O conteúdo de “Santa Joana” está mais presente do que nunca
Em entrevista ao HP, o diretor José Renato fala sobre sua recente montagem de Brecht, a peça “Santa Joana dos Matadouros”, de sua admiração pelos textos do autor, do qual é um dos maiores encenadores do país, e das características de confraternização e enriquecimento que o teatro proporciona.
(Nathaniel Braia)
HORA DO POVO– Fale sobre esse trabalho, quer dizer, dessa convivência com o Brecht.
JOSÉ RENATO – Eu gosto muito de Brecht. Quando estive na Europa em 58 e 59, travei conhecimento com os textos do Brecht, voltei de navio lendo todos os textos do Brecht. Eu me interessava muito por ele.
Talvez eu tenha sido o diretor no Brasil que mais fez Brecht. Fiz duas versões de “Os Fuzis da Senhora Carrar”, uma versão no Rio de Janeiro, com Tereza Raquel, no Teatro da Praça, e uma versão no Teatro de Arena, com Dira Lisboa e Lima Duarte.
Fiz duas versões da “Ópera dos Três Vinténs”, uma em São Paulo, inaugurando o Teatro da Ruth Escobar em 64 e depois, no Rio, uma versão completamente diferente, em 69, na sala Cecília Meireles.
Depois fiz, em 63, “O Circulo de Giz Caucasiano”, no Teatro Nacional de Comédia no Rio de Janeiro. Depois veio “A Exceção e a Regra”, que foram duas versões também. “Turandot”, na inauguração do Teatro Denoy de Oliveira, e agora “Santa Joana dos Matadouros”, então é uma convivência boa e difícil, porque ele exige muito.
Além disso, acho que Brecht escreveu para um tempo determinado, para uma cultura determinada, embora tenha uma riqueza de sugestões, de interpretações, que aumentam o seu raio de ação, tornado-o ao mesmo tempo atual.
Quando ele escreveu, os problemas estavam fervendo na Alemanha na época, e a busca de um estímulo para enfrentar estes problemas, de uma análise do que ocorria, era baseada muito no momento que o Brecht vivia lá em Berlim, com toda a sua análise da situação social do país, da vida social e das lutas operárias. São peças datadas, sem dúvida, mas, apesar disso, se consegue perfeitamente abrir um leque de interpretação e aprofundar mais, numa análise de uma concepção atual, porque sem dúvida nenhuma a profundidade da análise dele, a clareza com que ele coloca, a expressividade com que ele busca os exemplos nas peças dele, são muito ricos, são muito bonitos, são muito bons.
HP– Li há algum tempo uma crítica que dizia que os efeitos que Brecht criou naquela época causaram impacto, e hoje, já não seriam mais de tanta eficácia. Você concorda com isso?
JR – Acho que não. O processo dele é muito inteligente. O que aconteceu foi que quando Brecht apareceu, as pessoas interpretaram erradamente as lições dele. Diziam que, por exemplo, Brecht ignorava o teatro realista, o teatro psicológico, e fazia só – através do distanciamento – a análise crítica das situações. Isso não é verdade. Brecht não deixa de lado em momento algum o estudo do psicológico, ele entra na psicologia, passa através da psicologia, e alcança os seus resultados porque ele consegue passar por aí e ir muito além disso. E vai chegar, aí sim, à análise, ao distanciamento que é determinado pela análise, pela passagem pelo interior da psicologia. Ele não renega, portanto, absolutamente o realismo, ele passa através dele para chegar às suas concepções de teatro.
HP– Quando Brecht faz uma peça, ele faz notas sobre a peça. Aquilo amarra a peça, ou permite que se trabalhe em cima daquilo para chegar a novos ensaios. Como é que isso funciona?
JR – Existem muitos problemas ligados às teorias de Brecht. Existem os textos de Brecht onde ele procura através da estrutura desses textos mostrar o que ele pensa. Quando ele escreve comentários sobre as peças, ele amarra a um tempo determinado. É claro que temos que respeitar as notas escritas por ele. Mas não devem ser seguidas rigorosamente. Os personagens e a estrutura em que ele colocou os personagens, isso é que dá o mecanismo, o material para que a gente trabalhe em profundidade, para entender a sua mensagem e para levar sua mensagem, e tentar atualizar o mais possível a mensagem dele.
HP– Fale sobre a atualidade do texto.
JR – O que se passa na peça – a crise de 1929 – está acontecendo agora de novo. Está totalmente no ar. Os conteúdos dessa peça estão mais presentes do que nunca. É impressionante, você abre os jornais diariamente, e vê. Na Europa agora, o temor está crescendo. É impressionante que diante da crise causada pelos bancos, ainda se diga muitas vezes que a saída é cortar direitos dos trabalhadores, dos aposentados… é impressionante.
HP– Houve muita leitura do texto com o grupo. O que você diz sobre isso?
