Euzébio: a derrota dos entreguistas na luta pela criação da Petrobrás

Publicamos abaixo, entrevista feita com Euzébio Rocha, deputado autor da lei 2.004, que criou a Petrobrás instituindo o monopólio estatal do petróleo.

Euzébio participou do premiado documentário “Pega Ladrão”, produzido pelo CPC-UMES.

Os entrevistadores são Plínio de Abreu Ramos e Margareth Guimarães Martins, e o artigo foi publicado na Hora do Povo, edições 3.198 e 3.199. Confira o artigo abaixo:

 

Nos últimos dias, estamos vendo alguns fenômenos espantosos.

Alguns, na mídia, chegaram à conclusão de que a Petrobrás está sendo terrivelmente sacrificada por ter, pela lei, uma participação mínima de 30% no pré-sal e ser a operadora única. Zelosos pelo destino de nossa empresa, querem retirar dela esse sacrifício para dar-lhe mais saúde, terrivelmente afetada pelas imensas reservas de petróleo que descobriu. O remédio, dizem eles, não pode ser outro, senão entregar o petróleo que a nossa empresa descobriu às multinacionais. Aí, sim, a Petrobrás será um titã de tanta saúde.

É o primeiro caso de uma companhia de petróleo que tem a sua saúde afetada porque achou uma cornucópia de petróleo. Por que será que isso só acontece no Brasil.

Um elemento – que outrora jactava-se de nacionalista, agora rebaixado à prostituição entreguista mais rampeira – declarou que foi muito justo proteger nosso petróleo do cartel das petro-multinacionais no passado, quando não havia petróleo nem Petrobrás, ou quando esta não havia ainda descoberto reservas consideráveis. Agora, que a Petrobrás é uma da maiores companhias da Terra e já descobriu mais de 60 bilhões de barris em reservas, é hora de entregar o petróleo para o cartel.

Realmente, antes não havia o que entregar. Por isso é que o elemento era a favor de proteger o que não havia…

Outros fazem cálculos e mais cálculos para provar que vamos ficar com 70%, 75%, 80% ou 85% (percentagens muito rigorosas, como o leitor pode constatar) “da renda” de Libra (seja lá o que isso queira dizer) através de entregarmos a maior parte do lucro em óleo às companhias estrangeiras. Dentro em breve esses calculistas receberão a medalha Fields – apelidada “o prêmio Nobel da matemática” – pelas sensacionais descobertas que revolucionaram a tabuada e provaram que 70% é igual a 85% (ou, mais sensacional ainda, que 41,65% de 45% pode ser qualquer coisa menos 18,74%, resultado a que somente os sectários das quatro operações podem chegar).

Paremos por aqui, leitores, porque essas novas descobertas não são tão novas assim.

Com a palavra, o criador da lei 2004, que instituiu o monopólio estatal do petróleo. O depoimento de Euzébio Rocha que condensamos, nesta e na próxima edição, não é o mesmo que citamos na edição passada: em 1987, Euzébio concedeu uma segunda entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Diferente da primeira, de 1984, que teve como tema a política em geral durante a vigência da Constituinte de 1946, esta foi centrada especificamente na campanha pelo controle nacional do nosso petróleo – pela criação da Petrobrás – pois fazia parte do Projeto Memória da Petrobras.

Os excelentes entrevistadores foram Plínio de Abreu Ramos e Margareth Guimarães Martins. Mantivemos a forma de perguntas e respostas, embora tenhamos resumido tanto as primeiras quanto as segundas.

 

C.L.

 

P – Eusébio, como se deu inicialmente o seu envolvimento com o problema brasileiro do petróleo?

Euzébio Rocha – Meu envolvimento com a questão do petróleo se deu mais ou menos quando cheguei na Constituinte. Eleito deputado federal e bastante jovem, o que foi há muito tempo, consequentemente…

 

P – Você era o mais novo constituinte.

E.R. – É, estava com 26 anos. Comecei a examinar o problema energético e fiquei horrorizado ao verificar que mais ou menos toda a base das fontes energéticas do país era lenha, que contribuía com cerca de 78%. Então me pareceu imediatamente que o país não teria condições de se desenvolver sem resolver o problema energético. Daí eu me voltei para a questão energética.

