) acaba de ser guindado ao posto de líder do PT na Câmara dos Deputados. Precisa dar-se conta de que, quando se chega a um posto tão importante, é preciso manter os olhos bem abertos. Vai aparecer muita casca de banana no caminho do nobre parlamentar. Causas que, abaixo de uma fina – e falsa – embalagem libertária, escondem interesses tão escusos quanto poderosos. Preste atenção, deputado, pois o senhor já deu a primeira escorregada.

Trata-se do episódio recente em que a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, retirou do site do MinC a acintosa propaganda de uma ONG norte-americana abertamente financiada pelos monopólios da indústria da internet (Google, Yahoo!, Facebook, entre outros) e por fundações para lá de suspeitas (Ford, Rockefeller, Soros, etc.). Um ato de soberania e de respeito às leis do país.

Mas eis que o deputado deu uma entrevista à Agência Carta Maior questionando a atitude da ministra. Vamos rapidamente esclarecê-lo, pois não pega bem o líder do partido da presidenta afirmar coisas que não têm a mínima sintonia com a realidade.

Comecemos pela afirmação de que “A licença Creative Commons está dentro de uma política de governo”, que abre a entrevista. Não, deputado, felizmente não está. Aliás, se os ditames de uma ONG suspeita fossem inseridos em políticas de governo, não passaríamos de uma república de bananas. E muito menos tem respaldo na política do Itamaraty, que foi conduzida nos últimos oito anos por dois profundos conhecedores das questões culturais: o ministro Celso Amorim e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Pelo contrário, longe de criticar a Lei Brasileira de Direitos Autorais, nossa política externa, entre outras coisas, foi defensora intransigente da Convenção da Diversidade Cultural da UNESCO, que tem como um de seus pilares principais a proteção à criatividade dos povos e à figura dos criadores.

Em segundo lugar é importante salientar que embolar software livre com Direito Autoral e com Lei de Patentes apenas gera uma grande confusão que só beneficia os tipos que financiam ONG’s como a CC. A decisão do governo brasileiro em apostar no software livre é correta. Ao invés de depender de alguns grandes oligopólios estrangeiros, investe-se em formar profissionais brasileiros, criar tecnologia nacional. Em lugar de gastar milhões de dólares anualmente em licenças de enlatados gringos, investir no desenvolvimento, por parte do próprio governo, de programas de computador que atendam mais adequadamente as nossas necessidades. Até aí tudo bem.

Mas o deputado deveria dar-se conta de que a Lei que rege a “proteção de propriedade intelectual de programa de computador” é uma, a dos Direitos Autorais é outra. Ou seja, a Lei brasileira reconhece que o tipo de conhecimento plasmado em um programa de computador e a criação artística são coisas absolutamente distintas. É por isso que existe uma Lei do Software e outra de Direitos Autorais. No primeiro caso justamente o que some é a figura do criador – da mesma maneira que no caso das patentes, também citado pelo deputado. Tanto nos softwares quanto nos medicamentos quem detém direitos não são os autores, mas os encomendantes. Pouco interessa se trezentos técnicos estiveram envolvidos na criação do último produto da Microsoft ou da Apple: os donos do produto serão o Bill Gates e o Steve Jobs. Não importa se milhares de cientistas foram os responsáveis pelo desenvolvimento de um novo medicamento: a patente será do laboratório. Já no campo dos direitos autorais a conversa é outra: independente de produtores, o criador é quem deterá os direitos. Investir no Software Livre significa retirar receita de monopólios como a Microsoft e a IBM. Atentar contra os Direitos Autorais é retirar dos autores a justa remuneração por seu trabalho e permitir que gigantes como a Google, o Facebook, a Telefónica, o YouTube, entre outros, ganhem fortunas com o tráfego de conteúdo que não lhes pertence a custo zero.

Promover tal confusão só faz bem aos patrões do Sr. Lessig. É uma visão que rebaixa o artista criador. Será que o deputado precisa de um singelo exemplo para entender? Vamos lá. O pacote para escritório da Microsoft lançado em 2007 – menos de quatro anos atrás, portanto – custava uma boa grana. Com todas as suas proteções, bloqueios e patentes, batia na casa dos R$ 1.200,00. Foram milhões de dólares gastos em seu desenvolvimento, centenas de técnicos trabalhando. Hoje não vale nada. Nem sequer é comercializado. O Copyright ainda existe, mas ninguém dá bola para ele, nem a própria companhia detentora. Existe, é claro, uma nova versão, custando cerca de R$ 1.400,00. Já “Garota de Ipanema” foi composta em 1962. Trabalharam nela apenas duas pessoas, e o investimento foi zero (salvo, talvez, o custo de algumas doses de “cão engarrafado”). Quase cinquenta anos depois continua sendo uma das músicas mais tocadas do mundo, tem centenas de novas gravações a cada ano: artisticamente, não perdeu nada de seu valor em cinco décadas. Financeiramente, ganhou.

Tentar fazer com que as duas coisas se equivalham interessa a quem? Única e exclusivamente a quem não consegue enxergar Garota de Ipanema como uma obra de arte, como fruto da mais elevada forma de expressão humana. Só a quem quer transformá-la em uma mercadoria, quer considerá-la como bytes a serem transmitidos em alguma rede privada. A legislação brasileira – como a da maioria dos países – reconhece cada obra como singular, como “extensão da personalidade de seu autor”, para usar os termos da UNESCO. E é por isso que as licenças de uso são dadas caso a caso e exclusivamente pelo autor ou por quem ele determinar como procurador. Entre a propriedade industrial do Windows, a patente do Viagra e o Direito Autoral de Tom Jobim e Vinícius de Moraes não há nada em comum, a não ser a entrevista do deputado e os argumentos de alguns desqualificados.

E não adianta vir com a falsa argumentação de que a Lei brasileira criminaliza quem baixa uma música ou a copia para seu aparelho de MP3, ou ainda quem copia trechos de um livro para uso próprio. Sendo advogado, o deputado deveria ler a Lei, especialmente em seu Título VII – “Das Sanções às Violações ao Direito Autoral”. Verá, sem dificuldade, que há uma série de penalidades cabíveis a quem violar os Direitos Autorais na execução pública e com o intuito de lucro. Nem uma linha ou referência à punição de fãs que, domesticamente, copiam obras, ou a estudantes dedicados. Não bastasse isso, o Capítulo IV da Lei exclui da cobrança de direitos autorais as cópias em um só exemplar e para uso próprio e o uso de obras “no recesso familiar”. Para completar, o deputado poderia consultar a jurisprudência: não existe na história dos tribunais brasileiros um só caso de processo e muito menos de condenação por cópia privada. Se for um pouquinho mais curioso verá a profusão de empresas que ganham dinheiro transmitindo conteúdo alheio sem remunerá-lo entre os patrocinadores da ONG do Sr. Lessing. Empresas, aliás, que pelo volume de recursos que aportam ao CC tem inclusive o direito de indicar os membros da diretoria…

Aliás, para esclarecer o congressista em definitivo, precisamos dizer que a livre circulação de conteúdo na internet é possível sem alteração da lei e sem prejuízo dos autores. E que a “flexibilização à tucana” dos Direitos Autorais não significará maior acesso ao conhecimento. O deputado deve saber que para ouvir rádio ou para assistir à televisão ninguém paga Direitos Autorais. O responsável pelo pagamento (ainda que muitos dêem calote) é quem transmite. O consumidor final não paga nada. E assim deve ser também na internet. Dois terços do conteúdo “grátis” – e sem remuneração aos autores – disponível na internet (o que corresponde a 75% dos downloads) são colocados no ar por 100 usuários. Ou seja, 100 empresas que, através da cobrança de assinaturas ou da venda de publicidade vendem o que é dos outros e embolsam todo o lucro. O espírito de “livre circulação da cultura” na internet é uma falácia. Salvo raras exceções o que existe é um negócio – espúrio – que rouba o patrimônio dos autores para vendê-lo a terceiros. Por isso deve ser estabelecida no Brasil não a liberação dos direitos, mas a taxação dos provedores de acesso e conteúdo.

