O discreto charme de Ettore Scola

 

Caio Plessmann*

 

 

A questão colocada por Ettore Scola em "O Terraço", filme exibido nesta segunda feira na mostra de cinema italiano do cineclube da UMES, é a da necessidade de percebermos o clima em que estamos mergulhados a partir da diluição de nossa função produtiva na sociedade contemporânea.

 

A situação central do filme é a do universo de cineastas, produtores, atores e atrizes cercados de enfado por todos os lados. Mas isso parece apenas um pretexto para o autor se debruçar sobre os impasses do povo italiano na entrada dos 80, ou seja, investigar o cenário onde a nação perde o rumo. 

 

A mágica da transposição ocorre pois Scola é craque em penetrar na transversal os seus temas. A pretexto de mostrar a vida do “cinemão” italiano e seu universo cultural decadente (mas endinheirado), ele discorre sobre os dramas daqueles personagens à beira do ostracismo, em crise de função, em uma Itália na qual eles já não se enquadram mas que paradoxalmente não têm melindres de exposição, ou seja, predominam vulgarmente.

 

É nesse ambiente que vemos surgir o democratismo vicioso, a perda da libido, a repetição doentia, a falta de sentido, loucura, proselitismo, discussões formais, esquerdismo, reacionarismo, tudo misturado pra passar o tempo e fazer, imaginem, um pouco mais suportável a realidade.

 

Ettore Scola no festival de Anne em 2003 (Foto: Jean-Pierre Clatot/France Presse)

 

De fato nenhuma cinematografia vive sem público. A crise dos realizadores é sobretudo uma crise de bilheteria. A Itália apesar da exuberante cinematografia não é diferente em nada do restante do planeta, o que prova que não é (somente) a qualidade que faz a audiência em cinema, mas a oportunidade. Como se depreende dos diálogos e conflitos trata-se de um país ocupado objetivamente e fragmentado do ponto de vista do imaginário, sem público nem sintonia cultural popular, e por isso os realizadores não sabem mais sobre o que escrever, o que é engraçado ou trágico, e nisso reside seus repetitivos dramas. Dramas que o cineasta trata sem delongas nem deméritos, apenas expõe. Seus personagens vivem de tal modo encerrados na falta de sentido que não percebem nem a depressão nem a repetição que  encarcera seus anseios mais profundos.

 

Não tem como não lembrar "O Discreto Charme da Burguesia", de Buñuel. Mas em "O Terraço" as repetições são mais sutis de modo que a própria percepção do espectador desperta lentamente, o que não evita de colocá-lo, surpreendentemente, em posição paralela à dos personagens nesse perceber, e faz da própria tela um espelho: é a cena que se repete ou eu que a vejo repetida…? Efeito discutido também internamente entre alguns personagens.

 

Com essa estratégia Scola consegue estender a crise no metié primeiro ao público e deste à  contemporaneidade. O personagem de Vittorio Gasmann, um “deputado cultural de esquerda”, ao final expõe em um congresso do partido o seu drama sorrateiro: é correto se lançar à felicidade, se for causar infelicidade? É a denuncia do autor por um lado, do modo de vida acomodado, dos  impasses do imaginário e do  conservadorismo de sofá, e por outro da profunda crise moral que mergulha tanto o Partido Comunista italiano, quanto a democracia cristã após o assassinato de Aldo Moro

 

Sem função construtiva, todos perdem seus argumentos e veem defraldadas suas utopias. Scola parece não ter personangens que saibam por onde sair. Nada de pontificar: seus pares estão encalacrados em um domínio mental intrincado e se aproximar das causas começa pela percepção dos efeitos. Esse parece ser o caminho proposto pelo autor para recuperar a razão de viver.

 

 

*É diretor de cinema

 

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