O Romanceiro da Inconfidência

CECÍLIA MEIRELES

(trechos)

 

A obra, escrita por Cecília Meireles em 1940 e publicada em 1953, apresenta-se estruturada em 85 romances, além de outros poemas, como os que retratam os cenários. Total de 95 textos.

Caracteriza-se como uma obra lírica, de reflexão, mas com um contexto épico, narrativo, firmemente apoiado no fato histórico.

O tema é a primeira tentativa de libertação do Brasil, ocorrida em Minas Gerais – contada dos inícios da colonização no século 17 até a Inconfidência Mineira no século 18.

 

ROMANCE XXIV OU DA BANDEIRA DA INCONFIDÊNCIA

Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras:

olhos colados aos vidros,

mulheres e homens à espreita,

caras disformes de insônia

vigiando as ações alheias.

Pelas gretas das janelas,

pelas frestas das esteiras,

agudas setas atiram

a inveja e a maledicência.

Palavras conjeturadas

oscilam no ar de surpresas,

como peludas aranhas

na gosma das teias densas,

rápidas e envenenadas,

engenhosas, sorrateiras.

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

brilham fardas e casacas,

junto com batinas pretas.

E há finas mãos pensativas,

entre galões, sedas, rendas,

e há grossas mãos vigorosas,

de unhas fortes, duras veias,

e há mãos de púlpito e altares,

de Evangelhos, cruzes, bênçãos.

Uns são reinóis, uns, mazombos;

e pensam de mil maneiras;

mas citam Vergílio e Horácio

e refletem, e argumentam,

falam de minas e impostos,

de lavras e de fazendas,

de ministros e rainhas

e das colônias inglesas.

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

uns sugerem, uns recusam,

uns ouvem, uns aconselham.

 

Se a derrama for lançada,

há levante, com certeza.

Corre-se por essas ruas?

Corta-se alguma cabeça?

Do cimo de alguma escada,

profere-se alguma arenga?

Que bandeira se desdobra?

Com que figura ou legenda?

Coisas da Maçonaria,

do Paganismo ou da Igreja?

A Santíssima Trindade?

Um gênio a quebrar algemas?

 

Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

entre sigilo e espionagem,

acontece a Inconfidência.

E diz o Vigário ao Poeta:

“Escreva-me aquela letra

do versinho de Vergílio…

E dá-lhe o papel e a pena.

E diz o Poeta ao Vigário,

com dramática prudência:

“Tenha meus dedos cortados,

antes que tal verso escrevam…

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,

ouve-se em redor da mesa.

E a bandeira já está viva,

e sobe, na noite imensa.

E os seus tristes inventores

já são réus – pois se atreveram

a falar em Liberdade

(que ninguém sabe o que seja).

 

Através de grossas portas,

sentem-se luzes acesas,

– e há indagações minuciosas

dentro das casas fronteiras.

“Que estão fazendo, tão tarde?

Que escrevem, conversam, pensam?

Mostram livros proibidos?

Lêem notícias nas Gazetas?

Terão recebido cartas

de potências estrangeiras?”

(Antiguidades de Nimes

em Vila Rica suspensas!

 

Cavalo de La Fayette

saltando vastas fronteiras!

Ó vitórias, festas, flores

das lutas da Independência!

Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda!)

 

E a vizinhança não dorme:

murmura, imagina, inventa.

Não fica bandeira escrita,

mas fica escrita a sentença.

 

ROMANCE XXVIII OU DA DENÚNCIA DE JOAQUIM SILVÉRIO

 No Palácio da Cachoeira,

com pena bem aparada,

começa Joaquim Silvério

a redigir sua carta.

De boca já disse tudo

quanto soube e imaginava.

 

Ai, que o traiçoeiro invejoso

junta às ambições a astúcia.

Vede a pena como enrola

arabescos de volúpia,

entre as palavras sinistras

desta carta de denúncia!

 

Que letras extravagantes,

com falsos intuitos de arte!

Tortos ganchos de malícia,

grandes borrões de vaidade.

Quando a aranha estende a teia,

não se encontra asa que escape.

 

Vede como está contente,

pelos horrores escritos,

esse impostor caloteiro

que em tremendos labirintos

prende os homens indefesos

e beija os pés aos ministros!

 

As terras de que era dono,

valiam mais que um ducado.

Com presentes e lisonjas,

arrematava contratos.

E delatar um levante

pode dar lucro bem alto!

 

Como pavões presunçosos,

suas letras se perfilam.

Cada recurvo penacho

é um erro de ortografia.

Pena que assim se retorce

deixa a verdade torcida.

 

(No grande espelho do tempo,

cada vida se retrata:

os heróis, em seus degredos

ou mortos em plena praça;

– os delatores, cobrando

o preço das suas cartas…)

 

ROMANCE XXXI OU DE MAIS TROPEIROS

 Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

que reformava este mundo

de cima da montaria.

 

Tinha um machinho rosilho.

Tinha um machinho castanho.

Dizia: “Não se conhece

país tamanho!”

 

“Do Caeté a Vila Rica,

tudo ouro e cobre!

O que é nosso, vão levando..

E o povo aqui sempre pobre!”

 

Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

que não passava de Alferes

de cavalaria!

 

“Quando eu voltar – afirmava –

outro haverá que comande.