O interessante é que minha primeira preocupação não foi diretamente com o petróleo. Minha primeira preocupação foi com o problema das areias monazíticas, que eu sabia que continham o tório, porque havia feito estudos a respeito. Então fiz um projeto proibindo a exportação de areias monazíticas, que deu um show internacional: o Departamento de Estado mandou um pedido de informação, porque o projeto, proibindo a exportação de areias monazíticas, comprometia a utilização de tório, o que prejudicava a política internacional dos Estados Unidos. Cheguei até a receber um adido da embaixada para o setor de minério, que veio me dizer que o meu projeto acabava tendo o sentido de uma dificuldade para o mundo ocidental, porque só os Estados Unidos tinham condições de desenvolvimento da energia nuclear.

Foi quando esclareci a ele que não, que eu achava que os Estados Unidos não podiam assumir sozinhos a responsabilidade da defesa da democracia, que o Brasil deveria participar disso. Então eu tinha aberto uma válvula do meu projeto, que era a permissão da exportação em troca de absorção de tecnologia nuclear, porque achava que o país devia dominar também a tecnologia nuclear como condição para resolver o problema energético. Tive um convite para ir aos Estados Unidos, mas parece que depois, como fiquei muito intransigente no projeto, que acabou aprovado, eu não fui aos Estados Unidos. Mas o projeto foi aprovado. [risos]

Contei surpreendentemente com o apoio de um destacado líder industrial, que era o Simonsen, o bom, evidente, Simonsen, o bom; o Roberto Simonsen, que chegou a ser senador. Sem confusões de nomes, porque ele era um homem íntegro, nacionalista. [risos] Vamos deixar sem confusão nenhuma: era Simonsen, o bom. Ele me deu uma cobertura muito grande, e eu encontrei também no Estado-Maior do Exército um apoio muito grande.

 

P – Naquelas eleições de 1944 no Clube Militar, o problema do petróleo já foi ventilado durante a campanha?

E.R. – É evidente que já. A questão do petróleo já se colocava sobretudo pela ação do general Horta Barbosa junto com o general Góis Monteiro e com outros generais…

 

P – Estevão Leitão de Carvalho.

E.R. – Leitão de Carvalho e outros generais já colocavam o problema do petróleo como fundamental para a segurança nacional e para o desenvolvimento do país. Eu não tenho dúvida que quem levou o problema para dentro das Forças Armadas foi o general Horta Barbosa, que conseguiu imediatamente o apoio do Góis Monteiro e do Dutra. O Dutra se ligava a este grupo que considerava que o Brasil não deveria fazer concessões sobre o petróleo. Indiscutivelmente.

 

P – A coisa explodiu de fato dentro da Constituinte?

E.R. – É, explodiu dentro da Constituinte, e depois com o Estatuto do Petróleo. Evidentemente, havia na Constituinte um conflito de tendências. Homens como o presidente Artur Bernardes, como [Domingos] Velasco, eu e outros representávamos um grupo que achava que minério não dá segunda safra e que considerava fundamental uma política prudente de minério, em que as exportações não comprometessem nem no presente nem no futuro o interesse industrial do país. E esse grupo lutou de uma maneira muito intensa.

Entretanto, houve um lobby muito importante, que foi o lobby do Schoppel. Paul Schoppel hospedou-se aqui no hotel Glória, e do hotel Glória ele tinha telefone direto com a embaixada americana e com vários deputados. E representava realmente um desejo norte-americano de abrir a questão aos grupos estrangeiros. Aí é que realmente se deu uma luta muito intensa, uma luta muito grande em torno da tese de que a exploração de petróleo deveria ser feita só por brasileiros ou por empresas constituídas por brasileiros.

Entretanto, um deputado de quem eu vou dar somente as iniciais, por uma questão de elegância, um deputado da UDN, Ernâni Sátiro [risos], apresentou – acho que por coincidência ou por influência de sessão espírita, não sei, ele apresentou coincidentemente uma emenda que era exatamente a emenda que Schoppel desejava: uma emenda que alterava aquela linha nacionalista anterior do presidente Getúlio Vargas.

 

P – O artigo 153.

E.R. – O artigo 153, exatamente. A emenda transformou-se no artigo 153 da Constituição de 46. E isto foi de uma importância decisiva na colocação do problema da participação das empresas organizadas no Brasil. O problema básico foi realmente esse: o da emenda das sociedades organizadas no Brasil.

 

P – Ou empresas organizadas no país.

E.R. – Ou empresas organizadas no país, diz textualmente isso. A emenda foi apresentada por Ernâni Sátiro e denunciada depois pelo presidente Bernardes, pelo [senador Domingos] Velasco e por mim como uma intromissão de grupos estrangeiros na elaboração da Carta constitucional. E abria realmente aos grupos estrangeiros a exploração das riquezas minerais do país.

