“Bola de Sebo”: um grande filme soviético
MARIA DO ROSÁRIO CAETANO
A turma do CPC-UMES (Centro Popular de Cultura da União Municipal de Estudantes Secundaristas de SP) vem lançando, em DVD, importantes títulos do cinema soviético (e russo). Neste exato momento coloca à venda (em seu site e em algumas lojas) três títulos: o soviético “O Velho e o Novo” (1929), de Sergei Eisenstein & Grigori Alexandrov; o também soviético “Bola de Sebo” (1934), de Mikhail Romm; e o russo “Tigre Branco”, de Karen Shakhazarov (2012).
Tenho para mim que “Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant, constitui – junto com “Pai Contra Filho”, de Machado de Assis – o momento mais luminoso da história do conto mundial (pelo menos dos que já li). Sonhava conhecer uma adaptação para valer desta maravilha da literatura francesa (“No Tempo das Diligências”, de John Ford, 1939, e “Le Nuit de Varennes – Casanova e a Revolução”, de Ettore Scola, 1982, nele se inspiraram, mas livremente).
Adquira o DVD “Bola de Sebo”, de Mikhail Romm, na loja virtual do CPC-UMES Filmes
Pois a turma do CPC-UMES se empenhou em trazer o filme ao Brasil. Ei-lo, agora, em edição caprichada (legendas e intertítulos em amarelo). Trata-se da versão sonorizada (e com narrativa em off), de 1955, comandada pelo próprio Mikhail Romm. O original é MUDO. Não se assustem com a narração em off. Ela incomoda um pouquinho no início, depois quase desaparece.
O filme é magnífico. A rechonchuda prostituta Bola de Sebo (magistralmente interpretada por Galina Segeyeva) enche a tela e a diligência, que carrega aristocratas, comerciantes/burgueses e duas freiras, num tempo de guerra (1870, quando o Exército Prussiano ocupa a região de Rouen, na França).
Dois anos atrás, quando a turma do CPC-UMES promoveu a Mostra Mosfilm 90 Anos, conversei com o grande tradutor do russo para o português, o paraibano-carioca Paulo Bezerra, sobre os filmes selecionados (para matéria no Brasil de Fato). Ele destacou o documentário “O Fascismo de Todos os Dias”, do mesmo Mikhail Romm (1901-1971), que assistira nos anos 60, quando morava em Moscou. Contou que o filme causara imenso impacto e que imensas filas se formavam para vê-lo. O mesmo se deu com Bola de Sebo, um dos maiores sucessos da história do cinema soviético. A ponto de, passados 21 anos de seu lançamento, fazer jus (em 1955) à cópia sonorizada e musicada.
Jean Tullard, em seu Dicionário (L&PM), avalia a obra do judeu-soviético Romm e lamenta que entre dois grandes filmes, o primeiro (Bola de Sebo) e o último (O Fascismo de Todos os Dias) – entre 1934 e 1964 – “não tenha conseguido evitar os cânones do realismo socialista com suas evocações de Lenin ou do Almirante Ustchiakov, ainda que esses filmes não sejam desprovidos de ‘mouvement’”. E mais: “originário do jornalismo e da escultura, tradutor em russo de Flaubert e de Zola, roteirista inteligente e bom técnico, Romm poderia ter mais obras-primas no cinema russo”. Pois dele, o CPC-UMES já lançou “Lenin em Outubro” e “Lênin em 1918”. Mas voltemos ao belíssimo “Bola de Sebo”.
O filme é uma sucessão de imagens impressionantes, em preto-e-branco, à altura de Urushev, com enquadramentos ousadíssimos. As sintéticas cenas que evocam a guerra estão à altura de Eisenstein. As vestimentas e gestos dos nobres, dos burgueses e das freiras dizem tudo com a potência do cinema mudo (a narrativa só ajuda a contextualizar o tempo histórico e a nos lembrar o texto primoroso de Maupassant).
E por que os marxistas de todos os tempos amam tanto “Bola de Sebo” (incluindo na lista Bertoldt Brecht, que criou a Jenny da “Ópera dos Três Vinténs” – por sua vez matriz da Geni, de Chico Buarque – a partir da personagem francesa)???
Porque não há como não ver no conto a mais potente metáfora das relações entre os poderosos e os desprovidos de poder. Bola de Sebo, prostituta que estava em lugar (a carruagem) onde jamais deveria estar, só é bajulada enquanto dispõe de um cesto cheio de comida para dividir com o grupo faminto (devido aos percalços da guerra). E depois, quando seu ofício (e seu instrumento de trabalho, o corpo) pode(m) resolver grave problema que impede a sequência da viagem. Se Romm só tivesse realizado esta versão muda de “Bola de Sebo”, seu lugar na história do cinema estaria garantido.
* Publicado originalmente em Almanakito (http://almanakito.wordpress.com), 19/07/2016.
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