O dragão da maldade não brinca em serviço

As produções americanas de cinema detêm 95% de seu mercado natural. Cerca de 1.500.000.000 espectadores/ano assistem filmes americanos nas mais de 35.000 salas de exibição existentes naquele país, deixando nas bilheterias a bagatela de U$ 10 bilhões de dólares/ano.

São números deveras impressionantes, se comparados aos 5.210.000 espectadores que assistiram no Brasil a filmes nacionais, de janeiro a julho de 2007, nas 1.900 salas aqui existentes.

Neste período, que corresponde a todo o primeiro semestre de 2007, o cinema brasileiro atingiu um dos mais baixos índices de ocupação do mercado interno registrados em sua história: 9,7%.

Para uma cinematografia que foi vista por 60.000.000 de espectadores no Brasil, em 1978, e chegou a ocupar 50% de seu mercado natural em 1982 e 1984, cair abaixo dos 10% é uma verdadeira calamidade.

Se considerarmos que em 2003, primeiro ano do governo Lula, a taxa de ocupação do mercado interno pelo filme brasileiro foi de 21,4% (22.055.249 espectadores), cair a 9,7% em três anos e meio é um sintoma mais do que evidente de que as políticas adotadas pelo Minc e pela Ancine não estão ajudando em nada ao cinema nacional.

O curioso é que a produção tem crescido. O governo federal tem deixado de arrecadar mais de 100 milhões de reais por ano, para que as empresas doem à produção cinematográfica uma parcela dos impostos a ele devidos.

Sem dúvida é uma quantia modesta, porém nada desprezível. Pode-se dizer que os critérios para sua distribuição não são os mais adequados, que a média dos filmes produzidos no Brasil tornou-se morna, um tanto insossa e pouco sintonizada com a realidade brasileira, que boa parte dos realizadores andam deslumbrados com os respectivos umbigos, ou com a reprodução em tela grande dos clichês televisivos, porém errado estará quem quiser ver na produção a causa principal de uma crise que é essencialmente de mercado. Mais precisamente, uma crise gerada pela perversa e inadmissível monopolização do mercado de distribuição de filmes e do mercado de exibição cinematográfica no Brasil por empresas norte-americanas.

Nos tempos de Glauber Rocha, quando o governo resolveu criar um fundo para a produção nacional com recursos obtidos através da taxação dos filmes importados, os cineastas disseram: melhor usar esses recursos para criar uma distribuidora, a nossa maior dificuldade não é produzir os filmes, mas fazer com que eles cheguem às telas.

Passar pelo gargalo das distribuidoras estrangeiras, que dominavam o mercado, para chegar aos exibidores, era o problema, pois no caso do cinema as distribuidoras têm um papel decisivo, já que são elas que assumem a responsabilidade pelos investimentos em cópias e divulgação.

Nasceu a Embrafilme. Com as rendas obtidas através da distribuição, a estatal em pouco tempo entrou também no terreno da produção.

A Embrafilme e a cota de tela (obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais por um determinado número de dias no ano) levaram o cinema brasileiro a uma ocupação de 50% do seu mercado natural.

Depois que Collor liquidou a Embrafilme e o cinema brasileiro despencou literalmente a zero, nossos cineastas, no desespero, fizeram exatamente aquilo a que se haviam recusado quando a ditadura lhes ofereceu recursos para produzirem seus filmes. Dessa vez pensaram: se a produção estiver garantida, o mercado cuidará do resto (distribuição e exibição). E assim mergulharam no reino encantado das leis de incentivo fiscal, ignorando os lúcidos alertas emitidos por nosso companheiro Denoy de Oliveira em vários artigos aqui no HP.

Escapou-lhes um detalhe para o qual Glauber, assim como Denoy, sempre estiveram atentos.

Apesar de ocupar 95% do seu mercado natural, Hollywood é um dragão insaciável: 65% do faturamento da indústria cinematográfica americana vêm da exploração de seus filmes no mercado externo e não no seu próprio mercado.

Sem o mercado externo, Hollywood e toda a sua parafernália simplesmente não existem. Não é de estranhar, portanto, a voracidade e a virulência com que se lançam sobre os mercados alheios, os quais devem inclusive passar a ser considerados, conforme seus critérios, como uma extensão natural de seu próprio mercado.

A partir da década de 90, o tradicional controle dos mercados externos pela distribuição já não lhes parecia suficientemente seguro. Expandiram então suas redes de exibição pelo mundo.

A Cinemark, que possui 2.265 salas de projeção nos EUA, se gaba em seu site de ter chegado em nossa praça no ano de 1997, tendo rapidamente se convertido na “maior rede de cinemas do Brasil, hoje operando mais de 350 salas distribuídas em 26 cidades brasileiras. A empresa, desde o início de suas operações, já vendeu mais de 160 milhões de ingressos, faturou mais de 300 milhões de reais só em 2006 e deve alcançar um faturamento acima de 330 milhões em 2007”.

Isso significa que, de acordo com os seus dados, a Cinemark sozinha já açambarca cerca de 40% do público e do faturamento das bilheterias de cinema no Brasil.

O site da empresa diz ainda que: “A Cinemark é líder do setor de exibição cinematográfica na América Latina e terceira empresa do setor norte-americano, operando hoje mais de 3.900 salas de cinema entre Estados Unidos, Brasil, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras, Nicarágua, México, Peru, Panamá e Taiwan”.

Não diz, no entanto, que 8,9% desse latifúndio foi construído no Brasil, em 10 anos, às custas de muitos financiamentos do BNDES, feitos à sombra de um governo neoliberal e estranhamente mantidos no atual governo sem que uma autoridade sequer do Minc ou da Ancine desconfie de que o objetivo de tamanha agressividade empresarial do monopólio americano está a serviço de uma causa: passar os filmes deles e não os nossos.

Mais discreta, a UCI, pertencente ao National Amusements Inc, cujo modus operandi é semelhante ao da Cinemark, já atingiu no Brasil um número de salas que corresponde a um terço das 350 criadas por sua co-irmã.

Como se não bastasse, há ainda a Hoyts, cujo site traz as seguintes informações: “Em outubro de 1999, duas grandes empresas internacionais de entretenimento, a norte-americana General Cinema Companies e a australiana Hoyts Cinemas Limited, decidiram juntar forças e criar um multiplex [15 salas] com tecnologia e modernidade sem precedentes no Brasil. Utilizando o know-how adquirido em seus países de origem e em outros que atuam na América do Sul, como Argentina, Uruguai e Chile, elas construíram um inovador e gigantesco complexo de exibição de filmes, o multiplex Hoyts General Cinema”.

Na Argentina eles já dispõem de cinco complexos, no Uruguai de três e no Chile de seis. Vão se expandir aqui também.

Espremidos num canto, os exibidores nacionais que já chegaram a controlar 100% do mercado e hoje pagam os seus pecados pela falta de visão estratégica, deixando-se embalar pelo vício de considerar que “filme estrangeiro é que traz dinheiro”, estão sob ameaça de extinção.

Diante dessa ocupação crescente, acelerada, predatória e abusiva do nosso mercado de exibição cinematográfica, o que fazem o Minc e a Ancine? Reduzem gradualmente a cota de tela para projeção obrigatória de filmes brasileiros, que já era quase simbólica em 2004 – 63 dias por ano -, para um índice que vai de 28 a 42 dias, conforme o tipo de sala, em 2007.

Pior que a redução é o brilhante raciocínio que a engendrou: se a procura do público por filmes brasileiros está caindo, a cota deve acompanhar a queda.

O resultado não poderia ser outro. Chegamos a 9,7% de ocupação do nosso próprio mercado.

Não basta – e sob muitos aspectos é inclusive contraproducente – distribuir dinheiro a fundo perdido para a produção. É preciso ter política para a distribuição e para a exibição.

O cinema brasileiro está longe das telas e não aparece na televisão, assim como a música brasileira – a que presta – está cada vez mais distante das rádios e tevês, sejam elas privadas ou públicas.

Quem quiser acabar com o cinema brasileiro, com a música brasileira, com as atividades culturais que impliquem em processos industriais, que siga apoiando a política libertária do Minc: a de oferecer irrestrita liberdade para que os monopólios manietem e manipulem o mercado a seu bel prazer.

Quem não quiser deve tomar consciência de que a mudança necessária não é tópica.

Se há um setor onde o imperialismo não brinca em serviço é o da cultura – “entertainment”, dizem eles para encobrir o caráter ideológico que impregna toda e qualquer produção cultural. Dentro deste setor o carro chefe, ao qual eles dispensam maiores cuidados, é o cinema.

Sem patriotismo, consciência nacional, coragem e ousadia das autoridades públicas e da laboriosa comunidade cinematográfica não há santo guerreiro capaz de tirar o nosso cinema do gueto onde ele está sendo meticulosamente estrangulado.

 

Sérgio Rubens de Araújo de A. Torres

Texto extraído da Hora do Povo – 05/09/2007

Civita recebe R$ 1 bilhão para se tornar laranja da Telefónica na TVA

O relatório de Plínio de Aguiar Júnior, conselheiro diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), sobre a anuência prévia para a venda da TVA (Grupo Abril) para a Telefónica (Telecomunicações de São Paulo S.A), demonstra claramente a violação da Lei do Cabo, que estabelece um limite de 49% de ações com direito a voto (ordinárias) para estrangeiros. Para burlar a legislação, a Abril e a Telefónica estabeleceram no Acordo de Acionistas da Comercial Cabo e da TVA Sul que todas as deliberações do Conselho de Administração e da Assembléia Geral dependerão da aprovação de uma “Reunião Prévia”, na qual participam e votam todos os acionistas, inclusive os detentores de ações preferenciais.

A decisão da Anatel, tomada na reunião do dia 18 de julho por 3 votos a 2, foi para se adequar à Lei do Cabo. Mas, por esse artifício, é a Reunião Prévia que tem o poder de mando, mostrando quem terá o controle independente dos percentuais das ações ordinárias, uma vez que todos votam na referida reunião: a Telefónica, com 86,7% do capital total da Comercial Cabo e 91,5% da TVA Sul, o que torna o Civita um simples laranja da empresa oficialmente espanhola, mas que tem por trás fundos de pensão e bancos norte-americanos.

Sinteticamente: a Telefónica (Telesp S.A.), através da Navytree, ficou com 86,7% do capital total da Comercial Cabo (TV a Cabo em São Paulo), com 19,9% das ações com direito a voto (ordinárias), e 91,5% do capital total da TVA Sul (TV a Cabo em Curitiba, Foz do Iguaçu, Florianópolis e Camboriú), com 49% das ações com direito a voto – além de 100% da Lightree, prestadora de serviços de MMDS (microondas).

Formalmente essa distribuição estaria dentro da lei, porém, como observou o conselheiro, “além das participações societárias devem ser observadas, contudo, outros aspectos para a verificação efetiva do controle”. E assim, demonstra Plínio Aguiar, que a existência e a finalidade da Reunião Prévia é inequívoca para a definição das decisões. Diz o item 4.1 do Acordo de Acionistas da Comercial Cabo acertado entre Telefónica e grupo Abril: “Os Acionistas concordam em sempre comparecer às assembleias gerais da Companhia e a exercer os direitos de voto inerente às suas Ações de modo uniforme”.

Ainda no mesmo item, “a Holding Cabo SP se compromete a fazer com que os membros do Conselho de Administração da Companhia por ela indicados sempre compareçam e votem nas reuniões do referido órgão no tocante aos Assuntos Materiais do Conselho (conforme definido na Cláusula 4.3) de acordo com o que for determinado em reuniões realizadas previamente a cada uma das assembleias gerais e/ou reuniões do Conselho de Administração da Companhia (“Reunião Prévia”) em que sejam deliberados os Assuntos Materiais do Conselho ou da Assembleia, conforme o caso”.

Estabelecida a Reunião Prévia como instância responsável pelas decisões, o item 4.3 do Acordo de Acionistas define quem vota: “A aprovação das matérias submetidas à Reunião Prévia e que sejam relacionadas a questões patrimoniais e de investimentos da Companhia, de acordo com o disposto nas Cláusulas 6.4 e 7.4 deste Acordo (“Assuntos Materiais do Conselho” e “Assunto Materiais da Assembleia”, respectivamente e, em conjunto, “Assuntos Materiais”) deverá contar com o voto favorável de cada um dos acionistas da Companhia e de cada um dos Acionistas da Holding Cabo SP”. Com isso, fica patente que a aprovação das matérias depende da anuência da Telefónica. Ou seja, no dizer de Plínio Aguiar, “o art. 7º da Lei nº 8.977, de 6 e janeiro de 1995 (Lei do Serviço de TV a cabo) não estaria sendo observado, uma vez que o seu objeto é assegurar que as decisões em concessionárias de TV a Cabo sejam tomadas exclusivamente por brasileiros, o que não ocorrerá no presente caso”.

Cabe destacar do Acordo que “as decisões tomadas nas Reuniões Prévias servirão como orientação de voto para todos os efeitos legais e vincularão os votos de todos os Acionistas nas assembleias gerais da Companhia, bem como os votos dos membros do Conselho de Administração eleitos nas reuniões respectivas”, inclusive entre as questões patrimoniais de investimentos, como “aprovação e modificação do Plano Anual de Negócios e do Orçamento Anual da Companhia”. Caso não defina uma posição na Reunião Prévia, os acionistas se comprometem a “realizar uma nova Reunião Prévia para dirimir o impasse”. Isto é, mais uma vez fica evidente a subordinação do Conselho de Administração e da Assembleia Geral da Holding Cabo SP às decisões da Reunião Prévia.

O conselheiro sublinha que sob a ótica do Regulamento para Apuração do Controle e de Transferência de Controle Acionário em Empresas Prestadoras de Serviços de Telecomunicações, fica claro quem terá o controle, conceituado como “poder de dirigir, de forma direta ou indireta, interna ou externa, de fato ou de direito, individualmente ou por acordo, as atividades sociais ou o funcionamento da empresa”. Para Plínio Aguiar, “a Telesp [Telefónica] possuirá 86,7% do capital total da prestadora. A Telesp será, portanto, a grande fonte de recursos financeiros da prestadora, inclusive nas situações de necessidade de aporte de capital”.

Sobre este Regulamento, no item sobre o “uso comum de recursos, sejam eles materiais, tecnológicos ou humanos”, ele frisou que o Acordo de Acionistas estabelece que a operação e o gerenciamento da parte de telecomunicações ficarão a cargo da Telefónica: “A Holding Geral é concessionária de serviços de telefonia fixa comutada na área de São Paulo e uma das maiores empresas de telecomunicações do país, contando portanto com alto nível de experiência no gerenciamento e operação de redes de comunicação, bem como de infra-estrutura de comunicação”.

No Regulamento para apuração de controle é citado a “adoção de marca ou estratégia mercadológica ou publicitária comum”. Conforme o conselheiro, “já existe acordo firmado entre a Telesp e a TVA para comercialização conjunta de produtos”. De fato, a estratégia mercadológica comum já vinha ocorrendo muito antes da anuência prévia da Anatel. A esse respeito, em entrevista ao HP, em março, o diretor-executivo da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), Alexandre Annenberg, declarou: “Isso já está acontecendo e a gente percebe inclusive pela propaganda comercial que está sendo feita. Você abre os jornais e vê as propagandas conjuntas, sendo oferecido ao consumidor que ele pode ter como provedor de internet o Speedy, da Telefónica, ou o Ajato, da TVA. A Telefónica já está oferecendo pacotes de TV por assinatura, o que mostra que a operação comercial já está em andamento”.

As questões que foram abordadas referem-se ao controle acionário da Comercial Cabo (TV a Cabo em São Paulo). No caso da TVA Sul, formalmente, há uma diferença por estar fora da área de concessão da Telefónica (Telesp). Contudo, segundo Plínio Aguiar, “observa-se que no Acordo de Acionistas da TVA Sul (fls. 277 a 298, do Processo) as cláusulas 4.1 a 4.5, 5.3, 6.4 e 7.4 são semelhantes às cláusulas de mesmo número da Comercial Cabo, já comentadas”.

A transação, anunciada desde outubro do ano passado, rendeu R$ 922 milhões para os cofres do grupo Abril.

Meses antes, em maio, o grupo já havia repassado 30% do seu capital para o conglomerado de mídia nazi-africâner Naspers, por US$ 422 milhões (cerca de R$ 820 milhões, em câmbio atual).

 

Valdo Albuquerque

Texto extraído da Hora do Povo – 15/08/2007

Creative Commons é renúncia irrevogável do direito do autor

 

Em seminário durante o Festival do Rio 2006 de cinema, o mineiro Fernado Brant, autor de clássicos como “Travessia” e presidente da União Brasileira de Compositores, afirmou que, ao defender a “flexibilização” do direito dos autores, o ministro Gil “não está ao lado dos criadores brasileiros de cultura”. Na palestra, que hoje reproduzimos na íntegra, Brant denuncia que “flexibilizar é, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome”.

 

FERNANDO BRANT

 

Sou apenas um compositor brasileiro. É dura a vida de um compositor popular em nosso país.

Posso falar de meu caso, pois ele se aplica a muitos que têm algum talento musical ou literário e se aventuram na arte de criar melodias e harmonias, juntá-las às palavras e criar uma canção.

A canção move o mundo.

Ao lado do trabalho e da criatividade, o autor necessita de sorte, persistência. Tem de estar disposto a enfrentar muita incompreensão. Precisa ser original no que faz e sagaz na relação com a indústria cultural, com o mercado editorial e de comunicação.

Com 20 anos de idade, estudante ainda, fiz minha primeira letra para uma canção. A obra, em parceria com Milton Nascimento, abriu um deslumbrante horizonte para nós. Ingênuos, no entanto, assinamos um contrato de edição e, sem querer, arranjamos um parceiro indesejado que nos acompanha até hoje. A satisfação do menino letrista assinando o seu primeiro contrato se dissolveria no tempo, permanecendo, porém, um incômodo que ainda o acompanha.

Mas que, por não ser irrevogável, pode ser solucionado.

Esse fato serviu, no entanto, para que ele adquirisse a consciência da importância de manter a sua obra sob seu controle. É o que ele fez, o que eu fiz, daí em diante. Eu sou o meu editor.

Volto a dizer: é dura a vida de um compositor brasileiro.

Tendo sua obra sob seu controle, nem por isso os problemas foram todos resolvidos.

Donos de emissoras de rádio não queriam pagar direitos autorais, pois estavam, segundo eles, divulgando a obra. Inútil dizer-lhes que divulgação não paga comida, escola, aluguel, taxas e impostos. Ou alertá-los para o fato de que estariam, sem autorização, lucrando com o trabalho alheio.

As emissoras de televisão também não concordavam em pagar pelo uso de música. E os exibidores de cinema. E as prefeituras, os governos em geral.

Depois de muita luta, de muitos anos de esclarecimento sobre o que ocorria em todo mundo, a situação foi melhorando. Nossos direitos passaram a ser reconhecidos. Muitos começaram a observar os direitos dos autores musicais. Mas a cada um que respeita os criadores e as leis, surge um outro disposto a burlar, piratear, usar sem autorização o que não lhe pertence. Brigar pelos direitos autorais é uma batalha sem fim.

Há alguns anos, ouvi de um dirigente de bolsa de valores o seguinte raciocínio. Segundo o simpático financista, a música só deveria render para o autor durante, no máximo, cinco anos. Depois ela seria de todos. Argumentei com ele que até concordaria com sua tese se ele também considerasse que todos os seus bens – imóveis, ações e carros – seriam igualmente de todos ao fim do mesmo período. Socialista com a minha propriedade, ele era radicalmente capitalista com o que era seu.

Este é um conceito que deve ficar claro: o direito autoral é um direito de propriedade. A obra original, criada por alguém, pertence a seu criador e é protegida moral e materialmente.

Em termos de legislação estamos bem. Nossa Constituição define com exatidão a questão: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Ninguém pode utilizar uma obra de criação sem que o autor autorize.

O juiz da Corte Internacional de Haia, Francisco Resek, em congresso realizado em São Paulo, frisou a importância da proteção da propriedade intelectual no mundo contemporâneo, lembrando que ela nasceu da Declaração Universal dos Direitos do Homem que, em seu artigo 27, determina que “todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.”

Aqui eu abro um parêntese para falar aos criadores do cinema nacional. Cresci vendo filmes. Sonhei, como muitos de minha geração, em ser cineasta. Andava pelas ruas de minha cidade com meu olhar-câmera desvendando e recriando o mundo. Aprendi muito com todos os cinemas: americano, europeu, latino, asiático e, sobretudo, amei e torci e torço profundamente pelo cinema brasileiro. A arte cinematográfica sempre foi uma de minhas paixões. Aprendi muito vendo filmes e ouvindo suas trilhas sonoras. O cinema brasileiro sempre caminhou junto com a música. Por essas razões, não consigo entender algumas manifestações equivocadas de criadores brasileiros de cinema que, ao contrário de reconhecer nos músicos e compositores seus parceiros, se movimentam para negar os direitos autorais musicais.

Mas vamos em frente.

A chegada de um novo meio de comunicação não significa que os direitos e obrigações existentes possam ser desrespeitados ou devam ser abolidos.

O que vale para o cinema, a televisão, o rádio e toda espécie de comunicação ao público de uma obra, continua valendo para a internet e o que mais seja criado.

Da mesma forma que crimes como o assalto às contas bancárias, a distribuição de pornografia e/ou pedofilia ou as calúnias são punidas quando ocorrem no mundo digital, o mesmo se aplica para os direitos autorais.

O avanço tecnológico cria um grau maior de dificuldade para o controle do uso e circulação das músicas, dos filmes, das obras artísticas em geral.

Essa situação cria a ilusão de que não é mais possível controlar os direitos autorais no âmbito digital. Isso não é verdade. A mesma tecnologia que facilita a distribuição oferece mecanismos de controle.

Para o presidente da Associação Brasileira de Direitos Autorais (ABDA), Manoel Joaquim Pereira dos Santos, “a solução para este problema não está em flexibilizar os direitos do autor, mas sim em aprimorar os mecanismos de controle legal. A resposta está no direito autoral, não fora dele.”

Se for para flexibilizar os direitos de autor, por que, então, não flexibilizar também os demais direitos de propriedade e trabalho. Se a Fundação Getúlio Vargas advoga o fim de nossos direitos, nós poderíamos sustentar que eles, da mesma forma, trabalhem sem remuneração. E que todos os produtos das indústrias e do comércio, tudo que é negociado em nosso dia a dia, fiquem disponíveis para todos, de graça. Por que socializar apenas o nosso direito?

Quando se fala em flexibilização, o que quer dizer mesmo é estatização. Pelo menos no que refere ao Ministério da Cultura, que mostrou suas garras autoritárias no episódio da ANCINAV. Ali se quis transferir os direitos autorais das músicas para aquele órgão.

Tenho receio – um pouco de pavor, confesso – quando tenho conhecimento de anteprojetos de assessorias, circulando pelos corredores do ministério, propondo intervenção estatal nos direitos autorais. Tenho lembrança da ditadura e não aprecio seus quitutes. O Ministro, em entrevista recente, a propósito, lamenta que a questão autoral seja de direito privado e não público.

Vejam a declaração que o Ministro fez à revista “BACK STAGE”: “não vemos com bons olhos a aplicação de medidas tecnológicas de proteção de direitos autorais para o ambiente digital”.

Como se todos os autores estivessem com a vida ganha e não devessem se defender e serem remunerados pelo uso de suas obras.

Mas vamos ao Creative Commons, esse sistema de licenciamento, idealizado pelo professor de Direito da Universidade de Stanford, Lawrence Lessig, como um sistema alternativo ao direito autoral. Segundo a revista Forbes, “Lessig não é amigo verdadeiro de nenhum autor”.

Emma Pike, diretora-geral dos direitos britânicos da música, recomendou que os autores estejam absolutamente esclarecidos antes de assinarem uma licença do creative commons.