 

P – Nós fizemos uma entrevista com o Drault Ernanny e ele nos contou esse episódio um pouco diferente. Disse ele que a expressão “ou empresas organizadas no país” foi acrescentada, no final, quando a emenda tinha chegado na Comissão de Redação da Câmara, e ninguém sabe realmente quem foi que acrescentou.

E.R. – Foi o Ernâni Sátiro. Eu me lembro bem, eu me recordo bem disso: a emenda foi do Ernâni Sátiro, não tenho dúvida nenhuma. Foi realmente uma posição do Ernâni Sátiro.

 

P – O Drault Ernanny nos contou também que o Melo Viana reuniu os líderes dos partidos para pedir que silenciassem a respeito do assunto e o Bernardes disse que não silenciaria.

E. R. – É lógico. O Bernardes teve uma posição muito clara nesse sentido, uma posição muito correta, uma posição muito corajosa. Acho que isso foi indiscutível.

 

P – O senhor falou do lobby do capital estrangeiro. Esse lobby chegou a procurar pessoalmente algum dos deputados do grupo nacionalista?

E.R. – Acho que não. Eles eram bastante inteligentes para saber que era uma perda de tempo e até um comprometimento.

 

P – Agora, esse dispositivo não é novo, porque ele repetiu o texto da Constituição de 34.

E.R. – Repetiu o texto da Constituição de 34, mas contrariou a de 37. A Carta de 37 estabelecia nesse sentido a participação de empresas constituídas por brasileiros. Então mantinha realmente a tese nacionalista na sua pureza e na sua exatidão.

 

P – Quer dizer que o senhor considera que houve um retrocesso em relação à Carta de 37?

E.R. – Houve indiscutivelmente um retrocesso nesse sentido. Houve um grande retrocesso. E o surpreendente é que o sr. Schoppel acabou condecorado com a Cruz do Cruzeiro do Sul em 5 de novembro de 1946, por sugestão do sr. João Neves da Fontoura. [risos] Mas a emenda do Ernâni Sátiro é exatamente a seguinte: “As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros” – acho que o patriotismo está completamente satisfeito – “ou empresas organizadas no país, assegurada ao proprietário preferência quanto à exploração”. Esta redação prevaleceu na Constituição de 1946 e equivaleu ao artigo 119 da Constituição de 1934.

 

P – O senhor se lembra qual era a diferença entre autorização e concessão?

E.R. – Bom, eu tenho a impressão que o problema de autorização e concessão é tão somente uma questão de um estrutura de direito. A autorização é mais incondicional, quer dizer, você autoriza, e evidentemente essa autorização fica um pouco ao arbítrio da autoridade. Ao passo que a concessão, não. Você entrega a concessão por 30, 20, 25 anos. Acho que essa é a grande diferença.

 

P – O clima foi muito agitado?

E.R. – Ah, foi. Disso você não tenha dúvida. Porque o mínimo que se disse foi que isso era uma traição ao país, e que ofendia a todos os constituintes, ofendia a todos os brasileiros o fato de haver um constituinte estrangeiro, por interesse do lobby das empresas petrolíferas, redigindo a Constituição brasileira.

Na fase do grande trabalho do Horta Barbosa dentro do Exército, quando o dr. Getúlio baixou dois decretos-leis fundamentais, um deles, o Decreto-lei 366, de 11 de abril de 1938, que tornou a atividade privativa de brasileiro nato. Isso é de muita importância, porque nesse momento a Venezuela abria o seu petróleo aos grupos estrangeiros, os ditadores latino-americanos entregavam as suas riquezas aos grupos internacionais, e o presidente Getúlio Vargas, mostrando uma formação de estadista, tornava privativa de brasileiro nato a exploração de petróleo, impossibilitando a participação estrangeira. E em seguida ao Decreto 366, em 29 de abril de 1938 ele criou o Conselho Nacional do Petróleo, cujo primeiro presidente foi realmente o Horta Barbosa.

Então temos esta fase e chegamos em 45; Getúlio caiu e Linhares assumiu. A queda do Getúlio, em 45, a gente fica sem entender. Porque em 1930 o Brasil era um país superendividado, sem dinheiro para importar o mínimo necessário. E exatamente em 45, o Brasil tinha uma estabilidade monetária muito grande, tinha uma das moedas mais fortes do mundo, tinha-se conseguido o início de Volta Redonda, quer dizer, o país tinha toda essa estrutura.