Mas é importante dizer que, por si só, a liberação das músicas mediante remuneração não garante a plena circulação de nossa cultura. Voltemos ao exemplo das rádios. Mesmo tendo o direito de – assumido o compromisso de remuneração – tocar qualquer uma das 1,75 milhões de obras registradas no ECAD, só tocam meia-dúzia. Ou, mais exatamente, cerca de 200 por mês. E qual o motivo? Pela criminosa associação entre os monopólios da indústria cultural e os radioteledifusores. Compram escancaradamente o espaço nas rádios e TV’s e colocam lá apenas o que lhes interessa. É por isso que o deputado Paulo Teixeira deveria dedicar seu precioso tempo a pensar no que é possível fazer para regular o monopólio das comunicações, ao invés de fazer-lhe o favor de atacar os Direitos Autorais.

Restam ainda algumas outras escorregadas do deputado em sua curta entrevista. Alega ele que o governo poderia, a partir da mudança da Lei, “contratar autores para produzirem obras didáticas e colocá-las à disposição de todos os professores brasileiros e da população em geral”. Poderia não, deputado, pode. Se o MEC não faz isso hoje em dia o senhor deveria perguntar ao ministro Haddad a razão. Não há nenhum impeditivo legal. Provavelmente os autores ficariam mais satisfeitos do que estão hoje, quando vivem submetidos ao tacão da Editora Abril, maior vendedora de livros didáticos do país. Aliás, fale com seu colega de Congresso, o senador Requião. Ele fez isso quando era governador do Paraná e não infringiu nenhuma lei.

Tampouco faz algum sentido dizer que o Estado está “atirando no próprio pé”, pois coloca dinheiro público em obras protegidas. O deputado deveria descobrir quanto de dinheiro público foi investido para que Vinícius de Moraes compusesse sua obra. Ou em Tom Jobim? Quais recursos públicos alavancaram a produção teatral de Plínio Marcos? Que verbas do MinC transformaram João Cabral em poeta? Nem um só centavo. Ou que artista enriqueceu graças aos incentivos públicos. Isso é papo de quem acha que a cultura profissional deve ser entregue ao mercado e que só amadores merecem o subsídio público.

Finalmente, comentemos a última das estultices repetidas à exaustão por alguns inimigos da cultura nacional e reproduzida pelo deputado: o papel do ECAD. Há tempos que o nome do escritório vem sendo transformado em palavrão. Qualquer notícia desfavorável é transformada em escândalo pela mídia – que não se conforma em ter de pagar o ECAD. E qualquer notícia favorável também é motivo de escarcéu. Ou seja, donos de meios de comunicação – principalmente rádios e TV’s – gostariam de não pagar pelo uso de músicas e fazem sistemática campanha contra o órgão encarregado pelos autores de fazer a cobrança. Mas vamos às afirmações do nobre congressista.

Em primeiro lugar ele considera que o ECAD é uma “instituição pública não estatal”. Não discutiremos aqui este conceito mais do que reacionário de “público não estatal”. Já foi diversas vezes espinafrado e desmascarado aqui no HP. Mas o fato é que o ECAD é uma instituição privada, assim definida por lei e estatuto. As relações por ele regidas – empresas majoritariamente privadas usuárias de obras produzidas por pessoas físicas – são de caráter absolutamente privado. Não há nenhum interesse difuso envolvido aí: há interesses econômicos concretos. Não há interferência do ECAD “na produção e na distribuição de bens culturais”. Só há cobrança por parte dele de obras já produzidas e distribuídas. Em momento algum o ECAD estabelece relação com os consumidores finais de alguma obra. A sua relação é com as empresas que se utilizam das músicas para ganhar dinheiro. O difícil papel de cobrar de quem acha que pode sustentar o seu banquete roubando o pão alheio.

O que o deputado no fundo ataca, mesmo que sem saber, é o conceito de Gestão Coletiva. Como o parlamentar conhece bem o movimento sindical, vamos propor um paralelo, para que ele entenda. Durante os anos do tucanato foi muito difundida a tese de que a regulação trabalhista era um entulho. Para que o trabalhador precisaria de uma série de leis e de entidades para protegê-lo? Muito melhor seria a “livre negociação”. Ou seja, um empregado do Bradesco, ao invés de juntar-se com todos os seus colegas e contar com a força do sindicato nas negociações, deveria é negociar sozinho com o seu patrão. Qualquer idiota é capaz de ver que, valendo a tese dos tucanos, férias, fundo de garantia, 13º salário e outras conquistas teriam virado coisa do passado.

Pois a tese do Creative Commons é a mesma. Ao invés de existir um único órgão de cobrança – o ECAD – onde todos os autores juntam sua força para negociar com os conglomerados de comunicação, o mais correto é registrar-se no site de uma ONG estrangeira. Se alguém quiser usar a música, pode negociar diretamente com o autor, sem passar por “intermediários”. Sem muito esforço é possível ver que, se cada autor for confrontado diretamente com os patrões da área, receberá muito menos. Não é à toa que em todos os países existem estruturas centrais de arrecadação e que elas nunca são controladas pelo Estado, mas pelos próprios autores. Na França, a Sacem; na Espanha, a Sgae; em Portugal, a SPA; na Alemanha, a Gema; nos EUA, a Ascap; na Inglaterra, a PRS; no Canadá, a Socan, etc.

Finalmente, algumas palavras sobre transparência. O deputado Paulo Teixeira deveria fazer uma pesquisa rápida na internet. Verá, no site do ECAD, todos os balanços da entidade desde 2004. Encontrará também todo o regulamento de Arrecadação e uma detalhada explicação dos mecanismos de distribuição. Também terá acesso ao ranking das músicas mais tocadas, dos autores mais executados, tudo isso dividido por região do Brasil. Terá também acesso ao banco de dados com todas as obras lá registradas e com os respectivos titulares. Anualmente o ECAD é auditado interna e externamente e precisa ter as suas contas aprovadas pelas dez associações autorais que o compõe. Pode também fazer uma visitinha rápida ao site do CC. Dá para encontrar os patrocinadores. Nenhum balanço ou auditoria. Dá para ver que os diretores são indicados pelos “supporters”, mas não para saber como a grana é gasta. A bem da verdade não dá nem para descobrir direito quem está registrado lá: a busca deve ser feita pelo Google, não por acaso um dos maiores benfeitores da ONG. Quem tem mais transparência? Quem esconde o jogo?