“Não oferece nenhuma remuneração, funciona para sempre, se aplica no mundo inteiro e não pode ser revogado”. Só amadores, só desavisados ou artistas milionários aceitariam essa renúncia, irrevogável, aos seus direitos.

Para a maioria absoluta dos autores, o Creative Commons não oferece nenhum benefício real e impede o exercício de seus direitos básicos à proteção, à distribuição e à remuneração apropriadas de seus trabalhos.

Michel Sukin adverte: creative commons são uma ferramenta para amadores e não para profissionais. Qualquer um que queira fazer sua vida com suas criações deve ter cuidado antes de se juntar a essas licenças.

O Creative Commons, dizem seus incentivadores, quer aproximar a noção de que “todos os direitos são reservados” da ideia de que “alguns direitos são reservados”. O autor doa seu trabalho para “a utilização comum” e recebe os créditos como autor de sua obra.

É a mesma ideia dos donos de rádio de antigamente e de alguns dos dias de hoje: você não ganha nada mas tem seu trabalho e seu nome divulgados, promovidos. Você não vai poder comer, morar, se educar, mas terá muito prestígio.

Flexibilizar os direitos autorais é um retrocesso, não um avanço. É voltar ao tempo da barbárie sob verniz tecnológico.

É, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome.

Essas são as características essenciais da licença do creative commons: é irrevogável e concedida perpetuamente (ou para o período completo do direito autoral, o que dá no mesmo).

O autor, assim, desiste, de fato, de todas as possibilidades de ganhar dinheiro do trabalho sujeito a tal licença, mesmo se ele reservar o direito de explorá-lo comercialmente, pois não é razoável que alguém possa ser convencido a pagar por um trabalho que já está disponível.

A lei brasileira, que não é de direito de cópia e sim de direito autoral (com suas implicações morais e materiais) já permite que o autor libere o uso de sua obra quando quiser.

Recebo mais pedidos de liberação sem ônus do que com pagamento. E muitas e muitas vezes, em casos de entidades beneficentes, escolas e intérpretes iniciantes, entre outros exemplos, eu autorizo o uso, gratuitamente.

É muito mais racional os autores conservarem o domínio sobre suas obras (editando eles mesmos os seus catálogos) do que entregá-las aos discípulos de Lawrence Lessig.

Nosso querido Gilberto Gil nos deixa em situação embaraçosa.

Sentimos uma certa timidez em contestar publicamente um colega e um democrata que admiramos. Mas hoje, quando ele fala, não se vê apenas o grande artista, o compositor brasileiro admirável. Seu discurso nos chega como a palavra do Governo em termos de Cultura.

O autor Gilberto Gil ceder para os Creative Commons uma de suas mais de quinhentas composições é uma coisa. É apenas uma canção entre centenas que ele criou. Mas, sendo ele também o Ministro da Cultura, é grande o estardalhaço.

Por que ele não cede as outras, cuja maioria tem sob seu controle? Certamente por que ele, o autor, não tem tanta certeza quanto o ministro, que diz que o “creative commons é mais um movimento bem sucedido de implementação de licenças alternativas que vem ao encontro da política de acesso à cultura do Ministério da Cultura”.

“O Ministério, continua Gilberto Gil, tem apoiado a Fundação Getúlio Vargas na implantação desse projeto no Brasil, desde seu lançamento”.

Quer dizer o seguinte: o ministério que cuida da cultura não está ao lado dos criadores brasileiros de cultura.

Pois, na realidade, o Creative Commons mina o valor dos trabalhos criativos e a administração coletiva do direito autoral. Vem para confundir e tornar mais difícil, para o criador, fixar a proteção, o controle e a remuneração de suas criações; remove o incentivo econômico tradicionalmente associado ao direito autoral e lesa, ao contrário do que se afirma, a diversidade cultural. Quem vai querer trabalhar com cultura se dela não pode viver?

Assinando uma licença creative commons o autor não recebe nada em troca. O Creative Commons não se responsabiliza por nada. É textual no contrato de licenciamento: “o Creative Commons não dá qualquer garantia quanto às informações fornecidas e se exonera de qualquer responsabilidade por danos resultantes de seu uso”.

Por outro lado, no sistema de gestão coletiva de direitos autorais os autores são mais fortes do que quando agem individualmente. As licenças abertas do Creative Commons passam por cima do sistema de administração coletiva dos direitos e enfraquecem a todos os autores, a toda a comunidade autoral.

E as licenças do Creative Commons, desrespeitando a nossa lei e os fundamentos do direito brasileiro, atropelam os direitos morais do autor.

Enfim, os Creative Commons foram inventados a partir de uma confusão entre software livre, que gerou o LINUX, uma ótima ideia, e os direitos autorais, que não tinham entrado e nem queriam entrar nessa história.

Melhor negócio faz o autor que, conservando o controle sobre sua obra, mas tendo dificuldade de divulgá-la, cria seu sítio (site) na internet. Colocando ali sua obra, promovendo-a no mundo digital e, ao mesmo tempo, conservando todos os seus direitos.

Creative Commons é um engodo. A quem ele serve?

 

Texto extraído da Hora do Povo – 06/12/2006

De olho na canela do Tio Sam

Apesar de rios de grana despejados pelas multinacionais do disco para emplacar música de baixa qualidade e abafar nossa mais bem sucedida realização cultural – a música brasileira – o samba vai bem, obrigado!

E não é só o samba, também em outras frentes as aves de rapina da cultura popular têm sido contidas.

Por exemplo, a tentativa de vender o “breganejo” como música regional sofreu contraposição das forças vivas da nossa cultura em diversos momentos ao longo dos últimos anos: isto aconteceu quando uma artista como Dona Selma do Coco furou o cerco, quando o I Campeonato Brasileiro de Poetas Repentistas, realizado em São Paulo, pelo CPC -UMES, em 1997, fez estrondoso sucesso de participação, público e crítica, quando casos como o das três irmãs cegas Maroca, Pororoca e Indaiá, que ganham a vida cantando coco e tocando ganzá em Campina Grande e Juazeiro, chegam às telas do cinema, quando as gravadoras independentes lançam centenas de títulos de autêntica música regional, revelando a força e a diversidade da nossa cultura musical, e quando surge recentemente em Pernambuco a “Sociedade dos Forrozeiros Pé de Serra e Ai”, em defesa do forró e do xote, que tendo a frente Chiquinha Gonzaga e mais de 40 sanfoneiros levou uma multidão às ruas do centro do Recife.

Contra o samba já tentaram tudo. Lançaram o irmão siamês do “breganejo”, o “pagode sabonete”, tentando pegar carona no embalo ganho pelo samba com a explosão do pagode de fundo de quintal. Mas erraram na dose. O que tem ficado de sua versão caricata é um ritmo recheado de letras artificialmente melosas, cantadas em falsete por figuras masculinas de cabelo descolorido e traseiros rebolativos. Na verdade, o que conseguiram mesmo foi fazer com que os sambistas mais experientes passassem a evitar precavidamente a denominação “pagodeiro”.

Mas não é só isso, a infiltração do “funk” nas favelas também é mais uma tentativa de alienar e embrutecer o povo afastando-o de suas raízes culturais.

Para atrair a juventude temperaram-no com certo ar de marginalidade e contestação que, no entanto, não se sustenta e se exaure na sua própria temática, um palavrório muito próximo ao que é encontrado nas paredes de qualquer mictório público. É a “arte mictória” característica da decadência capitalista.

Aliás, observa-se em torno do “funk” um conluio de multinacionais que querem exportar o seu ritmo a qualquer preço; os traficantes que o escolheram como ritmo preferido para propagar suas bravatas, e o oportunismo demagógico da grande mídia que insiste em dedicar-lhe espaço “nobre” na sua programação (basta assistir alguns programas do Faustão nas tardes de domingo) e propagandear-lhe “grandes” feitos na Europa, o que se fosse verdade demonstraria apenas que o Velho Mundo andaria mal das pernas na área cultural.

A expansão do “funk” esgotou-se na sua própria estética grotesca, copiada de uma sub-arte norte-americana, rejeitada pela parcela, como o do pau-brasil, da cana-de-açúcar, da mineração, do café; resgata como nenhum gênero nossos heróis como Zumbi, Tiradentes, João Cândido, Getúlio; nossas grandes e pequenas lutas como a Expulsão dos Holandeses, a Conjuração Mineira, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República, a Revolta da Chibata, a República Nova, “O Petróleo é Nosso”, a luta contra a Ditadura, a luta pela Anistia, pelas Diretas, contra as mazelas e o entreguismo do governo FHC; os feitos nas ciências de Santos Dumont, Oswaldo Cruz e César Lattes; nossos homens de letras como Machado, Castro Alves e Drummond. Ou seja, não é exagero nenhum dizer que ao samba diz respeito tudo que é humano e brasileiro.

Desse modo, associar a esta exuberância rítmica e temática a monocórdia melódica e a temática rala do “hip hop” é jogar água no moinho dos que querem corromper nossa matriz cultural.

Para desespero de nossos oponentes tudo no Brasil é motivo para samba, até comer feijoada.

Não é por outro motivo que este fenômeno prolifera no Rio de Janeiro. Roda de Samba com feijoada. Tem para todos os gostos, em toda a cidade. No Centro, zona sul e no subúrbio.

É muito bom ver as famílias reunirem-se aos domingos em torno da nobre iguaria. Idosos, jovens, casais, crianças e às vezes até bebês em carrinhos.

Estas rodas de samba estão, cada vez mais, cumprindo o papel de fazer chegar até o povo a boa música que lhe é sonegada pelos meios de comunicação. São em sua maioria espetáculos de ótima qualidade, com bons músicos e frequentadas por grandes artistas da nossa música popular como Monarco, Wilson Moreira, Luiz Carlos da Vila, Dorina e uma infinidade de bons sambistas, alguns ainda iniciando, mas que nestes encontros têm a oportunidade de integrar-se e mostrar suas criações e suas qualidades, pois o espírito e a prática coletiva estão na raiz do samba, e é assim que ele nasce.

É a resposta do povo. Se para eles vale tudo para destruir nossa cultura, para nós vale qualquer coisa para defendê-la, inclusive botar o feijão no fogo aos domingos e reunir o pessoal em torno, o que para nós não é nenhum sacrifício.

Portanto, acho que muito pouco benefício nos trará ficar adulando esse tal “hip hop” que eles querem nos empurrar como fazem com pneus usados, tecnologia obsoleta outros mais. Alguns o fazem caindo no canto da sereia de que terão mais espaço na “grande mídia”, mas se refletirem verão que este preço não compensa.

Justiça seja feita, esta alienação hoje já atinge inclusive figuras do primeiro escalão da República que, acoelhadas, capitulam diante do poder das multinacionais, especificamente na área da cultura onde o Ministro, ao invés de advogar a defesa dos direitos autorais dos nossos compositores, faz o inverso, além do equívoco de patrocinar com recursos públicos a ida ao exterior de pseudo “representações artísticas” que são a negação da cultura brasileira. Fatos que demonstram a necessidade de “nacionalizar” o Ministério da Cultura.

Enquanto isso não acontece, prefiro ficar com a irreverência e o espírito prático dos tamoios.

No livro precursor “Samba”, publicado em 1933, Orestes Barbosa, compositor de “Chão de Estrelas”, conta, procurando mostrar a origem da musicalidade dos cariocas, que os tamoios, que habitaram a Cidade do Rio de Janeiro, em seus primórdios, eram extremamente musicais e “viviam voltados para os seus instrumentos rudes, exímios tocadores de inúbia – uma flauta feita do osso das pernas dos inimigos”. Prossegue o autor: “Há um pequeno baú de folhas na igreja dos Barbadinhos, que guarda os despojos de Estácio de Sá. Mas falta lá um osso da perna esquerda do invasor. Possivelmente a canela desse lusitano, flechado na Praia do Flamengo, acabou na boca de algum Pixinguinha do tempo…”.

Os Tamoios deram exemplo e não temos porquê não segui-lo. A ordem é resistir até que chegue o dia de tomarmos emprestado uma das canelas do Tio Sam para fazer uma flauta.

 

Irapuan Santos

Texto extraído da Hora do Povo – 01/07/2005

MULTIS USAM JABÁ PARA CENSURAR A PRODUÇÃO MUSICAL BRASILEIRA

 

De janeiro a junho de 2004, a Warner lançou sete CDs de música brasileira (incluindo pop/rock cantado em português): Kelly Key (Ao Vivo), Os Travessos (Ao Vivo), Catedral (O Sonho Não Acabou), Detonautas (Roque Marciano), O Rappa (O Silêncio que Precede o Esporro), Gino e Geno (Os Sucessos), Nana, Dori e Danilo (Para Caymmi). O faturamento anual da Warner Music Brasil é da ordem de R$ 170 milhões.

No mesmo período, a gravadora CPC-UMES, cujo faturamento anual é cerca de quatrocentas vezes menor, também lançou a mesma quantidade de CDs: Brazilian Trombone Ensemble (Um Pouquinho de Brasil), Céline Imbert e Marcelo Ghelfi (Vinícius, Sem Mais Saudade), Claudia Savaget (Caminhando), Gesta (A Chave de Ouro do Reino do Vai-Não-Volta), Vésper (Ser Tão Paulista), Estação Caixa-Prego (Brasileirando), Mário Eugênio (Sonoridade). Não vamos falar de qualidade musical e consistência cultural. Com exceção da família Caymmi, os outros seis discos lançados pela primeira dificilmente passariam nos critérios de seleção da segunda. Os sete CDs da CPC-UMES apresentam o melhor grupo de trombones do mundo, a maior diva do nosso canto lírico, a intérprete preferida de Cartola, um conjunto armorial apresentado por Ariano Suassuna, um vocal avalizado pela presença ao vivo e a cores de Chico Buarque numa das faixas, uma alegre incursão pelos ritmos nordestinos, um violão de suavidade comparável a do saudoso Paulinho Nogueira. O fato mais significativo é que no plano quantitativo a produção (de música brasileira) de uma pequena gravadora nacional tenha atingido o mesmo patamar de uma das cinco mega-corporações multinacionais que assolam o nosso mercado.

Alguém poderia pensar que a CPC-UMES se constitui numa exceção entre as gravadoras nacionais e que a performance da Warner não é representativa do desempenho de suas co-irmãs. Fixemo-nos então na Universal, a maior das cinco, tanto no Brasil quanto no mundo, empresa que inclusive apresenta-se como “um raro caso de vitalidade cultural na indústria fonográfica”.

Consultando a relação de integrantes de seu cast, encontraremos pérolas de inquestionável raridade: Babado Novo, É o Tchan, Carla Xibombom Cristina, as apresentadoras de televisão Babi e Gabi, Netinho, Paulo Ricardo, Kid Abelha, Nando Reis… Quanto à “vitalidade cultural”, não há, portanto, diferença perceptível entre Universal e Warner.

De janeiro a junho de 2004, a Universal lançou doze CDs de música brasileira. A Biscoito Fino, gravadora nacional, criada há menos de cinco anos, lançou dezenove: Joyce, Sérgio Santos, Paulo Moura, João Carlos Assis Brasil… e até Michel Legrand, interpretando Luis Eça, só para humilhar a oponente.

Restam Sony, BMG e Emi. Juntas, lançaram, sempre de janeiro a junho de 2004, vinte e nove CDs. Confrontemos esse número com a produção das seguintes gravadoras nacionais: Kuarup, Indie, Velas, Eldorado, Rob Digital, Dubas, Lua, Movie Play, Trama, Camerati, Núcleo Contemporâneo, Jam, Som da Maritaca, Marari, Atração, Acari, Carioca, Rádio MEC, Revivendo, Cid, Zabumba, Lumiar, YB, MCD, Visom, Palavra Cantada, Albatroz, Elo, Sonhos e Sons, Minas, Lapa, Pôr do Som, Maianga, Net, Reco-Head, Natasha, Nikita, Dabliú, Fina Flor, Pantanal, Galpão Crioulo, Sapucay, Zan, Paradoxx, Candeeiro, Baratos Afins, Paulus, Deck, Chororó, Barulhinho, Acit, Quitanda, Terreiro, Aconchego, Chita, Outros Discos, Top Tape, Villa Biguá, Play Art, Azul, Pau Brasil. Chegaremos facilmente a 150 CDs, contra 29 das três majors.

Acrescentemos, ainda, meia centena de CDs lançados por gravadoras nacionais não relacionadas na lista, e outra meia centena produzida por artistas independentes, sem o concurso de qualquer gravadora. Teremos 276 novos lançamentos, contra 48 das cinco majors.

Para que o mapa fique completo, é necessário situarmos a produção da Som Livre. Ao contrário das demais gravadoras nacionais, o braço musical das Organizações Globo possui grande poderio econômico e fácil acesso à mídia, porém encontra-se hoje limitado quase exclusivamente ao lançamento de trilhas de novelas produzidas a partir de fonogramas cedidos pelas megaconcorrentes.

Vê-se que as gravadoras nacionais e artistas independentes alcançaram uma produção que, tomada em conjunto, é significativamente superior a das cinco multinacionais, em termos de qualidade e quantidade. No entanto, a situação se inverte quando comparamos as respectivas participações nos mercados de execução pública e venda de CDs. Warner, Universal, Sony, BMG e Emi monopolizam 85% de ambos. Sem a Som Livre, gravadoras nacionais e artistas independentes, somados, não passam de 3%.

Trata-se de uma situação inteiramente absurda, insustentável, mantida de forma criminosa pelo jabá que as multinacionais pagam para que suas gravações sejam executadas até a exaustão nas emissoras de rádio e televisão. O uso e abuso dessa modalidade de suborno faz com que, cada vez mais, qualidade e diversidade, marcas registradas da música brasileira, sejam banidas dos meios de comunicação e, consequentemente, das prateleiras das lojas. Para se aquilatar o nível atingido por essa deformidade, destaquemos alguns artistas que estão fora dos casts das cinco multinacionais: Paulinho da Viola, Alceu Valença, Gal Costa, Toquinho, Bethânia, Erasmo Carlos, Lobão, Edu Lobo, Geraldo Azevedo, Elomar, Inezita Barroso, Beth Carvalho, Nei Lopes, Alcione, Luiz Carlos da Vila, Jair Rodrigues, Theo de Barros, Fagner, Belchior, Lecy Brandão, Sérgio Reis, Renato Teixeira, Almir Satter, Monarco, Ivone Lara, Almir Guinetto, Jane Duboc, Leny Andrade, Cristina, Oswaldo Montenegro, Francis Hime, Marcus Vinicius, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Fátima Guedes, Tavinho Moura, Elza Soares, Ataulfo Alves Jr., João Donato, Joyce, Dominguinhos, Tom Zé, Tetê Espíndola, Vânia Bastos, Eduardo Gudin, Carlinhos Vergueiro, Zizi Possi, Walter Franco, Johnny Alf, Claudete Soares, Elton Medeiros, Claudio Nucci, Zé Renato, Alaíde Costa, Emílio Santiago, Moraes Moreira, Carlos Lira, Germano Mathias, Amelinha, MPB-4, Quarteto em Cy, Olívia Hime, Olívia Byington, Fafá de Belém, Miucha, Kleiton e Kledir, Sá e Guarabyra, Guilherme Arantes, Cida Moreira, Ednardo, Luiz Melodia, Duardo Dusek, Anastácia, Nando Cordel, Cátia de França, Gerônimo, Marinês, Demônios da Garoa, Lula Barboza, Reinaldo, Wilson Moreira, Sueli Costa, Paulo César Pinheiro, Célia, Pery Ribeiro, Luiz Vieira, Carmélia Alves, Irmãs Galvão, Cauby Peixoto, Angela Maria, Paulinho Tapajós, Mestre Ambrósio, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura, Sivuca, Turíbio Santos, Sebastião Tapajós, João Carlos Assis Brasil, Nelson Freire, Mário Zan, Wagner Tiso, Egberto Gismonti, Toninho Horta, César Camargo Mariano, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal, Nonato Luiz, Armandinho, Izaías Bueno de Almeida, Déo Rian, Altamiro Carrilho, Carlos Poyares, Maurício Einhorn, Naná Vasconcelos, Quinteto Violado, Antônio Adolfo, Borghetti, Orquestra Tabajara e toda e qualquer orquestra.

Poderíamos continuar citando mais duzentos ou trezentos nomes de primeira grandeza que já integraram os casts das multinacionais, mas foram excluídos ou se retiraram em consequência da estratégia monopolista que ganhou terreno nos anos 70 e consolidou-se na década de 90: vender o máximo de cópias do mínimo de títulos, através do uso generalizado do jabá.

Djavan seria um bom nome para encabeçar a lista, pois lança em julho seu novo CD pela Luanda Recordas. Mas, para que não fique a impressão de que a música brasileira vive uma crise de renovação, preferimos prosseguir destacando alguns artistas cujas discografias foram construídas, desde o início, dentro das pequenas gravadoras nacionais e da produção independente: Antônio Nóbrega, A Barca, Quinteto em Branco e Preto, Yamandu Costa, Mônica Salmaso, Vanessa da Mata, Dorina, Ceumar, Xangai, Paulo Simões, Ná Ozzetti, Moacyr Luz, Guinga, Celso Viáfora, Tom da Terra, Flor Amorosa, Vésper, Comadre Florzinha, Renato Motha, Titane, Zé Geraldo, Neto Fagundes, Filó Machado, Rosa Passos, Márcia Salomon, Carmen Queiróz, Fábio Paes, Pedro Osmar, Maricenne Costa, Arrigo Barnabé, Rumo, Vital Farias, Paulinho Pedra Azul, Sérgio Santos, Ana de Holanda, Gereba, Jussara Silveira, Marlui Miranda, Vicente Barreto, Dércio Marques, Josias Sobrinho, Suzana Salles, Selmma Carvalho, Vange Milliet, Simone Guimarães, Nilson Chaves, Passoca, Glória Gadelha, Walter Alfaiate, Délcio Carvalho, Noca da Portela, Luis Tatit, Pedro Camargo Mariano, Bule-Bule, Oliveira de Panelas, Celso Machado, João de Aquino, Maurício Carrilho, Túlio Mourão, Cristóvão Bastos, Banda Mantiqueira, Nelson Ayres, Laércio de Freitas, Banda de Pífanos de Caruaru, Dinho Nascimento, Antônio Madureira, Papete, Osvaldinho da Cuíca, Paulo Freire, Roberto Correia, Milton Edilberto, Duofel, Radegundis Feitosa, JP Sax, Quarteto Maogani, Caíto Marcondes, Hamilton de Holanda, Nó Em Pingo D’ Água, Aquilo Del Nisso, Pagode Jazz Sardinha’s, Cézar do Acordeon, Luis Carlos Borges, Oswaldinho, Quarteto de Cordas da Paraíba, Madeira de Vento, Choro de Varanda, Jota Gê, Bocato, Uakty, Rodoldo Stroeter, Paulo Bellinati, Benjamin Taubkin, Ulisses Rocha, Teco Cardoso, Jazz Sinfônica. Neste item, poderíamos relacionar também mais cem ou duzentos artistas de primeira linha.

Somando os casts atuais da Warner, Universal, Sony, BMG e Emi, não encontraremos mais que trinta e cinco artistas desse nível.

O caudal de criatividade e diversidade que nutre as gravadoras nacionais e a produção independente, e mantém viva a música brasileira, vem sendo posto cada vez mais longe da mídia e do público pela praga do jabá. Segundo informações fornecidas pelo sr. André Midani, alto executivo da indústria fonográfica, por mais de 40 anos, a despesa anual das cinco majors com jabá, no Brasil, fica entre R$ 71 milhões a R$ 95 milhões.

O resultado dessa política foi a crise do mercado. O faturamento da indústria fonográfica caiu de R$ 1,4 bilhões para R$ 1 bilhão, entre 1998 e 2002 – os dados de 2003 ainda não foram divulgados pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores Discográficos). Embora as majors tenham posado de vítimas, atribuindo a crise à pirataria, é fácil verificar que a venda de CDs falsificados é apenas uma das consequências – e não a mais grave – da estratégia criminosa de corromper os meios de comunicação para manipular a demanda e concentrá-la sobre um número cada vez mais reduzido de lançamentos.