Tudo isto vai levar volta,

e eu serei grande!”

 

“Faremos a mesma coisa

que fez a América Inglesa!”

E bradava: “Há de ser nossa

tanta riqueza!”

 

Por aqui passava um homem

– e como o povo se ria! –

“Liberdade ainda que tarde”

nos prometia.

 

E cavalgava o machinho.

E a marcha era tão segura

que uns diziam: “Que coragem!”

E outros: “Que loucura!”

 

Lá se foi por esses montes

o homem de olhos espantados,

a derramar esperanças

por todos os lados.

 

Por aqui passava um homem…

– e como o povo se ria! –

Ele, na frente, falava,

e, atrás, a sorte corria…

 

Dizem que agora foi preso,

não se sabe onde.

(Por umas cartas entregues

ao Vice-Rei e ao Visconde.)

 

Pois parecia loucura,

mas era mesmo verdade.

Quem pode ser verdadeiro,

sem que desagrade?

 

Por aqui passava um homem…

– e como o povo se ria! –

No entanto, à sua passagem,

tudo era como alegria.

 

Mas ninguém mais se está rindo

pois talvez ainda aconteça

que ele por aqui não volte,

ou que volte sem cabeça…

 

(Pobre daquele que sonha

fazer bem – grande ousadia –

quando não passa de Alferes

de cavalaria!)

 

Por aqui passava um homem…

– e o povo todo se ria.

 

ROMANCE XXXIV OU DE JOAQUIM SILVÉRIO

Melhor negócio que Judas

fazes tu, Joaquim Silvério:

que ele traiu Jesus Cristo,

tu trais um simples Alferes.

Recebeu trinta dinheiros..

– e tu muitas coisas pedes:

pensão para toda a vida,

perdão para quanto deves,

comenda para o pescoço,

honras, glórias, privilégios.

E andas tão bem na cobrança

que quase tudo recebes!

 

Melhor negócio que Judas

fazes tu, Joaquim Silvério!

Pois ele encontra remorso,

coisa que não te acomete.

Ele topa uma figueira,

tu calmamente envelheces,

orgulhoso e impenitente,

com teus sombrios mistérios.

(Pelos caminhos do mundo,

nenhum destino se perde:

Há os grandes sonhos dos homens,

e a surda força dos vermes.)

 

ROMANCE LIX OU DA REFLEXÃO DOS JUSTOS

Foi trabalhar para todos…

– e vede o que lhe acontece!

Daqueles a quem servia,

já nenhum mais o conhece.

Quando a desgraça é profunda,

que amigo se compadece?

 

Tanta serra cavalgada!

Tanto palude vencido!

Tanta ronda perigosa,

em sertão desconhecido!

– E agora é um simples Alferes

louco, – sozinho e perdido.

 

Talvez chore na masmorra.

Que o chorar não é fraqueza.

Talvez se lembre dos sócios

dessa malograda empresa.

Por eles, principalmente,

suspirará de tristeza.

 

Sábios, ilustres, ardentes,

quando tudo era esperança…

E, agora, tão deslembrados

até da sua aliança!

Também a memória sofre,

e o heroísmo também cansa.

 

Não choram somente os fracos.

O mais destemido e forte,

um dia, também pergunta,

contemplando a humana sorte,

se aqueles por quem morremos

merecerão nossa morte.

 

Foi trabalhar para todos..

Mas, por ele, quem trabalha?

Tombado fica seu corpo,

nessa esquisita batalha.

Suas ações e seu nome,

por onde a glória os espalha?

 

Ambição gera injustiça.

Injustiça, covardia.

Dos heróis martirizados

nunca se esquece a agonia.

Por horror ao sofrimento,

ao valor se renuncia.

 

E, à sombra de exemplos graves,

nascem gerações opressas.

Quem se mata em sonho, esforço,

mistérios, vigílias, pressas?

Quem confia nos amigos?

Quem acredita em promessas?

 

Que tempos medonhos chegam,

depois de tão dura prova?

Quem vai saber, no futuro

o que se aprova ou reprova?

De que alma é que vai ser feita

essa humanidade nova?

 

ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS

 Ó grandes oportunistas,

sobre o papel debruçados,

que calculais mundo e vida

em contos, doblas, cruzados,

que traçais vastas rubricas

e sinais entrelaçados,

com altas penas esguias

embebidas em pecados!

 

Ó personagens solenes

que arrastais os apelidos

como pavões auriverdes

seus rutilantes vestidos,

– todo esse poder que tendes

confunde os vossos sentidos:

a glória, que amais, é desses

que por vós são perseguidos.

 

Levantai-vos dessas mesas,

saí das vossas molduras;

vede que masmorras negras,

que fortalezas seguras,

que duro peso de algemas,

que profundas sepulturas

nascidas de vossas penas,

de vossas assinaturas!

 

Considerai no mistério

dos humanos desatinos,

e no pólo sempre incerto

dos homens e dos destinos!

Por sentenças, por decretos,

pareceríeis divinos:

e hoje sois, no tempo eterno,

como ilustres assassinos.

 

Ó soberbos titulares,

tão desdenhosos e altivos!

Por fictícia austeridade,

vãs razões, falsos motivos,

inutilmente matastes:

– vossos mortos são mais vivos;

e, sobre vós, de longe, abrem

grandes olhos pensativos.

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