O deputado deve lembrar que há pouco tempo o Congresso Nacional aprovou a lei que regulamentava as centrais sindicais. A direita mais reacionária incluiu um artigo que previa a fiscalização do dinheiro das entidades sindicais pelo Ministério Público. Foi preciso que o presidente Lula tivesse a coragem de vetar o esdrúxulo artigo. Quem deve fiscalizar o dinheiro dos sindicatos são os trabalhadores, disse ele. Aqui vale a mesma coisa: quem deve fiscalizar o dinheiro dos autores, decidir como ele será distribuído são eles mesmos.

A esta altura com certeza o líder do PT já compreendeu que existem dois lados na questão. De um lado está a ministra Ana de Hollanda e os criadores da música que o mundo inteiro admira. Estão, entre outros, Hermínio Bello de Carvalho, Fernando Brant, Aldir Blanc, Carlos Lyra, Roberto Carlos, Antonio Adolfo, Marcus Vinícius, Nei Lopes e outros tantos que prestaram imediata solidariedade a ela. Do outro estão o Sr. Lessig, com seu séquito de twitteiros e blogueiros, que em sua imensa maioria não toca, não canta, não cria. De um lado estão organizações que há décadas lutam pelos direitos dos criadores e reúnem entre seus filiados centenas de milhares de compositores. Do outro está um tal de Ronaldo Lemos, defendendo a mesada que ganha da Fundação Ford para manter o CC no Brasil. De um lado está, enfim, a cultura brasileira. Do outro o Google, a Microsoft, o Yahoo!. Certamente um deputado que o partido da presidenta Dilma escolheu para ser seu líder saberá escolher o lado certo na batalha.

 

Valério Bemfica

Texto extraído da Hora do Povo – 09/02/2011

O conteúdo de “Santa Joana” está mais presente do que nunca

Em entrevista ao HP, o diretor José Renato fala sobre sua recente montagem de Brecht, a peça “Santa Joana dos Matadouros”, de sua admiração pelos textos do autor, do qual é um dos maiores encenadores do país, e das características de confraternização e enriquecimento que o teatro proporciona.

(Nathaniel Braia)

 

HORA DO POVO– Fale sobre esse trabalho, quer dizer, dessa convivência com o Brecht.

JOSÉ RENATO – Eu gosto muito de Brecht. Quando estive na Europa em 58 e 59, travei conhecimento com os textos do Brecht, voltei de navio lendo todos os textos do Brecht. Eu me interessava muito por ele.

Talvez eu tenha sido o diretor no Brasil que mais fez Brecht. Fiz duas versões de “Os Fuzis da Senhora Carrar”, uma versão no Rio de Janeiro, com Tereza Raquel, no Teatro da Praça, e uma versão no Teatro de Arena, com Dira Lisboa e Lima Duarte.

Fiz duas versões da “Ópera dos Três Vinténs”, uma em São Paulo, inaugurando o Teatro da Ruth Escobar em 64 e depois, no Rio, uma versão completamente diferente, em 69, na sala Cecília Meireles.

Depois fiz, em 63, “O Circulo de Giz Caucasiano”, no Teatro Nacional de Comédia no Rio de Janeiro. Depois veio “A Exceção e a Regra”, que foram duas versões também. “Turandot”, na inauguração do Teatro Denoy de Oliveira, e agora “Santa Joana dos Matadouros”, então é uma convivência boa e difícil, porque ele exige muito.

Além disso, acho que Brecht escreveu para um tempo determinado, para uma cultura determinada, embora tenha uma riqueza de sugestões, de interpretações, que aumentam o seu raio de ação, tornado-o ao mesmo tempo atual.

Quando ele escreveu, os problemas estavam fervendo na Alemanha na época, e a busca de um estímulo para enfrentar estes problemas, de uma análise do que ocorria, era baseada muito no momento que o Brecht vivia lá em Berlim, com toda a sua análise da situação social do país, da vida social e das lutas operárias. São peças datadas, sem dúvida, mas, apesar disso, se consegue perfeitamente abrir um leque de interpretação e aprofundar mais, numa análise de uma concepção atual, porque sem dúvida nenhuma a profundidade da análise dele, a clareza com que ele coloca, a expressividade com que ele busca os exemplos nas peças dele, são muito ricos, são muito bonitos, são muito bons.

 

HP– Li há algum tempo uma crítica que dizia que os efeitos que Brecht criou naquela época causaram impacto, e hoje, já não seriam mais de tanta eficácia. Você concorda com isso?

JR – Acho que não. O processo dele é muito inteligente. O que aconteceu foi que quando Brecht apareceu, as pessoas interpretaram erradamente as lições dele. Diziam que, por exemplo, Brecht ignorava o teatro realista, o teatro psicológico, e fazia só – através do distanciamento – a análise crítica das situações. Isso não é verdade. Brecht não deixa de lado em momento algum o estudo do psicológico, ele entra na psicologia, passa através da psicologia, e alcança os seus resultados porque ele consegue passar por aí e ir muito além disso. E vai chegar, aí sim, à análise, ao distanciamento que é determinado pela análise, pela passagem pelo interior da psicologia. Ele não renega, portanto, absolutamente o realismo, ele passa através dele para chegar às suas concepções de teatro.

 

HP– Quando Brecht faz uma peça, ele faz notas sobre a peça. Aquilo amarra a peça, ou permite que se trabalhe em cima daquilo para chegar a novos ensaios. Como é que isso funciona?

JR – Existem muitos problemas ligados às teorias de Brecht. Existem os textos de Brecht onde ele procura através da estrutura desses textos mostrar o que ele pensa. Quando ele escreve comentários sobre as peças, ele amarra a um tempo determinado. É claro que temos que respeitar as notas escritas por ele. Mas não devem ser seguidas rigorosamente. Os personagens e a estrutura em que ele colocou os personagens, isso é que dá o mecanismo, o material para que a gente trabalhe em profundidade, para entender a sua mensagem e para levar sua mensagem, e tentar atualizar o mais possível a mensagem dele.

 

HP– Fale sobre a atualidade do texto.

JR – O que se passa na peça – a crise de 1929 – está acontecendo agora de novo. Está totalmente no ar. Os conteúdos dessa peça estão mais presentes do que nunca. É impressionante, você abre os jornais diariamente, e vê. Na Europa agora, o temor está crescendo. É impressionante que diante da crise causada pelos bancos, ainda se diga muitas vezes que a saída é cortar direitos dos trabalhadores, dos aposentados… é impressionante.

 

HP– Houve muita leitura do texto com o grupo. O que você diz sobre isso?

JR – As leituras eram fundamentais. Lemos muitas coisas que tivemos que abandonar depois. Na adaptação, o texto foi um pouco cortado, o texto original tem três horas e pouco de duração. Nós fizemos um espetáculo com duas horas. Mas a substância, o cerne da questão, está lá.

A cena mais importante para mim é a cena em que a Joana e o Pierpoint se encontram, e ele fala sobre o sistema que ele segue, o sistema de vida dele. Ele fala sobre o que ele é. Ele faz uma análise tão bonita, tão perfeita do que é melhor para as pessoas. Ele fala sobre a utilidade do dinheiro, a importância do dinheiro na vida das pessoas. Ele coloca o ponto de vista dele de uma maneira muito forte, e é incrível como existe cinismo na colocação. O cinismo, uma malícia tão forte, tão importante, em que Brecht conseguiu uma síntese perfeita dessa questão.