Poderia parecer que Warner, Universal, Sony, BMG e Emi mudariam de estratégia ao contabilizarem os prejuízos e avaliarem os riscos impostos à galinha dos ovos de ouro.

Como isso não ocorreu, é de se supor que estejam sendo tangidos pela crença de que o desfibramento da música brasileira lhes possibilitará, finalmente, ganhar o mercado para o pop internacional – sonho seguidamente frustrado pela obstinada resistência do povo a consumir prioritariamente música cantada em inglês.

Miopia ou sabotagem, o fato é que o principal papel cumprido pelo jabá tem sido o de impedir que o público tenha acesso à maior parcela do que de melhor se produz em termos de música brasileira. Mais do que um meio imoral e ilegal de promover as vendas, o jabá converteu-se numa forma intolerável de censura.

Na abertura do Fórum Cultural Mundial, o presidente Lula sublinhou a necessidade de não nos rendermos à constatação de que “a produção cultural no mundo é dominada por uns poucos oligopólios”. O Brasil é um exemplo de como essa dominação é exercida: reduzindo drasticamente as gravações de música brasileira e usando o jabá para impedir que a produção feita à sua revelia chegue ao público.

O patrimônio musical brasileiro, apesar de vasto, não é inesgotável. Sem que o povo tenha acesso aos seus melhores frutos, através do rádio e da televisão, mais cedo ou mais tarde ele acabará sofrendo uma atrofia de graves proporções.

O Ministério da Cultura pode continuar fingindo que isso não é de sua conta. Talvez o ministro sinta-se até constrangido por ser um dos últimos sobreviventes do cast da Warner, condição que certamente não facilita a intervenção isenta do ministério na questão. Mas sem uma ação governamental firme, que obrigue as multinacionais a praticarem a concorrência, como determinam as leis vigentes, os prejuízos à cultura e à economia nacionais tornar-se-ão incalculáveis. Ao contrário de outros prestigiosos setores da cultura brasileira, o que as gravadoras nacionais e artistas independentes cobram do Estado não é dinheiro para a produção. O que o setor pretende é que sua produção, que é maior e melhor que a das multinacionais, não continue sendo impedida de circular pela prática imoral e criminosa do jabá.

 

Sérgio Rubens de A. Torres

Texto extraído do Jornal Hora do Povo – Julho de 2004

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LEGALIZAÇÃO DE DROGAS E A SAÚDE PÚBLICA

Introdução

A intensidade do debate sobre legalização de drogas no Brasil mostra que o assunto “drogas” produz efeitos nas pessoas, que se sentem levadas a ter muitas certezas e a ficar de um lado ou de outro da questão. Mostra também que o debate é profundamente ideológico e que após ouvirmos o lado favorável à legalização e o lado da proibição pura e simples, não ficamos mais esclarecidos a respeito da melhor política a ser seguida. Quando somente um dos aspectos de uma política de drogas, como a que discute apenas o status legal de uma delas, se torna o assunto principal do debate, é como se o rabo estivesse abanando o cachorro e não o contrário.

O objetivo deste artigo para debate é: (1) avaliar a racionalidade e a oportunidade desse debate; (2) tentar estabelecer pontes com drogas lícitas; (3) avaliar os dados disponíveis sobre o efeito da legalização; (4) propor uma alternativa de política de drogas que seja baseada em objetivos claros a serem alcançados; (5) descrever o exemplo da Suécia: restrição às drogas como cuidado social; e (6) algumas conclusões.

 

Racionalidade da legalização de uma droga

Com a intensidade que o debate sobre as drogas gera, poderíamos imaginar que a sociedade sempre tenha reagido de forma eficiente ao tema, ao longo do tempo. Entretanto, historicamente, a sociedade não tem avaliado muito bem os riscos do uso de uma nova droga ou uma nova forma de uso de uma velha droga. Por exemplo, a partir do começo do século XX, inovações tecnológicas tornaram a produção de cigarros mais fácil, tornando a absorção da nicotina muito mais eficaz do que ocorria anteriormente. Além disso, o preço do cigarro caiu dramaticamente. Progressivamente, houve aumento no número de fumantes em todo o mundo e, por muitos anos, os danos físicos associados ao cigarro não foram identificados. Muitos governos chegaram a estimular o consumo, pelos ganhos com impostos. Levou-se mais de quarenta anos para que os países desenvolvidos identificassem os males causados pelo fumo e outros vinte anos para que implementassem políticas de reversão da situação. Essa lentidão em reconhecer danos em algumas situações sociais faz que mudanças no status de qualquer droga, e principalmente quando um aumento de consumo é uma das possibilidades, sejam encaradas com cuidado.

Um dos motivos que dificulta a ação da sociedade é o excesso de retórica sobre o problema: cada droga produz sua própria retórica. Por exemplo, no caso recente da maconha, no Brasil tem sido comum utilizar-se uma retórica na qual o uso da substância estaria relacionado com a liberdade e os direitos do cidadão. Já o cigarro inspira outro tipo de retórica, que busca estimular uma ação estatal para controlar o abuso das companhias produtoras. A retórica pode mudar de país para país, de acordo com o momento histórico.

Tanto a intensidade do debate quanto o clima ideológico sobre as drogas advém do fato de quase não haver informação objetiva para avaliar as políticas que tratam da questão. Nesse sentido, é importante ter alguns referenciais teóricos que ajudem na tomada de decisões. A Figura 1 mostra os três modelos que, de forma explícita ou não, acabam prevalecendo. Os que defendem a proibição total do uso de drogas acreditam que a curva a-b representa o controle ideal, significando que a proibição total é a melhor opção, pois não causa nenhum dano social. Ao contrário, os que estão do lado b da curva, ou seja, da legalização das drogas, consideram que, com a proibição, o dano social aumenta. O argumento geralmente usado é a histórica Lei Seca americana, que produziu aumento considerável da violência promovida pelo crime organizado. Muito tem sido escrito sobre este período e os autores, em geral, enfatizam seu custo social. No entanto, do ponto de vista do consumo de álcool, a lei foi um sucesso, pois diminuiu consideravelmente o consumo global. Entretanto, houve aumento do consumo de álcool de péssima qualidade e um número considerável de pessoas teve problemas sérios de saúde. De qualquer forma, uma simples análise de custo-benefício mostra que essa foi uma experiência que nenhum país ocidental quer repetir, embora os islâmicos ainda adotem tal controle rígido.

 

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Há pessoas que defendem a legalização total das drogas. A curva c-d ilustra este modelo, em que a proibição total levaria a elevado nível de dano, principalmente pelo crime que estaria associado com seu uso ilegal, maior corrupção social, nível mais impuro da substância no mercado negro e dificuldade das pessoas buscarem ajuda para se tratar da adicção. O argumento é que a proibição total causa mais dano do que a legalização total. A grande fraqueza desse tipo de raciocínio é que não leva em consideração que a legalização produz maior oferta e, portanto, expõe um número maior de pessoas ao consumo e a suas complicações. Esses defensores enfatizam em demasia o comportamento individual e não consideram o nível agregado do dano. Por exemplo, se legalizássemos completamente a maconha, uma das possibilidades seria maior consumo global da droga e, possivelmente, maior consumo na população mais jovem, pois é isto que ocorre com o álcool e o cigarro. Portanto, com a legalização, teríamos talvez menor número de crimes violentos, mas a população mais jovem teria maiores complicações na escola e até poderia aumentar um tipo de criminalidade menos violenta por parte dos usuários a fim de conseguirem dinheiro para consumo.

O terceiro modelo, intermediário, baseia-se na curva c-e, que tem recebido grande suporte em termos de pesquisa. Nessa curva, podemos perceber que a proibição total de uma droga produz dano e, à medida que ela progride na escala de legalidade, aumentam sua disponibilidade social, o número de usuários e o nível global do dano. As drogas lícitas oferecem evidências para esse modelo. No caso do álcool, centenas de pesquisas mostram que quanto menor o preço e maior a disponibilidade, maior é o número de pessoas com problemas relacionados ao uso. A consequência de adotar a curva c-e como modelo de política de drogas é, em primeiro lugar, diminuir o consumo global de todas as drogas. A estratégia para atingir essa diminuição pode variar de droga para droga e depende do momento histórico.

A tendência mundial é, por exemplo, tornar progressivamente o álcool e o fumo mais próximos da proibição ou de controles sociais rígidos, através de leis e restrições ao uso. No caso da maconha, não existe uma tendência mundial nítida. Alguns países adotam penas leves ou um grau maior de tolerância com os usuários, mas em nenhum lugar existe a legalização aberta. No caso das drogas mais pesadas, como heroína e cocaína, a tendência é marcante em relação à proibição. O fato de existir políticas diferentes para drogas diferentes é muitas vezes apontado como hipocrisia social. Na realidade, essa deveria ser uma atitude pragmática numa sociedade que busque responder ao problema com foco em resultados e não em retórica e debate ideológico. Tal proposta deveria ser julgada pelo seu efeito na diminuição do custo social de todas as drogas e não somente de uma droga específica.

 

As drogas lícitas podem nos ensinar algo?

O álcool é a substância com maior potencial para ensinar como estabelecer uma verdadeira política de drogas baseada em resultados. Em 2003, a Organização Mundial de Saúde produziu um livro1 em que os maiores especialistas do mundo propuseram medidas a ser implementadas em todos os países, buscando diminuir o custo social relacionado a essa substância. A conclusão geral é que todos os países deveriam diminuir o consumo global de álcool. A Figura 2 ilustra o modelo a ser seguido. O consumo de álcool de qualquer população segue uma curva normal, que nesta figura seria a curva X onde, para melhor visualização, foi excluída a população que não bebe. Temos, portanto, uma parte da população que bebe um pouco, grande parte que bebe dentro da média e uma parte de bebedores pesados. Inicialmente, se pensa que o foco seria diminuir o número de bebedores pesados, mantendo-se a média de ingestão da população. No entanto, essa diretriz poderia, quando muito, produzir um pequeno efeito quando implementada, como mostra a curva Y. Quando as orientações são no sentido de diminuir o consumo global, como na curva Z, decrescendo a média de consumo populacional, existe um impacto muito maior, pois um número menor de pessoas beberá, um número menor ficará dependente e, portanto, haverá menor custo social global. Esse efeito tem sido chamado do “paradoxo preventivo”, pois se orienta para diminuir substancialmente a quantidade de pessoas dependentes e o consumo global de toda a população.

 

 

São várias as diretrizes políticas que visam a diminuir o consumo global de álcool:

(1) Políticas de preço e taxação são ações com maior impacto social imediato. Estudos mostram que o preço do álcool segue o padrão de qualquer mercadoria e, quanto maior, menor o consumo. Existe uma elasticidade no consumo, que no caso do álcool é diferente de outras mercadorias. Mas para cada aumento de 100% do preço, existe cerca de 30% de queda de consumo global. Mesmo os bebedores pesados diminuem o consumo nesse caso. Este tipo de política pode ser muito útil no Brasil, onde o preço do álcool é um dos mais baixos do mundo ocidental, cerca de U$ 1,5 por um litro de pinga.

(2) Políticas que diminuam o acesso físico ao álcool. Está demonstrado que, quanto menor o número de locais vendendo álcool, maior o respeito ao limite de idade. Maior a consistência das leis do beber e dirigir, menor é o consumo global de uma população.

(3) Políticas de proibição da propaganda nos meios de comunicação. O objetivo da propaganda do álcool não é só buscar preferência por determinada bebida, mas criar um clima social de tolerância e estímulo ao álcool, visando nitidamente a aumentar o consumo global. A proibição da propaganda tem sido consistentemente mostrada em pesquisas como fator importante na diminuição do consumo.

(4) Campanhas na mídia e nas escolas visando a informar melhor os efeitos de álcool. O efeito das campanhas quando feitas desacompanhadas das demais diretrizes é muito pequeno. De nada adianta a professora informar ao aluno sobre álcool e outras drogas, se a televisão continua mostrando a alegria e a descontração associada à bebida e, sobretudo, essa droga transformada em “paixão nacional”.

Em resumo, o álcool apresenta as formas de controles sociais mais estudados e de políticas eficazes para diminuir seu uso global. Os princípios citados podem muito bem ser usados em relação às demais drogas, visando a diminuir o acesso e o consumo.

 

As leis influenciam o consumo das drogas?

Uma pergunta importante é: se os controles sociais são efetivos, por que tornar ilegais somente algumas das drogas? Como já salientado, estratégias diferentes deveriam ser usadas para o controle dos vários tipos de drogas e as evidências mostram que muito pouco benefício traz transformar drogas ilegais em legais, pois há forte tendência no aumento do consumo. Há uma questão que permanece: as leis efetivamente influenciam o comportamento de consumo de drogas?

No caso do álcool, tem sido demonstrado por inúmeros trabalhos que a proibição da venda para menores diminui significantemente o consumo. Em vários estados americanos, quando foram colocadas em prática leis proibindo a venda de bebidas, houve diminuição substancial no número de acidentes de carro entre menores. O grande problema, ao responder o quanto as leis impedem o consumo é que não existem muitos dados sobre as drogas que sempre foram ilegais. Em artigo recente, MacCoun2 analisou a escassa literatura baseando-se também no efeito das leis em deter outros comportamentos antissociais. Esse autor mostrou que leis e controles informais têm o poder de conter o consumo de drogas através de vários mecanismos: disponibilidade da substância, estigmatização do uso, medo das consequências de praticar atividades ilegais, efeito do fruto proibido e efeito simbólico geral da proibição. A abolição das leis proibindo o consumo teria um efeito dramático em vários desses citados fatores, diminuindo, portanto, uma série de impedimentos para o consumo.

O mais importante nesse estudo são as evidências de que a abolição das leis teria um efeito maior nas pessoas que comumente não consomem drogas, potencialmente levando um maior número a experimentar e a se tornar usuário regular ou esporádico. Por isso, MacCoun2 ressalta que qualquer efeito dramático no status legal de uma droga é desaconselhável, pois as consequências são imprevisíveis em relação ao aumento do consumo, por falta de controles sociais disponíveis e ausência de leis claras. Outros estudos mostram que, quanto maior o envolvimento com drogas, menor é o impacto das leis em deter o consumo.

 

Como construir uma política de resultados em relação às drogas? 

O desafio de formular e por em prática uma política de drogas é buscar o balanço para cada uma, sempre visando a uma diminuição global do consumo. A melhor atitude social seria de uma tolerância contrariada, sem fervor ideológico, mas com pragmatismo afiado e persistente. No Brasil, por exemplo, corremos o risco de que o debate sobre a legalização oculte as reais questões que devem pautar uma política baseada em exemplos e experiências eficazes. O risco é ficar num debate ideológico improdutivo a favor ou contra, com grande paixão e pouca informação, como é o caso do debate ideológico sobre drogas injetáveis e a infecção pelo HIV. Passamos todos esses anos discutindo se seria válido trocar seringas e agulhas dos usuários de drogas injetáveis e se isto seria ou não um estímulo ao consumo. Chegamos em 1996 com mais de 50% dos usuários de drogas contaminados pelo HIV e milhares de usuários, suas esposas e filhos mortos. A Inglaterra, por exemplo, começou a discutir esse assunto em 1984 e implementou, rapidamente, políticas realistas, apresentando somente 1% dos usuários contaminados. Os ingleses buscaram uma política de resultados, em que a prioridade fosse manter vivos os usuários.

O desafio do debate das drogas no Brasil não é se devemos afrouxar as leis da maconha, mas apresentar dados e informações e produzir uma política passível de ser avaliada constantemente. A implementação dessa política não ocorre espontaneamente, mas como uma ação determinada de governo. Talvez seja inútil esperar por uma grande política nacional de drogas. Os estados e municípios poderiam se envolver nessas ações com a ajuda comunitária. A sociedade civil já está bastante mobilizada sobre o assunto álcool e drogas. É necessário que os governos democraticamente eleitos mostrem a sua capacidade de organizar uma resposta adequada a esse problema, que afeta milhões de brasileiros.

Cada vez mais o custo social, econômico e emocional das drogas aumenta e na sua proporção existe a tendência de buscar soluções mágicas e simples como a de legalização de todas. Os proponentes dessa solução não apresentam uma clara operacionalização de como isso deveria ocorrer, mas aportam argumentos a favor. Primeiro, dizem que a quantidade de crimes associados ao uso de drogas diminuiria na medida em que fosse retirado o lucro dos traficantes. O segundo argumento é que, tornando as drogas disponíveis legalmente, haveria uma série de benefícios para a saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas e agulhas limpas poderiam prevenir doenças como hepatite e aids, por exemplo. Tais argumentos têm apelo somente no nível superficial. Quando olhados em detalhes, eles desabam. A ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela venha a ser usada novamente. As drogas que produzem dependência ativam os circuitos cerebrais que são normalmente acionados por reforçadores naturais como fome e sexo. A ativação desses circuitos está na raiz do aprendizado, que ocorre no começo do processo de dependência química.

A idéia de que a legalização diminuiria o crime não tem sido discutida com o devido rigor, mesmo quando o argumento caminha para os eventuais benefícios de aumento da arrecadação do governo com a venda das drogas e que isso poderia ser revertido para a sociedade na forma de tratamento ou prevenção. Essa análise de custo/benefício ignora pelo menos dois fatores. Primeiro, subestima o custo da dependência para os indivíduos e suas famílias. A menos que as drogas sejam fornecidas de graça, os usuários deveriam pagar por ela. Como a maioria dos usuários de drogas não tem empregos fixos e estáveis, existe razão para acreditar que muitos continuariam roubando para sustentar o consumo. Além disso, muitos dos criminosos começaram a sua carreira no crime muito antes de usar qualquer droga. Uma suposta fonte legal de suprimento, eventualmente coordenada pelo governo, é muito improvável que não mude os determinantes comportamentais e sociais das pessoas envolvidas no crime. Portanto, qualquer análise de custo/benefício é complexa e exige que muitas variáveis sejam levadas em conta.

Ainda sobre a legalização, mesmo que o custo/benefício pudesse ser demonstrado, ninguém até hoje apresentou um plano operacional para isso. Um aspecto fundamental dessa operacionalização é: quem receberia essas drogas legais? Deveríamos restringir o acesso aos dependentes químicos? Assumindo que tivéssemos uma boa definição de quem seja um dependente, restringir a essa população o acesso significa que o mercado negro das drogas continuaria, pois boa parte dos usuários não preenche os critérios de dependência. Na realidade, com a oferta pública de drogas, ainda teríamos o risco de que parcela dessas fosse criminalmente desviada para o mercado negro.

Consideremos a venda de drogas apenas para adultos. Como já mencionado, essa facilitação do acesso levaria a um aumento de consumo, mesmo entre eles. Mas examinemos um pouco mais fundo essa possibilidade. Se alguém que comprou a droga de uma fonte pública machucar outra pessoa sob o efeito dela, quem seria o responsável? Como garantir que uma fração das drogas não seja repassada para crianças? Uma parte dos adultos não-dependentes poderia ter como motivação comprá-las para revender a crianças, tornando o acesso a esse grupo ainda mais fácil do que já é nos dias de hoje.

Existe também o problema da dose. Quanto deixar as pessoas comprar? Se o objetivo é suprir o dependente químico da sua necessidade para eliminar o mercado negro, teríamos que fornecer a quantidade solicitada, o que, em muitas situações, é uma grande dose, pois vários dependentes desenvolvem tolerância e usam uma quantidade que para outras pessoas significaria risco certo de overdose. Mas se devêssemos fornecer a todos os adultos qualquer dose, o risco de desvio de boa parte das drogas aumentaria ainda mais. Se fornecêssemos uma dose pequena, não eliminaríamos o mercado negro. A experiência inglesa, que durante muito tempo prescreveu a heroína para os dependentes, mostrou que além do uso regular, os usuários buscam-na também em fonte ilegal.

Esses argumentos são distantes de uma perspectiva puramente moral. O que argumentamos é que também do ponto de vista da saúde pública é errado legalizar as drogas. A solução é promover a prevenção e o tratamento baseados em evidências e não em ideologia. Novas pesquisas com suficiente financiamento deveriam buscar o que realmente funciona na área de prevenção. Ainda sabemos pouco sobre os reais fatores de risco e proteção nesse particular. Na área de tratamento, as pesquisas já avançaram muito nos últimos anos e temos condições de fornecer um sistema efetivo e eficaz para a doença chamada dependência química. No entanto, o acesso a um tratamento de qualidade para a maioria da população ainda é um sonho de consumo distante.

Existem muitas dificuldades práticas para uma política adequada em relação às drogas. A humanidade ingere substâncias psicoativas por mais de dez mil anos. E somente nos últimos duzentos anos temos tentado controlar a produção, a distribuição e o uso dessas substâncias. Poucas ações tiveram sucesso. É bem possível que tenhamos igual número de sucessos do que de insucessos. No século XVII, após os europeus levarem o tabaco da América Latina, vários países tentaram proibir o seu uso, mas em seguida desistiram. Entre 1920 e 1933, o álcool foi proibido nos Estados Unidos, mas em seguida também a lei foi revogada.

Para algumas questões, a ciência tem respostas claras e válidas. Na farmacologia, sabemos muito bem os mecanismos de ação da maioria das drogas. Para cada droga, podemos prever a ação imediata e de uso crônico. Os epidemiologistas já são capazes de mostrar o impacto do uso, do abuso, da dependência e o custo social de cada uma das drogas.

No entanto, vários assuntos relacionados à política das drogas permanecem controvertidos. Como controlar as substâncias que afetam a mente? A posse e a venda deveriam ser controladas por lei criminal? A qual droga o acesso deveria ser permitido? As leis produzem mais danos do que benefícios? Como medir uma política em relação às outras? As penalidades por uso deveriam ser mais duras ou mais leves? Todo mundo tem a sua opinião, muitas vezes simplistas para um problema tão complexo. Somente teremos uma boa política quando houver estratégias tão complexas quanto o tamanho do problema.

Teoricamente, é possível criar um tipo de regulação que possa evitar os danos da proibição às drogas ilícitas, mas a experiência sugere que existem grandes dificuldades em se manter esse tipo de controle. Se não somos capazes de evitar a promoção de álcool para menores de idade, como seríamos capazes de evitá-la em relação à maconha, por exemplo?

A experiência holandesa serve para alguma coisa? Houve duas fases nesse país na forma de tratar a questão das drogas. Inicialmente, na década de setenta, houve uma decisão de tolerar a posse de pequenas quantidades de maconha, com o argumento de priorizar a repressão às drogas mais pesadas. Durante esse período, não ocorreu aumento significativo do consumo de maconha. Entretanto, de 1980 a 1988 – numa segunda fase -, houve tolerância em relação à venda de maconha nos coffee shops, e um aumento de mais de dez vezes no número desses estabelecimentos, com o correspondente aumento no consumo da droga. Se, em 1984, 15% dos jovens holandeses consumiam maconha, em 1992 esse número dobrou para 30% e se mantém nesse nível até os dias de hoje. No entanto, a experiência holandesa e de outros lugares como Austrália e do próprio Estados Unidos mostra que remover penalidades criminais em relação ao uso de maconha não aumenta necessariamente o consumo. Isso porque remover somente a penalidade do uso sem a promoção comercial não produz grande estímulo ao consumo. Vale ressaltar, porém, que a descriminalização, ou a despenalização, não oferece grandes vantagens, pois deixa intacto o submundo do tráfico e todas as condições para a permanência dos problemas relacionados ao uso.

Escolher a melhor política não é tarefa fácil. Com uma eventual legalização, podemos até ter uma diminuição da violência individual, o que é uma coisa boa. No entanto, se houver um aumento geral no consumo, a violência global pode aumentar. O dano total à sociedade é o resultado da média de dano nos indivíduos pela quantidade de drogas consumida. Com uma política que resulte em muito mais usuários e talvez até mesmo de usuários mais pesados, o dano total à sociedade deve aumentar.

