Creative Commons advoga cultura do autor sem direitos

O deputado Paulo Teixeira (PT/SP) acaba de ser guindado ao posto de líder do PT na Câmara dos Deputados. Precisa dar-se conta de que, quando se chega a um posto tão importante, é preciso manter os olhos bem abertos. Vai aparecer muita casca de banana no caminho do nobre parlamentar. Causas que, abaixo de uma fina – e falsa – embalagem libertária, escondem interesses tão escusos quanto poderosos. Preste atenção, deputado, pois o senhor já deu a primeira escorregada.

Trata-se do episódio recente em que a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, retirou do site do MinC a acintosa propaganda de uma ONG norte-americana abertamente financiada pelos monopólios da indústria da internet (Google, Yahoo!, Facebook, entre outros) e por fundações para lá de suspeitas (Ford, Rockefeller, Soros, etc.). Um ato de soberania e de respeito às leis do país.

Mas eis que o deputado deu uma entrevista à Agência Carta Maior questionando a atitude da ministra. Vamos rapidamente esclarecê-lo, pois não pega bem o líder do partido da presidenta afirmar coisas que não têm a mínima sintonia com a realidade.

Comecemos pela afirmação de que “A licença Creative Commons está dentro de uma política de governo”, que abre a entrevista. Não, deputado, felizmente não está. Aliás, se os ditames de uma ONG suspeita fossem inseridos em políticas de governo, não passaríamos de uma república de bananas. E muito menos tem respaldo na política do Itamaraty, que foi conduzida nos últimos oito anos por dois profundos conhecedores das questões culturais: o ministro Celso Amorim e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Pelo contrário, longe de criticar a Lei Brasileira de Direitos Autorais, nossa política externa, entre outras coisas, foi defensora intransigente da Convenção da Diversidade Cultural da UNESCO, que tem como um de seus pilares principais a proteção à criatividade dos povos e à figura dos criadores.

Em segundo lugar é importante salientar que embolar software livre com Direito Autoral e com Lei de Patentes apenas gera uma grande confusão que só beneficia os tipos que financiam ONG’s como a CC. A decisão do governo brasileiro em apostar no software livre é correta. Ao invés de depender de alguns grandes oligopólios estrangeiros, investe-se em formar profissionais brasileiros, criar tecnologia nacional. Em lugar de gastar milhões de dólares anualmente em licenças de enlatados gringos, investir no desenvolvimento, por parte do próprio governo, de programas de computador que atendam mais adequadamente as nossas necessidades. Até aí tudo bem.

Mas o deputado deveria dar-se conta de que a Lei que rege a “proteção de propriedade intelectual de programa de computador” é uma, a dos Direitos Autorais é outra. Ou seja, a Lei brasileira reconhece que o tipo de conhecimento plasmado em um programa de computador e a criação artística são coisas absolutamente distintas. É por isso que existe uma Lei do Software e outra de Direitos Autorais. No primeiro caso justamente o que some é a figura do criador – da mesma maneira que no caso das patentes, também citado pelo deputado. Tanto nos softwares quanto nos medicamentos quem detém direitos não são os autores, mas os encomendantes. Pouco interessa se trezentos técnicos estiveram envolvidos na criação do último produto da Microsoft ou da Apple: os donos do produto serão o Bill Gates e o Steve Jobs. Não importa se milhares de cientistas foram os responsáveis pelo desenvolvimento de um novo medicamento: a patente será do laboratório. Já no campo dos direitos autorais a conversa é outra: independente de produtores, o criador é quem deterá os direitos. Investir no Software Livre significa retirar receita de monopólios como a Microsoft e a IBM. Atentar contra os Direitos Autorais é retirar dos autores a justa remuneração por seu trabalho e permitir que gigantes como a Google, o Facebook, a Telefónica, o YouTube, entre outros, ganhem fortunas com o tráfego de conteúdo que não lhes pertence a custo zero.