É verdade que tinha ferido os interesses da United States Steel e de vários grupos americanos.

Mas exatamente nessa ocasião Getúlio foi destituído. E um dos primeiros atos do Linhares foi exatamente revogar a lei anti-truste, a lei malaia, como chamavam, e abrir a perspectiva para as refinarias particulares.

Foi quando o Dutra fez o Decreto 9.881 criando a Refinaria Nacional de Petróleo de Mataripe, que produzia dois mil barris diários, mas que teve uma importância muito grande. Com essa medida do Dutra, pode-se sentir a alternância dos problemas, porque quem estava no Conselho Nacional nessa ocasião era o Barreto…

 

P – João Carlos Barreto.

E.R. – … que sustentava a participação de grupos estrangeiros no setor petrolífero. Então eles fecharam os olhos completamente a essa participação. Tenho a impressão que isto é o que eu poderia dar a vocês de elementos básicos para a luta que nós travamos nessa parte toda até 48.

Depois veio a proposta do Dutra. Veja você a questão do Estatuto do Petróleo: a mensagem nº 61, de 31 de janeiro de 1948, e a nº 62, de 4 de fevereiro de 1948. O presidente Dutra mandou o Estatuto do Petróleo mais ou menos como Pilatos, porque na mensagem ele dizia: “Significativas correntes nacionais consideram importante a participação do capital estrangeiro. Assunto de tamanha relevância não devo resolver sozinho. Torna-se necessário a participação do Congresso brasileiro para tal decisão”. E mandou o Estatuto.

Foi aí que, pela primeira vez, eu, que tinha apoiado o Dutra para a Presidência da República logo de início, fiz um discurso contra ele. E recebi um telefonema do Gabriel Monteiro da Silva reclamando: “Mas, como? Você é amigo do Dutra e faz um discurso contra ele!”. Eu disse: “Não, eu não fiz contra ele. Fiz contra o Estatuto do Petróleo”. “Mas ele ficou muito sentido”, essa questão toda.

O Mário Bittencourt Sampaio conseguiu introduzir-se – ele era muito amigo do Dutra, tanto que foi presidente do Plano Salte, e era um homem de muito boa formação nacionalista. Eu sei que pouco a pouco o Dutra foi-se convencendo que o Estatuto não convinha aos interesses nacionais. O fato é que o Estatuto ficou congelado e acabou arquivado.

 

P – Mas a maioria dutrista, o PSD e tal e os partidos coligados, não pediam à mesa a inclusão na ordem do dia?

E.R. – Pedir, eles tentavam pedir, mas nós criávamos as maiores dificuldades. Eu mesmo levei o projeto para minha casa e fiquei com ele três meses. Nós criávamos todas as dificuldades. Até que chegou o momento em que o próprio Dutra mandou, através do Plano Salte, a construção da Refinaria de Cubatão.

 

P – Mas o Estatuto chegou a passar pela Comissão de Constituição e Justiça e pela…

E.R. – Passou, passou por várias comissões. Mas foi passando, foi passando e passou.

 

P – O relator era o Costa Neto.

E.R. – Exatamente, o relator era o Costa Neto, de São Paulo. O fato é que a Refinaria de Cubatão foi uma grande vitória nossa, porque 45 mil barris diários eram realmente alguma coisa séria. E nisto há um fato muito interessante: o Mário Bittencourt Sampaio foi mandado à França para utilizar os nossos recursos congelados lá na construção da refinaria.

O Mário foi para a França, conversou com o ministro francês e o ministro disse a ele: “Olha, realmente nós temos os recursos, estamos devendo ao Brasil e vamos pagar. Mas infelizmente não podemos fazê-lo dando assistência à construção de uma refinaria. Porque o embaixador americano disse que se a França já está tão forte que pode ajudar o Brasil a construir refinarias para estabelecer concorrência com as empresas americanas, então não está precisando mais de ajuda do Plano Marshall”. Em virtude disso, foi vetado o fornecimento desses recursos à refinaria.

O Mário Bittencourt Sampaio pediu então ao embaixador que fizesse um coquetel de despedida. E, nesse coquetel, o embaixador americano perguntou diretamente a ele: “o senhor então viaja amanhã para o Brasil?”. Ele disse: “não, amanhã eu vou para a Tchecoslováquia. Tenho ordens do presidente Dutra de que o Brasil tem que construir a sua refinaria de petróleo, e a Tchecoslováquia tem condições técnicas de nos oferecer a construção da refinaria. Então eu vou para a Tchecoslováquia”.