Existe uma grande dificuldade em transformar boas intenções em benefício social. As políticas não deveriam ser consistentes apenas do ponto de vista ideológico, mas também do ponto de vista prático; ou seja, diminuir o uso global das drogas. Quanto a isso, há uma briga de discursos, ou melhor, uma briga de significados que alguns sociólogos chamam de mensagem simbólica. Independente do que possa ocorrer na política de drogas, as pessoas, inicialmente, se preocupam em apresentar a mensagem correta.

Uma definição legalista define que algumas drogas são ilícitas. Por exemplo, no Brasil, a Política Nacional sobre Drogas abrange somente as drogas ilícitas, deixando de lado o álcool e o cigarro. Os legalistas aparentemente estão dizendo que o problema das drogas diz respeito à infração legal e não a um dano à sociedade. Assim, o uso de drogas proibidas é considerado um ato de rebelião à autoridade, o que ameaça à sociedade constituída.

Como disse o pesquisador americano Mark Kleiman, “qualquer política de drogas que omita o “álcool” (será que não se deveria incluir ‘tabaco’?) será como uma estratégia naval que omita o Oceano Atlântico e Pacífico” 3.

Por sua vez, o debate político partidário não oferece mais confiança, pois apresenta visões contraditórias. Por exemplo, alguns políticos conservadores são contra a legalização de drogas. No entanto, conservadores extremos, como Milton Friedman, defendem sua total legalização. Erich Goode, no seu livro “Between Politics and Reason: The drug legalization debate”4, propõe a seguinte classificação dos políticos em relação à política de drogas:

(1) conservadores culturais: acreditam nos valores tradicionais e denunciam que as pessoas se afastaram dos valores tradicionais, que deveríamos voltar aos valores religiosos e familiares, às práticas sexuais convencionais, à educação básica, aos laços comunitários, à moderação no consumo de álcool e à completa abstenção de drogas ilícitas. Esse grupo acredita que todos são responsáveis por suas ações que, em última instância, são escolhas morais. Traçam clara distinção entre álcool e drogas ilícitas. Sob essa ideologia, o abuso de drogas é imoral e degrada a vida humana.

(2) libertários do mercado livre: também estão no lado conservador no espectro político, mas discordam completamente em relação à legalização. Diferente dos conservadores, esse grupo considera que a distinção entre as drogas é artificial e deveria ser abandonada. Defendem que o governo deve ficar de fora e permitir o laissez-faire. Ninguém seria obrigado a usar drogas e nem forçado a parar de usá-las. As leis deveriam proteger apenas os menores de idade. Portanto, defendem a descriminalização completa. Thomas Szasz, no seu livro: “Our Right to Drugs. The Case for a Free Market5, faz a defesa da legalização de drogas, baseada em considerações político-filosóficas.

(3) construcionistas radicais: acreditam que a realidade é socialmente construída, que não existe um problema de drogas e sim os governos deixam parecer que existe para criar uma causa conveniente e desviar a atenção dos cidadãos de questões mais importantes. O pânico moral dispersaria o foco de outros problemas. As drogas são tratadas como efeito e não causas de problemas sociais. Nessa linha, consideram que só resolveremos o problema com a solução da pobreza e das injustiças sociais.

(4) legalizadores progressivos: defendem acabar com a distinção entre drogas licitas e ilícitas, que o Estado dispense as drogas para os dependentes e que as leis sobre drogas sejam problemas a serem solucionados pelo desaparecimento dessas próprias leis. Vêem o debate sobre drogas como problema de Direitos Humanos. Ou seja, a sociedade deveria parar de demonizar os usuários e de criminalizar a posse e uso das drogas ilícitas por ser injusto, opressivo e desumano, um tipo de caça às bruxas que penaliza o desafortunado. Defendem a redução de danos como uma forma de cuidado com o usuário. A chave desse pensamento é a crença de que o uso de drogas deveria ser regido como qualquer outro comportamento, pois os usuários não são nem mais nem menos racionais em suas escolhas do que qualquer outra pessoa.

A chamada “redução de danos” representa uma mala eclética cheia de propostas políticas. No nível mais geral, defende a idéia de que, se não podemos eliminar as drogas, pelo menos podemos diminuir os danos. A reforma legal, portanto, não seria prioridade, mas sim a prática concreta. Os que estão a favor ressaltam abertamente a tolerância com os usuários, o que se transforma numa descriminalização de fato. Existem dilemas teóricos e práticos nessa abordagem. Algumas questões permanecem sem resposta: como medir a diminuição de um dano em relação a outro? Ao diminuirmos o dano para alguns, não facilitamos o uso de muitos, aumentando o numero de usuários? Nessa perspectiva, teremos menos crime e mais usuários? E se essa política melhorar a vida dos usuários dependentes e piorar a vida de outros, como fica a família dos próprios usuários? Se quisermos diminuir os danos, por que não enfatizar a diminuição das drogas legais, pois isso acarretaria maiores benefícios para a sociedade?

Ninguém pode ser contra a diminuição de danos provocados pelas drogas, pois é exatamente isso que as políticas sobre o assunto buscam. Como objetivo geral, a proposta é indiscutível. No entanto, não acreditamos que a eventual diminuição do dano a alguns indivíduos possa produzir uma diminuição global do dano.

É preciso tornar muito claro que o objetivo geral de uma política de redução de danos deveria ser a redução total do uso de drogas. Para isso, precisamos distinguir entre os planos micro e macro. De forma esquemática, temos a equação: dano total das drogas = média de dano por usuário x uso total. Em relação ao uso total, temos o numero de usuários e a quantidade que cada um usa. A média de dano por usuário tem dois vetores, o dano causado a si próprio e o dano causado a outros.

 

O exemplo da Suécia: restrição às drogas como cuidado social

O sistema de controle de drogas de um país é uma construção complexa e na maioria das vezes controvertida. Desenvolve-se ao interior da própria cultura, em dado momento histórico e é influenciado por políticas sociais e legais. Esse controle se faz somente em parte através de leis e está mais relacionado a sua aplicação que a sua letra. Além disso, a política de saúde, de segurança social, de formas de manejo do desvio social e os aparatos judiciários são todos intimamente conectados ao sistema de controle.

O sistema de controle de drogas sueco é um dos mais debatidos nos anos recentes porque difere em muito do que ocorre no mundo e na Europa, em particular. Ele é muito mais restritivo e o uso de drogas não é tolerado. Na realidade, em 1977 foi declarado que um dos objetivos do sistema seria criar uma sociedade livre das drogas. Para a implementação desse objetivo, quantidade substancial de dinheiro foi alocada na prevenção e informação, na política de controle e no tratamento, os três pilares do sistema. Os indicadores disponíveis mostram que o número de dependentes químicos nesse país é relativamente muito mais baixo quando comparado com os da Europa.

Para entendermos o modelo sueco, é essencial discutir suas bases ideológicas e científicas. Um autor influente nesse sentido foi Nils Bejerot6, que fez distinção entre vários tipos de dependência, em especial do que denominou “dependência epidêmica”. Nesse conceito, ressaltava que pessoas psicológica e socialmente instáveis, após influência direta de outro dependente, começam a usar drogas que não são aceitas socialmente, para obter euforia. Um ponto importante é o significado do termo “epidêmico”, que mostra o caráter de doença com incomum alta incidência no tempo, no lugar e no envolvimento de pessoas. Além disso, Berejot7 inclui o caráter de contágio, ou seja, o fato de um usuário influenciar o outro. Ele considera que a epidemia do uso de substâncias tem alto grau de contágio psicossocial em que a disponibilidade da substância é o fator mais importante no desenvolvimento das formas de abuso. Uma vez que se organiza um grupo de usuários, cria-se uma subcultura da droga, o que contamina a sociedade. Isso explica o termo “contágio psicossocial” ou “pressão grupal”. Esse contágio pode mesmo ser colocado numa fórmula “C=SxE, ou seja, o contágio é função das suscetibilidades individuais e da exposição.

Para Bejerot7, a suscetibilidade individual é difícil de ser influenciada, mas a exposição tem um papel importante nesse sentido. No seu ponto de vista, a sociedade deveria restringir o acesso às drogas e isso fará efeito no número de pessoas usando substâncias tóxicas. A política, portanto, deveria olhar para o usuário, que é a parte central da “corrente das drogas”, pela sua influência direta em outros usuários. Os traficantes sempre serão trocados por novos traficantes dispostos a correr os riscos do dinheiro fácil. Os usuários, por outro lado, não deveriam ser repostos e sim ser considerados como o motor do sistema de prevenção: “Nós temos que aceitar o fato doloroso de que não faremos avanços decisivos a menos que o abuso de substâncias, os usuários e a posse pessoal de drogas sejam colocados no centro da nossa estratégia”3. Bejerot7 posicionase contra a repressão pelo sistema legal, mas acredita que os usuários deveriam ser responsabilizados por seu comportamento.

Outro aspecto conceitual importante é o da hipótese de “porta de entrada”, significando que a maconha levaria à experimentação de drogas mais perigosas. Embora esse conceito seja objeto de grande debate científico, o fato é que o uso da maconha pode ser considerado, no mínimo, como fator de risco para a experimentação. Na realidade, um grande foco da política sueca é a maconha e em como desestimular o seu consumo.

Vale a pena olhar historicamente para outro fator que influenciou a política restritiva de drogas na Suécia: o desenvolvimento, por mais de um século, de ações relacionadas ao uso de álcool. Desde o século XIX, a Suécia adotou uma política repressiva, tendo como base a limitação de disponibilidade de bebidas alcoólicas. Esse é um modelo de sucesso, levando a que os suecos sejam o povo que menos consome álcool na Europa. O modelo baseia-se no fato de que o consumo total do álcool influencia o total de dano social causado pela substância. E sugere que, quanto mais indivíduos bebem numa sociedade, mais haverá bebedores pesados. Portanto, do ponto de vista da saúde pública, a melhor opção é manter o número menor possível de bebedores.

Esse modelo que mostra evidências de eficácia em relação ao álcool é usado para as drogas. Como resultado, a política de drogas foca em limitar o consumo total, começando com qualquer forma de experimentação. Portanto, uma grande parte da prevenção nesse país baseia-se em prevenir a experimentação da maconha. Um grande debate nacional criou uma percepção de risco bastante alto na população em relação a essa substância, tendo como consequência um baixo uso quando comparado com os outros países europeus.

Embora o uso de drogas seja considerado socialmente inaceitável, o objetivo da política não é punir os indivíduos. Ao receber cuidado e tratamento, o usuário deveria se tornar livre das drogas e ficar reabilitado e reintegrado à sociedade. Por exemplo, se um indivíduo usa drogas em público, será encaminhado por uma assistente social para tratamento, se necessário, de forma compulsória. O país investe muito no tratamento para dependentes.

Nos anos oitenta, houve uma mudança conceitual importante do sistema, que passou a buscar reduzir a demanda de drogas na Suécia. O objetivo não mais seria mais atacar os traficantes, mas os usuários, considerados como a engrenagem do tráfico. O uso de drogas tornou-se criminalizado. Essa abordagem potencialmente permitiu identificar novos usuários e oferecer tratamento, o que, quando necessário, conta com ações do aparato policial. Na Suécia, existe uma boa relação dos policiais com a população e 12% do tempo deles são gastos com problemas de usuários e uso de substâncias. A força policial está focada no objetivo de ter uma sociedade sem drogas. Em 1988, o uso de drogas tornou-se crime nesse país, mas a penalidade para o uso não é a prisão, e sim, uma multa. Mais recentemente, a pena aumentou para prisão de até seis meses e a polícia tem vários meios a seu dispor para detectar o uso de drogas, mesmo que o indivíduo não tenha cometido nenhum delito. Os exames de urina para detecção do usuário são muito comuns e não parecem encontrar grande resistência por parte da população. Um bom número de usuários, especialmente de adolescentes, acaba indo para o sistema de tratamento dessa forma, não sem antes pagar uma multa.

O sistema legal sueco tem três categorias de punição à infração em relação às drogas: menor, normal e maior. Depende da droga e da quantidade apreendida. Quando alguém é identificado pelo teste de urina, recebe uma multa. Quando, além do teste, a pessoa tem posse de pequenas quantidades, a prisão até de até seis meses é uma opção, mas isso raramente ocorre, pois a multa é a penalidade mais comum na primeira ou segunda vez em que uma pessoa é flagrada. Um usuário apreendido várias vezes provavelmente será condenado a um mês de prisão. Quando alguém é apanhado vendendo drogas, será preso em todos os casos. Embora a lei não faça grande distinção entre usuários e traficantes, na prática a diferença existe. As infrações consideradas maiores recebem pelo menos dois anos de reclusão. A sentença máxima é de dez anos quando há posse de mais de um quilo de heroína ou de dois quilos de cocaína. A quantidade de drogas apreendidas por tráfico é relativamente baixa. A geografia do país dificulta o acesso, mas, com certeza, a fiscalização também é outro fator importante. Vale a pena salientar que existe uma grande pressão por parte da opinião pública em reivindicar maior controle social e legal em relação às drogas.

Como já citado, o objetivo da política sueca não é punir os usuários, mas oferecer reabilitação. O tratamento é um dos três pilares do sistema. Um conceito importante é o de “corrente de cuidado”, que significa articulação dos elementos no sistema de tratamento: atividades de outreach (busca ativa de usuários), desintoxicação, cuidados ambulatoriais e internação. Os assistentes sociais são muito importantes nesse processo, pois são eles que fazem a busca ativa dos usuários e determinam quem deve se submeter ao tratamento. Dois tipos de assistência são disponibilizados: voluntário e involuntário, com grande diversidade de técnicas. O sistema de comunidade terapêutica domina e não é incomum um usuário ficar dois anos internado. No sistema compulsório, que é raramente utilizado, a pessoa pode passar até seis meses e o principal objetivo é motivá-la a se tornar voluntária no seu tratamento. A maioria do tratamento involuntário ocorre com adolescentes recalcitrantes.

Uma grande mudança ocorreu no sistema de tratamento nos anos oitenta, com o advento da aids. Diferente dos demais países europeus, a Suécia não adotou a política de redução de danos. O governo decidiu que, com o risco da aids, o melhor seria identificar rapidamente os usuários e oferecer desintoxicação e tratamento imediato. Houve uma grande expansão do setor de tratamento. A temida epidemia nessa população de usuários não ocorreu.

 

Algumas considerações finais

Um dos aspectos a destacar nesse debate é que a utilização contínua de qualquer substância psicoativa produz uma doença cerebral em decorrência do uso inicialmente voluntário. A consequência é que, a partir do momento que a pessoa desenvolve uma doença chamada “dependência”, o uso passa a ser compulsivo e acaba destruindo as melhores qualidades da própria pessoa, contribuindo para a desestabilização da sua relação com a família e com a sociedade.

O uso de substancias altera mecanismos cerebrais responsáveis pelo humor, pela memória, pela percepção, pelos estados emocionais e pelos controles finos de vários comportamentos. O uso de drogas regular modifica a estrutura cerebral e pode demorar anos para voltar ao normal. Essas modificações de vários circuitos cerebrais são responsáveis pelas distorções cognitivas e emocionais que caracterizam as pessoas dependentes. É como se o uso de drogas modificasse os circuitos de controle da motivação natural, tornando esse uso quase como a única prioridade do indivíduo. A maioria da comunidade de especialistas considera a dependência de drogas uma doença cerebral com persistentes mudanças na estrutura e função do cérebro.

A visão da dependência gera controvérsias principalmente entre as pessoas com tendência a apresentar uma visão unidimensional para problemas complexos. Essas pessoas colocam a biologia como oposição à mente do dependente, quando na realidade existe uma grande conexão entre o cérebro e o comportamento. Isso não significa que o dependente seja uma vítima indefesa e sem responsabilidade por seus atos. Na realidade, o uso de substâncias começa com um ato voluntário e a pessoa tem grande responsabilidade pelo seu comportamento e também pela sua recuperação. Portanto, ter uma doença cerebral com essas características não exime de responsabilidade o dependente. No entanto, o fato de ter uma doença cerebral implica que muitas vezes é necessário tratamento médico para se produzir uma mudança sólida de comportamento.

Há grande dificuldade na análise dos resultados das políticas relacionadas às drogas. Anos de debate internacional produziram poucas certezas sobre a eficácia das políticas. Uma das poucas avaliações mais bem organizadas é proposta por MacCoun e Reuter7. Esses autores sustentam que precisamos olhar as políticas de forma bem mais analítica e levando em consideração a complexidade da situação, pois várias áreas se relacionam de forma causal, como é o caso da cultura, da ação dos governos, das diretrizes para confrontar o problema, da vontade dos indivíduos e do impacto do uso.

Quatro aspectos precisam ser levados em conta quando analisamos a política de drogas de um país: (1) vários fatores externos influenciam a política: os tratados internacionais, as políticas de saúde e de assistencial social, os direitos individuais, a autoridade e a autonomia dos médicos e outros; (2) os objetivos estabelecidos influenciam não somente as políticas formais, mas também, sua implementação; (3) as políticas recebem influência simbólica que transcende à sua implementação -pessoas influentes fazem declarações que atingem fortemente a legitimidade e a aderência das ações; (4) as políticas formais e sua implementação recebem influência direta dos danos percebidos socialmente pelo uso de drogas que podem ser independentes do nível real do uso em determinada sociedade.

Avaliar a extensão do problema das drogas, portanto, vai além de saber o número de usuários de cada tipo. As drogas diferem em termos de danos ao indivíduo e a sociedade. Também é necessário saber como são consumidas; por exemplo, a cocaína cheirada produz um dano diferente do que a fumada na forma de crack.

Existem duas visões claras na forma de lidar com as drogas: uma proveniente da saúde pública e outra da justiça criminal. Devido ao fenômeno da violência relacionado ao tráfico de drogas nos Estados Unidos, o país escolheu o lado da justiça criminal para lidar com o problema, com todas as implicações que isso acarreta. A Europa escolheu o lado da saúde pública, muito embora haja grandes diferenças de abordagem entre os países. Por exemplo, a Suíça convive com experimentos sociais alternativos para usuários de heroína e uma das maiores taxas de encarceramento da Europa. A Suécia tem clara retórica antidrogas e leis consideradas duras, com investimento muito maior do que qualquer outro país, inclusive que a Holanda, na área de prevenção e tratamento. As escolhas são sempre influenciadas por valores políticos e por definições do que constitui o problema.

Referências

1. Babor T, Caetano R, Casswell S, Edwards G, Giesbrecht N, Graham K, Grube J, Gruenewald P, Hill L, Holder H, Homel R, Osterberg E, Rehm J, Room R, Rossow I. Alcohol: no ordinary commodity: research and public policy. New York: Oxford University Express; 2003.        

2. MacCoun RJ. Drugs and the law: a psychological analysis of drug prohibition. Psychological Bulletin 1993; 113(3):497-512.        

3. Laranjeira R. Legalização de drogas. [site da Internet]. [acessado 2009 jan 8]. Disponível em: http://kiai.med.br/wp-content/uploads/2009/11       

4. Goode E. Between politics and reason: the drug legalization debate. New York: St. Martin’s Press; 1997.

5. Szasz T. Our Right to Drugs: the case for a free market. New York: Praeger; 1992.

6. Bejerot N. Addiction and society. Springfield, Illinois: Thomas; 1970.

7. MacCoun R, Reuter P. Drug war heresies: learning from other vices, times, and places. Cambridge: University Press; 2001.       

 

Dr. Ronaldo Laranjeira
Médico e professor titular do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPOSTA DE LEGALIZAR AS DROGAS

Em declarações à imprensa, o governador Sérgio Cabral tem defendido a legalização de todas as drogas hoje consideradas ilícitas, como uma medida que favoreceria à redução da criminalidade, em especial, à redução do crime organizado. O consumo dessas drogas já foi descriminalizado. O então senador Sérgio Cabral foi o relator dessa lei, sancionada pelo presidente Lula no ano passado. Portanto, o governador somente pode estar se referindo, agora, à legalização do tráfico de drogas. E, como é de seu estilo, franco e aberto, ele é explícito sobre a questão.

 

Se a fonte dessas declarações fosse de algum desses trêfegos rapazes da mídia ou da chamada vida acadêmica – ou até da vida política – não nos daríamos ao trabalho de prestar muita atenção. Mas, o governador Cabral é homem de responsabilidade – e, além disso, pessoa que temos, como sabem os leitores, em nossa elevada estima e consideração. Para completar, ele governa o Rio de Janeiro, Estado que mora no coração de todo brasileiro – pelo menos é o que pensa o autor destas linhas, carioca convicto há mais de cinco décadas e eleitor do governador, apesar de (ninguém é perfeito) especialista no penoso ramo da psiquiatria…

 

Em sua recente entrevista à “Época”, declarou o governador que “não sou a favor de cocaína, heroína ou do cigarro de maconha. Sou favorável a que o mundo reconheça que há uma demanda por drogas que só aumenta”.

 

Realmente, a demanda é crescente. Trata-se de substâncias cujo uso, no caso da maior parte de seus consumidores, não é voluntário. Ou seja, trata-se de substâncias que causam dependência e, mais do que isso, “tolerância” – o que quer dizer que são necessárias doses crescentes para se alcançar o mesmo efeito. Portanto, é inevitável que a demanda seja crescente. No entanto, essa não é a principal razão para o brutal aumento da demanda nas últimas décadas. A demanda aumentou brutalmente porque a oferta aumentou brutalmente. Como em qualquer outro produto, é a oferta que cria a demanda, e não o contrário.

 

Por essa razão, concordamos inteiramente com o governador que combater exclusivamente o consumo é coisa de hipócritas. Determinadas pessoas preferem os mal chamados “paraísos artificiais”, em vez da realidade, porque a realidade tornou-se para elas insuportável. Portanto, é preciso mudar a realidade, para que ela seja um estímulo a que as pessoas se integrem, e, não, a que se desintegrem. Querer acabar com o consumo através de medidas meramente repressivas, é apenas coonestar uma realidade injusta – e, para alguns, mais torturante ainda do que a dependência às drogas. Além de ser inútil, entre outras coisas porque é impossível resolver o problema sem combater a oferta, ou seja, a produção ilícita e sua conseqüência, o comércio ilícito dessas drogas.

 

Portanto, agiu muito bem o governador ao descriminalizar o consumo, pois o drogado é vítima, não criminoso. Exatamente pelas mesmas razões, por que o aumento da demanda seria um argumento a favor da legalização também do tráfico de drogas? Por que, já que a oferta cria a demanda, e não vice-versa, isso não seria, exatamente, um argumento contra a legalização do narcotráfico? Na China, a demanda pelo ópio, que os ingleses estimularam no país, só fazia aumentar. A dependência ao ópio sugava as energias de milhões de pessoas. Foi necessário acabar com o tráfico, reprimindo duramente os traficantes, para acabar com o consumo. Caso contrário, o país nunca teria se levantado e se transformado no gigante econômico atual. E, do ponto de vista ético: a legalização do tráfico, depois da descriminalização do consumo, não seria, tão somente, a equiparação dos criminosos com suas vítimas? Não estamos aqui, evidentemente, falando de consumidores que traficam para consumir, mas dos grandes traficantes nacionais e internacionais. Por que seria justo que a lei tratasse os que se enriquecem com o desespero dos consumidores de drogas da mesma forma que estes?

 

Mas vamos aos argumentos mais de fundo, expostos pelo governador. Primeiro, vejamos aqueles de natureza histórica. Na entrevista mencionada, o governador refere que inspira-se em Franklin Delano Roosevelt, que em 1933 acabou com a “lei seca” nos EUA.

