Vulnerabilidade Ideológica e Hegemonia Cultural
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES*
A sociedade brasileira se caracteriza por crônica vulnerabilidade externa com facetas econômica (a mais debatida), política, tecnológica, militar e ideológica. A mais importante, pois influencia todas as políticas e atitudes do Estado e da sociedade brasileira (empresas, associações, partidos, ONGs, igrejas, indivíduos etc.) que agravam aquelas outras facetas da vulnerabilidade, é a de natureza ideológica. É ela que, através de diversos mecanismos, mantém e aprofunda a “consciência colonizada” das elites dirigentes e até de segmentos das oposições políticas, intelectuais, econômicas, burocráticas. A consciência colonizada se expressa em uma atitude mental timorata e subserviente, que alimenta sentimentos de impotência na população, ao atribuir as mazelas brasileiras à “escassez de poder” do Brasil, à “incompetência” brasileira, ao nosso “caipirismo”, ao “arcaísmo” social, à “xenofobia”, enfim, à nossa inferioridade como sociedade. A vulnerabilidade ideológica está estreitamente relacionada com a crescente hegemonia cultural americana na sociedade brasileira, que se exerce em especial através do produto audiovisual, veiculado pela televisão e pelo cinema, articulado com a imprensa, o disco e o rádio.
A vulnerabilidade ideológica é de tal ordem que a opinião de um sociólogo francês ou de um economista americano ou os aplausos estrangeiros a um dirigente brasileiro ou a opinião de uma agência de análise de risco, ou de um organismo internacional, têm enorme impacto positivo ou negativo sobre a visão das elites sobre a situação e as perspectivas do Brasil, gerando manifestações auto-congratulatórias ou protestos de repulsa e lamentos de decepção. A sociedade brasileira é vulnerável ideologicamente porque parte majoritária de suas elites, ao invés de procurarem governar para o povo, preferem governar para os interesses internacionais de toda a ordem. Desejam essas elites serem “aceitas” como representantes de um “país normal”, de uma “sociedade jovem, mas civilizada”, que não “confronta” os interesses das Grandes Potências e com elas “colabora”. As opiniões sobre o Brasil de intelectuais, políticos ou empresários estrangeiros são recebidas com maior respeito, admiração e concordância do que aquelas emitidas por brasileiros (a não ser quando esses refletem a opinião estrangeira), por setores importantes da mídia, a qual repercute tais julgamentos, e pelas elites nativas de mentalidade colonial.
A vulnerabilidade ideológica faz com que as elites intelectuais e dirigentes procurem ver sempre em modelos estrangeiros as soluções para o subdesenvolvimento econômico, para o “atraso” cultural, para o “autoritarismo” político, para o “arcaísmo” institucional brasileiro. Vão elas buscar modelos institucionais no exterior (por exemplo, agências reguladoras, Banco Central autônomo etc.), estratégias econômicas (por exemplo, câmbio “fixo” e sobrevalorizado e agora as metas de inflação etc.), teorias militares (por exemplo, segurança cooperativa etc.), modelos educacionais (por exemplo, o currículo escolar, o sistema de créditos na universidade etc.). Esquecem que esses modelos e teorias foram desenvolvidos com base na experiência histórica de sociedades que tiveram evolução e características distintas da brasileira. Assim, esses modelos e teorias “transplantados” para o Brasil definham ou degeneram, para desespero de seus propugnadores colonizados. Há hoje juristas e intelectuais que defendem, por exemplo, a adoção pelo Brasil dos princípios da “common law” e das práticas de arbitragem, inclusive internacional, anglo-americana para organizar e reformar o sistema jurídico brasileiro, que seria, segundo eles, arcaico e moroso, por se basear no direito romano e germânico. E, assim por diante, os exemplos dessa mentalidade e atitude mimética são inúmeros.
A questão da vulnerabilidade ideológica é fundamental, pois ela se refere diretamente à coesão ou desintegração social, à construção ou fragmentação nacional, à autoestima ou auto-rejeição e à própria possibilidade de êxito de uma política de desenvolvimento econômico (não apenas de crescimento desigual), democrático (não oligárquico e não plutocrático) e social (cultural e espiritual) da sociedade brasileira.