JR – As leituras eram fundamentais. Lemos muitas coisas que tivemos que abandonar depois. Na adaptação, o texto foi um pouco cortado, o texto original tem três horas e pouco de duração. Nós fizemos um espetáculo com duas horas. Mas a substância, o cerne da questão, está lá.
A cena mais importante para mim é a cena em que a Joana e o Pierpoint se encontram, e ele fala sobre o sistema que ele segue, o sistema de vida dele. Ele fala sobre o que ele é. Ele faz uma análise tão bonita, tão perfeita do que é melhor para as pessoas. Ele fala sobre a utilidade do dinheiro, a importância do dinheiro na vida das pessoas. Ele coloca o ponto de vista dele de uma maneira muito forte, e é incrível como existe cinismo na colocação. O cinismo, uma malícia tão forte, tão importante, em que Brecht conseguiu uma síntese perfeita dessa questão.
HP– Com a morte de Abigail, com a Joana ganhando consciência no momento de sua morte, você vê a peça como pessimista?
JR – Não acho não. A peça é realista. Ela só pode ser vista como pessimista se alguém analisa a Joana sob o ponto de vista carinhoso, se você se enche de ternura pela Joana… Mas a Joana é uma ingênua, uma beata ingênua que é usada pelas pessoas como acontece por aí a torto e a direito. O exemplo de Joanas por aí é impressionante…
HP– Nesse processo todo que você fez de teatro nesses vários anos, o que você procurou aprender em cada situação? O que você procurou aprender do que estava acontecendo e da própria situação que acontece em torno dessa arte?
JR – Procurei desenvolver uma ideia, que eu sempre respeitei, que eu sempre acreditei, que o espetáculo teatral tem que ter um caráter de festa e confraternização. Uma festa de encontro, onde as pessoas tenham a oportunidade de aprender. De se divertir e aprender, de se compreender, de crescer. Então eu acho que o espetáculo teatral tem a obrigação de fazer com que as pessoas saiam dele enriquecidas. A minha preocupação sempre foi essa, fazer um teatro que significasse uma grande confraternização, uma grande festa, um grande encontro, onde tudo era discutido abertamente, onde as ideias ficassem no ar e que cada um tivesse a liberdade de optar por esta ou aquela direção.
Nunca pretendi fazer teatro engajado, só por ser engajado. Mas um teatro engajado na discussão das verdades e sendo verdadeira a sua posição, sempre deixando margem para que as pessoas escolham seus caminhos, sem nenhuma imposição de direção, sem nenhuma imposição de caminho útil. A gente mostra o caminho possível, mas a escolha é de cada um. A escolha está na mão de cada um, está na consciência de cada um.
Eu acredito nesse teatro, um teatro que realiza essa confraternização, eixo fundamental para o desenvolvimento do teatro em todos os tempos. Aprendi essas coisas com Jean Villar, na França. Ele pensava exatamente assim.
Brecht, apesar de sua preocupação didática, também coloca isso. Ele diz que a principal função do teatro é o entretenimento.
Acredito que através do entretenimento inteligente é possível discutir todas as questões com inteligência, com clareza, sem que, por outro lado, ninguém se veja obrigado a discutir. Há um sentido indireto, mas sem perda de profundidade. Ele dizia que a própria estrutura das peças é que traz a verdade.
HP– E essa foi uma característica sua desde o Teatro de Arena…
JR – Quando tomei esse caminho de inovar, eu e meus amigos fomos descobrindo coisas e tendo certezas cada vez mais profundas. A partir de 58, decidimos fazer só textos brasileiros. Invertemos uma maneira de ver teatro no Brasil que perdura até hoje. Quando demos início ao Arena, 80% a 85% do repertório dos grupos de teatro brasileiros era composto de textos estrangeiros. Depois de 58, 60, quando a gente começou a fazer sucesso com peças brasileiras, essa percentagem se inverteu. Atualmente você vê que o repertório que está aí exposto é de 75% a 80% de peças brasileiras. Foi uma grande conquista e sem dúvida um dos méritos do nosso Teatro de Arena. Pretendo continuar isso, fazer com que o teatro exista através de descobertas de dramaturgia. Os 20 anos de ditadura deram uma cacetada no desenvolvimento disso no país. Todos os grandes autores da época, ou morreram ou aderiram à TV, foram pensar na sobrevivência e deixaram de trabalhar no caminho que estávamos traçando. Então, a partir de 1990, começou a surgir gente nova. E agora, no novo milênio, acredito que o teatro de novo está se desenvolvendo no Brasil através da dramaturgia, através de uma dramaturgia séria, engajada, competente.
HP– Senti vendo a peça que quando derruba-se o cenário parece que o palco cresce…
JR – A demolição do cenário é a demolição das estruturas que estão aí. São estruturas montadas pelo sistema. E, depois, o reerguimento disso vem através de outras questões que são levantadas, de conluios, conchavos terríveis, concentração em monopólios…
Texto extraído da Hora do Povo – 16/06/2010
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