 

Roosevelt é, realmente, uma excelente fonte de inspiração. Porém, não nos parece que o fim da “lei seca” nos EUA, na década de 30, possa servir de argumento a favor da legalização do narcotráfico no Brasil de hoje. E não apenas, nem principalmente, porque não estamos discutindo a proibição do que sempre foi permitido, e sim a permissão do que sempre foi proibido. O motivo verdadeiro, ou mais importante, é o próprio significado da “lei seca” – e os motivos de sua abolição.

 

A “lei seca” foi uma aberração parida em 1919 por uma aliança entre mequetrefes sem escrúpulos do Partido Republicano e fanáticos religiosos alucinados. Os primeiros queriam desmoralizar o presidente Wilson, democrata que havia aberto luta frontal contra os cartéis e monopólios que nessa época já sufocavam o país, e que era conhecido por sua devoção religiosa protestante. Os republicanos queriam atingir esta reputação de Wilson, obrigando-o a vetar a lei – ou atingir sua popularidade nas camadas proletárias do eleitorado, se não a vetasse. Na época, é necessário lembrar, Wilson, reeleito em 1916, poderia concorrer a um terceiro mandato no ano seguinte, 1920.

 

Já o objetivo dos fanáticos alucinados era, como o de qualquer alucinado, o de adaptar a realidade às suas alucinações. Muitos partidários da “proibição”, é verdade, faziam parte das duas categorias. Wilson, de quem Roosevelt era secretário da Marinha, vetou a lei – e, em meio a uma cruzada da imprensa, seu veto foi derrubado no Congresso.

 

ABORTO JURÍDICO

 

A “lei seca” era, portanto, apenas uma mistura de chicana e delírio. E por isso foi, ainda que tardiamente, abolida. Era um aborto jurídico e moral que não protegia ninguém. Não correspondia a nenhum interesse social verdadeiro. Não tinha função alguma no combate ao alcoolismo. Seu efeito prático era o de fazer o cidadão comum transgredir a lei para tomar um aperitivo, algo que até faz bem à saúde, enquanto os magnatas podiam encher a cara livremente em seus iates, mansões e bordéis de luxo, sem falar nas viagens ao exterior. Até o próprio Eliot Ness, promovido pela mídia a paladino da “lei seca”, disse, anos depois, que era uma lei contra a maioria da população.

 

A “lei seca” nada tinha a ver, portanto, com as leis sobre drogas que tivemos no Brasil, desde que esse problema entrou para o Código Penal, em 1943. No entanto, embora a péssima edição da entrevista não deixe claro, o governador deve estar supondo que houve uma diminuição da criminalidade após o fim da “lei seca”. Daí, a seguinte afirmação: “Se a gente for quantificar os mortos por conta da proibição da droga, o total é esmagadoramente maior do que os mortos por conta do uso da droga”. Na continuação, o governador refere-se às “brigas de gangue” e outros conflitos.

 

O problema das drogas não consiste, como o governador certamente não ignora, principalmente nas mortes provocadas por elas. Mas, analisemos, antes, a suposta diminuição da criminalidade após o fim da “lei seca”.

 

As quadrilhas que operavam com bebidas alcoólicas não se tornaram honestas depois da revogação da “lei seca”. Elas não tinham nenhuma preferência especial pelo álcool. O seu negócio era, como ainda é, ganhar dinheiro. Portanto, depois da revogação da “lei seca”, passaram a explorar mais intensamente outros ramos da criminalidade – a jogatina, a prostituição, o lenocínio, o roubo, o assassinato sob encomenda, e, evidentemente, os narcóticos. O que diminuiu, com o fim da “lei seca”, foi o número de prisões por consumo de bebidas alcoólicas. Mas essas não eram prisões de criminosos, e sim de simples amigos do copo, ou nem isso.

 

Alguém poderia argumentar que aquelas outras atividades a que se dedicaram os gangsters também poderiam ter sido legalizadas. Mas não seria por causa disso que os criminosos deixariam de ser criminosos e o crime deixaria de ser crime. Levando o raciocínio ao absurdo, mesmo se a lei permitisse todos os crimes, nem por isso eles deixariam de existir: um homicídio é sempre um homicídio; um estupro é sempre um estupro.

 

No entanto, houve realmente uma diminuição apreciável da criminalidade nos EUA, durante a década de 30. Mas não por causa do fim da “lei seca”. Os mortos nas guerras entre quadrilhas, a que se refere o governador, diminuíram – não nos EUA em geral, mas em Chicago, onde eram endêmicas – depois da prisão de Al Capone, em 1932, quando a máfia conseguiu estabelecer uma divisão de áreas “civilizada”, ou melhor, cartelizada, no crime organizado.

 

Quanto à criminalidade em geral, esta diminuiu com o “New Deal”, ou seja, diminuiu devido ao aumento do emprego, da renda, do atendimento público, do maior aparelhamento policial, em suma, diminuiu em função da política econômica de Roosevelt, priorizando o povo e não os monopólios que derrotara nas eleições de 1932. Na entrevista, o governador cita o “New Deal”, mas, provavelmente devido à edição, não é possível compreender que relação que ele faz entre essa política, a revogação da “lei seca” e a criminalidade.

 

Passemos agora ao segundo argumento, de natureza política: “O que deve ser proibido no mundo? Tudo que violar as regras da cidadania. (….) Desde que você não prejudique o outro…”. Segundo o governador, o consumo de drogas seria uma questão de “liberdades individuais”. Logo, supõe-se, a interdição do tráfico seria um atentado à liberdade individual do cidadão que escolher consumi-las.

 

Há realmente um problema de liberdade individual no consumo de drogas. A questão das drogas é uma questão de falta de liberdade individual, e não de exercício dessa liberdade individual. Que “liberdade individual” tem o dependente de crack? Que escolha tem ele, senão ir atrás da substância que dá alívio – momentâneo – à sua pavorosa ansiedade? Portanto, é a dependência das drogas que é um atentado à liberdade individual, e não a preocupação da sociedade em impedir essa dependência.

 

Em um de seus momentos menos brilhantes, Rui Barbosa, na época em que Oswaldo Cruz instituiu a vacinação obrigatória contra a varíola, argumentou que essa obrigatoriedade feria a liberdade individual do cidadão de se infectar. Se outros não quisessem contrair a moléstia, que se vacinassem…

 

Há aqui um problema semelhante. Por exemplo: se alguém, ao atravessar a Ponte Rio-Niterói, divisar um cidadão prestes a se atirar no mar, sua reação, se não for um psicopata, será a de parar imediatamente o carro e tentar impedi-lo de consumar o desesperado ato, ao invés de respeitar a suposta “liberdade individual” de se matar. Em outras palavras, a liberdade individual é uma relação do indivíduo com os outros. A vida individual não existe sem relação com a vida dos demais membros da sociedade. Só é possível ser um indivíduo na medida em que se faça parte da coletividade. Fora dessa relação, nem se pode falar em liberdade – ou, mesmo, em indivíduo.

 

O ser humano que se destrói através das drogas, ou vive em função do seu consumo, não está fazendo mal apenas a si mesmo – exceto se ele não tiver filhos, esposa, pais, irmãos, parentes, amigos ou semelhantes, isto é, se não fizer parte da sociedade. Mas, se isso fosse possível, não haveria necessidade de leis – e, portanto, não existiria a discussão sobre a “legalização”, ou não, de alguma coisa.

 

O terceiro argumento do governador, este de ordem clínica, é o seguinte: “quantas pessoas no mundo perdem seus alicerces estruturais, de família, amigos, trabalho e estudos, por conta do álcool? E morrem”. Ou seja, se o álcool, que causa tantos males, é permitido, porque não a cocaína, a heroína, a maconha, etc.?

 

Infelizmente, não é possível estabelecer uma isonomia entre todas as drogas, lícitas e ilícitas. Há um motivo para que as bebidas alcoólicas sejam permitidas, e a cocaína, heroína, crack, etc., não o sejam. Esse motivo chama-se dependência. Evidentemente, também existem dependentes do álcool. Porém, a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é dependente do álcool. Podem muito bem passar sem ele, se necessário, o que não é verdade em relação ao ópio e seu derivado sintético, a heroína, ou à cocaína e seu sub-produto, o crack, ou às anfetaminas e seus coquetéis – um deles é hoje denominado ecstasy. Ou, mesmo, em relação ao uso crônico da maconha.

 

Resumindo: consumidor de bebidas alcoólicas não é igual a dependente do álcool. E, se alguém argumentar que consumidor de heroína também não é igual a dependente de heroína, responderemos apenas que no dia em que nos apresentarem um que não seja, nos comprometemos a rever esse raciocínio. Sobre o que significa essa dependência, é mais do que suficiente ler aquela bíblia da literatura beatnik, “O Almoço Nu”, de William S. Burroughs. Nem mesmo é necessário chegar ao fim daquele circo de horrores.

 

Escolhemos a heroína como exemplo porque o nosso governador referiu-se à liberação de todas as drogas. Assim, a heroína, a esse respeito, é particularmente ilustrativa. Mas, certamente, para o cidadão da alta classe média, o consumo de cocaína pode não ser tão deletério quanto o da heroína e, muitas vezes, ele pode livrar-se da dependência, ainda que pagando a um profissional – ou a uma equipe deles – para que o ajude. Não é por acaso que essa é a camada da população que em geral é a favor da liberação geral das drogas. Realmente, para esses, seria confortável a liberação do tráfico. Poderiam consumir sem os riscos inerentes à compra dessas drogas. Talvez, como no caso das bebidas alcoólicas após o fim da “lei seca”, até pudessem contar com uma cocaína de mais confiança, fabricada pela Merck, pela Johnson ou outro monopólio transnacional, ao invés daquela que é fornecida pelo Fernandinho Beira-Mar…

 

Porém, vamos a um bairro da periferia de qualquer grande cidade. Vejam-se os dependentes do crack, um subproduto da cocaína. Vejam-se os próprios dependentes de cocaína, que existem na periferia e que, em geral, alternam o crack com a cocaína. São gente que não somente não tem como pagar uma ajuda profissional, mas que não tem estímulos para superar a dependência. É evidente que precisamos mudar essa realidade. Mas, enquanto não mudamos, o que significará, para esses dependentes, a legalização do tráfico, senão que o Estado e a coletividade estão se lixando para suas vidas?

 

Andemos mais um pouco pela periferia. Vejam-se as famílias – a que se referiu o governador – que lutam para que um ou mais de seus membros não sejam devorados pelo crack ou pela cocaína. Para esses, a legalização do tráfico seria o sinal de que não podem contar com a ajuda do Estado – ou, pior, o sinal de que o Estado é seu inimigo na luta para salvar um ente querido.

 

O governador Cabral considera que morrem mais pessoas pelas guerras de quadrilha do que por overdose. É verdade. Mas um dos motivos pelo qual isso acontece é que existem alguns limites, um dos quais é constituído pelo critério social que se expressa na interdição legal ao tráfico.

 

Por último, algumas observações rápidas sobre a mais incensada das drogas, o delta-9-THC, princípio ativo da maconha, que há anos é objeto de uma renitente campanha para considerá-la inofensiva. Permitam os leitores um testemunho pessoal. Durante muitos anos, como profissional, estive convicto de que seu uso era sem sequelas. Apenas, não me agradava um certo isolamento, que cruzava com o individualismo, nos usuários da droga. Mas não considerava isso um problema médico. Mantive a convicção de que a maconha, como dizem alguns, “faz menos mal que o cigarro”, mesmo quando, a partir da década de 70, alguns trabalhos, em várias partes do mundo, apontaram para danos mais sérios, sobretudo em estruturas cerebrais. Também não mudei de posição quando foram publicadas experiências em que voluntários desenvolveram surtos persecutórios graves após ser-lhes administrado diretamente o delta-9-THC. Parecia-me que esses estudos permitiam ainda um grau de dúvida razoável.

 

No entanto, médicos são gente prática. Foi impossível manter a minha antiga convicção, quando apareceram não apenas pacientes que relatavam surtos persecutórios, como outros cujo quadro de empobrecimento psíquico e comportamental somente poderia ser explicado por dano estrutural do cérebro devido ao uso crônico de maconha. Nada como ver um caso diante dos olhos. E não foi apenas um.

 

Carlos Lopes

Psiquiatra e diretor de redação do jornal Hora do Povo

Texto publicado no Jornal Hora do Povo em abril de 2007

 

 

 

A ENGENHARIA NACIONAL E A SAGA DA PETROBRÁS

Em 1972, trabalhando na Light, ainda pertencente ao grupo canadense Brascan, eu me sentia frustrado por não trabalhar como engenheiro, pois a engenharia da companhia era muito desorganizada e incipiente. Estava, havia três anos, lotado na Divisão de Distribuição Estadual, que abrangia a Baixada Fluminense e os municípios de Volta Redonda, Barra Mansa, Barra do Piraí, Três Rios, Paraíba do sul e outros. Não fazia nada de engenharia. Então, surgiu um concurso para a Petrobrás. Sem ser informado da data do concurso, me esqueci dele. Um dia, num sábado, estando na praia com a família, vi a convocação da prova do concurso. Vesti a roupa e fui. Passei em primeiro lugar. Isto me levou a ser escolhido pelo Departamento de Produção (DEPRO), onde trabalhei até me aposentar. Não consegui sair desse Departamento. Gostava dele.

A mudança para a Petrobrás, mesmo ganhando menos, foi uma bênção. Mandaram-me logo para Aracaju – 3.000 empregados, nenhum engenheiro eletricista. Eu não conhecia nada de petróleo, até chamava tubo de “cano”. O “petrolês” era a tônica das reuniões e eu voava alto. Foi duro no começo, mas os desafios eram grandes e motivadores. Assim, em pouco tempo eu estava dominando o “idioma”: bomba Reda (bomba de fundo de poço), relés em geral, estação coletora, cavalo-de-pau (unidade de bombeio em terra), recuperação secundária, bombeio hidráulico, disjuntores a vácuo, Centro de Controle de Motores, sistemas de partida e proteção dos motores, áreas classificadas, recuperação secundária e outros. Dominado o “idioma”, a vida ficou mais fácil. Em um mês fiz mais engenharia do que em três anos trabalhando na Light. Estava empolgado. Era tudo o que eu queria.

Nessa ida a Aracaju, visitei as três plataformas marítimas do campo de Guaricema que tinham sido instaladas para serem apenas satélites de produção, mas mudou-se o conceito e resolveu-se que elas seriam de processamento, tornando-se necessário instalar uma planta de processo em cada uma: era uma nova e desafiadora engenharia. Daí pra frente, muitas novidades.

Uma curiosidade logo me surgiu: olhando a estação coletora de Atalaia, eu questionava por que os tanques de petróleo tinham o teto cônico. Curioso, perguntei a várias pessoas, pois precisava saber. Várias respostas dadas não me convenciam. Fui investigar mais a fundo e descobri: o projeto da estação coletora era importado, e, nos EUA, os tanques tinham teto cônico para evitar o acúmulo de neve. Ou seja, era preciso elaborar os projetos aqui e voltados para as nossas condições e necessidades. Era também muito necessário “tropicalizar” a tecnologia importada. Trabalhamos muito nesse sentido.

Assim, os projetos das plantas de processo das plataformas já foram feitos por empresas nacionais, sob a fiscalização de engenheiros com experiência de produção em terra. Deu certo e, a partir daí, com novas descobertas nos campos de Camorim, Caioba (SE) e Ubarana (RN), resolvemos projetar e fabricar as plataformas no Brasil. As duas primeiras tiveram os projetos copiados das americanas. A partir destas, começamos a fazer os projetos aqui.

Como fiscal da construção da primeira plataforma, enfrentei grandes problemas com o fornecimento de materiais e com o estaleiro construtor. Este estava acostumado a fazer obras sem muito rigor nos quesitos de qualidade e segurança. Quando começaram as nossas exigências – eu contava com a assessoria de uma sociedade classificadora internacional, a Lloyds Register, e procurava seguir as normas internacionais de fabricação, montagem, segurança, soldagem e pintura – houve reação.

Com muito bom senso, mas com rigor na fiscalização, deixamos o estaleiro em polvorosa. Como os oito dirigentes do estaleiro eram comandantes reformados da Marinha, eles tentaram me enquadrar como antimilitarista. Eu só procurava alertá-los todo o tempo de que era deles toda a responsabilidade pelos eventuais problemas futuros da plataforma, mas eles eram imediatistas. Queriam construir para faturar. Com o rigor das nossas exigências, e das normas internacionais, despreparado, o estaleiro – Inconav era o seu nome – acabou indo à falência.

Instaladas as plataformas e prontos os projetos de plantas de processo, começamos as instalações. Era gratificante constatar a competência, a dedicação e a motivação das nossas jovens equipes. Muita criatividade, sempre com respeito às normas técnicas.

No início da década de 80, eu estava um pouco preocupado com a falta de integração da engenharia do DEPRO – Departamento de Produção, onde eu trabalhava – com os demais órgãos de engenharia da Petrobrás. De repente, me veio às mãos um boletim da AEPET, onde havia uma matéria sobre a constituição de um grupo de trabalho da entidade que se propunha a estudar a Função Engenharia da Companhia. Procurei a entidade e ofereci a minha colaboração como representante do DEPRO. O grupo era formado por engenheiros de vários órgãos, a saber: Diomedes Cesário (CENPES) – coordenador – Guaraci Correia Porto (SEGEN), Oscar Filizola de Souza (DEPIN), Ângelo Francisco dos Santos (CENPES) e eu, pelo DEPRO.

Durante dois anos esse grupo entrevistou vários gerentes de órgãos ligados à engenharia da Petrobrás e, ao final, elaborou um documento com propostas de melhoria e integração da engenharia. O coordenador Diomedes apresentou este documento, uma proposta de reestruturação de toda a engenharia da Petrobrás. O trabalho foi muito bem aceito e várias de suas sugestões foram implementadas.

Assim eu fiquei conhecendo a AEPET e me inteirei de suas propostas de atuação. Era uma entidade nacionalista que tinha como objetivos: 1) defender o Monopólio Estatal do Petróleo; 2) defender a Petrobrás e 3) defender o corpo técnico da Petrobrás. E também, claro, a Soberania Nacional. Era a sintonia com o que eu pensava. Estava na época de eleições para a nova diretoria da entidade e eu fui convidado a integrar a chapa que acabou sendo eleita.

Minha primeira tarefa foi investigar as ações do diretor de Produção da Petrobrás, engenheiro Joel Rennó, cujo mandato estava se encerrando. A AEPET não estava satisfeita com o desempenho daquele diretor. Apresentei as informações que, juntadas a outras, formou um dossiê que subsidiou um pedido ao Ministro das Minas e Energia, doutor Aureliano Chaves, para não reconduzir Rennó. O pedido logrou êxito, Rennó não foi reconduzido. Infelizmente, alguns anos depois, já no governo Itamar Franco, Aureliano recomendou Rennó e ele foi indicado para presidir a Companhia. Teve um desempenho razoável na gestão Itamar, mas veio o governo Fernando Henrique e Rennó que havia ajudado, por ordem de Itamar, a defender o monopólio, passou a defender a sua quebra, dando uma oportunista guinada de 180 graus.

Estudei com afinco a história da AEPET e fiquei sabendo da corajosa atuação de vários de seus presidentes. Tanto na época da sua fundação quanto durante a ditadura militar, a entidade sempre se posicionou com coragem e desprendimento no cumprimento dos seus objetivos. Na gestão do Sr. Shigeaki Ueki à frente da Petrobrás, os dirigentes da AEPET com cargo de chefia na Companhia foram destituídos de seus cargos e ameaçados de demissão. No governo Collor também. Mas a entidade jamais deixou de se manifestar e de se posicionar com coragem e discernimento.

PROCESSO DE NACIONALIZAÇÃO

Uma das minhas atuações muito gratificantes na Petrobrás foi a de ter participado na nacionalização de equipamentos e serviços para o setor petróleo. Nas décadas de 70 e 80, o governo autorizou a compra de equipamentos no mercado nacional até pelo dobro do preço. Assim, iniciamos uma grande campanha para nacionalizar equipamentos e serviços. Esta iniciativa fez com que os empresários nacionais investissem em novas tecnologias. Durante mais de dez anos visitamos fábricas e viabilizamos a adaptação de vocações identificadas nos pequenos industriais às nossas necessidades.

Além da vantagem da reserva de mercado, nós, da operação, da engenharia básica, do CENPES (que depois absorveu a engenharia básica), repassávamos tecnologia e conhecimento para esses fabricantes que iam adaptando e ampliando suas fábricas às nossas necessidades. Com isto, eles cresciam em tecnologia e capacitação. Tal estratégia chegou a consolidar um grande parque fabril de cinco mil fornecedores de equipamentos de petróleo. Eles chegaram a competir com empresas internacionais, ao nível do Estado da Arte. Além deles, alcançamos cerca de três mil fornecedores de serviço.

Veio então o governo Collor, que baixou as alíquotas de importação em 30%, em média. Isto diminuiu em muito a competitividade dos empresários nacionais. Depois, veio o governo FHC, que jogou a pá de cal: criou o Repetro, através do decreto 3161/98, que passou a isentar as empresas multinacionais do Imposto de Importação, sem que os Estados da Federação isentassem as empresas nacionais do ICMS correspondente. Resultado: Cinco mil empresas nacionais dizimadas. Um crime de “lesa-Pátria”.

NA AEPET

No governo Sarney, durante a vigência dos contratos de risco instituídos no governo Geisel, surgiram na imprensa reportagens de várias páginas dizendo que a empresa Texaco havia descoberto reservas gigantes na ilha de Marajó. As matérias diziam que era um novo Mar do Norte e que a Texaco estava disposta a vender as reservas para a Petrobrás por US$ 400 milhões. Os geólogos associados à AEPET nos deram informações de que aquela descoberta não era comercial e que a Petrobrás iria comprar campos sem petróleo. A AEPET levou essas informações para o ministro Aureliano Chaves. Ele, então, mandou suspender a compra e investigar melhor as informações dos geólogos, concluindo pela não aquisição das reservas; elas eram, simplesmente, irreais.

Ainda durante o governo de José Sarney, o então Ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, sob o pretexto de combater a inflação, iniciou um processo de achatamento das tarifas das empresas estatais, quebrando a sua capacidade de investir. Isto estava previsto nas diretrizes do Consenso de Washington para fazer a campanha do “Estado Falido” e “Estado Mínimo” (ver artigo de Paulo Nogueira Batista: “O Consenso de Washington”, no livro “Em defesa do Interesse Nacional” – pg. 99). Essa campanha do “Estado Mínimo” foi um dos alicerces do processo de privatização e, principalmente, desnacionalização. Tal ação levou as estatais a uma situação de inviabilidade. Assim, suas tarifas de comunicação, energia e siderurgia subsidiavam as empresas estrangeiras no País. A Companhia Siderúrgica Nacional, por exemplo, vendia chapas para a indústria automobilística, estrangeira, a um preço menor do que o custo de sua fabricação. Uma indústria que, mesmo assim, “jamais deu lucro”, sonegando impostos.

CONTRATOS DE RISCO

No governo Geisel, os investimentos na área de exploração e produção de petróleo caíram muito e, em consequência, a produção também caiu drasticamente. Assim, quando veio a crise de 1973, com a elevação dos preços do petróleo — de US$ 2 por barril para cerca de US$ 12 —, a Petrobrás e o país foram pegos de surpresa. O país já estava mergulhado numa grave crise financeira, pois no governo Médici o Ministro da Fazenda, Delfim Neto, de forma irresponsável, tomou empréstimos externos a juros flutuantes e quando os EUA, a pretexto de combater a inflação, elevaram os juros ao patamar de 23% ao ano, o Brasil e os demais países da América Latina sofreram graves perdas, passando a exportar capital e muita matéria-prima para o exterior. Essa estratégia americana, de endividar para controlar os países fornecedores de matéria-prima para os EUA é bem descrita no livro: “Confissões de um assassino econômico”. O objetivo é mantê-los sob controle econômico.