A vulnerabilidade ideológica afeta a identidade cultural brasileira. Esta identidade é fundamental quando se admite que a sociedade brasileira se desenvolveu em um território geográfico específico, com uma composição étnica e religiosa distinta, com uma experiência histórica, política e econômica única. A consciência disto é essencial para que a sociedade possa encontrar soluções próprias para seus próprios desafios. A vulnerabilidade ideológica e a hegemonia cultural estrangeira impedem, dificultam e confundem os distintos segmentos da sociedade brasileira e tendem a eliminar a consciência de suas características específicas e da própria evolução dessas características, que é a sua história.
A consciência que a sociedade adquire de si mesma, isto é, a consciência de cada cidadão e dos grupos sociais sobre as características da sociedade em que vivem depende de uma representação ideológica, que depende, por sua vez, de manifestações culturais as mais distintas que interpretam e criam o imaginário nacional do seu passado, de seu presente e de seu futuro.
Essa criação do imaginário, dessa visão do passado, do presente e do futuro, é, em sua quase totalidade, alheia à experiência direta dos indivíduos. Quanto ao passado e ao futuro, porque não o “viveram” nem o “viverão”. E quanto ao presente, porque não podem dele participar, ter a experiência direta de todas as situações sociais pela impossibilidade da ubiquidade. Assim, a esmagadora maioria dos fatos e das interpretações que conhecemos sobre o passado do próprio Brasil e do mundo depende da elaboração intelectual e cultural de historiadores e artistas, em especial os criadores de obras audiovisuais e literárias, por mais que sejam elas consideradas como obras de ficção. Muito daquilo que um brasileiro imagina a respeito de situações e valores individuais e sociais é uma construção cultural/ literária/audiovisual/noticiosa, muitas vezes repleta de preconceitos e estereótipos. Tudo o que sabemos sobre a história da sociedade brasileira não foi vivido “por nós”, mas sim “elaborado” por terceiros.
A vulnerabilidade ideológica se acentua com a crescente hegemonia cultural norte-americana no Brasil. Na medida em que a elaboração, produção e difusão cultural brasileira, audiovisual ou não, está sujeita à hegemonia cultural estrangeira, a formação do imaginário nacional acaba se realizando de forma fragmentada e claudicante. As “interpretações” da realidade mundial elaborada pelas manifestações culturais hegemônicas norte-americanas passam a predominar, refletindo os preconceitos e os estereótipos daquela cultura e os interesses daquela sociedade. Daí as distorções decorrentes da hegemonia cultural estrangeira, no caso do Brasil, americana, a vulnerabilidade ideológica e suas consequências negativas para o Brasil.
A construção da identidade cultural decorre da produção de manifestações culturais que abrangem desde as atividades da imprensa à elaboração científica e artística, mas, em especial, devido ao seu extraordinário alcance, às manifestações audiovisuais (documentários, filmes de ficção, séries e noticiários de toda ordem). A construção desta identidade não se contrapõe à necessidade de diversidade cultural e muito menos ao diálogo com a cultura estrangeira. Contrapõe-se, isto sim, à hegemonia das manifestações culturais estrangeiras sobre a cultura brasileira no próprio território brasileiro. O estímulo e o acesso à diversidade das manifestações culturais permitiria à sociedade brasileira ter acesso a distintas e, muitas vezes, contraditórias visões do mundo, das relações interpessoais, das questões existenciais. A questão estratégica é, pois, imaginar mecanismos que ampliem o acesso de todos, sejam eles artistas, intelectuais, políticos ou simples brasileiros, à miríade de manifestações culturais brasileiras e de todas as sociedades que constituem a diversidade cultural planetária e fortaleçam e enriqueçam a nossa própria identidade, combatendo a hegemonia cultural de qualquer origem no Brasil. Trata-se de definir uma política cultural, de comunicação e de educação, não-assistencialista, integrada e voltada para o projeto de construção da sociedade brasileira. E para isto é indispensável discutir a questão cultural também em seus aspectos econômicos, políticos e sociais.
Cultura, comunicação e educação: compreensão
A cultura pode ser definida em sentido estrito como o conjunto de atividades humanas, de natureza não utilitária, que expressam e reproduzem a experiência individual ou coletiva, a disseminam no presente e a transmitem no tempo, de geração em geração.
Sendo a experiência humana variável no espaço, devido a circunstâncias geográficas, étnicas, políticas e econômicas distintas, há naturalmente culturas nacionais específicas que, todavia, não sendo estanques, se influenciam umas às outras. Não há culturas nacionais superiores, assim como não há raças superiores, mas pode haver um maior grau de elaboração das manifestações culturais em decorrência de circunstâncias históricas, do grau de acumulação de riqueza e de conhecimento técnico/artístico em determinadas sociedades e pode haver, por razões econômicas e políticas, maior capacidade de difusão e penetração social global de certas culturas.