 

HP– Com a morte de Abigail, com a Joana ganhando consciência no momento de sua morte, você vê a peça como pessimista?

JR – Não acho não. A peça é realista. Ela só pode ser vista como pessimista se alguém analisa a Joana sob o ponto de vista carinhoso, se você se enche de ternura pela Joana… Mas a Joana é uma ingênua, uma beata ingênua que é usada pelas pessoas como acontece por aí a torto e a direito. O exemplo de Joanas por aí é impressionante…

 

HP– Nesse processo todo que você fez de teatro nesses vários anos, o que você procurou aprender em cada situação? O que você procurou aprender do que estava acontecendo e da própria situação que acontece em torno dessa arte?

JR – Procurei desenvolver uma ideia, que eu sempre respeitei, que eu sempre acreditei, que o espetáculo teatral tem que ter um caráter de festa e confraternização. Uma festa de encontro, onde as pessoas tenham a oportunidade de aprender. De se divertir e aprender, de se compreender, de crescer. Então eu acho que o espetáculo teatral tem a obrigação de fazer com que as pessoas saiam dele enriquecidas. A minha preocupação sempre foi essa, fazer um teatro que significasse uma grande confraternização, uma grande festa, um grande encontro, onde tudo era discutido abertamente, onde as ideias ficassem no ar e que cada um tivesse a liberdade de optar por esta ou aquela direção.

Nunca pretendi fazer teatro engajado, só por ser engajado. Mas um teatro engajado na discussão das verdades e sendo verdadeira a sua posição, sempre deixando margem para que as pessoas escolham seus caminhos, sem nenhuma imposição de direção, sem nenhuma imposição de caminho útil. A gente mostra o caminho possível, mas a escolha é de cada um. A escolha está na mão de cada um, está na consciência de cada um.

Eu acredito nesse teatro, um teatro que realiza essa confraternização, eixo fundamental para o desenvolvimento do teatro em todos os tempos. Aprendi essas coisas com Jean Villar, na França. Ele pensava exatamente assim.

Brecht, apesar de sua preocupação didática, também coloca isso. Ele diz que a principal função do teatro é o entretenimento.

Acredito que através do entretenimento inteligente é possível discutir todas as questões com inteligência, com clareza, sem que, por outro lado, ninguém se veja obrigado a discutir. Há um sentido indireto, mas sem perda de profundidade. Ele dizia que a própria estrutura das peças é que traz a verdade.

 

HP– E essa foi uma característica sua desde o Teatro de Arena…

JR – Quando tomei esse caminho de inovar, eu e meus amigos fomos descobrindo coisas e tendo certezas cada vez mais profundas. A partir de 58, decidimos fazer só textos brasileiros. Invertemos uma maneira de ver teatro no Brasil que perdura até hoje. Quando demos início ao Arena, 80% a 85% do repertório dos grupos de teatro brasileiros era composto de textos estrangeiros. Depois de 58, 60, quando a gente começou a fazer sucesso com peças brasileiras, essa percentagem se inverteu. Atualmente você vê que o repertório que está aí exposto é de 75% a 80% de peças brasileiras. Foi uma grande conquista e sem dúvida um dos méritos do nosso Teatro de Arena. Pretendo continuar isso, fazer com que o teatro exista através de descobertas de dramaturgia. Os 20 anos de ditadura deram uma cacetada no desenvolvimento disso no país. Todos os grandes autores da época, ou morreram ou aderiram à TV, foram pensar na sobrevivência e deixaram de trabalhar no caminho que estávamos traçando. Então, a partir de 1990, começou a surgir gente nova. E agora, no novo milênio, acredito que o teatro de novo está se desenvolvendo no Brasil através da dramaturgia, através de uma dramaturgia séria, engajada, competente.

 

HP– Senti vendo a peça que quando derruba-se o cenário parece que o palco cresce…

JR – A demolição do cenário é a demolição das estruturas que estão aí. São estruturas montadas pelo sistema. E, depois, o reerguimento disso vem através de outras questões que são levantadas, de conluios, conchavos terríveis, concentração em monopólios…

 

Texto extraído da Hora do Povo – 16/06/2010

Vianinha: a geração que revolucionou a nossa cultura

No dia 10 de abril, o Cine Clube UMES apresentou o documentário “Vianinha”, autor cuja obra é um marco no desenvolvimento da estética nacional-popular em nosso país. No debate que se seguiu com o diretor Gilmar Candeias, tomei, por assim dizer, a liberdade de pedir-lhe um texto que desse uma panorâmica sobre a vida e a obra de Oduvaldo Vianna Filho, em conexão com o momento de sua criação. Ele, generosamente, nos enviou este artigo.

(Caio Plessmann)

 

GILMAR CANDEIAS*

 

Aproveitei o convite para escrever este artigo e reli alguns textos de Vianinha que havia pesquisado e com os quais tive contato mais profundo em 1984, quando, com Jorge Achôa, fizemos um documentário sobre sua vida, obra e participação política, reunindo um grupo de profissionais amigos que deram à produção qualidade e camaradagem: Roberto Santos Filho, Vanderlei Klein, Fernando Peixoto, Ana de Holanda e principalmente Reinaldo Maia.

Lembro que nos chamou a atenção a qualidade e a quantidade da produção de Vianinha. O mesmo pode-se dizer dessa geração, que, com esforço coletivo, ideias e ideais, promoveu uma transformação profunda na produção cultural e social.

Vianinha escreveu para teatro, show e televisão. Também foi ator — ganhou vários prêmios, dentre os quais cinco “Molière”.

Brincando, ele dizia que lamentava ser um autor premiado, mas não encenado, por força da censura da ditadura militar.

Em 38 anos de vida, participou como ator em “Gente como a gente”, de Roberto Freire (1959), em “Revolução na América do Sul”, de Augusto Boal (1960), no episódio “Escola de Samba Alegria de Viver” dirigido por Carlos Diegues em “Cinco vezes favela” (1962) e em “O desafio”, de Paulo César Saraceni (1965), entre outros. E escreveu “Bilbao via Copacabana” (1957), “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (1960), “Quatro quadras de terra” e “Os Azeredos mais os Benevides” (1962), “Meia volta vou ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “Allegro desbum” (1972) e “Rasga coração” (1974), entre outros.

Estamos perto do aniversário de sua morte — 16 de julho —, um bom pretexto para homenagear, revisitar ou conhecer sua obra e, no caso deste artigo, mostrar um pouco da trajetória seguida para produzi-la.

Oduvaldo Viana Filho, mais conhecido como Vianinha, nasceu em 1936. Herdou do pai o nome, a profissão e a paixão pela vida e pela política: foram ambos militantes do Partido Comunista. Podemos dizer que nasceu em cena, pois, aos três meses de idade, participou como figurante no filme “Bonequinha de seda”, dirigido por seu pai.

Risonho, brincalhão e irônico, estudioso e idealista, com o pé em sua época e o olho na história, Vianinha criou e defendeu uma dramaturgia brasileira comprometida com as transformações sociais.

No teatro, na década de 50, vigorava a estética do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), com autores estrangeiros encenados em palco italiano, onde se dava grande importância ao guarda-roupa e a plateia de colunáveis por vezes era mais importante do que o próprio espetáculo.