Portanto, dentro da estratégia americana, em 9 de outubro de 1975 o presidente Geisel, cedendo às pressões internacionais, foi à televisão e propôs a instauração dos contratos de serviço com cláusulas de risco, ato que contrariava a Soberania Nacional e os termos da Lei 2004/53, que não permitia esse tipo de contrato. Esta Lei foi fruto do maior movimento cívico do País: “O petróleo é nosso”. O presidente disse – visivelmente constrangido – em pronunciamento de 43 minutos na televisão: “Para um país da dimensão do Brasil e que precisa não perder tempo, antes apressar-se no setor petróleo, não seria justificável deixar de proporcionar à Petrobrás e à Nação os contratos de serviços com cláusulas de risco”. Era o mais forte golpe contra o Monopólio Estatal do Petróleo.

Em seguida, o ex-ministro das Minas e Energia, então presidente da Petrobrás, Shigeaki Ueki, nomeado por Geisel, usou massivamente os meios de comunicação tentando justificar a atitude do chefe, que infringia os preceitos da Lei 2004/53, usando varias falácias, entre elas as seguintes “justificativas”: “Tais contratos se revestem de todas as garantias para a Petrobrás e o Brasil”. Mas os contratos, que inicialmente eram apenas para exploração, de repente se transformavam e revelavam toda a intenção entreguista, na palavra do presidente da Petrobrás: “Após o desenvolvimento dos campos porventura descobertos, a empresa contratante poderá participar das operações de produção dos mesmos sob adequada fiscalização e controle da Petrobrás”. Continua Ueki: “A indústria e a mão-de-obra nacionais estão garantidas no contrato e são, de fato, estimuladas ao fornecimento de materiais e prestação de serviços”. O que o senhor Ueki não fez, mas deveria tê-lo feito, teria sido explicitar, entre outros, os seguintes fatos divulgados pela AEPET:

– além da Petrobrás, só empresas multinacionais tinham condições de assinar esses contratos;

– essas empresas, no caso de haver descobertas, receberiam um percentual médio de 35% do petróleo produzido (no contrato da Marathon Oil, por exemplo, o percentual era de 40%);

– a Petrobrás era realmente quem comprava no país (chegou a comprar 95% de bens e serviços). As multinacionais trazem materiais, equipamentos e mão-de-obra do exterior.

Durante a vigência dos contratos de risco, 243 contratos foram assinados com 35 das maiores e mais experientes empresas internacionais. Estas dispuseram, por força de diretriz superior, de 85% do total das áreas com rochas sedimentares passíveis de conter petróleo. Tais áreas, postas em licitação, foram divididas e subdivididas em áreas ou blocos, oferecidos com todas as informações geológicas e geofísicas até então coletadas pela Petrobrás.

Na ocasião, o Brasil produzia cerca de 170.000 barris por dia e era importador de mais de 1 milhão de barris por dia. Nesse ritmo, o País via suas preciosas divisas serem corroídas rapidamente. O Brasil, mergulhado numa longa crise financeira, teve ainda mais agravada tal situação. Nesse sentido, se aproveitaram o governo e o Ministro das Minas e Energia, César Cals, via telegrama, para explicitar a intenção real, dizendo que as empresas estrangeiras investindo grandes somas na exploração, aumentariam rapidamente a produção.

Disse o jornalista Ricardo Bueno, em seu livro “A Farsa do Petróleo”, no qual baseamos os textos acima sobre os contratos de risco: “No dia 29 de dezembro de 1979, o ministro César Cals encaminhou ao presidente da Petrobrás telegrama sugerindo ‘adaptações’ nos contratos de risco para beneficiar as multinacionais. Estas poderiam receber em óleo quando descobrissem um poço produtor e, além da exploração, teriam agora o direito à fase de produção (…) e recomendava à Petrobrás que fosse mais generosa…”.

Eis o telegrama:

“Conforme nossos entendimentos telefônicos retransmito teor meu despacho ontem com exmo. Senhor presidente República a respeito adaptações devem ser feitas nos modelos contrato risco estão sendo celebrados pela Petrobrás. Informo-lhe que senhor presidente aprovou referidas modificações. Para alcançar maior cooperação da iniciativa privada na prospecção de petróleo, propomos as seguintes modificações:

1 – Delimitar a área atual de prospecção que a Petrobrás está realizando com recursos próprios e abrir demais áreas para a iniciativa privada.(…)

2 – Oferecer às empresas privadas a possibilidade de ter acesso a bacias inteiras, inclusive proporcionando-lhes toda a informação geológica necessária sobre a área total das bacias, para que possam ser escolhidos os blocos que interessam a cada empresa.

3 – A participação da empresa contratante na fase de produção, como é de praxe internacional. Naturalmente, a Petrobrás exercerá a adequada fiscalização.

4 – Decisão conjunta sobre o nível comercial da reserva descoberta pela pesquisa objeto do contrato de risco.

5 – Garantia de reembolso e/ou remuneração em moeda estrangeira, com registro do contrato no Banco Central do Brasil.

6 – Admitir que parte da remuneração seja feita em petróleo, ressalvando os interesses nacionais em caso de crise.

7 – Estimular a participação de pequena e média empresa nacional, que poderiam, sob a forma de consórcio, ser contratadas, até mesmo, com assistência técnica da Petrobrás.

César Cals – ministro das Minas e Energia.

Esse telegrama é a “bíblia” para a atual atuação da ANP. Com todas essas benesses, depois de treze anos de vigência, o resultado desses contratos – em que cerca de 85% das áreas com potencial de ocorrência de petróleo foram entregues para a exploração a empresas estrangeiras – foi pífio. Durante esses treze anos, elas mantiveram tais áreas sob seu total controle. Mas, enquanto no mesmo período, a Petrobrás — que ficou com apenas 15% das áreas potenciais — investiu cerca de US$ 26 bilhões, aquelas empresas investiram cerca de US$ 1,6 bilhão apenas. Destes, US$ 900 milhões foram gastos pela aventura do governador de São Paulo, Paulo Maluf, através da empresa criada para o mesmo fim, a Paulipetro. Protagonizaram um rotundo fracasso.

Nada descobriram de petróleo, exceto um pequeno campo de gás, o campo de Merluza, na bacia de Santos. Queriam, todavia, detectar e mapear as reservas brasileiras. Ressalte-se que a área onde foi recém-descoberto o pré-sal esteve sob controle dessas empresas nesses treze anos. Isto atesta que, se não fosse a atuação da Petrobrás, o pré-sal jamais teria sido descoberto.

Todo o estardalhaço da grande mídia em favor dos contratos de risco, com promessas de um grande êxito das empresas estrangeiras, terminou num total silêncio diante do rotundo fracasso desses contratos. O silêncio foi ainda mais “ensurdecedor” quando, anos depois, a Petrobrás achou óleo e gás nos campos de Tubarão, Estrela do Mar e Caravelas na Bacia de Santos, áreas que haviam sido devolvidas pelas multinacionais detentoras dos tais contratos de risco.

A AEPET combateu tenazmente esses contratos utilizando toda a sua energia. Mesmo em pleno regime militar, opressor e punitivo.

CONSTITUIÇÃO DE 1988

Em 1987/88 houve o processo de elaboração de uma nova Constituição Federal do País, que acabou sendo o mais democrático e participativo da história do Brasil. A AEPET teve a ideia de elevar o capítulo da Lei 2004/53 que estabelecia o monopólio do petróleo para o nível da Constituição Federal. Esperávamos que uma vez aprovado, o monopólio jamais seria quebrado. Assim, a entidade promoveu vários eventos com a participação de líderes políticos e de várias entidades dos movimentos sociais. Com esta iniciativa – e sob o comando do insigne brasileiro, Barbosa Lima Sobrinho – o Congresso Nacional consagrou o monopólio no artigo 177 da Constituição de 88. Foi marcante o episódio do doutor Barbosa Lima: Ulisses Guimarães presidia a sessão conjunta do Congresso quando foi surpreendido com o plenário, de pé, aplaudindo freneticamente. Era o doutor Barbosa adentrando o recinto. Ulisses conduziu-o para a mesa diretora dos trabalhos e Barbosa desfraldou as bandeiras do Brasil e da Petrobrás para delírio dos parlamentares: resultado da votação: 441 votos a favor, 6 contra e 7 abstenções. A ideia, reafirmo, partiu da AEPET.

COLLOR

Ao assumir o governo, em 1990, o presidente Fernando Collor – eleito pela direita brasileira e apoiado pela mídia comprometida com o capital estrangeiro – recebeu do banco Credit Suisse First Boston um plano para privatizar a Petrobrás. Esse banco fora um dos coordenadores do processo de desnacionalização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales da Argentina. Partindo do princípio de que a Petrobrás era uma empresa emblemática, o plano consistia em privatizar as subsidiárias da empresa e depois dividir a “holding” em novas subsidiárias, para privatizá-las. Collor iniciou o processo, privatizando a subsidiária de fertilizantes, a de mineração e chegando à petroquímica. A AEPET entrou com várias ações na Justiça para impedir as privatizações e fez um bom combate às unidades de negócio, que naquela época não foram implantadas.

No governo do presidente Itamar Franco o processo foi interrompido, tendo Itamar, inclusive, ordenado à direção da Petrobrás e a outras estatais que enviassem técnicos ao Congresso Nacional levando dados gerados pelos órgãos dessas empresas para subsidiar os parlamentares por ocasião da revisão constitucional, em 1993 e 1994. Esse trabalho, também feito por técnicos das outras estatais, impediu a quebra dos monopólios de petróleo, de comunicações, da navegação de cabotagem e do gás canalizado, impedindo que aquela revisão – entreguista – fosse exitosa.

Itamar era um nacionalista e se opunha tenazmente às privatizações. Mas o “lobby” joga pesado. Assim, Itamar enfrentou diversas iniciativas contra si. Uma delas foi colocarem uma moça sem calcinha no camarote do presidente, no sambódromo do Rio de Janeiro, fotografada por um fotógrafo de “O Globo” num ângulo que somente ele captou a genitália despida. Depois Itamar falou com ela por um telefone do Hotel Gloria, tendo uma repórter de “O Globo” na extensão. Posteriormente, numa viagem à Colômbia, um sobrinho e assessor de Itamar apareceu morto de overdose. Diante de tais pressões, o presidente acabou aceitando privatizar a Companhia Siderúrgica Nacional.

Depois do governo FHC, tentando se candidatar a presidente, Itamar foi atraído pelo PMDB, já tendo sido atraído pelo PSB. Prevendo um melhor apoio do PMDB, fez sua escolha por ele. Resultado: foi traído de forma humilhante e não pôde se candidatar. FHC conseguiu a reeleição com compra de votos, emendas liberadas para quem o apoiasse. Mas Itamar se elegeu governador de Minas Gerais e impediu, dentre outras, a privatização de Furnas.

Em 1992/3, FHC, como Ministro da Fazenda, ordenou que o Diretor do Departamento Nacional dos Combustíveis, Paulo Motoki, manipulasse a estrutura de preços dos derivados do petróleo. Nos seis meses que antecederam à URV, ele deu aumentos para as distribuidoras acima da inflação (32%) e, para a Petrobrás, abaixo da inflação (10%), o que fez com que a Companhia transferisse, anualmente, cerca de US$ 3 bilhões do seu faturamento para o cartel das distribuidoras. Com a implantação da URV e depois o plano Real, essa transferência ficou eternizada. O nosso diretor da AEPET, José Conrado, elaborou uma carta para o presidente Itamar, mostrando o absurdo. Comparando, inclusive, com a estrutura de preços americana, onde o refinador ficava com 65% do litro de gasolina vendido nos postos, enquanto que a Petrobrás, por aqui, ficava com apenas 14%. A desculpa do cartel era que eles tinham perdido o “floating”.

Mas o que vinha a ser esse “floating”? Outro absurdo: a Petrobrás comprava petróleo em dólar e vendia os derivados para as distribuidoras em reais. Elas tinham 30/40 dias para pagar à Petrobrás e aplicavam o dinheiro no mercado. Com a inflação galopante, ganhavam uma fortuna às custas da Petrobrás. E perpetuaram esse ganho com a manobra de FHC e o plano Real. De tanto a AEPET gritar, esse absurdo acabou sendo corrigido. Elas, sem fazer nada, ganhavam mais do que a Petrobrás, que: explorava, produzia, transportava e refinava o petróleo.

GASODUTO

Ainda no governo Itamar Franco, a empresa americana Enron junto com a British Gás, a Repsol e a Shell fizeram um forte lobby, através de FHC, para que a Petrobrás construísse o gasoduto Bolívia-Brasil com os seus recursos, financiando-o para elas.

Ocorre que essas empresas tinham reservas na Bolívia e o único mercado possível era o Brasil. Mas o gasoduto era inviável economicamente, pois tinha uma taxa de retorno de 10% ao ano e custos financeiros de 12% ao ano.

Assim, foi a Petrobrás forçada a retirar recursos da Bacia de Campos, onde a taxa de retorno era de 80% ao ano, em média, e aplicar nesse projeto, o que, na época, classificamos como o pior projeto da história da Petrobrás. A AEPET fez uma campanha muito forte, tendo editado um livreto explicativo sobre o tema.

Da forma como foi implantado, o projeto era ruim para a Bolívia, pois ela só recebia 18% pelo gás produzido; era ruim para o Brasil, que passou a usar um insumo energético poluente em detrimento de usinas hidrelétricas, pago em moeda forte e controlado por multinacionais.

Para a Petrobrás foi péssimo. Além de antieconômico, o contrato obrigava a empresa a assinar uma cláusula de “Take or Pay”, ou seja, mesmo não havendo para quem vender, ela era obrigada a comprar a quantidade contratada. Assim, durante 10 anos, ela importou cerca de 15 milhões de m3 por dia e era obrigada a pagar 25 milhões.

Depois de todo esse prejuízo, a ANP, dirigida por David Zilberstajn, obrigou a Petrobrás a ceder parte do gasoduto para a Enron e para a British Gas, com o consórcio das duas pagando valores bem menores que os pagos pela Petrobrás.

A Comgás, maior distribuidora de gás do País, foi leiloada pelo então secretário Zilbertajn e foi adquirida pela Shell e pela British, sendo que a Petrobrás Distribuidora foi impedida de entrar no leilão.

REVISÃO CONSTITUCIONAL

Seu relator foi o deputado Nelson Jobim. Ele se reunia todos os dias com o grupo de lobistas que defendiam os interesses estrangeiros, comandados por Jorge Gerdau, Afif Domingos e dirigentes da FIESP.

Jobim chegou a propor o fim do mar territorial de 200 milhas. O senador Antonio Mariz, da Paraíba, a pedido da AEPET, fez uma denúncia indignada no plenário do Senado e Jobim, então, retirou a proposta.

A Petrobrás, sob orientação do presidente Itamar Franco, criou um Grupo de Trabalho de empregados voluntários para que fossem ao Congresso Nacional levando muitas informações geradas pelos órgãos da Companhia, sob o comando do SERPLAN – Serviço de Planejamento -, visando a subsidiar os parlamentares. A AEPET participou desse grupo com três diretores, em média, indo a Brasília semanalmente, durante todo o período da revisão, nos anos 93 e 94, e ajudando com a sua experiência na abordagem aos parlamentares. Nesses contatos, os congressistas pediam que elaborássemos discursos sob o tema. Os companheiros nos traziam os pedidos e elaborávamos. Só eu cheguei a redigir cinquenta deles. Foram objetos de vários pronunciamentos nos plenários da Câmara e do Senado. Esse trabalho do GT teve um êxito extraordinário e junto com os trabalhadores da Telebrás e demais estatais envolvidas, conseguimos que a revisão não se concretizasse.

Nesse trabalho contávamos com um grande apoio do deputado Haroldo Lima, na época um nacionalista. No final do processo, já com nossa vitória garantida, surgiu um esforço do Centrão para uma negociação, tentando recuperar alguma coisa. Um dos líderes, nosso aliado, líder do PDT, nos informou que os lobistas estavam oferecendo R$ 10 milhões para os deputados da oposição que defendessem esse acordo. Coincidentemente, no ano seguinte, o deputado Haroldo Lima mudou totalmente de postura, quando FHC acionou o rolo compressor. Haroldo não mais nos ajudou: não sabia mais de nada e chegou a desativar a nossa base de apoio, a Frente Parlamentar Nacionalista, levando tudo para o seu gabinete, inclusive a secretária. Por grande coincidência, o líder do PT ganhou um grande prêmio na loteria e abandonou a política.

No ano seguinte, 1995, FHC fez um decreto e proibiu a ida de empregados de estatais ao Congresso. O decreto 1403, de 17/2/1995, instituiu serviço de inteligência/espionagem, que visava a informar a ida de algum empregado de estatal ao Congresso. Seria demitido. Assim, FHC passou o trator pelas reformas da Ordem Econômica (quebra dos monopólios, privatizações) que causaram um desastre ao País. Esse processo incluiu a indução dos petroleiros à greve, para massacrar os sindicatos em geral e desmontar uma grande resistência às suas reformas neoliberais e entreguistas. Calou os sindicatos e nadou de braçada nos seus objetivos de entregar o País.

Desde o início, o governo FHC deixou clara a sua posição e a forma arbitrária e autoritária como agiria. Em fevereiro de 1995, quando as emendas sobre a Reforma Constitucional começaram a tramitar no Congresso, o governo proibiu as estatais de fazer qualquer trabalho junto aos parlamentares.

Em discurso considerado o mais duro desde sua posse, Fernando Henrique preveniu: “Eu faço questão de advertir que não tolerarei que as empresas governamentais trabalhem contra o governo. Não tolerarei. Tenho certeza que posso contar com os presidentes e diretores destas empresas. Caso contrário, não estarão participando do governo e as consequências serão imediatas.” Ou seja, “quem não aderir, tá fora”.

O autoritarismo do presidente refletia sua insegurança. Isto porque, durante a Revisão Constitucional no governo Itamar Franco, o trabalho de esclarecimento feito pelos empregados da PETROBRÁS junto aos congressistas foi muito bem sucedido, tendo, inclusive, contado com o apoio do então presidente da empresa, Joel Mendes Rennó que, à época, mostrava-se contrário à flexibilização do monopólio estatal do petróleo. Veio FHC e ele deu uma guinada de 180 graus.

Ao mesmo tempo, FHC defendia a realização de uma ampla campanha, com o aparato de marketing eleitoral para pressionar o Congresso. Não chegou a tanto porque encontrou uma fórmula mais eficiente para fazer pressão: de um lado, ameaçava os aliados que não estavam apoiando o governo como ele queria (uma das formas utilizadas para pressionar aqueles parlamentares foi realizar devassa em suas empresas, colocando a estrutura da Receita Federal a serviço do lobbypresidencial/internacional); por outro lado, FHC empregava, com toda força, a política do “é dando que se recebe”. Assim, guardou todos os cargos dos segundo e terceiro escalões, prometendo distribuí-los apenas aos aliados fiéis. Era a volta, a pleno vapor, do fisiologismo político. Nas votações das reformas, era de impressionar a fidelidade das bancadas do PFL: maior que a do próprio partido do presidente, o PSDB. O início da distribuição de cargos no segundo e terceiro escalões se deu no mesmo período da votação da emenda que derrubou o monopólio estatal do petróleo.

BOB FIELDS

Em 1995, durante uma audiência pública para discutir a proposta do governo que iria mexer na Constituição, estivemos eu e um representante da FUP numa audiência pública para apresentar nossa posição contrária a essa mexida.

Fizemos ambos uma boa palestra e, durante a nossa falação, o deputado Roberto Campos espalhava um monte de papéis sobre a mesa do plenário e olhava para nós com um olhar ameaçador como se dissesse: “vou trucidar vocês”. Tranquilos, pois conhecíamos todas as falácias e sofismas que ele publicava na mídia, ficamos aguardando a sua intervenção.

Roberto Campos falou por 29 minutos marcados por mim no relógio, enquanto procurava alertar o presidente da sessão, deputado Alberto Goldman, de que iria querer o mesmo tempo para resposta. Ele concordava, contrariado com o falatório interminável de Roberto Campos.

Quando Campos terminou, eu usei o mesmo tempo e fui desmontando ponto por ponto as assertivas falaciosas e sofismáticas dele. Quando terminei, Roberto Campos, muito zangado declarou: “Vocês da AEPET têm a mania de achar que têm o monopólio do patriotismo. Quero dizer a vocês que eu também sou um patriota”.

Respondi: “Sabemos que o nobre deputado e o insigne Barbosa Lima Sobrinho são os dois maiores patriotas do nosso País. Só que vocês defendem pátrias diferentes”.

Campos, agora indignado, pegou os seus papéis e saiu sem ver o resto da audiência, que durou sete horas, devido às perguntas e respostas.

Levamos também o ex-Ministro Aureliano Chaves para outra audiência. Aureliano deu uma verdadeira aula de patriotismo e defesa da Soberania Nacional. Falou e respondeu perguntas durante sete horas seguidas, tendo repreendido o próprio filho, do PSDB, que defendia as mudanças de FHC.

O lamentável dessas audiências é que o relator da matéria na Câmara, deputado Procópio Lima Neto, não se fazia presente. Aparecia na abertura e se ausentava com 15 minutos, ou seja, Lima Neto já tinha o relatório pronto, redigido pelo lobby.

PAPEL DA MÍDIA

Em meados da década de 60, houve denúncias e se criou uma CPI sobre um contrato entre as redes Globo e Abril com o Grupo americano Time Life. A CPI apurou e constatou a veracidade das denúncias. Os contratos foram desfeitos, mas o estrago já se concretizara nos seus três anos de duração. A Organização Globo desmontou a TV Tupi e depois foi desmontando, um a um, os jornais concorrentes. Na época, tínhamos no Rio oito jornais da melhor qualidade: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário da Noite, Última Hora e outros. A Rede Globo virou uma potência e, sub-repticiamente, se transformou num veículo dos interesses americanos. A revista VEJA, principal veículo da Abril, desempenha as mesmas funções. Há quem diga que ela é a primeira revista americana editada em português, tal a sua tendenciosidade.

Durante o processo de revisão constitucional que antecedeu às reformas de FHC, a grande mídia fez uma campanha sórdida para desacreditar as empresas estatais.

No início de 1995, a revista VEJA fez uma matéria de dez páginas, batendo falaciosamente na Petrobrás. Isto, depois de entrevistar os seus diretores e também o Diomedes, então presidente da AEPET, a quem sucedi, e eu. O jornalista, Arnaldo Cesar, que era nosso amigo, alertou: “Olha, eu não sei se esta matéria vai sair como vocês esperam. Há um grupo de editores com a matéria pronta. Se eu pegar algum ‘furo’ de vocês, eles aceitam. Se não, nada disto sairá”. Dito e feito!

A VEJA fez uma matéria em que não havia uma única vírgula a favor da Petrobrás, nem da AEPET. Só paulada. Fizemos uma matéria, respondendo ponto a ponto. A VEJA sequer respondeu. A Petrobrás preparou matéria de dez páginas, respondendo ponto a ponto. A VEJA também não deu resposta. A Petrobrás fez, então, novo trabalho, de cinco páginas, para ser publicada na revista como propaganda; a VEJA recusou, dizendo que não iria se desmoralizar perante os seus leitores. Mas injuriou de forma grotesca a maior empresa nacional.

O Estadão e a Folha de São Paulo também batiam nas estatais em geral e quase diariamente na Petrobrás, em particular. O Globo também fazia matérias seguidas e todos usavam “slogans” e rótulos pejorativos do tipo “marajá”, para os funcionários das estatais ou “dinossauros” para os seus defensores, como Barbosa Lima Sobrinho ou outro qualquer que não fosse empregado, mas defendesse as estatais. O mote era defender “O Mercado”, que sabia de tudo e resolvia todos os problemas. A rede Globo usava as novelas para lançar mensagens subliminares. Fizemos um livreto, “Glossário neoliberal”, para denunciar as frases e “slogans” usados pela mídia na sua campanha difamatória e marqueteira do processo de privatização.