A cultura corresponde a um conjunto de manifestações das diversas artes tradicionais, tais como a música, a escultura, a pintura, a literatura, a arquitetura, a dança, o teatro, o cinema, e de outras formas, como a gravura e a fotografia. As artes e as manifestações artísticas não se identificam com o seu suporte físico nem com o seu veículo de difusão, ainda que veículos e suportes específicos afetem a obra de arte e de certa forma alterem o seu conteúdo e o seu impacto social, econômico e político, e passem assim a ser de grande relevância para a definição e execução de uma política cultural eficaz.
A cultura popular se expressa igualmente através de manifestações das mesmas artes, porém de forma intuitiva, artesanal, sem o mesmo domínio do conhecimento técnico e sem a aplicação estrita de “regras” eurocêntricas que correspondem tradicionalmente a cada arte. Não se trata de discutir ou decidir se a cultura erudita é superior à cultura popular, pois elas se influenciam e têm funções sociais semelhantes. Um artista popular pode ser capaz de refletir de forma extraordinária a experiência humana, de um certo momento e meio social, enquanto que um artista erudito pode falhar nesse propósito, apesar de seu maior domínio, digamos, das técnicas tradicionais eurocêntricas. As características da obra de arte, da manifestação cultural e seu impacto dependem do nível técnico com que se realizam, mas também da criatividade individual do artista e do alcance do veículo de difusão.
Sendo as manifestações culturais o modo como a experiência humana, que se verifica em uma certa dimensão geográfica, se transmite no tempo, a questão da cultura, da produção e da difusão cultural, está estreitamente vinculada à formação e à permanência da nação como conjunto de indivíduos, que em geral habitam um mesmo território, que compartilham uma experiência histórica comum e que têm a aspiração de construir um futuro comum, ainda que as visões sobre este futuro possam ser distintas.
A nação, a sociedade, se organiza como Estado, que pode ser definido como um conjunto de instituições que elaboram normas, as executam e as sancionam, com o objetivo de disciplinar as relações de toda ordem entre seus integrantes, para que sejam pacíficas e consensuais, e de defender e promover seus interesses e direitos em suas relações com as demais sociedades e Estados. O enfraquecimento da produção cultural de uma nação leva ao enfraquecimento dos laços que vinculam seus integrantes, de sua memória do passado, da experiência comum e de sua aspiração de construção de um futuro compartilhado. Naturalmente que o enfraquecimento da cultura nacional diante da hegemonia de outras manifestações culturais de outras sociedades, que são necessariamente distintas e que não correspondem às experiências daquela nação em sua trajetória histórica, corrói sua autoestima e enfraquece a capacidade do Estado de promover e defender os interesses nacionais.
A maior parte das imagens que os indivíduos formam sobre as experiências humanas individuais e coletivas e que constituem a base para suas ações não decorre de sua experiência direta, mas sim são o resultado de informações que se transmitem pela mídia escrita e audiovisual e que utilizam recursos artísticos, culturais. A maior parte dos valores sociais é construída, elaborada, transformada e destruída através da influência de um fluxo contínuo de manifestações culturais transmitidas pelos meios de comunicação e difundidas socialmente.
Assim ocorre com a obra literária, que inclui o jornalismo, com a música, com as manifestações audiovisuais em suas distintas formas, tais como o teatro e o cinema, transmitidas pelos instrumentos da mídia que constituem uma indústria que recolhe, produz, distribui e divulga as manifestações culturais. Seus diferentes setores são constituídos pelas editoras, as empresas jornalísticas, as rádios, as companhias de teatro, as produtoras e distribuidoras de filmes para cinema e TV, as redes de televisão aberta e a cabo etc. A obra do escritor, do músico, do diretor de cinema não tem impacto e função social (e nem mesmo cultural) se ela não chega ao público, à sociedade. Para que isto ocorra, é necessário que se transforme em um produto, o mais importante da atividade humana, pois alimenta o processo contínuo de reconstrução do passado, de tempos que os indivíduos que formam a sociedade atual não viveram; de interpretação do vastíssimo presente do qual os indivíduos conhecem diretamente apenas ínfima parcela; e de formação de visões do futuro, cuja forma concreta que vier a assumir dependerá desde já do que se pensa que ele será ou que poderá ser.
