TURANDOT
TURANDOT
Adaptação da última obra de Bertolt Brecht, realizada por Denoy de Oliveira e Sérgio Rubens de Araújo Torres, com música de Marcos Vinícius de Andrade. Também o último trabalho do mestre Denoy, no qual a história do Imperador da China, que convoca os intelectuais para explicar ao povo a razão da crise (produzida por ele próprio ao estocar toda a produção de algodão para forçar a alta do preço do produto), se transforma numa metáfora sobre o Brasil e ganha os contornos de um musical que alterna o tom do épico com o da revista. Essa busca, no sentido de aprofundar e lapidar a linguagem do nosso Teatro Popular, foi ao palco do Teatro Denoy de Oliveira, em maio de 1999, com direção de José Renato, cenografia de Cyro del Nero, direção musical de Dyonísio Moreno, coreografia de Silvia Bittencourt, iluminação de Wagner Freire, assistência de direção de Luiz Carlos Bahia e grande elenco de 16 atores, interpretando 28 personagens. Turandot recebeu o Prêmio Shell de Teatro em 1999, na categoria de Melhor Trilha Musical. No elenco, destacam-se: Vanessa Gerbelli (Tudandot), Sérgio Rufino (Imperador da China), Gustavo Trestini (A Sha Sen), Ângela Valério (Recitante), Elaine Haick (Mãe do Imperador) e Robson Lodo (Primeiro-Ministro).
TURANDOT (1999)
No final de 97, iniciamos uma discussão no CPC sobre a retomada do nosso trabalho de montagens teatrais. Havíamos realizado um ensaio, em 95, com “Querem Bater Minha Carteira”, espetáculo musical onde o Denoy pôs em prática algumas das concepções de teatro popular que haviam sido gestadas no interior do “Arena de São Paulo”, e desenvolvidas depois pelo CPC, pelo “Grupo Opinião”, e que produziram excelentes espetáculos como “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”, “Gota D’Água” e vários outros. A experiência teve um resultado bem interessante, mas dela concluímos que o próximo passo teria que ser dado com um texto mais denso, atores profissionais e todos os requintes de acabamento que não faziam parte da proposta de “Querem Bater Minha Carteira”.
Decidimos partir de Brecht, porque Brecht é, indiscutivelmente, a base dessa concepção. Passamos uns três meses lendo seus textos para selecionarmos os que fossem mais adequados a uma adaptação que falasse da realidade brasileira – dessa farsa “neoliberal” instalada no país. Nos concentramos em dois textos: “Turandot” e “Santa Joana dos Matadouros”. Acabamos optando por “Turandot”, porque achamos que era um texto mais maleável, com mais possibilidades de ser transformado num musical capaz de alternar o tom épico com o de teatro de revista. Também pesou bastante o fato de Brecht nunca haver considerado “Turandot” como uma obra concluída (razão pela qual nunca a encenou), o que nos deixava mais à vontade para interferir no texto original. Então, como primeira providência, o Denoy procurou um amigo, o Uli, que domina bem o alemão, para que nada do texto original fosse perdido. Fizemos uma releitura bem atenta do “Sobre a Contradição” e “Sobre a Prática”, dois textos (sobre a dialética e a teoria marxista do conhecimento) que Brecht tinha em alta conta, recolhemos diversos pronunciamentos dos nossos ilustres governantes e partimos para a adaptação. No dia 4 de novembro, já durante o processo de testes para seleção do elenco, o Denoy faleceu, o que foi um baque muito grande pata todos nós. Mas não pensamos em suspender o projeto, até porque ele não concordaria com isso. Ele havia colocado em “Turandot” a sua própria alma. Esperava que o espetáculo colocasse no cenário do teatro, com o peso que ela merece, aquela vertente do teatro popular, crítico, engajado, originada no Arena de São Paulo, com “Eles Não Usam Black Tie” que, não por coincidência, havia sido dirigido também pelo Zé Renato. O mínimo que poderíamos fazer era concluir o projeto da melhor maneira possível. Em janeiro, o Zé Renato fixou residência em São Paulo e, junto com ele e o Marcus Vinicius, passamos um pente fino no texto, inclusive para integrá-lo bem com as excelentes músicas que o Marco havia composto, já que a música, no caso desse espetáculo, tem um papel fundamental como elemento dramático. Os ensaios tiveram início no dia 10 de fevereiro, e foram três meses e meio de trabalho árduo e criativo ao longo do qual o texto da adaptação foi ainda recebendo vários ajustes. Estou seguro que o Denoy se orgulharia do resultado. A encenação montada pelo Zé Renato é brilhante. O espetáculo diverte, critica, enche os olhos e acaricia os ouvidos do respeitável público. E dá muito o que pensar…
(SÉRGIO RUBENS DE ARAÚJO TORRES)
O QUE É TEATRO POPULAR?