Alguns animadores de programas de TV, como Hebe Camargo, Ratinho, Gugu e outros, lançavam brados contra as empresas estatais. “Gente, vocês podem aceitar essa telefonia péssima que nós temos? Eu não aceito”. Certamente eram regiamente remunerados para isto. A festa midiática só cessou quando a farra da privataria acabou. O Brasil vendeu mais de oitenta estatais, recebeu uma importância ínfima e a dívida interna cresceu de R$ 60 para R$ 700 bilhões. Perdemos muito.

O Departamento Nacional dos Combustíveis, conforme um dos seus relatórios de inspeção, constatou que as distribuidoras de combustíveis – do cartel internacional – não retiraram as suas cotas de combustível das bases de distribuição da Petrobrás. O objetivo era culpar os petroleiros pelo desabastecimento. O TCU também registrou esse fato. O mesmo foi feito pelas distribuidoras de gás. Enfim, elas tiveram 23% de aumento, enquanto aos petroleiros nada foi concedido.

Em 11 de dezembro de 1995, o Relatório Reservado publicou a matéria“Orquestração do governo pega mal na Suíça”, revelando que o principal jornal suíço, o Neue Zurich Zeitung, criticou severamente a imprensa brasileira, por não informar que foram as distribuidoras multinacionais (Shell, Exxon, Texaco, Supergasbrás etc.) as responsáveis pela falta de combustíveis e gás de cozinha no país, quando da greve dos petroleiros. Dizia a reportagem: “O correspondente do jornal suíço no Brasil espantou-se que os mesmos jornais e televisões que atribuíram aos grevistas os dramas passados pela população pobre, sequer mencionaram o relatório final do inquérito do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a greve.”

Sem entender o silêncio do governo brasileiro diante da grave conclusão do TCU, o correspondente suíço perguntou ao gabinete do presidente FHC se haveria alguma retratação pública, recebendo a promessa, jamais cumprida, de que isso seria feito em breve. Além de classificar o governo Fernando Henrique como de centro-direita, neoliberal, o jornalista terminou sua matéria “decepcionado com o complô montado durante a aprovação da quebra do monopólio do petróleo”. Foi preciso a imprensa internacional se indignar, a nossa foi conivente.

A AEPET mandou essa matéria para vários jornalistas que condenaram os grevistas, entre eles, Villas-Boas Corrêa, Carlos Chagas, que atacavam furiosamente os petroleiros pela falta do combustível. Não houve resposta deles; nenhum pedido de desculpas ou admissão do erro.

A greve dos petroleiros foi a grande desculpa encontrada pelos deputados que, na primeira votação, apresentaram o movimento grevista como pretexto para votarem contra o monopólio do petróleo. O governo, a grande mídia e as multinacionais do cartel do petróleo jogaram pesado. FHC colocou tropas nas refinarias, numa irresponsável provocação aos petroleiros que, numa atitude sensata, não reagiram. As distribuidoras fizeram tudo para provocar a falta de combustível. O governo difamou e usou a greve. Se os petroleiros, massacrados, não decidissem suspender o movimento, apesar de fragorosamente derrotados, as consequências seriam imprevisíveis. Isto mostra o peso do jogo bruto e ditatorial usado pelo governo.

No auge da greve, a Rede Globo teve um veículo com explosivos apreendido pela Polícia Federal, próximo a uma refinaria (um novo Riocentro?). A tese de mestrado de Frederico Lisboa Romão mostra, na página 396:

“O dia 17.05 vai ser repleto de fatos favoráveis aos grevistas. Surge a denúncia no Jornal do Brasil (do mesmo dia) da apreensão pela Polícia Rodoviária Federal de um veículo da Rede Globo contendo explosivos próximo a REVAP, o fato ganha notoriedade, a deputada federal do PCdoB Jandira Feghalli cobra neste mesmo dia investigação da polícia federal. Um documento do Congresso Nacional assinado por 25 congressistas, do PT, PDT, PCdoB, PPS, PMDB, PTB, PSDB, PFL, PP, solicita a intermediação do ex-presidente Itamar ‘…no sentido de abrir canais de negociação com o governo…’ ” (cf. Frederico Lisboa Romão, “A greve do fim do mundo: petroleiros 1995 – Expressão fenomênica da crise fordista no Brasil“, Unicamp, 2006).

FHC aproveitou para provocar os petroleiros, tendo um dos ministros do TST, Almir Pazzianoto, seu aliado, tomado uma posição radical e até declarado que os petroleiros estavam sendo feitos de palhaços. Pura provocação.

O TST estabeleceu uma multa de R$ 100.000,00 por dia de greve, absurda, levando os Sindipetros de todo o Brasil a uma situação de inviabilidade. Esse massacre levou a uma derrocada do sindicalismo brasileiro: “Se o segundo maior sindicato do País sofreu essa derrota, o que nós sindicatos menores podemos fazer?”.

A LEI Nº 9478/97

Tendo violado a Constituição Federal no seu artigo 177, § 1º, que, em 1988, fora redigido pelo diretor da AEPET, Guaracy Correa Porto, FHC substituiu esse parágrafo por outro que retirou a exclusividade da Petrobrás de executar o monopólio da União, abrindo a porteira para empresas privadas, mormente estrangeiras, produzirem o petróleo nacional.

Para regulamentar a mudança, ele enviou um projeto de Lei que acabou se transformando na Lei nº 9478/97.

Essa lei, elaborada no auge do neoliberalismo, é uma lei ordinária em todos os sentidos, pois ela apresenta incoerência em vários dos seus artigos como, por exemplo: o artigo 3º diz que as jazidas de petróleo pertencem a União; o artigo 21 diz que o produto da extração do petróleo pertence à União. Mas o artigo 26, fruto de intenso trabalho do “lobby”, diz que quem produzir o petróleo passa a dono dele.

Os dois primeiros artigos obedecem à Constituição. O terceiro a contrapõe totalmente. Há outros artigos perniciosos, como o artigo 64, que foi posto para permitir que se transformassem as unidades de negócio (que Reischstul, depois, dividiu a empresa em 40 delas) em subsidiárias para posterior privatização e/ou desnacionalização.

O então deputado Elizeu Rezende foi o relator dessa matéria. Procuramos o deputado até na sua residência, em Belo Horizonte, junto com a FUP e outras entidades dos movimentos sociais. Mas acho que foi pior. Tudo que apontávamos de ruim, o deputado pedia sugestão por escrito e piorava o projeto. Por exemplo, o artigo 26 dizia: “conferindo-lhe a titularidade desses bens (petróleo) após extraídos”. Titularidade era bem melhor do que “propriedade”, que foi a palavra que o deputado colocou no lugar de titularidade, e entregou o petróleo para quem o produzisse.

Para piorar ainda mais a situação, FHC emitiu o decreto 2705/98, que estabeleceu as faixas para o pagamento das Participações Especiais: até 95.000 barris por dia, o produtor paga zero. A partir de 95.000 barris, começa a pagar 10% e chega a no máximo 40% do óleo-lucro, ou seja, abate-se do petróleo produzido os custos de produção e os royalties, aplicando-se os percentuais sobre o restante.

Com isto, o produtor paga à União, em dinheiro, no máximo 7% do óleo total produzido. Como essa medição é por campo, as multinacionais todas produzem menos de 95.000 barris por diaLogo, nada pagam de participação especial. Também não pagam imposto de exportação, dádiva concedida pela Lei Kandir.

No mundo, os países exportadores recebem, em petróleo, a média de 84% do óleo-lucro. Lembro que nos países do Oriente Médio, o custo de produção é baixíssimo e 84% do óleo-lucro é um valor acima de 70% para os países produtores.

ANP-ZILBERSTAJN

Implantada a Lei 9478/97, a Agência Nacional do Petróleo – ANP – foi entregue ao genro de FHC, David Zilberstajn, que, ao assumir, declarou em alto e bom som para um auditório lotado de dirigentes de empresas multinacionais ou seus representantes: “O petróleo agora é vosso“. E cumpriu, pois, ao dividir os blocos para licitação, estabeleceu suas áreas com um valor 220 vezes maior do que a dos blocos licitados no Golfo do México.

Tal era a pressa para entregar o ouro negro. E o processo de licitação começou com uma série de irregularidades, entre elas a não realização de audiências publicas para preparação dos leilões.

Em face disto, a AEPET entrou com ações judiciais contra esses leilões. Chegamos até o terceiro leilão, quando estas irregularidades foram sanadas. Tais leilões encontram-se “sub-judice”, mas a Justiça dificulta muito as nossas ações. Já no governo Lula, entramos com ações contra o sexto e o oitavo leilões.

FHC

FHC retomou o processo iniciado por Collor e interrompido por Itamar: a sugestão do Credit Suisse de privatização da Petrobrás voltou com tudo.

A AEPET trabalhou para impedir esse processo de desnacionalização, subsidiando a ação judicial movida pelo Sindipetro-RS contra a entrega/doação da Refap para a Repsol, interrompendo o processo.

Reichstul dividiu a Companhia em 40 Unidades de Negócio que, pela Lei 9478/97, artigo 64, poderiam ser convertidas em subsidiárias e privatizadas. A REFAP seria a primeira vítima. O golpe se daria através de uma troca de ativos, em que a Repsol cederia US$ 500 milhões em ativos seus e a Petrobrás outros US$ 500 milhões. Formariam assim, uma terceira empresa, REFAP S/A, privatizada.

Quando analisamos os ativos oferecidos, vimos que os ativos da Repsol valiam menos de US$ 200 milhões. E os ofertados pela Petrobrás, mais de US$ 2 bilhões. Nesse cálculo, estimamos um dos ativos da Petrobrás (30% da REFAP) em US$ 600 milhões. Agora, eles foram recomprados por US$ 800 milhões, confirmando nossa previsão.

A liminar dessa ação, ganha em primeira instância, interrompeu o processo perverso de desnacionalização da Petrobrás. A próxima vítima seria a REDUC. Depois, as plataformas.

PETROBRAX

Quando Reichstul, em 1999, trabalhava pela desnacionalização da Petrobrás, convidou a AEPET e a FUP para nos comunicar as providências de mudança de nome da Companhia. Falou das vantagens, entendendo que a medida facilitaria aos “gringos” a pronúncia do nome da empresa (o que seria sua nova aquisição). Eu e o Diretor da AEPET, Argemiro Pertence, na ocasião, perguntamos se ele havia se dado conta de que estaria rasgando a segunda Bandeira do Brasil, ao que ele respondeu: “convidei vocês para comunicar um fato e não para lhes pedir opinião“.

Respondemos: “então, presidente, prepare-se para arcar com as consequências“. Saímos da reunião e disparamos a informação para os jornalistas nossos conhecidos e colocamos no AEPET Direto — nosso informativo eletrônico diário, bem como em nossos boletins. A mídia toda repercutiu a matéria.

A reação nacional foi grande e Reichstul acabou voltando atrás e cancelando a insidiosa iniciativa. A Nação brasileira se apercebeu do golpe e mostrou a sua indignação. O presidente Reichstul em pouco tempo se tornou “ex-presidente”.

Aliás, Reichstul foi um péssimo presidente: desmontou a equipe de planejamento estratégico da Petrobrás, substituindo-a pela empresa americanaArtur D Little. Um desastre. A empresa levou a Petrobrás a comprar refinarias velhas na América do Sul e até uma nos EUA, com um passivo ambiental imenso. Definiu um novo plano de previdência, PPV, e dividiu a Petrobrás em quarenta unidades de negócio a serem privatizadas. Além disto, Reichstul conseguiu a ocorrência de 62 acidentes da Petrobrás em 2,5 anos contra uma média histórica de menos de um acidente por ano. Muitos desses acidentes, a nosso ver, foram sabotagens, inclusive o da P36. Nós solicitamos à Marinha e ao Ministério Publico que investigassem a respeito dessa hipótese. Lamentavelmente, nenhuma investigação foi feita.

Outra das facetas de Reichstul: a empresa Marítima havia contratado sete plataformas de perfuração para trabalhar para a Petrobrás. Ela estava atrasada e sujeita a uma multa de centenas de milhões de dólares, que se consumaria em um mês. O que fez Reichstul? De forma atabalhoada (proposital?), cancelou os contratos, dando à Marítima o direito de se safar da inadimplência e das multas e ainda processar a Petrobrás pedindo US$ 2 bilhões de indenização por cancelamento unilateral de contrato. Chegou a ganhar na 1a instância. Perdeu no STJ.

Reischstul dobrou a gratificação dos gerentes e a quantidade deles, ganhando apoio para suas falcatruas. Deu ainda aos gerentes um poder de decisão muito grande, podendo contratar empresas e pessoas terceirizadas. Cooptou a maioria para efetivar o processo de desnacionalização da empresa.

Em 2001, Reichstul, desgastado, dá lugar a Francisco Gros que, ao assumir a presidência da Petrobrás, num discurso em Houston, EUA, declara que na sua gestão, “a Petrobrás passará de estatal para empresa privada, totalmente desnacionalizada“; compra 51% da petroleira Pecom, da Argentina, por US$ 1,1 bilhão, embora a dita empresa tenha declarado, publicamente, um déficit de US$ 1,5 bilhão; cria um sistema para mascarar acidentes nos quais os acidentados não os possam reportar; tenta implantar um plano de Benefício Definido no Fundo de Pensão – Petros.

Faz, ainda, um contrato de construção de duas plataformas com a Halliburton, com uma negociação obscura, sem concorrentes, que resulta, além de um emprego maciço de mão-de-obra estrangeira, em dois atrasos superiores a um ano e meio. Estes atrasos fizeram com que, pela primeira vez na história da Petrobrás, houvesse uma queda de produção, fato ocorrido em novembro de 2004. Apesar desses atrasos, a Halliburton nada pagou de multa e ainda ganhou cerca de US$ 500 milhões de adicionais da Petrobrás, em tribunal americano. A AEPET denunciou esses fatos REITERADAMENTE.

VENDA DE AÇÕES

Em 2000, depois de seis empresas estrangeiras ficarem mais de um ano no 12º andar do Edifício-sede da Petrobrás, fazendo desfilar os gerentes com todas as informações que quisessem, analisando todos os dados estratégicos da Petrobrás, Reischstul, numa grande encenação, como se fosse preciso algum marketing, levou Pelé para a bolsa de Nova Iorque, objetivando a “venda” de ações da Petrobrás.

Em duas etapas, foram vendidos 36% das ações por US$ 5 bilhões, quando elas valiam mais de 15 vezes esse valor, sem contar as reservas do pré-sal a que esses acionistas passaram a ter direito, sem nada terem pago por elas. Foi uma doação do patrimônio potencial brasileiro. Até então, no País, entregara-se o que já fora ou estava sendo produzido. No contexto petróleo, com a venda das ações, passou-se a entregar o que ainda será produzido. Um caso típico de entrega hereditária.

MÍDIA

Parece que agora a Rede Globo e a mídia dominada vão recomeçar a campanha: a Revista ÉPOCA, da editora Globo, lançou uma matéria de sete páginas, em seu número de 13/06/2011, configurando uma retomada da campanha contra as estatais, os fundos de pensão e o governo.

Eis o começo da matéria: “A queda do Muro de Berlim [está no Glossário] parecia ter encerrado o debate sobre o tamanho do Estado na Economia. Com a vitória de um sistema baseado na livre-iniciativa — o capitalismo — sobre outro baseado no planejamento estatal — o socialismo —, a conclusão era cristalina: o governo deveria limitar ao mínimo a regulação sobre as atividades privadas e cuidar (bem) dos serviços básicos, como saúde, educação, justiça e segurança [outro slogan do Glossário]… Em setembro de 2008, porém, com a eclosão da crise global, os governos de quase todo o mundo tiveram de injetar trilhões de dólares para reanimar suas economias. Nos EUA, como em outros países, o Estado assumiu o controle de bancos, seguradoras e até mesmo montadoras de automóveis à beira da falência [a revista não fala, mas foi o colapso da falácia neoliberal do ‘Mercado”]… Vozes antes relegadas a um papel secundário no debate voltaram à cena com ares de protagonistas. Uma delas, o economista americano Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de economia em 2001, afirmou recentemente à Época: ‘Não é o tamanho do Estado que importa, é o que o governo Faz’“.

E a revista segue ressuscitando “slogans” e chega ao ponto fundamental: “A interferência do Estado na economia via estatais, BNDES, e fundos de pensão é tão intensa que durante a (nossa) pesquisa, ÉPOCA teve de atualizar dados de muitas Companhias que receberam recentemente dinheiro do governo…”. “O governo brasileiro é um dinossauro com apetite insaciável. Nunca tivemos um capitalismo de estado tão evidente“.

Esta matéria está em sintonia com diversas publicações na Internet que afirmam que o governo dos EUA está empenhado em combater a intervenção do governo brasileiro na economia através das estatais e dos Fundos de Pensão. Eles não querem que o Brasil se torne independente economicamente deles. O Brasil é o seu maior celeiro de matérias primas. Uma prova recente dessa intenção: nós, conselheiros eleitos da Petros, fomos a Brasília para uma audiência marcada com o diretor da PREVIC, autarquia que controla os fundos de Pensão. Não pudemos falar com o diretor. Ele foi convocado para uma reunião com o Banco Mundial. O que tem a ver a controladora dos Fundos de Pensão com o Banco Mundial? Teoricamente nada, mas é provável que faça parte do esquema do governo americano para enquadrar os Fundos de Pensão.

Não resta dúvida de que, no momento, o alvo principal é a Petrobrás, pois no projeto do governo Lula ela será a operadora única do pré-sal. O lobby internacional tentou mudar isto, mas não conseguiu. Mas eles nunca desistem e como disseram no Wikileaks: “O projeto do governo nos é desfavorável, mas o mudaremos com o auxílio do IBP, ONIP e FIESP, com cuidado para não despertar o nacionalismo dos brasileiros“.

 

Fernando Siqueira

Vice-Presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás

Artigo publicado no Jornal Hora do Povo em novembro de 2012

 

MAIS VERBAS PARA A EDUCAÇÃO OU MORE FUNDS FOR EDUCATION?

Nenhum país, depois da virada para o século XX, conseguiu se desenvolver sem maciços investimentos no ensino público, especialmente no ensino universitário – assim como sem fazer da indústria nacional, privada e estatal, o centro da economia, impulsionando-a através dos investimentos públicos

 

Em recente encontro com estudantes, por ocasião do último Conselho Nacional de Entidades de Base (CONEB) da UNE, o ministro da Educação, nosso velho amigo Aloizio Mercadante, diante da intervenção de uma diretora da entidade, que apontou os problemas nas verbas para o ensino, em especial a não liberação do montante aprovado pelo Congresso, declarou que “não é verdade”. E apresentou, ao modo de prova, que “a Folha de S. Paulo publicou que o Ministério da Educação foi o que mais gastou, 99% do orçamento”.

O ministro não deveria confiar na “Folha de S. Paulo”. Principalmente quando o tema é o seu Ministério. E, sobretudo, quando o único motivo da matéria da “Folha” é dizer que a presidente Dilma, em prol da “assistência social e ensino”, diminuiu os gastos em infraestrutura (uma queda de 22% só nos gastos em Transporte, segundo “dados da execução do Orçamento pesquisados pela Folha ainda não oficiais” – seja lá o que isso quer dizer).

Sucintamente, é uma matéria de ataque ao governo da presidente Dilma, pois é evidente aonde se quer chegar: que os gastos com educação pública e assistência social, setores a que a reação adora dar dinheiro público, derrubaram o crescimento do país. Portanto, não se trata de um elogio ao governo. Nem ao ministro Mercadante.

O ministro, aliás, defendeu que os royalties do pré-sal sejam endereçados à Educação. Portanto, mesmo que tivesse liberado 99% das verbas aprovadas pelo Congresso para a Educação, ainda assim a situação seria periclitante.

Entretanto, vejamos quais são os dados oficiais – que vêm até novembro, pois os dados do último mês de 2012 ainda não foram divulgados.

Até 30 de novembro de 2012, o MEC havia liberado apenas 66,19% da dotação aprovada pelo Congresso (e atualizada pelo Tesouro), ou seja, a despesa liquidada foi de R$ 50.580.363.000, enquanto a dotação orçamentária era R$ 76.416.209.000 (ver tabela 1; os dados foram extraídos do “Relatório Resumido da Execução Orçamentária – Demonstrativo da Execução das Despesas por Função/Subfunção, janeiro a novembro de 2012“).

Pode ser que o ministro estivesse se referindo às despesas do MEC com ensino (nem todas as despesas do MEC são com ensino). Mas é pouco provável porque os gastos do MEC com ensino foram 64,85% da dotação aprovada pelo Congresso. Portanto, fica até mais distante de 99%.

Então, vejamos a execução orçamentária pelo Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) até 31 de dezembro de 2012. O Siafi é uma espécie de livro-caixa do governo (e não um balanço, como são outros documentos do Tesouro).

Pelo Siafi, até o fim do ano passado, foram efetivamente pagos pelo MEC o correspondente a 73,37% das despesas aprovadas pelo Congresso. Ficou mais perto dos 99%, mas…

Depois de várias tentativas, descobrimos um jeito dessa conta chegar em 99%: somando a verba “empenhada” do Orçamento de 2012 com os “restos a pagar” que foram pagos (ou seja, com as despesas pagas que correspondem a orçamentos de outros anos): o resultado é, exatamente, 99,4% da verba aprovada pelo Congresso para o MEC no Orçamento de 2012.

 

EMPENHO

O único problema, como sabe o ministro, economista de velha cepa, é que verbas “empenhadas” não são gastos, nem pagamentos, nem investimentos. Na definição do Tesouro, são “valores do orçamento que já foram comprometidos com determinado gasto, ou seja, que já passaram pela primeira fase da execução orçamentária da despesa” (cf. “Relatório Resumido da Execução Orçamentária da União – Sintético”, nov. 2012, p. 2).

Para os leitores que não estão acostumados (até porque não têm essa obrigação) ao vocabulário da contabilidade pública, eis uma breve exposição:

A despesa pública pode ser mensurada nas distintas etapas da sua execução, que inclui, resumidamente, os atos de empenholiquidação e pagamento, explicitamente previstos na ‘Lei das finanças públicas’ de 1964. De maneira simplificada, pode-se afirmar que o empenho corresponde à reserva de dotação orçamentária para a execução da despesa e provê garantias ao fornecedor de que existe crédito orçamentário para atendê-la. A liquidação ocorre imediatamente após a entrega da mercadoria ou a conclusão do serviço, momento no qual o governo verifica os documentos que comprovam que o fornecedor cumpriu devidamente suas obrigações. O governo assume a existência do direito adquirido pelo credor por receber o pagamento (…). É nesta ocasião que há a transferência (formal) da propriedade do ativo fixo para a administração pública. O pagamento, por sua vez, é a última etapa, quando ocorre a emissão da ordem bancária de pagamento ou desembolso efetivo de recursos por parte da administração pública para saldar o compromisso com o credor” (C.H.M. dos Santos, R.O. Orair, S.W. Gobetti, A. dos Santos Ferreira, W.S. Rocha, H.L. da Silva, J.M. de Mello Brito, “Qual a taxa de investimento das administrações públicas no Brasil?“, ANPEC 2011, grifos nossos).

Ou, senão, para explicitar ainda mais:

Vale um breve exemplo para melhor esclarecimento. A execução de uma obra pela administração pública (no caso mais geral) se inicia com uma pré-etapa de preparação do edital e de realização da licitação. Finalizada quando se efetua o contrato, entre o governo e a empresa vencedora da licitação que ficará responsável pela obra, estabelecendo as condições e os cronogramas de obras e desembolsos. O empenho antecede o início da obra e ocorre quando há a emissão da ordem de serviço para que a empresa contratada dê início às obras. Já a liquidação ocorre após a verificação de que a obra foi concluída e as obrigações contratuais cumpridas, quando o governo assume formalmente o crédito para com a empresa e a propriedade do ativo fixo em questão. Em condições normais, o pagamento tende a ocorrer pouco tempo após a liquidação” (loc. cit., nota nº 9).