Assim, a manifestação cultural tem de ser transformada em produto econômico, isto é, em resultado de processos específicos de produção e de distribuição física lato sensu, para que venha a ter impacto social e político.
Política Cultural: reflexões
A maior parte dos produtos de consumo, tais como geladeiras, sapatos e automóveis, tem efeito político e social diminuto sobre o consumidor e seu valor social corresponde ao de seu suporte físico, que resulta do seu processo produtivo, que empregou fatores de produção e gerou renda. O suporte físico do produto cultural, ao contrário, tem um valor infinitamente inferior ao seu valor cultural e a seu valor econômico. Basta comparar o valor do papel em que está impressa uma obra literária ou o valor da película onde está registrado um filme para se constatar esta divergência. O valor social do produto cultural não se esgota com o seu consumo individual, mas se reproduz no tempo, enquanto o valor social de um produto comum se esgota com o seu consumo.
A manifestação cultural transformada em produto cultural tem um custo de produção e, portanto, gera emprego e renda, e tem um mercado onde se confrontam as empresas que o comercializam e onde se encontra com o seu público. Os mercados para os diversos produtos culturais têm características muito distintas e podem vir a ser, com maior ou menor intensidade, oligopolizados e a sofrer distorções decorrentes de práticas de concorrência desleal, e, assim, permitirem margens de lucro extremas. Sem a compreensão do produto cultural como um fenômeno cultural/econômico/político complexo, não é possível a definição de uma política cultural que leve em consideração o extraordinário potencial de geração de emprego, de lucro e de divisas da produção e da distribuição cultural, mas também seu papel político fundamental de formação do imaginário social, da vitalidade da Nação e do poder do Estado.
A produção cultural tem importância fundamental na política internacional. Nem mesmo os principais dirigentes e intelectuais da nação mais poderosa do mundo têm conhecimento direto de mais do que uma parcela ínfima da miríade de eventos que ocorrem a cada dia em cada sociedade. Todas as decisões desses dirigentes que afetam profundamente a realidade são tomadas a partir de informações e de elaborações culturais que interpretam eventos e que os transmitem através de manifestações culturais sob a forma de livros, filmes, notícias, relatos, fotografias, e que vão formar o seu imaginário em confronto com sua experiência pessoal limitada e sua capacidade teórica de processar informações e de encaixá-las em uma “visão de mundo”.
Assim, as imagens dos países, inclusive de seu próprio, das sociedades, dos Estados e de seu poder são formadas através de um vasto e contínuo processo multifacetado de elaboração cultural que gera nos diferentes setores sociais essas imagens. A ausência de imagem própria, ou a existência de imagem distorcida, fragmentada ou incompleta, afeta não somente as decisões de dirigentes de terceiros Estados em suas relações com o Estado cuja imagem é fraca, mas também a própria sociedade desse Estado, com efeitos sobre sua autoestima, sua capacidade de apoiar seus dirigentes e a capacidade desses dirigentes de agir para enfrentar os seus desafios internos e externos.
Daí a importância que as grandes potências, e em especial os Estados Unidos, conferem a sua indústria cultural lato sensu e a prioridade que atribuem ao objetivo de garantir o livre acesso de seus produtos culturais aos mercados culturais de todos os países, isto é, o acesso a todas as estruturas e meios de produção e de difusão de produtos culturais e de formação do imaginário das sociedades de terceiros países, com objetivos de natureza cultural, econômica e também política.
Nos mercados culturais, a estrutura dos mercados e suas características específicas de produção e distribuição fazem com que as dimensões das empresas tenham, como em mercados de produtos “normais”, enorme importância. Assim como nos mercados de produtos de consumo, cabe ao Estado impedir a monopolização, a oligopolização, a formação de cartéis e a prática de concorrência desleal, no interesse de proteger o consumidor individual de preços abusivos e a sociedade da geração de lucros excessivos. Com maior razão, cabe a ação do Estado nos mercados culturais onde os produtos, além de sua importância econômica, têm uma importância política fundamental.
Cabe ao Estado garantir a livre competição em cada mercado cultural com muito mais rigor do que nos mercados de produtos “comuns” de consumo, tendo em vista os efeitos sociais e políticos dos produtos culturais sobre a sociedade, com os objetivos de evitar a hegemonia cultural de outras sociedades; de estimular a mais ampla e diversificada troca de informações culturais com o exterior; de promover a produção cultural doméstica, única capaz de fortalecer e articular o conhecimento da sociedade de si mesma, o qual é indispensável para a formulação de um projeto de futuro e para definir a estratégia e os meios físicos e políticos para implementá-lo, em especial em grandes Estados de periferia, como o Brasil.
