3-8-16 De crápula a herói

A estratégia de Rossellini

3-8-16 De crápula a herói

Cena do filme “De Crápula a Herói”, de Roberto Rossellini

 

CAIO PLESSMANN*

Com Roma Cidade Aberta Roberto Rosselini desponta como ícone do pós-guerra. Compreender as causas desse fenômeno nos leva a entender o caminho que o autor trilhou através do cinema para conquistar o imaginário de seu tempo e assim exercitar o próprio entendimento.

Para Rosselini o que interessa é a realidade. É dai que surge tudo, todo seu esforço narrativo tem a ver com a busca da verdade profunda e expressão das coisas. Por isso seus filmes têm distanciamento e particularidades, e dentro delas são cheios de surpresas.

É uma espécie de mestre do inesperado, mas sem terror. Roma Cidade Aberta surpreende no início com uma fuga espetacular, e segue todo o tempo apresentando inúmeras viradas e surpresas como a de Anna Magnani, na metade da obra, que é morta pelos nazistas ao sair em defesa do marido, na véspera do casamento. Em Stromboli Terra di Dio a erupção do vulcão nos leva ao assombro.

O autor conduz a afecção dos atores frente as coisas que articulam o drama: nesse Roma o livro com dinheiro escondido que o padre leva para a resistência transita daqui pra lá sem que Magnani saiba o que tem dentro, de modo que a dissimulação do padre, presente na cena, é conhecida do público mas não da moça, o que trás informações adicionais aos espectadores sobre o comportamento das pessoas. A sopa que De Sica recusa em General Della Rovere, 1959 (De Crápula a Herói) tem aroma especial que a interpretação marca ostensivelmente ainda que seja algo sutil, como se os episódios, a realidade, tivessem camadas profundas que não se deixam impregnar na fotografia, mas estão presentes, a um só tempo evidente e submerso na ação.

 

Para maiores informações entre em contato pelo telefone (11) 3289-7475 ou Facebook. O Cine-Teatro Denoy de Oliveira fica na Rua Rui Barbosa 323, Bela Vista (Sede Central da UMES)

 

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Do mesmo modo o amor, a espiritualidade, a história, tudo ocorre dentro da mesma estratégia enunciativa. O beijo de Bergman no marido, em meio à procissão religiosa no final de Europa 51 (crítica ao conformismo das classes médias), sugere força residual do fenômeno da religiosidade para expandir o amor e redimir os seres humanos.

E de fato alcança êxito total ao narrar a resistência organizada contra o nazifascismo em Roma…, ilustrando o clima que juntou comunistas, socialistas, cristãos e liberais contra a desumanidade, e que posteriormente constituiu a essência do compromisso histórico de Aldo Moro. O autor se esforça para evidenciar esses traços desde as articulações pela unidade de De Gasperi (45-53) retratadas em Anno Uno (1974), ou seja, é uma dramaturgia que caminha lado a lado com a dimensão da realidade que sintetiza as aspirações humanas mais profundas.

Com essa estratégia Rossellini se põe a serviço da ideia de que a convergência e a união a favor da vida é a tendência essencial da humanidade, um fator inexorável. Ainda em 1959 mostra o falso Della Rovere, um empulhador cooptado pelos nazistas para descobrir os caminhos da resistência, mostra-o crescer de tal forma diante da brutalidade da repressão que atinge expressão de uma liderança popular real, legítima, voltando-se contra as forças reacionárias. Os fatos, a realidade em sua complexidade é que opera a vida, sobretudo em meio a episódios difíceis que ela nos trás, um fundamento no ser humano.

Esse modo de pensar, traduzir no plano cinematográfico e compor o filme construiu uma nova consciência, sobretudo num período onde os Estados Unidos com Roosevelt, responsável pelas políticas que tornou possível a existência de um Orson Welles, enfrentava grupos monopolistas dentro e fora dos EUA e desse modo abria espaço para oxigenar o ambiente de distribuição e exibição cinematográfica por todo o planeta. Ainda que a obra de Rosselini não tenha captado a essência do movimento fascista como expressão difusa da luta intermonopolista por auto afirmação, foi capaz de coesionar o mundo fragmentado que essa disputa criou e resultou nas duas grandes guerras.

 

27-7-16 Roma Cidade Aberta

Cena do filme “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini

 

Rossellini esteve no Brasil em 58 para preparar a adaptação de Geografia da Fome de Josué de Castro, e se incomodou com o cenário psicossocial do país. Visto como comunista pela direita e liberal pela esquerda sentia, ao mesmo tempo, a grande força da cultura brasileira. Tinha realizado seu ensaio sobre a Índia. Conheceu o nordeste, esteve com Gilberto Freire, Di Cavalcanti e Glauber Rocha. Seu apego à realidade e desconforto com os esquematismos parecia revelar que ele mesmo já começava a formular uma proposta de unidade das forças vitais que depois viria a ser conhecida como Terceira Via, um regime democrático, de liberdades econômicas e sociais, com características desenvolvimentistas e antimperialistas.

O movimento de Welles em Cidadão Kayne necessitou de Rosselini para ampliar a forma narrativa e penetrar a nova realidade. Fecundava os cinemas novos de todo o mundo e virava a página na cultura contemporânea. A estratégia de Rossellini permitiu que a realidade criasse linguagem em perspectiva. A chave se torna o sentimento do tempo.

* É cineasta

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