Em suma, um “empenho” é uma reserva contábil de recursos – e apenas isso. Somar verbas “empenhadas” como se fossem gastos ou investimentos é apenas ilusionismo de péssima categoria.

Nem vamos falar na soma dessas “verbas empenhadas” com os “restos a pagar” – pois estes não fazem parte do Orçamento do ano.

Realmente, o ministro não devia confiar em jornais onde, segundo dizem, não se sabe a diferença entre uma promissória e uma duplicata. Certamente, seria melhor confiar na HORA DO POVO, um jornal que sabe a diferença entre “verba empenhada”, “verba liquidada” e “verba paga”.

É verdade que, nas tabelas desta página, usamos “despesa liquidada” praticamente como sinônimo de “despesa paga”, o que não é rigorosamente exato, mas trata-se de casos em que os documentos do Tesouro não diferenciam uma coisa da outra – e, é uma aproximação bastante razoável.

 

GASTOS

Mas vamos ao que mais interessa: de janeiro a novembro, o governo federal despendeu, com ensino superior, sua principal atribuição na área de Educação, R$ 14.854.292.440 (14 bilhões, 854 milhões, 292 mil e 440 reais).

Esta quantia, apesar de representar um tremendo esforço do ex-presidente Lula, que quadruplicou a verba do MEC e duplicou os recursos para o ensino universitário entre 2003 e 2010, inclusive acabando com a Desvinculação de Receitas da União (DRU) na área da Educação, ainda é muito pouco para um país do nosso tamanho, com os nossos recursos, com as nossas necessidades, e com um extenso sistema de universidades federais.

Para que não digam que estamos com má vontade, vamos somar uma complementação de R$ 586.071.000 – incluída sob a rubrica “Despesas custeadas com outras receitas para financiamento do ensino” -, mas vamos lembrar que essa quantia corresponde a apenas 41,17% da complementação aprovada pelo Congresso para o ensino universitário. Ou seja, até novembro fora liberada menos da metade dessa verba.

Assim, com essa soma, o governo despendeu R$ 15.440.363.440 até novembro, em ensino superior. Certamente, este não é o gasto total com as universidades federais, pois nem todo o gasto com elas é gasto com ensino. Por isso, fizemos um levantamento, nos dados do Siafi.

Conseguimos dados exatos de 57 instituições universitárias federais durante o ano de 2012. Devem faltar duas, segundo a conta da Andes durante a última greve de professores. Mas aquelas 57 universidades federais são uma amostra respeitável, até porque, entre elas, estão as principais instituições do país – e as principais em cada Estado.

[NOTA: Algo surpreendente na execução orçamentária é o pouco dinheiro que foi gasto com boa parte dos Centros de Educação Tecnológica do governo federal; porém, deixaremos a análise dessa parte para quando saírem os dados definitivos do Tesouro, correspondentes a 2012.]

A verba total realizada (isto é, gasta) pelo MEC com essas 57 universidades federais foi R$ 26.013.243.878 – ou seja, as despesas que não foram com ensino montaram a R$ 10,5 bilhões (sem dúvida, uma aproximação, mas com toda lógica).

Nesse cálculo não está incluída a verba dos hospitais universitários, porque não sabemos qual parcela, dentro dela, é despesa específica com ensino. No entanto, mesmo se a somássemos (+R$ 3.944.788.090, incluída a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH), não alteraria a qualidade do problema. Aliás, nos pareceu algo incrível que as 35 instituições hospitalares, das melhores do país, que constam do Orçamento, mais a EBSERH, tivessem tão pouca verba.

 

FUTURO

A questão mais estratégica é evidente: nenhum país, depois da virada para o século XX, conseguiu se desenvolver sem maciços investimentos no ensino público, especialmente no ensino universitário – assim como sem fazer da indústria nacional, privada e estatal, o centro da economia, impulsionando-a através dos investimentos públicos.

É quase cômico que alguns sujeitos que vivem berrando que a economia do país precisa de “inovações”, que é preciso aumentar a “competitividade” ou a “produtividade”, ao mesmo tempo sejam os mesmos que advogam a destruição, ou a esculhambação, da universidade pública e sua substituição por caricaturas de universidade, dirigidas por fundos especulativos estrangeiros.

Como é possível ter inovações, como sempre houve, sem universidades decentes, sem universidades públicas? Como, sem profissionais bem formados, haverá desenvolvimento tecnológico?

Obviamente, não haverá.

Nesse sentido, programas do tipo “Ciência Sem Fronteiras” são completamente inúteis, exceto para formatar mentes colonizadas.

É uma completa ilusão a de que os chineses ou japoneses passaram à produção de alta tecnologia (cerca de 40% das exportações chinesas, atualmente, é de produtos de alta tecnologia) porque aprenderam a fazê-los nas universidades norte-americanas.

Tanto a China, quanto antes, o Japão, só chegaram até aí por dar prioridade às suas universidades – e, de resto, às suas indústrias próprias. Vários autores já abordaram este assunto – inclusive aqui no HP, desde 1990. Portanto, há mais de 20 anos estudamos a questão.

O plano era gastar R$ 5 bilhões até 2015 para enviar 101 mil estudantes ao exterior. No entanto, até julho já se gastara R$ 2.450.536.775 com o “Ciência Sem Fronteiras” – e somente se chegara a ¼ do total de bolsas.

Com a originalidade de conceder anistia aos que resolverem não voltar ao Brasil – ou seja, o bolsista não é obrigado a devolver o dinheiro que o Estado gastou com ele. Ver a Portaria nº 141, de 28 de setembro de 2012, do presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Almeida Guimarães, onde ele decreta esse absurdo, inédito no Brasil, “considerando que a permanência de bolsista no exterior, após a titulação, desenvolvendo atividades técnico-científicas, pode ser de grande relevância para o país ou para a humanidade” (cf. Diário Oficial da União, terça-feira, 02/10/2012, pág. 8).

Por falar nisso, só algumas questões de detalhe: até agora, dos 40 países anunciados, 93,55% das 21.418 bolsas concedidas (não necessariamente implementadas) são em apenas 10 países: EUA (4.684 bolsas), Portugal (2.853), França (2.575), Espanha (2.356), Canadá (2.057), Reino Unido (1.804), Alemanha (1.653), Austrália (825), Itália (633), Holanda (596 bolsas). Não temos nada contra o turismo, mas o outro país com número apreciável de bolsas do Ciência Sem Fronteiras é o próprio Brasil (597 bolsas) – não sabemos se (já que a ciência é tão “sem fronteiras” que é preciso mandar o pessoal para além das fronteiras) alguém considerou que o Brasil é um país estrangeiro; ou se algum abnegado lembrou que estamos dentro das fronteiras do Brasil. Mas essa deve ser a parte boa do programa.

Enquanto isso, as bolsas para pós-graduação da Capes e do CNPq dentro do país beiram o ridículo, com alunos de mestrado recebendo R$ 1.350,00 e alunos de doutorado, R$ 2 mil. Já os do “Ciência Sem Fronteiras” percebem U$ 3.090 (R$ 6.254,47, ao câmbio da última segunda-feira) em nível de doutorado – e, convenhamos, para nada.

Assim, como, a la Machado, “tudo era confusão”, compreende-se que o ministro Mercadante, grande ativista do “mais verbas para a educação” sob a ditadura, lance um novo e original programa, o “Inglês Sem Fronteiras” (??), e consagre o idioma de Bush, Obama e Jack, o Estripador (não o de Shakespeare), como “a língua das ciências internacionais” (“ciências internacionais”? Já que elas eram “sem fronteiras”…).

O amigo vai nos desculpar, mas há coisa mais importante – e mais interessante – para um ministro da Educação do Brasil se ocupar.

 

Carlos Lopes

Texto publicado no Jornal Hora do Povo em 30/01/2013

EU QUERO OUTRA ESCOLA! – TESE DO XXII CONGRESSO DA UMES

O ensino público de São Paulo, nas últimas duas décadas, tem sido alvo de uma política orquestrada de sucateamento e abandono do Estado. Nos últimos anos, o que temos visto é a completa inversão de prioridades, com o avanço do ensino privado em detrimento do ensino público. No maior e mais rico estado da Federação, o número de matrículas em escolas públicas da educação básica caiu nos últimos 15 anos. Em 1995, eram 7,2 milhões de matrículas, enquanto em 2010 esse número caiu para 6,6 milhões, segundo o Inep. E isso ocorreu ao mesmo tempo em que a população paulista aumentou 18% passando de 33,4 milhões, em 1995, para 41,2 milhões de habitantes, em 2010. Aplicando 18% de crescimento sobre as vagas públicas existentes em 1995 deveríamos ter, em 2010, 8,5 milhões de matrículas.

Neste cenário de encolhimento das vagas públicas o que percebemos ainda é o avanço do ensino privado, em especial na educação fundamental. Em 1995, o ensino privado no estado de São Paulo na educação básica – ensinos fundamental e médio – representava 12,95% do total de vagas. Em 2010, segundo o Inep, o ensino privado ocupava 15,16% das matrículas. A quem interessa esta lógica? Esta é a “política educacional” que vem sendo implementada pelos sucessivos governos tucanos em São Paulo que deflagraram um criminoso processo de privatização da educação no Estado. Contudo, as grandes mazelas com o descaso não param por aí. Vamos agora analisar o grande malfeito à população paulista que ocupa as vagas públicas nos municípios e Estado: a escola que não ensina.

 

A ESCOLA QUE NÃO ENSINA

Imagine uma escola com todos os professores necessários. Com professores garantidos de autonomia e autoridade. Com uma efetiva cobrança superior da aplicação político-pedagógica proposta para a turma e o alcance de resultados satisfatórios. Com alunos recebendo as teorias disciplinares e as exercitando incessantemente até a sua compreensão, em sala, com o apoio do mestre. Alunos com deveres de casa, exercitando a matéria dada na aula. Estimulados a integrarem esta atividade com os pais ou responsáveis. Professores cobrando a realização dos exercícios dados na aula anterior, avaliando-os e corrigindo-os coletivamente para a satisfação das dúvidas residuais, com autoridade e autonomia para tal. Imagine que, após este esforço pedagógico realizado, o professor possa cobrar o resultado desta ação coletiva, que é individualizada, através da avaliação do aluno. Que o resultado desta avaliação seja alvo de uma análise de alunos, professores, coordenação pedagógica, direção escolar, gestores educacionais, pais e responsáveis. Que o professor e a escola tenham a autoridade e a autonomia de melhor observar, recuperar e, em último caso, reter o aluno, que, por ventura, após todo o esforço realizado, não reúna as condições para avançar.

As obviedades acima descritas não são novidade e podem parecer desinteressantes quando discutimos o que falta à escola pública que não atinge seus objetivos. Grande engano. Nada ou muito pouco do descrito acima é encontrado no ambiente da escola pública municipal e estadual de São Paulo. Aí reside a grande fragilidade da escola pública paulistana e paulista. A escola pública não ensina porque foram retiradas a autonomia e a autoridade do professor em cobrar, desmotivando-o de todas as formas a realizar o fundamental para o aprendizado: exercitar. Com a realização dos exercícios há a apreensão do conhecimento, em especial das ciências exatas. Nós sabemos, por exemplo, que não há outra forma de se aprender Matemática se não for fazendo exercícios. Sabemos que não é suficiente o professor ficar os 50 minutos da aula ensinando a teoria se ao final não tentarmos aplicar no concreto aquilo que está sendo ensinado. É nessa hora, quando se exercita, que surgem as dúvidas, que vemos onde estão as nossas dificuldades e que buscamos a superação, com a ajuda do professor. Assim como é de fundamental importância que o aluno tente sozinho resolver as questões apresentadas, com as listas de exercícios para a lição de casa. E que o professor se preocupe em cobrar e corrigi-los conjuntamente.

 

APROVAÇÃO AUTOMÁTICA = IGNORÂNCIA CONTINUADA

Para agravar a situação, seguindo o receituário neoliberal do Banco Mundial, levado a cabo pelo PSDB desde 1995, foi retirada a condição de avaliar o aluno. É proibido reprovar. Esta permissividade retrógrada degenerou o papel da escola. A perversa política conhecida por “aprovação automática” é um mecanismo que, com o falso pretexto de acabar com a repetência escolar, condena os estudantes das escolas públicas à ignorância, impedindo o seu aprendizado.

Esta é a receita da destruição do ensino público. As conseqüências são desastrosas e sentidas a todo dia na evasão escolar, na escola e nas universidades. Além da incapacidade de adultos de realizar operações simples de interpretação de textos e matemática. No curso de Engenharia, segundo a CNI, pelo menos 50% dos alunos desistem por não acompanharem o curso, em especial a disciplina “Cálculo”. Assim, continuaremos a “importar” técnicos e engenheiros de Cingapura, da Coréia, ou outro país, para exercer a demanda tecnológica nacional. Enquanto isso, dos egressos da escola pública atual, “formamos” exímios atendentes de telemarketing para comercializar o crescente mercado de serviços bancários.

A média alcançada pelos estudantes nos anos iniciais do ensino fundamental em língua portuguesa na Prova Brasil e no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) foi de 184,3. Com esse índice, alunos não conseguem, por exemplo, identificar a finalidade de um texto informativo longo e mais complexo. Em matemática, a média alcançada pelo grupo foi de 204,3. Com o indicador, alunos não estão ainda aptos a ler um gráfico de setores nem resolver uma questão que exige mais de uma operação ou aquelas envolvendo conversão de medidas, por exemplo, de quilos para gramas. Entre alunos dos anos finais do ensino fundamental, a média de língua portuguesa foi de 244. Com esse índice, estudantes ainda não apresentam capacidade, por exemplo, para identificar finalidade de textos humorísticos ou inferir a informação a partir de textos mais longos. Esses alunos alcançaram, em matemática, a média 248,7. Com o indicador, eles não conseguem identificar posições dos lados de um quadrilátero ou reconhecer uma fração como parte de um todo sem o apoio de uma figura.

O estranho é notar que as obviedades descritas acima, ausentes nas escolas municipais da capital e das estaduais, são fartamente presentes nas escolas particulares, em algumas Etec´s e nas federais. Quanto melhor é a escola e seus resultados mais perceberemos o advento da idéia-força: EXERCITAR / AVALIAR. Nestas escolas, o aluno tem dever de exercitar e é cobrado e avaliado por isso. Mais que isso, é estimulado. Caso encontre dificuldades, além da possibilidade de encontrar apoio familiar, lhe é apresentado o reforço escolar para sua recuperação. Estranhamente, nestas escolas, a avaliação não é objeto de malfadadas teses críticas, mas importante indicador de melhoria contínua de todos envolvidos no processo educacional, e que alcança, como resultado, além de uma formação mais satisfatória, a ocupação das melhores vagas nas universidades públicas.

No Enem e na Fuvest, os melhores alunos colocados são de escolas que EXERCITAM e AVALIAM constantemente seus alunos preparando-os para os desafios da vida. Nenhuma escola estadual ou municipal aparece entre as cem primeiras do Enem. As escolas públicas que se destacaram são colégios de aplicação de universidades, colégios militares, escolas federais e escolas técnicas. Aumentando o universo para as mil escolas brasileiras com mais de 75% de participação que obtiveram melhor desempenho no exame, o Enem tem 926 privadas e apenas 74 públicas. Estas 74 escolas públicas são as que ainda EXERCITAM e AVALIAM os alunos. Coincidência?!? Enquanto isso, a mais tradicional escola pública paulista, a EE Caetano de Campos, amarga o 3.273º lugar no Enem-2010, levando em conta apenas escolas paulistas.

 

PROFESSORES DESVALORIZADOS

O salário de profissionais assalariados que têm nível superior é mais que três vezes o valor médio recebido pelos trabalhadores que não possuem a mesma formação. A conclusão está nas informações do Cempre (Cadastro Central de Empresas), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O Cempre reúne informações de empresas e outras organizações formalmente constituídas no país no ano de 2009. Segundo os dados, o salário médio mensal dos que possuem Ensino Superior é de 7,8 salários mínimos, enquanto chega a 2,4 salários mínimos entre os que não têm nível superior.

Contudo, os professores brasileiros, particularmente os paulistas do Estado e da capital, destoam e rebaixam esta média. Todos com a obrigatoriedade de possuir ensino superior, seguindo a LDB, nossos mestres ganham do Estado mais rico do país apenas R$ 1.834,86 por 40 horas semanais de trabalho. Na Prefeitura mais rica do país, quarto maior orçamento nacional, os professores conquistaram a duras penas o salário de R$ 2.600,00 por 40 hs. Ou seja, sendo a média nacional dos profissionais com ensino superior o equivalente a 7,8 salários mínimos, ou R$ 4.851,60, o salário do professor estadual é, no máximo da sua ocupação semanal, 37%, quase um terço, da média dos demais profissionais. A cobiçada colocação no município representa receber apenas 53%, ou seja, metade, do salário médio de trabalhadores com ensino superior.

Além disso, o professor não recebe do Estado e do município a mínima condição de trabalho. Escolas desaparelhadas, sem planejamento, de salas superlotadas, sem objetivos e metas, destroem sonhos dos educadores. Apaixonados pelo ofício, sem conseguir realizar a pretendida obra educadora, frustram-se, desmotivam-se e adoecem.

 

EVASÃO ESCOLAR

A falta de interesse pela escola é o principal motivo que leva o jovem brasileiro a evadir. A pesquisa Motivos da Evasão Escolar, lançada pela Fundação Getulio Vargas – FGV-RJ, revela que 40% dos jovens de 15 a 17 anos que evadem deixam de estudar simplesmente porque acreditam que a escola é desinteressante. A necessidade de trabalhar é apontada como o segundo motivo pelo qual os jovens evadem, com 27% das respostas, e a dificuldade de acesso à escola aparece com 10,9%.

 

SALAS DE AULA LOTADAS

Mais de 60% das escolas estaduais paulistas de ensino básico possuem ao menos uma série com mais estudantes em sala que o recomendado pelo próprio governo de SP. Em 64% delas, há problemas em mais de uma turma. Estudantes reclamam que são obrigados a ficar apertados, a “caçar” carteiras em outras salas e até a dividir assentos com colegas, pois chega a faltar carteiras. O levantamento de escolas com salas superlotadas foi feito por um jornal paulista com base em dados do Ministério da Educação (Censo Escolar 2010). A Secretaria Estadual da Educação reconhece o problema e informa que hoje 890 mil estudantes estão em salas com mais alunos que o indicado (22% do total). A reportagem encontrou turmas com mais de dez alunos acima do recomendado. É o caso do primeiro ano do ensino médio da escola Maria Luiza Martins Roque, na periferia sul da capital. Ali, Carla (nome fictício), 15, possui outros 51 colegas. “É um desastre. Fica aquele abafamento, muito barulho.”

 

ESCOLA = CÁRCERE?

Já que a escola pública paulista não exercita, não avalia, não está condizentemente aparelhada e com objetivos político-pedagógicos e, portanto, não ensina, qual seria então sua função social? Cunhado pelo governo estadual nas últimas décadas, abençoado pela ideologia neoliberal, o papel da escola foi definido: cárcere de crianças e adolescentes. Para que os pais possam trabalhar sossegadamente estes matriculam seus filhos para serem zelados pelo Estado através de verdadeiros agentes penitenciários que enjaulam alunos enquanto o tempo passa o mais rápido possível, sem percalços e agitações no ambiente escolar. Caso ocorra, os infratores são duramente reprimidos com a força do aparato de segurança cabível para a ocasião. Neste ambiente, quaisquer atividades que desorganizem esta harmonia e as relações estabelecidas devem ser impedidas, tais como campeonatos, gincanas, debates, palestras, grêmio estudantil, visitas técnicas, cursos de qualificação e atividades culturais. Carcereiros de plantão e os seus mandatários encontram-se atentos para assegurar a ordem estabelecida. De outra parte, a escola se torna ainda mais desinteressante a todos.

 

ESTRUTURA SUCATEADA

Em 2011, a UMES realizou uma grande campanha de debates contra as drogas nas escolas de São Paulo, a serem realizados em teatros ou auditórios. Impressionou a todos a quantidade de escolas em que estes espaços não existem. Escolas com 3.000 estudantes sem auditório para 100 pessoas ao menos. Muitas escolas privatizaram seus teatros. Como ocorreu na EE Caetano de Campos – Consolação e EE Caetano de Campos – Aclimação, em que os alunos não têm mais o direito rotineiro de usufruir uma estrutura legada a eles. As escolas EE Luiza Salete, EE Miguel Feitosa, EE Alcântara Machado, EE Heitor Villa-Lobos e EE Francisco Voccio, são algumas das escolas que não têm auditórios e improvisam em pequenos espaços para realizar atividades fundamentais para o aprendizado. Em escolas sem auditórios ou teatros fica mais fácil justificar porque não há aula de teatro, aula de música, debates, palestras, Cine Clubes, etc. Percebamos que tudo colabora para a imposição da lógica de mediocridade no ensino público paulista.

Em 2010, realizamos os Jogos Estudantis Petrobras da Cidade de São Paulo percorrendo cerca de 300 escolas paulistanas. Constatamos outra atrocidade. Há pouca ou nenhuma atividade esportiva nas escolas. Muitas escolas não possuem espaço apropriado e material esportivo, a despeito do que alegam as caras propagandas do governo na mídia. Para exemplificar, temos a EE Maria Regina Machado de Castro Guimarães que sequer possui quadra esportiva. Tampouco a Emef Celso Leite Ribeiro Filho, a EE Anhanguera, a EE Maria José, a EE Zenaide Lopes Aguiar possuem quadras cobertas. A EE Esther Garcia, na zona sul, tem uma quadra coberta repleta de buracos que impedem a prática esportiva.

Em 2012, durante a campanha de organização de grêmios estudantis que realizamos, ouvimos inúmeras reclamações de estudantes sobre escolas que não utilizam ou não possuem laboratórios de química, física e informática e bibliotecas. A existência destes espaços é fundamental para a aplicação prática dos conceitos expostos por professores e que vem no sentido de exercitá-los para sua apreensão. A linguagem é outra lógica fundamental de ser estimulada e exercitada com o empréstimo de livros das bibliotecas das escolas. A EE Barão de Ramalho, com mais de 1.500 alunos, na Penha, sendo significativa parte deles de ensino médio, não possui laboratório de química. Como pode ser o aprendizado de um aluno desta escola em igualdade de condições para disputar uma vaga na Fuvest com um aluno do Colégio Dante Alighieri? O mesmo ocorre na EE de São Paulo e EE Zuleika de Barros que tiveram seus laboratórios transformados em depósitos. Já a EE Maria José, na Bela Vista, não possui biblioteca.

Somado a isso, encontramos um alto índice de violência nas escolas. Em 2010, cerca de 62% das escolas estaduais de São Paulo registraram alguma situação de violência dentro do ambiente escolar, como roubos, depredações, pichações, violência contra alunos, professores e funcionários. O dado é divulgado através de questionários do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), respondidos por 4.960 diretores de escolas.

Falta professor em 32% das escolas estaduais. Dois meses após o início do ano letivo, uma em cada três escolas estaduais da capital enfrenta falta de professores. Dados levantados a partir de convocações das diretorias de ensino na primeira semana de abril mostram que, dos 1.072 colégios, 343 têm vagas abertas. Faltam professores, principalmente, nas disciplinas de arte, geografia, sociologia e matemática. Na EE Gavião Peixoto, na zona norte da cidade, alunos do oitavo ano do ensino fundamental dizem que só tiveram duas aulas de geografia até agora. Na sétima série, nenhuma de artes. Os estudantes relataram que, algumas vezes, o professor substituto das aulas vagas acaba ouvindo funk com os jovens dentro da sala. Na rede municipal, a situação da falta de professores é menor. A prefeitura informou que, na primeira semana de abril, faltavam 198 docentes nas cerca de 1.400 escolas. O número de escolas com déficit atinge, portanto, no máximo 14% das escolas, ou seja, menos da metade do montante da rede estadual.