A sociedade brasileira se encontra hoje sob a hegemonia cultural estrangeira, em especial da produção cultural norte-americana, que decorre das estruturas de mercado que se criaram ao longo do tempo, devido à incompreensão, miopia e omissão dos governos em relação à política cultural, de comunicação e de educação. Esta omissão de política cultural, ou melhor, esta miopia da função política da cultura e das inter-relações entre produção cultural, estruturas econômicas de produção e de comercialização cultural fizeram que, em nome da liberdade de expressão e de manifestação cultural, se condenasse a ação corretora do Estado e se permitisse a formação e a ação de estruturas oligopolísticas. Ao mesmo tempo, mantinha-se viva, porém em estado de asfixia, a produção cultural brasileira, sem criar os instrumentos que permitissem sua competição com a produção cultural estrangeira que, ao se realizar e se difundir através de mega-empresas multinacionais, oligopoliza o mercado consumidor pelo exercício de controle e influência sobre as estruturas de difusão cultural, tais como editoras, gravadoras, exibidoras e redes de televisão.
O Estado brasileiro tem limitado sua ação a um modesto apoio assistencialista, colonizado e envergonhado à produção cultural de elite ou de pequeno impacto social, através de isenções fiscais, sem se preocupar em promover e garantir a livre competição nos mercados culturais de massa, onde se forma o imaginário social, essência da própria existência da Nação brasileira e da possibilidade de esta se organizar para enfrentar seus extraordinários desafios e realizar seu potencial.
A questão do imaginário social e, portanto, da política cultural e de comunicação está profundamente vinculada à questão do sistema educacional. Este sistema tem sido articulado pelo governo como um processo de formação de indivíduos como produtores de maior ou menor qualificação técnica, e não como um processo de formação de cidadãos. Os valores transmitidos pelo sistema educacional são os valores da produção material e da maximização do consumo individual, do ser humano como unidade de trabalho, e não como cidadão político solidário, digno de uma vida espiritual superior, para além dos programas degradantes e idiotizantes de televisão, atividade que consome em média mais de quatro horas diárias do cidadão brasileiro. Se deduzirmos o tempo médio de trabalho, de transporte, de alimentação e de repouso, essas quatro horas significam mais de 70% de seu tempo diário, digamos, livre. Este é o tempo de que pode dispor para seu aperfeiçoamento como cidadão, como trabalhador e como ser humano. Esse tempo foi “capturado” pela televisão, que os Estados e os governos têm tratado como uma atividade econômica “normal”, e não como um veículo com influência extraordinária sobre a sociedade e seu imaginário. A situação se agravou com a emenda constitucional que permitiu a participação do capital estrangeiro na propriedade dos veículos de comunicação e com a ausência de regulamentação do artigo 221 da Constituição federal que se refere à programação das emissoras de rádio e televisão.
Por outro lado, quaisquer que sejam os métodos, a qualidade e os esforços utilizados para aperfeiçoar o sistema educacional formal, são eles frustrados, pois as crianças e os jovens utilizam grande parte de seu tempo fora das salas de aula em frente à TV de programação mais ou menos comercial, mas onde há um permanente, ainda que difuso, processo de transmissão de um imaginário estrangeiro, além de estímulos ao consumo conspícuo, ao individualismo, à violência, à banalidade, ao culto do corpo.
Assim, a escola tem de ser reconstruída como o veículo de transmissão de valores culturais brasileiros, enquanto a televisão e os meios de comunicação em geral podem e devem ser estimulados a diversificar sua programação de modo a ampliar a gama de influências culturais brasileiras e estrangeiras a que deve ter acesso a sociedade brasileira, e assim ampliar sua margem de escolha e de reflexão sobre os valores sociais. Os recursos da coletividade, que são arrecadados através de impostos, devem estar a serviço de uma política cultural que amplie a competição entre produtos culturais de diferentes origens, estimule a produção cultural brasileira e diversifique as influências culturais. Aquelas empresas de produção e difusão cultural que não desejem diversificar a origem dos produtos culturais com que trabalham e que desejem privilegiar a produção cultural estrangeira podem, têm o direito de fazê-lo, mas com seus próprios recursos e não com os recursos da coletividade.