 

“É preciso um teatro de criação e não de imitação do real, um teatro otimista, direto, violento, sátiro e revoltado, como precisa ser o povo brasileiro” (Vianinha).

 

Em 1954, Vianinha entra para o Teatro Paulista de Estudante junto com o também estudante Gianfrancesco Guarnieri; depois, eles se reencontram no Teatro de Arena. Com Augusto Boal, começam a trabalhar temas da atualidade, fatos sociais e do cotidiano, para criar uma dramaturgia mais próxima da realidade brasileira. Nesse contexto, o fenômeno do futebol é apresentado por Vianinha sob condicionantes sociais, com destaque para as tramas do poder e da traição, na peça “Chapetuba Futebol Clube”.

Vianinha e Guarnieri vão para o Rio de Janeiro e, em 1961, com Carlos Estevam Martins e Leon Hirszman, participam da fundação do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), cuja proposta é a atuação nos parâmetros das ideias do “nacional e popular”, levando cultura para as massas por meio de diversas formas de arte. Propuseram e criaram um teatro feito para ser encenado sem grandes recursos cênicos, mais direto e de agitação, nas ruas, em cima de caminhões. E fizeram mais.

A atuação engajada conduz à necessidade de informação e reflexão sobre conceitos que balizavam a ação — um teatro didático. Segundo Chico de Assis, surgiu a ideia de escrever um trabalho a seis mãos. Entretanto, Vianinha “não brincava em serviço” e escreveu inteira “A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, em que um conjunto de pequenas tramas do cotidiano era apresentado à luz do conceito marxista de mais-valia. A peça foi montada na Faculdade de Arquitetura do Rio de Janeiro; em mais uma mostra de integração, os cenários foram feitos pelos alunos da faculdade.

O final da década de 50 e os anos 60 são marcados pela efervescência dos ideais e dos desejos — anos das vanguardas política e cultural. Vianinha, entre outros, não separava uma coisa da outra, o que provocou embate de ideias, principalmente, com aqueles que acreditavam em uma arte sem a influência da política mais comprometida com uma estética ou, como se dizia então, uma “arte pela arte”. Debatia-se tudo, além de política e a arte — educação, psicanálise, imprensa, etc. —, o que resultou, na época, em uma visão ampla e multifacetada do desafio brasileiro, do homem e da sociedade.

As apresentações das peças no CPC eram feitas junto com projeções de cinema, debates, shows musicais, exposições de artes plásticas, ao mesmo tempo em que serviam de pontos de venda e circulação de tabloides e cordéis “rodados” em mimeógrafos. O teatro, em particular, alcançava lugar de destaque na cultura urbana, e sobressaíram o Teatro Oficina e o Teatro Opinião.

As artes se integravam, a estética se afinava e o debate pela transformação social e política se aprofundava no seio de uma geração que acreditava em um Brasil progressista, inteligente e com menos diferenças sociais.

Uma geração que deve ser saudada, parafraseando Vinícius de Moraes e Baden Powell no “Samda da benção”: Saravá, Vianinha, Paulo Pontes, Guarnieri, Boal, Armando Costa, Zé Celso, Zé Renato e Antunes Filho! Saravá, Glauber Rocha, Cacá Diegues e Denoy de Oliveira! Saravá, Hélio Oiticica, Hélio Pelegrino e Sérgio Ricardo! Saravá, Nara Leão, João do Vale, Zé Kéti, Chico Buarque, Vandré, Caetano e tanto outros.

 

“Nessa avenida colorida…” (Lendas e mistérios da Amazônia, de Catoni, Jabolô e Waltenir).

 

Em 1964, os militares entram na contramão. O discurso de Jango Goulart na Central do Brasil serve de pretexto para que militares e conservadores organizem a “Marcha da família com Deus pela liberdade”… e “pelo golpe”. A sociedade civil engrossa a Passeata dos Cem Mil, que percorre as ruas do Rio. Não deu. Deu ditadura. A UNE é destruída e seus militantes vão para a clandestinidade; o prédio do CPC é incendiado. O Teatro Oficina, onde estava sendo encenada a peça Roda-Viva, é invadido e os atores e técnicos são espancados e presos. E com o Ato Institucional nº 5, o regime institucionaliza a censura e todos os atos de exceção.

 

 “Quando um muro separa, uma ponte une…” (Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro).

 

Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes escrevem o show “Opinião”; o espetáculo se torna símbolo da resistência cultural. Manifestações contra a censura são organizadas a cada ato da censura. A título de ilustração: dona Diocélia, mãe de Vianinha, conta que foi com Nelson Rodrigues, grande autor teatral considerado reacionário, em um dos atos de protesto, na escadaria do Teatro Municipal do Rio, e ele reclamava para ela: “Só o Vianinha… Só o Vianinha pra me pôr aqui. Imagina eu fazendo greve…”

Em 1968, usando um tema da época, Vianinha escreve “Papa Highirte”, a história do ditador deposto de um país fictício (Alhambra) que planeja no exílio a volta ao poder. A certa altura da peça, Vianinha monta um diálogo entre dois pontos de vista, o do povo e o do ditador, que, entre outras coisas, reclama do povo brasileiro, o qual não inventou a máquina de calcular e, sim, o vilão, e que, portanto, não sabe prever nem planejar e perde todo o seu tempo cantando “nas eternas esquinas e madrugadas”; por fim, conclama: “Ao trabalho, povo de Alhambra!”. Mais uma obra censurada.

Manguari Pistolão, homem comum e personagem da peça “Rasga coração”, sintetiza uma questão central do nosso herói do cotidiano: “A Revolução sou eu! Revolução pra mim já foi uma coisa pirotécnica, agora é todo dia, lá no mundo, ardendo, usando as palavras, os gestos, a esperança desse mundo”.

A saída para autores e atores sobreviverem foi a televisão. Vianinha foi convidado pela TV Globo a escrever os capítulos de uma série que já estava no ar e com baixa audiência. Aceitou e, com Armando Costa e também “palpites” de Paulo Pontes, entrou para “A grande família”, promovendo mudanças: mudou a família do Leblon e a levou para morar no subúrbio carioca. Usou seu conhecimento de teatro e sua afinada observação do universo popular e criou um “microcosmo” para desenvolver tramas com temas como a carestia, o feminismo, a sexualidade, a participação social, inclusive com o personagem Junior, filho politizado do casal de classe média. A série foi retomada hoje sem esse personagem.

Vianinha morreu em 1974. Morreu trabalhando, ditando para sua mãe as ultimas cenas de “Rasga coração”, que não chegou a ver encenada. Pode-se dizer que cada vez que um pano de cena se abre e um texto é encenado, é uma conquista. Vemos um pouco do Vianinha e de nossa história de luta e criação.

 

* GILMAR CANDEIAS, cineasta.

São Paulo, 29 de abril de 2010.

 

ODUVALDO VIANA FILHO (1936-1974)

Vianinha viveu apenas 38 anos, mas de intensa atividade.

Foi um dos fundadores do Teatro de Arena (1955), com José Renato e Gianfrancesco Guarnieri. Junto com eles participou da revolução estética produzida pela montagem da peça “Eles não usam black-tie” (1958), escrita por Guarnieri, com direção da José Renato e músicas de Adoniran Barbosa.