Promover tal confusão só faz bem aos patrões do Sr. Lessig. É uma visão que rebaixa o artista criador. Será que o deputado precisa de um singelo exemplo para entender? Vamos lá. O pacote para escritório da Microsoft lançado em 2007 – menos de quatro anos atrás, portanto – custava uma boa grana. Com todas as suas proteções, bloqueios e patentes, batia na casa dos R$ 1.200,00. Foram milhões de dólares gastos em seu desenvolvimento, centenas de técnicos trabalhando. Hoje não vale nada. Nem sequer é comercializado. O Copyright ainda existe, mas ninguém dá bola para ele, nem a própria companhia detentora. Existe, é claro, uma nova versão, custando cerca de R$ 1.400,00. Já “Garota de Ipanema” foi composta em 1962. Trabalharam nela apenas duas pessoas, e o investimento foi zero (salvo, talvez, o custo de algumas doses de “cão engarrafado”). Quase cinquenta anos depois continua sendo uma das músicas mais tocadas do mundo, tem centenas de novas gravações a cada ano: artisticamente, não perdeu nada de seu valor em cinco décadas. Financeiramente, ganhou.

Tentar fazer com que as duas coisas se equivalham interessa a quem? Única e exclusivamente a quem não consegue enxergar Garota de Ipanema como uma obra de arte, como fruto da mais elevada forma de expressão humana. Só a quem quer transformá-la em uma mercadoria, quer considerá-la como bytes a serem transmitidos em alguma rede privada. A legislação brasileira – como a da maioria dos países – reconhece cada obra como singular, como “extensão da personalidade de seu autor”, para usar os termos da UNESCO. E é por isso que as licenças de uso são dadas caso a caso e exclusivamente pelo autor ou por quem ele determinar como procurador. Entre a propriedade industrial do Windows, a patente do Viagra e o Direito Autoral de Tom Jobim e Vinícius de Moraes não há nada em comum, a não ser a entrevista do deputado e os argumentos de alguns desqualificados.

E não adianta vir com a falsa argumentação de que a Lei brasileira criminaliza quem baixa uma música ou a copia para seu aparelho de MP3, ou ainda quem copia trechos de um livro para uso próprio. Sendo advogado, o deputado deveria ler a Lei, especialmente em seu Título VII – “Das Sanções às Violações ao Direito Autoral”. Verá, sem dificuldade, que há uma série de penalidades cabíveis a quem violar os Direitos Autorais na execução pública e com o intuito de lucro. Nem uma linha ou referência à punição de fãs que, domesticamente, copiam obras, ou a estudantes dedicados. Não bastasse isso, o Capítulo IV da Lei exclui da cobrança de direitos autorais as cópias em um só exemplar e para uso próprio e o uso de obras “no recesso familiar”. Para completar, o deputado poderia consultar a jurisprudência: não existe na história dos tribunais brasileiros um só caso de processo e muito menos de condenação por cópia privada. Se for um pouquinho mais curioso verá a profusão de empresas que ganham dinheiro transmitindo conteúdo alheio sem remunerá-lo entre os patrocinadores da ONG do Sr. Lessing. Empresas, aliás, que pelo volume de recursos que aportam ao CC tem inclusive o direito de indicar os membros da diretoria…

Aliás, para esclarecer o congressista em definitivo, precisamos dizer que a livre circulação de conteúdo na internet é possível sem alteração da lei e sem prejuízo dos autores. E que a “flexibilização à tucana” dos Direitos Autorais não significará maior acesso ao conhecimento. O deputado deve saber que para ouvir rádio ou para assistir à televisão ninguém paga Direitos Autorais. O responsável pelo pagamento (ainda que muitos dêem calote) é quem transmite. O consumidor final não paga nada. E assim deve ser também na internet. Dois terços do conteúdo “grátis” – e sem remuneração aos autores – disponível na internet (o que corresponde a 75% dos downloads) são colocados no ar por 100 usuários. Ou seja, 100 empresas que, através da cobrança de assinaturas ou da venda de publicidade vendem o que é dos outros e embolsam todo o lucro. O espírito de “livre circulação da cultura” na internet é uma falácia. Salvo raras exceções o que existe é um negócio – espúrio – que rouba o patrimônio dos autores para vendê-lo a terceiros. Por isso deve ser estabelecida no Brasil não a liberação dos direitos, mas a taxação dos provedores de acesso e conteúdo.