Surpreendentemente, no dia seguinte, o ministro francês telefonou dizendo que tinha havido uma reconsideração e que a França ia oferecer recursos para construirmos. Você vê que diferença dos homens, dos Delfins Netos atuais, etc., etc.

 

P – Em 1947, quando o Centro Acadêmico 11 de Agosto lançou as primeiras torres de petróleo no Largo de são Francisco, em apoio à tese Horta Barbosa, você já estava ligado às campanhas de rua?

EUZÉBIO ROCHA – Já.

 

P – Nessa época você já se ligava às campanhas populares?

E.R. – Já, e até anteriormente. Logo que o Estatuto [do Petróleo] chegou, nós iniciamos dentro da Câmara uma luta contra ele, que precedeu a luta de rua. Imediatamente depois, o [general] Horta começa a tomar posição no Clube Militar, e houve as duas grandes conferências: a primeira foi do Juarez [Távora] defendendo a participação dos grupos estrangeiros, e depois a do Horta, combatendo. Então a luta veio do Clube Militar e depois se projetou para a União Nacional dos Estudantes, para os trabalhadores e até para setores de federações de indústrias. A de Minas, por exemplo, teve uma posição muito boa logo no início, favorável ao monopólio estatal do petróleo. Isso foi criando uma consciência nacional.

 

P – Do Congresso é que extrapolou para a área militar e a área estudantil.

E.R. – Exatamente isso. Assim que o Estatuto chegou, recebeu o combate de vários deputados. O presidente Bernardes, eu, [Domingos] Velasco, e outros, combatemos. E o Horta Barbosa fez o grande discurso no Clube Militar, praticamente em resposta ao Juarez Távora. De modo que o Congresso teve realmente uma participação muito importante no combate ao Estatuto do Petróleo.

 

P – Como se dava o relacionamento entre a área parlamentar e a área militar?

E.R. – Eu tive um contato muito grande com a área militar mais moça, porque fui aluno do Colégio Militar no Rio de Janeiro, e o pessoal todo que seguiu a carreira manteve muita amizade comigo. Depois passei a ter um grande contato com o Horta Barbosa, de quem me tornei muito amigo. O entrosamento era tão grande que eu fiz duas conferências no Clube Militar defendendo o monopólio estatal do petróleo.

Ao longo da minha vida, tenho tido que combater alguns militares. Mas quando combato o general Geisel, combato pelos erros cometidos na Petrobrás e na Presidência da República. Eu combato o general fulano de tal, mas não a instituição militar, porque ela apresenta em si muitos elementos identificados… Como a sociedade civil. Vamos dizer que a sociedade civil não tem um Roberto Campos? Então, dentro da área militar pode haver alguns Robertos Campos! O grupo nacionalista do Exército cresceu muito e se entrosou com o grupo nacionalista [civil]. Lógico que com divergências muito grandes, mas nós fizemos da luta pelo monopólio estatal do petróleo o denominador comum! “É em torno disto que nós estamos. O resto, depois a gente discorda, segue outros rumos. Nós vamos lutar por isso. Isto é o fundamental”.

 

P – Não houve conflito de convivência entre o meio político, o meio estudantil e o meio militar em torno desse denominador comum a que você se refere?

E.R. – Não, não houve. Houve discordâncias. Por exemplo: evidentemente eu não concordava com o Juarez Távora. [risos] Tive discordâncias violentas com o Juarez Távora. Eu me recordo de um programa de rádio… Era habitual de quando em quando a gente ir para o rádio discordar, dávamos aqueles socos na mesa, aquelas coisas todas, e eu levava sempre muito argumento. Uma vez eu fiquei surpreendido, porque quando abri o Jornal do Brasil tinha uma página toda em que estava escrito o seguinte: “O petróleo debaixo da terra não traz benefícios a povo nenhum”. [No] Estado de S. Paulo, a mesma coisa. [No] Correio da Manhã, que ainda existia, uma página inteira! Eu digo: “Então o debate de hoje tem outro sentido. Acho que os trustes querem realmente fazer disso um negócio muito sério”.

Procurei apressadamente reunir dados – resolvi pegar dados estatísticos da ONU sobre a Venezuela. E tive um grande debate com o general Juarez Távora a respeito. E a tantas, eu disse ao general Juarez Távora: “General, a Venezuela é um grande país, não é? Felizmente seu povo vive uma vida boa, razoável”.