É necessário distinguir, na elaboração de uma política cultural, os aspectos de preservação do patrimônio material e imaterial, de apoio e estímulo à produção cultural dos artistas, da ação junto às empresas de produção e difusão cultural de massa para estimular a diversidade cultural e impedir a hegemonia de manifestações culturais de uma origem específica sobre a manifestação cultural brasileira em cada setor. Os estímulos à preservação do patrimônio e à produção cultural individual não terão impactos sociais, políticos e econômicos se não forem conjugados com a possibilidade de sua difusão através dos veículos econômicos. A atual legislação de concessão de isenções fiscais a empresas para investimentos em atividades culturais (as leis Sarney, Rouanet, a legislação audiovisual) possibilitam modestos recursos sociais à produção cultural, mas não garantem sua difusão e, portanto, o cumprimento de sua função social.
A distinção entre manifestações culturais de público restrito e as manifestações culturais de massa não pode ser feita de forma absoluta, pois não somente as manifestações culturais se influenciam umas às outras de forma muito importante, como às vezes se combinam ou servem umas de matéria-prima para outras. Assim, a manifestação cultural de público restrito, como, por exemplo, uma obra literária, pode servir de matéria prima para manifestações culturais de massa, como o filme e a novela de televisão.
Uma política cultural eficaz deve estar articulada com as políticas de comunicação e educação e deve ter como seu objetivo estratégico permanente a redução da hegemonia cultural de qualquer manifestação estrangeira face à produção cultural brasileira e a ampliação da diversidade de oferta cultural à disposição da sociedade brasileira. Além das diversas medidas e da legislação hoje existente, que devem ser aperfeiçoadas, podem ser imaginadas diversas ações na área da difusão cultural.
A legislação pode e deve estabelecer tratamento fiscal diferenciado e mais favorável às empresas produtoras e às empresas difusoras de produtos culturais que em suas atividades e programação ampliassem a participação das manifestações culturais brasileiras.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos maiores bancos de investimentos do mundo, pode e deve estabelecer linhas de crédito especiais para financiar investimentos e a operação de empresas que assumam o compromisso de diversificar sua atividade de produção e difusão cultural e de garantir a igualdade de participação do produto cultural brasileiro face ao produto cultural de qualquer outra origem.
A legislação pode e deve estabelecer limite máximo de ocupação do mercado para produtos audiovisuais quando há situações de oligopólio e integração vertical com risco não só de hegemonia cultural como de exclusão do produto cultural brasileiro. O limite do número de cópias por lançamento de filme é um exemplo desse tipo de medida.
Na área da educação, a legislação deve ampliar gradativamente o número de horas de permanência dos estudantes na escola, para reduzir sua exposição à TV, assim como incluir entre as atividades escolares obrigatórias a programação cultural brasileira e fornecer os meios a cada escola pública e privada de ter acesso a videotecas, a discotecas e a bibliotecas básicas. A instituição de concursos públicos, nos diversos níveis de ensino, sobre temas culturais brasileiros, com prêmios para professores e alunos, e a difusão por meios de comunicação de massa de seus resultados estimulariam o uso daquele material. O ato de prestigiar de forma sistemática os produtores e difusores culturais brasileiros com a presença das mais altas autoridades brasileiras a eventos culturais significativos, assim como hoje prestigiam atletas, teria grande importância simbólica.
Na esfera internacional, a organização de concursos internacionais de música e literatura, com prêmios significativos, sobre temas, autores e compositores brasileiros, teria importante impacto para o conhecimento da cultura brasileira, dentro e fora do Brasil, com consequências relevantes para a formação da imagem do Brasil.
Finalmente, toda a atenção deve ser prestada para evitar a participação do Brasil em acordos internacionais, regionais ou multilaterais, de cunho aparente apenas econômico, cuja consequência seja limitar ou eliminar a possibilidade de o Estado ter instrumentos de política para promover a diversidade cultural a que deve ter acesso a sociedade brasileira e estimular as manifestações culturais brasileiras e, portanto, a formação do imaginário social e a autoestima brasileira, indispensáveis a um projeto de desenvolvimento econômico, político e social mais justo e mais duradouro.
*Embaixador, Samuel Pinheiro Guimarães foi Secretário-Geral das Relações Exteriores, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, foi Alto Comissário do MERCOSUL de janeiro de 2011 a junho de 2012 e ministro de Assuntos Estratégicos.
Publicado originalmente em capítulos pelo semanário brasileiro Correio da Cidadania.
Fonte: http://resistir.info.
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