Mas é importante dizer que, por si só, a liberação das músicas mediante remuneração não garante a plena circulação de nossa cultura. Voltemos ao exemplo das rádios. Mesmo tendo o direito de – assumido o compromisso de remuneração – tocar qualquer uma das 1,75 milhões de obras registradas no ECAD, só tocam meia-dúzia. Ou, mais exatamente, cerca de 200 por mês. E qual o motivo? Pela criminosa associação entre os monopólios da indústria cultural e os radioteledifusores. Compram escancaradamente o espaço nas rádios e TV’s e colocam lá apenas o que lhes interessa. É por isso que o deputado Paulo Teixeira deveria dedicar seu precioso tempo a pensar no que é possível fazer para regular o monopólio das comunicações, ao invés de fazer-lhe o favor de atacar os Direitos Autorais.

Restam ainda algumas outras escorregadas do deputado em sua curta entrevista. Alega ele que o governo poderia, a partir da mudança da Lei, “contratar autores para produzirem obras didáticas e colocá-las à disposição de todos os professores brasileiros e da população em geral”. Poderia não, deputado, pode. Se o MEC não faz isso hoje em dia o senhor deveria perguntar ao ministro Haddad a razão. Não há nenhum impeditivo legal. Provavelmente os autores ficariam mais satisfeitos do que estão hoje, quando vivem submetidos ao tacão da Editora Abril, maior vendedora de livros didáticos do país. Aliás, fale com seu colega de Congresso, o senador Requião. Ele fez isso quando era governador do Paraná e não infringiu nenhuma lei.

Tampouco faz algum sentido dizer que o Estado está “atirando no próprio pé”, pois coloca dinheiro público em obras protegidas. O deputado deveria descobrir quanto de dinheiro público foi investido para que Vinícius de Moraes compusesse sua obra. Ou em Tom Jobim? Quais recursos públicos alavancaram a produção teatral de Plínio Marcos? Que verbas do MinC transformaram João Cabral em poeta? Nem um só centavo. Ou que artista enriqueceu graças aos incentivos públicos. Isso é papo de quem acha que a cultura profissional deve ser entregue ao mercado e que só amadores merecem o subsídio público.

Finalmente, comentemos a última das estultices repetidas à exaustão por alguns inimigos da cultura nacional e reproduzida pelo deputado: o papel do ECAD. Há tempos que o nome do escritório vem sendo transformado em palavrão. Qualquer notícia desfavorável é transformada em escândalo pela mídia – que não se conforma em ter de pagar o ECAD. E qualquer notícia favorável também é motivo de escarcéu. Ou seja, donos de meios de comunicação – principalmente rádios e TV’s – gostariam de não pagar pelo uso de músicas e fazem sistemática campanha contra o órgão encarregado pelos autores de fazer a cobrança. Mas vamos às afirmações do nobre congressista.

Em primeiro lugar ele considera que o ECAD é uma “instituição pública não estatal”. Não discutiremos aqui este conceito mais do que reacionário de “público não estatal”. Já foi diversas vezes espinafrado e desmascarado aqui no HP. Mas o fato é que o ECAD é uma instituição privada, assim definida por lei e estatuto. As relações por ele regidas – empresas majoritariamente privadas usuárias de obras produzidas por pessoas físicas – são de caráter absolutamente privado. Não há nenhum interesse difuso envolvido aí: há interesses econômicos concretos. Não há interferência do ECAD “na produção e na distribuição de bens culturais”. Só há cobrança por parte dele de obras já produzidas e distribuídas. Em momento algum o ECAD estabelece relação com os consumidores finais de alguma obra. A sua relação é com as empresas que se utilizam das músicas para ganhar dinheiro. O difícil papel de cobrar de quem acha que pode sustentar o seu banquete roubando o pão alheio.