Então ele deu um daqueles seus socos típicos na mesa e disse: “Deputado, o senhor esta completamente errado! Eu estive na Venezuela! O povo vive numa miséria absoluta!”.

“Então, general, quer dizer que o petróleo debaixo da terra e na mão da Standard não traz benefício a povo nenhum!” [risos]

No dia seguinte os jornais não deram quase noticia do nosso debate. [risos]

 

P – Mas há um detalhe importante nesse processo todo, que é o seguinte: inicialmente o truste insistia na inexistência de petróleo no Brasil.

E.R. – Exatamente isso.

 

P – Depois, numa segunda etapa, ele passou para essa posição que você está falando: o petróleo debaixo da terra não serve a ninguém. Então, como não tínhamos recursos, na suposição deles, e eles tinham…

E. R. – Como não tínhamos tecnologia, segundo diziam Juarez e os trustes…

 

P – Pois é, mas há uma mudança de estratégia muito grande: primeiro, não existia; depois, passou a existir, mas havia falta de tecnologia, havia falta de recursos, que só eles tinham, então só eles podiam tirar. Como se processou essa passagem de uma fase estratégica para outra?

E.R. – Muito fácil! Porque depois que surgiu o petróleo na Bahia, depois que os poços começaram a ser perfurados pelo Conselho Nacional do Petróleo, finalmente, quando o Conselho Nacional terminou, atingimos mais ou menos uma produção de 2.500 ou 2.700 barris diários, se não me engano, em torno disso. Quer dizer, se estávamos produzindo 2.500 barris, não era possível continuar com a mesma tese de que não havia petróleo! Os trustes são safados, mas não são burros. São desonestos, mas não são burros. Então compreenderam que a estratégia tinha que ser mudada. Não podiam dizer: “Não há petróleo no Brasil” – como tentaram fazer sempre. Passaram a dizer: “Há petróleo mas… vocês não têm recursos, vocês não têm tecnologia” – era o argumento deles. Eles não eram sociedades beneméritas e só aplicavam com muitas vantagens. E estas vantagens poderiam ficar para o nosso povo lutar contra a miséria.

 

P – Os defensores do Estatuto usavam o argumento da importância da transferência de tecnologia devido à nossa defasagem em relação aos países estrangeiros. O que os nacionalistas previam fazer para diminuir a defasagem?

E.R. – Primeiro: quando se conseguiu fazer a refinaria de Mataripe, que se pagou no primeiro ano, nós provamos ao Brasil que a atividade petrolífera era autofinanciável. E com relação à questão da tecnologia, nós mostrávamos que havia no mercado mundial inúmeros técnicos de geologia que, se nós pagássemos bem, deixariam os seus empregos, porque eles têm uma formação capitalista, estão onde pagam melhor. Então, teríamos esses elementos que formariam técnicos nacionais. Nós mostrávamos a evidência de que podíamos resolver o problema de uma forma absolutamente nacional! Eu achei que isso foi muito importante. Nós evoluímos e conseguimos convencer. Tanto que a tendência, pode ver qual foi: acabou se fazendo a refinaria de Cubatão.

 

P – Era aquela tese do general Horta Barbosa, então, de que os lucros de uma refinaria seriam aplicados na pesquisa, que essa era a maneira mais prática de se explorar o petróleo de uma forma autônoma, não é isso?

E.R. – Exatamente, lógico. A atividade petrolífera é indiscutivelmente autofinanciável e, além de ser autofinanciável, gera grandes excedentes econômicos.

Vejam o seguinte: as recentes ocorrências de Marlim e daquela área próxima dão como reservas recuperáveis em torno de três milhões e meio de barris. Quer dizer, mais do que nossas reservas atuais. A Petrobrás gastou para localizar esse número de barris 250 milhões de dólares. Então é uma mentira se dizer que a atividade petrolífera é de grande risco. Porque hoje, através dos processos de magnometria, sismometria, geofísica, geologia, você tem condições de localização muito maiores. De modo que é por isso que a gente mostra que não é verdade. E se você acha petróleo… petróleo é dólar! Localizado o petróleo, você não tem mais problema financeiro.

 

P – E a respeito da criação do Centro do Petróleo?

E.R. – O Centro de Defesa…

 

P – Centro de Estudos e Defesa do Petróleo.