No Rio de Janeiro, criou o Centro Popular de Cultura da UNE (1960-1964) e foi se destacando como um autor de peças sintonizadas com a realidade brasileira, que tiveram importante significado no desenvolvimento da estética nacional-popular.

Em 1964, foi criador do Grupo Opinião, com Paulo Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira, João das Neves, Ferreira Gullar e Teresa Aragão.

Também trabalhou como ator de teatro, cinema e como autor de televisão – onde fez sucesso com a série “A grande família”, na Rede Globo (1973).

Entre suas peças encontram-se “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A mais-valia vai acabar, seu Edgar” (1960), “Auto dos 99%” (1962), “Quatro quadras de terra” (1962), “Os Azeredos mais os Benevides” (1962), “Opinião” (1964), “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” (1965), “Moço em Estado de Sítio” (1965), “Mão na Luva” (1966), “Meia volta vou ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “A longa noite de cristal” (1971), “Corpo a corpo” (1971), “Em família” (1972), “Allegro desbum” (1973) e “Rasga coração” (1974). (14/05/2010)

 

Texto extraído da Hora do Povo

 

 

De como a CIA patrocinou os abstracionistas na Guerra Fria

No início da década de 50, menciona de passagem Frances Stonor Saunders em seu livro “Quem Pagou a Conta? A CIA na guerra fria da cultura”, alguns dos maiores pintores norte-americanos – inclusive aquele que foi o maior pintor dos EUA no século XX, Edward Hopper – assinaram um manifesto atacando o monopólio do abstracionismo nas instituições culturais do país, especialmente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o badalado MoMa. Para esses pintores, o MoMa havia imposto um “dogma” que excluía o realismo – e era seguido pelos outros museus e galerias dos EUA (pág. 289 do livro citado, trad. de Vera Ribeiro, Ed. Record, 2008).

Nenhum dos pintores que protestaram contra o monopólio abstracionista sabia que seu grande incentivador era a CIA, que tentava opor o chamado “expressionismo abstrato” norte-americano ao realismo socialista da escola soviética. Sobre isso, o livro de Frances Stonor Saunders é irretorquível em sua profusão de fatos e dados. No entanto, a situação das artes dentro dos EUA, quando isso se deu, parece-nos pouco claro no relato da autora.

Os EUA tinham uma poderosa escola realista em pintura. As assinaturas do manifesto que citamos (conhecido como “Manifesto da Realidade”) chegam a meia centena de pintores. E, entre eles, Hopper, nessa época, provavelmente, o maior pintor realista do Ocidente. Portanto, o monopólio abstracionista abafava dentro dos EUA e nos países para os quais o “expressionismo asbstrato” foi exportado, não apenas os pintores soviéticos e desses outros países, mas também os realistas norte americanos.

Em suma, não se tratava de uma operação encoberta da CIA apenas contra o realismo socialista, mas contra o realismo em geral.

O problema, naturalmente, era o sentido crítico da pintura realista. A luz fria que banha a solidão das figuras de Hopper, seus quadros de pequenas cidades desertas, os flagrantes de escritório, hotel, cinema, balcão de café, não eram adequados, certamente, aos objetivos da CIA e do establishment. Não era esse os EUA da propaganda anti-comunista. Portanto, só restava aos propagandistas a ruptura com a realidade – não somente em sua propaganda, mas também na arte que queriam opor ao realismo socialista. Isso explica porque o “expressionismo abstrato” foi escolhido como arte oficial dos EUA na Guerra Fria, contra a melhor pintura que os norte-americanos produziam. 
A segunda questão diz respeito à situação dos artistas norte-americanos dentro dos EUA.

Em 1943, em meio à II Guerra Mundial, foi suspensa a política de incentivos públicos à cultura do governo Roosevelt, que incluía o Projeto Federal da Arte (FAP – “Federal Art Project”), o Projeto Federal da Música (FMP – “Federal Music Project”), o Projeto Federal do Teatro (FTP – “Federal Theatre Project”), o Projeto Federal dos Escritores (FWP – “Federal Writers’ Project”), a Seção de Pintura e Escultura (“Section of Painting and Sculpture”) e o Projeto de Arte em Obras Públicas (“Public Works of Art Project”).

Esses projetos, que haviam reunido alguns dos artistas mais importantes do país, não foram retomados após a II Guerra, em meio à reação macartista que começou no governo Truman. Pelo contrário: algumas das obras dos artistas que participaram dos projetos do governo Roosevelt – por exemplo, o quadro “Welcome Home”, de Jack Levine – se tornaram assunto do Comitê para Atividades Anti-americanas da Câmara, que tinha o deputado republicano Richard Nixon como principal cão-de-fila.

A política cultural do país, na ausência de uma ação pública, governamental, ficou à mercê de instituições privadas – a principal delas, justamente, o MoMa, fundado pela família Rockefeller, que determinava a tendência do “mercado” de arte, do qual os artistas se tornaram dependentes. O que garantia a independência da arte americana era a política e os fundos públicos. Na ausência deles, o Rockefeller Brothers Fund e o MoMa, dirigido pelo próprio Nelson Rockefeller, se tornaram os ditadores da arte norte-americana.

Nas palavras de Frances Stonor Saunders: “Seu presidente [do MoMa], durante a maior parte das décadas de 1940 e 1950, foi Nelson Rockefeller, cuja mãe, Abby Aldrich Rockefeller, fora co-fundadora do museu em 1929 (Nelson Rockefeller chamava-o de ‘Museu da mamãe’). Nelson era um defensor entusiástico do expressionismo abstrato, ao qual se referia como a ‘pintura da livre empresa’. Ao longo dos anos, só a sua coleção particular acumulou 2.500 obras. Milhares de outras cobriam as entradas e paredes dos prédios que pertenciam ao Chase Manhattan Bank, de propriedade de Rockefeller” (pág. 281).

Mas o que eram os “expressionistas abstratos”? Um grupo de pintores de Nova Iorque cujo único ponto de coesão era a rejeição ao realismo. Todos eles, sem exceção, tinham, no final da década de 40 e início da década de 50, uma posição política “à esquerda”, ou assim acreditavam. Alguns deles haviam sido filiados ao Partido Comunista e o principal pintor do grupo, Jackson Pollock, “na década de 1930, estivera envolvido no seminário comunista do muralista mexicano David Alfaro Siqueiros”. Foi o quanto bastou para que os macartistas, com sua costumeira truculência, os considerassem agentes de Moscou. Um deles, relata Saunders, chegou a argumentar que “os quadros abstratos eram, na verdade, mapas que assinalavam fortificações estratégicas dos Estados Unidos. ‘A arte moderna é, na realidade, um meio de espionagem’, acusou um adversário. ‘Se você souber lê-los, os quadros modernos revelarão os pontos fracos das fortificações dos Estados Unidos e de construções cruciais, como a represa de Boulder’”.

No entanto, os macartistas eram apenas as SA do fascismo norte-americano, isto é, os seus bate-paus. Outro era o coturno do diretor da CIA, Allen Dulles, e, naturalmente, de Nelson Rockefeller – que controlava a própria CIA (oficialmente, inclusive, a partir de 1954, nomeado por Eisenhower como encarregado das operações encobertas dos EUA): “para eles, o expressionismo revelava especificamente uma ideologia anticomunista, a ideologia da liberdade, da livre iniciativa. Sendo não figurativo e politicamente silencioso, ele era a própria antítese do realismo socialista”.