É o que fala uma linguagem muito mais acessível, o que trata os assuntos com mais superficialidade? O que utiliza as técnicas da linguagem teatral de forma mais simples? O que emprega em seus quadros atores formados precariamente no seio da população carente e que, em decorrência, conheceriam o vocábulo apropriado para encontrar o caminho do seu público? Ou, teria a obrigação de apontar, didaticamente os caminhos para a solução de problemas comunitários, ocupando assim o espaço que a educação fundamental teima em não ocupar? Ou seria ainda a possibilidade de explorar textos clássicos no intuito de torná-los conhecidos e discutidos, ou adaptá-los para os problemas do cotidiano, passando para o público uma possível conscientização do momento, da época e das transformações do mundo? Ou, ainda, procurando outra vertente, analisar o gesto, linguagem daquele instante e, através desse gesto pesquisado e dessa linguagem apropriada, conseguir dialogar com o público, ou melhor, arrastá-lo para os locais onde as tais reuniões de discussões (espetáculos) de realizam? Ou, simplesmente, seria aquele teatro preocupado com o bolso dos seus frequentadores e que, paternalmente, tentaria dar o melhor de si, com a condição de ser sustentado apenas por verbas governamentais?
Bom, e por aí vai! Na década de 60 esses pensamentos e dúvidas “faziam a cabeça” de todos nós, militantes do efervescente teatro brasileiro. Existiam expoentes, exemplos, movimentos, que defendiam ora uma postura, ora outra. E, logo em seguida, o país mergulhou numa situação política violenta, desumana, que forçou todos a pensar seus valores e seu futuro. O teatro passou a fazer parte da estante dos supérfluos. Mas nem por isso desanimou ou enfraqueceu-se.
Entre os amigos daquela época, poucos persistiam no debate que nos animava a todos. Um deles, companheiro de muitas horas de debates, de espetáculos, é homenageado neste teatro: Denoy de Oliveira. Não poderia haver lembrança mais justa. Defensor de posições ativas na luta que travamos desde aqueles tempos. Denoy sempre foi dedicado e persistente. Quando ele me convidou para dirigir o espetáculo que estava adaptando, consolidando as atividades de sua grande obsessão, o Centro Popular de Cultura, entrevi a possibilidade de retomarmos aquela discussão que sempre nos interessou. O texto que ele e o Sérgio Rubens preparavam, Turandot, do Brecht, era difícil, prolixo, instigante: uma comédia musical onde a história supostamente passada na China era absolutamente semelhante às complexas artimanhas do jogo político no fantástico país em que vivemos. Um desafio vivo, num momento em que a história da cultura no Brasil jogou para escanteio a possibilidade de fazer teatro engajado, um gênero sempre tolhido, sempre forçado a encontrar o seu caminho através de metáforas adequadas para driblar o preconceito e o descrédito. E havia também, na proposta, a excelente música do Marcus Vinicius. Depois disso, a boa vontade e o humor dos participantes que se engajaram no projeto transformaram os três meses de ensaio em um estimulante dia a dia de perguntas e respostas, de voltas e mais voltas, não apenas em torno do dispositivo cênico bolado pelo Cyro del Nero, mas principalmente, em torno das dúvidas levantadas pelo estilo a ser encontrado na linguagem do nosso espetáculo. A principal mola propulsora dessa busca, apoio fundamental do que acreditamos ser “teatro popular”, foi um primeiro plano de entretenimento vivo e constante. Tentamos aplicar neste trabalho os princípios que Jean Vilar sempre defendeu, “divertir para poder discutir”. Num espetáculo ocorrido, de pouco mais de hora e meia, o que pretendemos não foi contar uma história passada na China, mas levantarmos problemas sociais que nos atormentam diariamente. E, ao fazê-lo, amenizar com um sorriso brincalhão, a mágoa de tantas frustrações. Acredito que o público de estudantes que esperamos nesta casa, a casa do Denoy de Oliveira, entenda o alcance da semente plantada por ele nesse palco. Portanto, nessa procura de expressão melhor para demonstrar a insatisfação dos oprimidos, a indignação contra a injustiça, a raiva contra a corrupção, através de um simples e divertido espetáculo teatral, residiu para nós o desafio de, encenando Turandot, manter vidas as ideia do padrinho desta casa.
E acreditamos, cada vez mais, que Teatro Popular deve ser feito sempre por quem trabalha junto, não apenas durante o espaço de tempo de um espetáculo, mas durante um período que permita cada um ampliar seus horizontes, sua técnica, seus objetivos, reconhecer a importância que a confraternização que um espetáculo proporciona. E, embora a maioria dos participantes desse grupo tenha se encontrado agora pela primeira vez, é essa festa, essa confraternização que nossa irreverente “Turandot” pretende. Salve, Denoy!
(JOSÉ RENATO)
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