E.R. – … e da Economia Nacional, depois foi acrescentado, exerceu uma função fundamental. Dentro da campanha, eu citaria o Jornal de Debates, que teve uma função histórica muito importante, porque concentrava realmente as informações. E tínhamos um jornal que exerceu uma influência muito grande, que foi o Diário de Notícias. O Diário de Notícias tinha uma posição nacionalista. Eu me lembro que uma vez, almoçando com o Dantas [Orlando Ribeiro Dantas, dono do “Diário de Notícias”] e com o jornalista que escrevia sempre…

 

P. – O Rafael.

E. R. – … o Rafael Correia de Oliveira, o Rafael brincou com o Dantas e disse: “Quando é que você vai me dar aumento?”. O Dantas respondeu: “Você é o jornalista mais bem pago do Brasil. Porque por sua culpa eu perdi toda a publicidade da embaixada americana.” [risos] Eu realmente me lembro bem disso. E recordo mais ainda: quando houve aquela luta contra a Última Hora, que foi feita aquela campanha contra a Última Hora e foi instituída uma comissão parlamentar de inquérito, o dr. Getúlio me chamou e lembrou que a Última Hora era o único jornal que o defendia. E eu então disse ao dr. Getúlio que gostaria de pensar um pouco para lhe dar uma resposta. E sustentei que, em vez de tentar fazer qualquer defesa da Última Hora, era melhor que eu fizesse uma emenda, ao projeto da criação da comissão parlamentar de inquérito, propondo que se apurasse não só as relações do governo com a Última Hora, mas também a relação de toda a imprensa com grupos econômicos internacionais.

A minha proposta deu um editorial do Dantas congratulando-se comigo, dizendo que separava-se de mim por um abismo, porque eu era amigo do ditador e ele inimigo irreconciliável, mas que dessa vez eu tinha razão [risos]. Era preciso distinguir realmente a imprensa livre, como o Diário de Noticias, que tinha sido prejudicado, essa questão toda, e a outra imprensa que se vendia aos grupos internacionais e defendia os interesses antinacionais. De modo que é muito interessante essa contribuição do Dantas, mostrando o problema da luta ao nível da imprensa e a importância que o Diário de Notícias e o Centro de Defesa do Petróleo exerceram.

Houve, inclusive, o grande congresso realizado na ABI, que deu talvez o maior impacto da Campanha do Petróleo. Porque, com a maior das boas vontades e pureza, ao encerrar o congresso, alguém sugeriu que levássemos as flores que ornamentavam a mesa ao marechal Floriano Peixoto, que havia dito que receberia a esquadra inglesa à bala.

Muita gente acha que isso foi prosopopeia do Floriano Peixoto. Eu acho que não foi. Hoje as ilhas Malvinas estão ocupadas pela Inglaterra, e a nossa ilha não foi ocupada. Por quê? Será que foi só a frase dele? Não. Ele soube o que fez! Eu presumo que ele agiu como estadista. Porque é evidente que a esquadra inglesa poderia facilmente derrotar o Brasil, mas ocupar o Brasil, não. E os interesses financeiros que a Inglaterra iria perder com uma guerra dessas? Não compensava ocupar a ilha! Então a resistência de Floriano salvou o Brasil de ter um problema como a Argentina tem hoje. Consequentemente, é preciso que se faça justiça ao presidente Floriano! Eu não tenho visto uma análise dentro desse prisma, que eu acho fundamental que se faça! É daí que nós vamos criar uma consciência nacional e vamos mostrar que este país não é quintal de ninguém, que temos condições de criar realmente uma nação livre, uma nação liberta, uma nação que possa construir um destino não só para si, como para o Terceiro Mundo, e que possa ser a nação líder de uma luta de renovação.

Por isso mesmo nós fomos depositar as flores. Mas os grupos econômicos internacionais, que não vêm carimbados, manipularam a polícia, e a polícia começou a espancar os trabalhadores que estavam depositando as flores. Só não espancaram os deputados nem os generais, porque seria mais humilhante. E houve realmente incidentes. Eu mesmo tive que advertir um delegado, que puxou um revólver para mim, mas não teve coragem de atirar. Repelimos violentamente esta situação, até que o capitão Horta Barbosa, filho do general, trouxe o pessoal do Exército e pôs a polícia para correr. Eu estava inclusive com os olhos vermelhos do gás lacrimogêneo e com um galo enorme. Mas mesmo assim fui ao pronto-socorro, onde estava sendo atendida gente que queriam prender em seguida. Foi quando telefonei para o [ministro da Justiça] Adroaldo Mesquita – aliás, foi a senhora dele que atendeu – às três horas da manhã e consegui que afastassem a polícia. No dia seguinte, o fato sacudiu a Câmara. Então a Campanha do Petróleo galvanizou o país de Norte a Sul, em parte por causa desse incidente, no qual houve uma participação do Centro de Defesa do Petróleo.