Como se viu logo em seguida, o abstracionismo não tinha nada de “silencioso” do ponto de vista político – nesse sentido, era, ele próprio, uma espécie de operação encoberta, até mesmo de seus pintores.

O “expressionismo abstrato” havia sido, até o final dos anos 40, um fracasso de público e de crítica. De repente, a mídia o transformou em autêntica e original contribuição dos EUA à cultura mundial e na única escola válida em pintura. Henry Luce, o dono do grupo Time-Life, tornou-se propagandista do abstracionismo e “em agosto de 1949, a revista Life dedicou sua página central dupla a Jackson Pollock, colocando o pintor e sua obra em todas as mesinhas de centro dos Estados Unidos”.

Luce havia sido convertido ao novo credo artístico por Alfred Barr, nomeado, por Abby Rockefeller, primeiro diretor do MoMa. O argumento que convenceu Luce não era propriamente estético: “[Barr] convenceu Henry Luce, da Time-Life, a alterar sua política editorial para com a nova pintura, dizendo-lhe numa carta que ela deveria ser especialmente protegida, e não criticada como na União Soviética, porque, afinal, essa era a ‘livre iniciativa artística’”.

Em resumo, enquanto a propaganda anti-comunista acusava o realismo socialista de ser uma arte dirigida pelo Partido e pelo Estado soviéticos, a arte que era apresentada como alternativa era dirigida clandestinamente pela CIA, sob o patrocínio dos Rockefellers.

Saunders mostra como o staff do MoMa parecia uma sucursal da CIA – afinal, o chefe era o mesmo.

Assim, a mídia, um punhado de críticos e o establishment norte-americano se puseram em campo pelo “expressionismo abstrato”. O passo mais ridículo, provavelmente, foi um discurso de Eisenhower em defesa do abstracionismo. Ao contrário de Truman, um conhecedor de Rembrandt e demais mestres flamengos – e admirador declarado da pintura realista – Eisenhower era um paiol de ignorância nessas questões. O que não o impediu de fazer a apologia do abstracionismo, concluindo que “isso é muito diferente na tirania. Quando se faz dos artistas escravos e instrumentos do Estado, quando os artistas se tornam os grandes propagandistas de uma causa, o progresso é bloqueado e a criação e o talento são destruídos”. Realmente, ele preferia que os artistas fossem instrumentos da CIA, isto é, do Estado imperialista norte-americano e dos monopolistas que o dominam.

Saunders cita Eva Cockroft, que “em 1974, num artigo seminal para a revista Artforum, intitulado ‘Expressionismo abstrato: arma da Guerra Fria’, concluiu: ‘Os elos entre a política da guerra fria cultural e o sucesso do expressionismo abstrato nada têm de coincidentes (…). Foram conscientemente forjados, na época, por algumas das figuras mais influentes que controlavam a política dos museus e defendiam uma tática esclarecida de guerra fria, destinada a atrair intelectuais europeus’. Além disso, asseverou Cockroft, ‘em termos de propaganda cultural, as funções do aparelho cultural da CIA e dos programas internacionais do MoMA eram similares e, na verdade, apoiavam-se mutuamente’”.

Na CIA, além de Allen Dulles, um dos mais entusiasmados patrocinadores do abstracionismo foi Thomas Braden, o chefe da Divisão de Organizações Internacionais – o mesmo que, como revelou a Comissão Church do Congresso dos EUA, foi um dos organizadores do suborno de jornalistas dentro dos EUA pela CIA, conhecido como “Operação Mockingbird”.

Braden, posteriormente, comparou o papel da CIA no patrocínio do abstracionismo ao do papa durante a Renascença: “Esqueci qual foi o papa que encomendou a Capela Sistina, mas imagino que, se isso tivesse sido submetido à aprovação do povo italiano, teria havido inúmeras reações negativas: ‘Ele está nu’, ou ‘Não era assim que eu imaginava Deus’, ou qualquer coisa parecida. Não creio que a capela fosse aprovada pelo parlamento italiano, se este existisse na época. É preciso um papa, ou alguém com muito dinheiro, para reconhecer a arte e apoiá-la. E, passados muitos séculos, as pessoas dizem: ‘Olhem! A Capela Sistina, a mais bela criação da Terra!’ Esse é um problema que a civilização tem enfrentado desde o primeiro artista e o primeiro multimilionário – ou papa – que o patrocinou; no entanto, se não fossem os multimilionários e os papas, não teríamos a arte. Você sempre tem que combater os ignorantes, ou, para dizê-lo de maneira mais polida, as pessoas que simplesmente não entendem”.

Além de esquecer o papa que encomendou a Capela Sistina, Braden esqueceu que: 1) a função da CIA não é, como a do papa, representar Deus na Terra; 2) nenhum papa patrocinou artistas clandestinamente com objetivos políticos; 3) o interesse dos papas não era escantear artistas em prol de outros; 4) Pollock e seus colegas não eram exatamente Michelangelo e Rafael.

Assim, o “expressionismo abstrato” foi exportado para a Europa com dinheiro da CIA e do Rockefeller Brothers Fund. O monopólio abstracionista acabou por empobrecer os museus americanos e transformar-se num mero negócio, algo que acabou por escandalizar até mesmo Peggy Guggenheim, famosa pelo patrocínio de qualquer “vanguardista” que lhe chegasse perto.

Porém, aqui, uma pergunta se impõe: e os pintores, que achavam que estavam contestando o sistema. Como reagiram eles diante do inesperado – e, na verdade, inexplicável – sucesso?

A medida que os dólares enchiam suas contas, boa parte dos pintores fizeram um cavalo de pau ideológico: “Motherwell era membro do Comitê Norte-Americano pela Liberdade Cultural [uma fachada da CIA]. O mesmo se aplicava a Baziotes, Calder e Pollock (embora este último estivesse totalmente embriagado ao ingressar na entidade). (….) Mark Rothko e Adolph Gottlieb, ex-simpatizantes do comunismo, tornaram-se anticomunistas engajados durante a Guerra Fria”.

Houve uma exceção:

“Ad Reinhardt foi o único expressionista abstrato que continuou a aderir à esquerda, e, nessa condição, foi praticamente ignorado pelo mundo artístico oficial até a década de 1960. (….) Reinhardt condenou cabalmente seus colegas pintores por sucumbirem às tentações da ambição e da ganância. Chamou Rothko de ‘fauvista de apartamento conjugado da revista Vogue’ e Pollock de ‘vagabundo da Harper’s Bazaar’. Barnett Newman era ‘o mascate-artesão e lojista educacional da vanguarda’ e ‘uma mescla de gritalhão fanático e explicador/recreador residente’ (comentário que lhe valeu um processo por parte de Newman). Reinhardt não parou por aí. Declarou que um museu devia ser ‘um tesouro e um túmulo, não um escritório de contabilidade ou um parque de diversões’. Comparou a crítica artística a ‘baboseiras de otários’ (….). Reinhardt foi o único expressionista abstrato a participar da passeata de Washington em favor dos direitos dos negros, em agosto de 1963″.