O que o deputado no fundo ataca, mesmo que sem saber, é o conceito de Gestão Coletiva. Como o parlamentar conhece bem o movimento sindical, vamos propor um paralelo, para que ele entenda. Durante os anos do tucanato foi muito difundida a tese de que a regulação trabalhista era um entulho. Para que o trabalhador precisaria de uma série de leis e de entidades para protegê-lo? Muito melhor seria a “livre negociação”. Ou seja, um empregado do Bradesco, ao invés de juntar-se com todos os seus colegas e contar com a força do sindicato nas negociações, deveria é negociar sozinho com o seu patrão. Qualquer idiota é capaz de ver que, valendo a tese dos tucanos, férias, fundo de garantia, 13º salário e outras conquistas teriam virado coisa do passado.

Pois a tese do Creative Commons é a mesma. Ao invés de existir um único órgão de cobrança – o ECAD – onde todos os autores juntam sua força para negociar com os conglomerados de comunicação, o mais correto é registrar-se no site de uma ONG estrangeira. Se alguém quiser usar a música, pode negociar diretamente com o autor, sem passar por “intermediários”. Sem muito esforço é possível ver que, se cada autor for confrontado diretamente com os patrões da área, receberá muito menos. Não é à toa que em todos os países existem estruturas centrais de arrecadação e que elas nunca são controladas pelo Estado, mas pelos próprios autores. Na França, a Sacem; na Espanha, a Sgae; em Portugal, a SPA; na Alemanha, a Gema; nos EUA, a Ascap; na Inglaterra, a PRS; no Canadá, a Socan, etc.

Finalmente, algumas palavras sobre transparência. O deputado Paulo Teixeira deveria fazer uma pesquisa rápida na internet. Verá, no site do ECAD, todos os balanços da entidade desde 2004. Encontrará também todo o regulamento de Arrecadação e uma detalhada explicação dos mecanismos de distribuição. Também terá acesso ao ranking das músicas mais tocadas, dos autores mais executados, tudo isso dividido por região do Brasil. Terá também acesso ao banco de dados com todas as obras lá registradas e com os respectivos titulares. Anualmente o ECAD é auditado interna e externamente e precisa ter as suas contas aprovadas pelas dez associações autorais que o compõe. Pode também fazer uma visitinha rápida ao site do CC. Dá para encontrar os patrocinadores. Nenhum balanço ou auditoria. Dá para ver que os diretores são indicados pelos “supporters”, mas não para saber como a grana é gasta. A bem da verdade não dá nem para descobrir direito quem está registrado lá: a busca deve ser feita pelo Google, não por acaso um dos maiores benfeitores da ONG. Quem tem mais transparência? Quem esconde o jogo?

O deputado deve lembrar que há pouco tempo o Congresso Nacional aprovou a lei que regulamentava as centrais sindicais. A direita mais reacionária incluiu um artigo que previa a fiscalização do dinheiro das entidades sindicais pelo Ministério Público. Foi preciso que o presidente Lula tivesse a coragem de vetar o esdrúxulo artigo. Quem deve fiscalizar o dinheiro dos sindicatos são os trabalhadores, disse ele. Aqui vale a mesma coisa: quem deve fiscalizar o dinheiro dos autores, decidir como ele será distribuído são eles mesmos.

A esta altura com certeza o líder do PT já compreendeu que existem dois lados na questão. De um lado está a ministra Ana de Hollanda e os criadores da música que o mundo inteiro admira. Estão, entre outros, Hermínio Bello de Carvalho, Fernando Brant, Aldir Blanc, Carlos Lyra, Roberto Carlos, Antonio Adolfo, Marcus Vinícius, Nei Lopes e outros tantos que prestaram imediata solidariedade a ela. Do outro estão o Sr. Lessig, com seu séquito de twitteiros e blogueiros, que em sua imensa maioria não toca, não canta, não cria. De um lado estão organizações que há décadas lutam pelos direitos dos criadores e reúnem entre seus filiados centenas de milhares de compositores. Do outro está um tal de Ronaldo Lemos, defendendo a mesada que ganha da Fundação Ford para manter o CC no Brasil. De um lado está, enfim, a cultura brasileira. Do outro o Google, a Microsoft, o Yahoo!. Certamente um deputado que o partido da presidenta Dilma escolheu para ser seu líder saberá escolher o lado certo na batalha.

 

Valério Bemfica

Texto extraído da Hora do Povo – 09/02/2011

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