 

P – O senhor falou sobre uma coisa interessante, que foram as manifestações públicas organizadas pelo Centro. Existia alguma composição? Eram manifestações de trabalhadores, estudantes…? Qual era a composição?

E.R. – Eu tenho a impressão que a campanha foi crescendo e empolgando vários setores. Evidentemente tinha uma base grande de trabalhadores. Mas uma base estudantil imensa! Uma base estudantil muito grande!

 

P – Era predominante?

E.R. – Era. Havia uma base estudantil muito grande. Tínhamos até manifestações de federações de indústrias apoiando o monopólio estatal do petróleo. E de guarnições militares! Oitenta e cinco por cento da guarnição militar do Rio de Janeiro manifestaram-se pelo monopólio estatal do petróleo em telegrama ao general Horta Barbosa! De modo que foi um movimento que, pouco a pouco, foi empolgando a nação toda. Não poderíamos dizer que era só trabalhador, só de estudante. Realmente a nação foi-se empolgando, se empolgando, e foi isso que fez o Estatuto ficar arquivado. Foi essa pressão. Porque só o povo mobilizado e organizado constitui uma força capaz de conter as pressões externas dos trustes.

 

P – Há uma outra particularidade muito interessante: a quantidade imensa de câmaras municipais que se manifestaram a favor do monopólio estatal.

E.R. – Exatamente isso! eu, por exemplo, adotei por critério, sempre que fazia um pronunciamento, mandava-o para todas as câmaras municipais do Brasil, porque tínhamos franquia postal. O único sacrifício era o sacrifício da impressão, que não ficava cara porque, ao falar na Câmara, já estava impresso. Então eu utilizava aquela impressão feita no Diário [Oficial] para imprimir milhares de pronunciamentos e mandar para todas as câmaras municipais, para vários sindicatos etc. Eu adotava muito, em minha estrutura de participação, todos os meus companheiros, amigos, que faziam trabalhos de várias naturezas: um datilografava, outro ajudava, outro ia ao correio… Tínhamos, assim, uma equipe que fazia isso sistematicamente. Tenho a impressão que o Centro muitas vezes também fez isso. Então acho que isso criou uma situação, porque eu me lembro que muito deputado chegava perto de mim e dizia: “Olha que interessante, Euzébio. Eu estive em tal município, leram lá o seu discurso e todo mundo lá é nacionalista, também está com o petróleo! Eu também estou com vocês, ouviram?”. Quem ia ficar contra os vereadores? Isso era um argumento muito convincente e criou realmente uma estrutura de nós esmagarmos o Estatuto do Petróleo.

 

P – O problema petrolífero em si teve alguma influência, alguma determinação no resultado das eleições de 50?

E.R. – Creio que sim. Eu não diria que foi ele que elegeu o Getúlio, de jeito nenhum. O dr. Getúlio tinha por tradição uma luta nacionalista – Volta Redonda, Lei de Remessa de Lucros, denúncia do esmagamento dos interesses nacionais, posição corajosa quando a United States Steel, procurou impedir a construção de Volta Redonda, que ele foi para o navio capitânia do Brasil e deu aquela entrevista, que o Sumner Wells [subsecretário de Estado de Roosevelt] achou que ele ia virar a mão para o lado da direita fascista e disse: “Que quer o enigma do Sul?”. E Roosevelt, muito mais inteligente que Sumner Wells, no dia seguinte, considerou a construção de Volta Redonda prioridade dos Estados Unidos. E aí conciliaram-se os interesses, o Brasil tomou posição na guerra e as tropas saíram de Natal para vencer.

Quer dizer, Getúlio era um patriota. E essa imagem de Getúlio nacionalista-patriota casou-se com a Campanha do Petróleo. Se tivesse havido um conflito, não sei o que poderia acontecer. O campo das hipóteses, eu tenho muito medo de ficar nele. Mas posso garantir que, como havia um casamento, desse casamento proliferou a vontade nacional. Eu acho que a Campanha do Petróleo foi um coeficiente, porque Getúlio era favorável ao monopólio estatal do petróleo. E Eduardo Gomes, ao contrário; o estatuto da UDN era textualmente favorável à participação de grupos estrangeiros na exploração do petróleo.

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