Porém, os colegas de Reinhardt pagaram o preço por vender a alma ao diabo sem nem ao menos perceber quem era o diabo:

“Jackson Pollock morreu num acidente de automóvel em 1956, ocasião em que Arshile Gorky já se havia enforcado. Franz Kline bebeu até morrer, no espaço de seis anos. Em 1965, o escultor David Smith faleceu em conseqüência de um desastre de automóvel. Em 1970, Mark Rothko cortou os pulsos e sangrou até morrer no chão de seu estúdio. Alguns amigos acharam que ele se havia suicidado, em parte, por não conseguir lidar com a contradição de ser cumulado de recompensas materiais por trabalhos que ‘berravam sua oposição ao materialismo burguês’“. 

 

Carlos Lopes, diretor de Redação da Hora do Povo

Texto extraído da Hora do Povo – 31/10/2008

Barreto: “A Embrafilme seria hoje a Petrobrás do audiovisual”

Na ativa desde 1961, Luiz Carlos Barreto já produziu mais de 70 filmes no Brasil, inclusive o recordista de bilheteria, com 12 milhões de espectadores, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” – produzido em 1976 e distribuído pela Embrafilme.

Nesta oportuna entrevista concedida a Beto Almeida, Barreto apresenta seus pontos de vista para reverter a melancólica situação do nosso mercado cinematográfico.

Desde o fim da Embrafilme, em 1990, o cinema brasileiro, sem o estímulo de qualquer política pública para a distribuição, não conseguiu recuperar o seu mercado natural.

O ponto máximo que atingiu nesse período foi no ano de 2003, quando chegou a 22.055.249 espectadores, correspondente a 21,4% do público que foi ao cinema naquele ano.

Depois foi despencando continuamente até chegar, no primeiro semestre de 2008, ao insignificante patamar de 3.510.187 espectadores.

Se o segundo semestre confirmar o primeiro, o que tem sido a tradição, todos os filmes brasileiros lançados em 2008 – mais de meia centena – totalizarão um número de espectadores pouco acima da metade do que foi alcançado por “Dona Flor”, há 30 anos.

 

CARLOS ALBERTO ALMEIDA*

 

“A Embrafilme seria hoje uma Petrobrás do audiovisual se não fosse extinta”. A declaração é de Luiz Carlos Barreto, um dos mais renomados produtores do cinema brasileiro (“O Quatrilho”, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, etc.), ao posicionar-se favoravelmente à reconstituição de uma empresa pública como a Embrafilme, capaz de alavancar a produção audiovisual brasileira, assegurar ao povo o acesso ao cinema brasileiro e proteger o setor da ocupação internacional. “A Embrafilme cumpriu um papel excepcional no passado e se não tivesse sido privatizada, destruída pelo furacão Collor hoje ela prometia ser uma empresa do porte de uma Petrobrás ou uma Vale do audiovisual, ela estava indo neste caminho”, exclamou.

Barretão, como é conhecido, lembra que a Embrafilme era uma empresa de economia mista que atuava eficientemente, de forma que naquele período o cinema brasileiro chegou a deter 44 por cento do mercado. “Depois da demolição da Embrafilme nós fomos a zero praticamente e hoje nós ainda não alcançamos nem 10 por cento do mercado cinematográfico. Temos que tirar a cultura e o cinema em particular do casulo das elites, pois só os frequentadores de shoppings, as elites, têm acesso aos bens culturais”, explicou.

Para o cineasta e produtor, o audiovisual é algo tão importante como o petróleo e a energia. “Informação e conhecimento, aliados ao espetáculo, pois através do espetáculo se pode democratizar didaticamente a informação e o conhecimento, itens estratégicos no mundo atual”, argumentou. Barretão acrescentou que no mundo atual há duas prioridades muito claras, os alimentos e as imagens, argumentando que  no audiovisual também estão envolvidas questões como  a conquista ou não da soberania nacional, a conformação de uma identidade cultural de nação, sem esquecer a geração de empregos.

 Luiz Carlos Barreto entende que o cinema brasileiro vive um processo crônico de dificuldades, mas avalia que o país possui todas as armas necessárias para superar esta fase e tornar o setor evoluído, em direção à auto-sustentabilidade do audiovisual. “Esta luta já poderia ter sido vencida. Nosso futuro está no passado, ou seja, nós já tivemos 44 por cento do controle do mercado do cinema para a produção nacional. Falta-nos um projeto estratégico”, sinaliza.

Para ele não basta estimular a produção, todas as leis de incentivo à cultura reduzem-se à produção, mas não incidem sobre o consumo dos bens culturais. Traçando uma radiografia do consumo da cultura no Brasil, Barreto se declara escandalizado com o fato de sermos um povo de 190 milhões de habitantes, dos quais apenas 10 milhões frequentam cinema, apenas 1 milhão compra discos, 100 mil compra livros, 300 mil frequentam teatro. “Isto não existe!”, protesta. Para ele, se estamos numa sociedade de consumo de massas, não se pode fazer cinema para um círculo restrito da elite e se sentir confortável com isto. Como alternativa, propõe que seja instituído o Vale-Cultura, similar ao Vale-Refeição, por meio do qual o trabalhador e sua família poderiam ter acesso ao consumo de bens culturais. Ele lamentou a queda-de-braço entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Fazenda, atrasando a implantação do mecanismo, em razão de uma discordância sobre a inclusão ou não no sistema das empresas de lucro presumido, além das de lucro real. “A sociedade é que está sendo prejudicada com este embate”, lamenta o veterano produtor.

Barreto critica a existência de um enorme contingente de burocratas nos órgãos de cultura, sem que haja gente realmente vinculada ao cinema. Contou com tristeza que recentemente o premiadíssimo cineasta Nelson Pereira dos Santos foi recebido numa Secretaria do Minc com a seguinte expressão “O senhor é de onde?”. Embora critique o inchaço de burocratas, Barreto faz questão de defender a presença do Estado como ferramenta indutora e executora de políticas públicas capazes de defender o audiovisual brasileiro, tal como se faz na França ou na Venezuela. “Se nós tivéssemos um público de 50 ou 60 milhões de pessoas com capacidade de consumir cultura tudo seria resolvido na disputa de fatias de mercado pelos empreendedores, mas, a realidade não é esta”, disse.

Declarou-se impressionado com o que viu em viagem recente à Venezuela onde visitou o projeto governamental chamado Villa Del Cine, cujo objetivo é dotar não apenas a Venezuela mas a América Latina de uma capacidade de produção de alto nível, uma espécie de Hollywood latino-americana. “Eu vi tecnologia de ponta à disposição de diretores, editores, montadores, produtores, não vi quase burocratas, mas gente com a mão na massa, realizando filmes sobre temáticas nacionais e latino-americanas. É assim que se aprende, fazendo, não apenas em teoria” relatou um entusiasmado Luiz Carlos Barreto, que, inspirado, lembrou do cineasta revolucionário italiano Roberto Rosselini, para quem educar-se é vivenciar. “Temos aqui o exemplo do Lula, que é um doutor em vida,  aprendeu vivendo, apanhando, superando, não na teoria”, declarou, sem esconder a satisfação de não ter visto no país caribenho inchaço de burocratas e de ver o cinema venezuelano levantando voo.

 

(*) Presidente da TV Comunitária de Brasília

 

Texto extraído da Hora do Povo – 03/09/2008