10-8-16 Nevski3

Aleksandr Nevsky, por Eisenstein

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Concluído em 1939, o artigo “Patriotismo, Meu Tema” é um dos mais importantes trabalhos teóricos do grande cineasta soviético Serguey Mihailovich Eisenstein. Nele Eisenstein analisa em profundidade os fundamentos da concepção estética em que baseou sua obra “Aleksandr Nevsky”, em especial os caminhos percorridos na construção de seu personagem central, o príncipe que levantou o povo russo contra a invasão dos Cavaleiros Teutônicos no século 13.

A vibração, a verdadeira empolgação revelada por Eisenstein ao longo do artigo mostra o estado de graça em que se encontrava após ter vencido uma árdua batalha contra algumas de suas concepções anteriores, em relação às quais “Aleksandr Nevsky” soa como heresia. Primeiro porque Aleksandr era um “herói positivo”, que expressava o coletivo, é fato, mas na condição de líder não se reduzia a ele. Segundo porque era um príncipe e, mais que isso, um santo!

Eisenstein foi entusiasta da ideia de que no cinema as massas deveriam ocupar, elas próprias, diretamente, o espaço do “herói positivo”, criando assim o “herói coletivo”, revolucionário, em contraposição ao “herói individual”, burguês. Seus primeiros filmes, “A Greve” (1925), “Encouraçado Potemkin” (1925) e “Outubro” (1928), foram construídos dentro dessa concepção. Os filmes são clássicos. Com jeitão semidocumental, como épicos cujo personagem central é o próprio povo, as massas, eles transmitem energia e sinceridade comoventes. Mas a tese é ingênua e reducionista. Não supera a concepção burguesa segundo a qual há um inconciliável antagonismo entre o individual e o coletivo. A opção que faz pelo coletivo, portanto, é pobre. Ao filmar “O Velho e o Novo”, em 1929, Eisenstein sentiu a necessidade de ultrapassar os limites desse esquema, destacando e transportando para o centro da trama a camponesa Marfa Lapkina. As conclusões teóricas, porém, ficariam para mais tarde.

O advento do cinema falado, ao possibilitar e exigir um tratamento estético mais rico e profundo do tema, tornou mais visíveis as limitações da tese do “herói coletivo”. A ela escapa a complexa interação propugnada pelo marxismo entre o líder e massas, na qual o realismo socialista, a partir de 1934, fundamentará a importância do “herói positivo” na estética revolucionária e fixará referenciais para a sua construção – a propósito desta concepção, nunca é demais lembrar que ela está mais distante da criação de personagens desprovidos de contradições internas do que o diabo da cruz. Eisenstein entrou meio enviesado na discussão, mas ao aprumar-se produziu duas obras-primas baseadas nesse princípio: o filme e o artigo.

Quanto aos grilos, não propriamente estéticos, mas políticos, provenientes do “herói positivo” nem operário, nem camponês e muito menos bolchevique, mas um santo canonizado pelos “popes”, Eisenstein brinca com a resistência que ele próprio havia oposto ao projeto: “Está distante o século 13… E como figura central do filme: um santo! De início essa posição desorienta. E, na primeira vez que se toma conhecimento do assunto, arrisca-se a possibilidade de não se ter a perspicácia necessária para descobrir, por trás, a figura de um homem de Estado realista, muito próximo de seu povo e com os dois pés na terra”.

Esse entendimento do papel histórico de Aleksandr Nevsky é o elo para a compreensão do significado dos bolcheviques resgatarem, naquele momento, a saga do príncipe de Novgorod: “Se a alma popular pôde esmagar o inimigo quando a Rússia definhava sob o jugo tártaro, não há força que possa vencer este país, agora que ele se libertou das cadeias da opressão para tornar-se socialista”, escrevia Eisenstein, empenhado em mobilizar para a guerra que se avizinhava os mitos que povoavam a alma popular.

O artigo, particularmente se cotejado com o filme, é uma aula de como numa obra cinematográfica a construção estética ganha vida e se nutre das questões históricas, políticas e ideológicas inscritas no tema. Até a solução cenográfica para a filmagem da batalha na neve, durante o verão, é elaborada a partir da relação entre esses elementos.

“A profundidade ideológica do tema e do assunto permanece e ficará para sempre como base verdadeira da estética”, escreveu Eisenstein em outro de seus artigos. “Aleksandr Nevsky” é um exemplo da exatidão dessa assertiva. “Patriotismo, Meu Tema” desvenda os bastidores de sua construção, mostrando como as soluções estéticas realmente adequadas, eficazes, verdadeiras, surgem do aprofundamento cada vez maior do tema.

A íntegra do texto pode ser encontrada em cpcumesfilmes.org.br . A publicação abaixo é uma condensação que não altera o original, apenas suprime algumas passagens para compatibilizá-lo com o espaço disponível.

SÉRGIO RUBENS DE A. TORRES

 

10-8-16 Patriotismo meu Tema

 

“Patriotismo, Meu Tema”

SERGUEY EISENSTEIN

Esqueletos. Crânios. Campos incendiados. Habitações calcinadas. Homens e mulheres mandados para longe, escravizados. Cidades saqueadas. A dignidade humana espezinhada. Tal é o quadro que se apresenta a primeira metade do século 13, na Rússia. Contornando a costa sul do mar Cáspio, as hordas mongólicas e tártaras de Gêngis-Kã penetram no Cáucaso.

A Rússia de Kiev e outros elementos da futura grande nação russa gemeram durante longos anos sob o peso do jugo tártaro, com toda avidez do conquistador voltando-se para os restos dos principados vencidos e dominados. Assim foi a Rússia mártir do século 13. Sem uma imagem clara disso tudo, é impossível compreender o heroísmo sublime com o qual o povo russo, já avassalado pelos bárbaros nômades do Oriente, levantou-se sob o comando de um grande capitão, Aleksandr Nevsky, para esmagar os Cavaleiros Teutônicos que procuravam tomar um pedaço da Rússia.

De onde vinham, esses cavaleiros? Nos começos do século 13, vamos encontrar em Jerusalém, depois durante o cerco de São João do Acre, um hospital de Santa Maria de Teutões. Ele se vai tornar o berço de uma das mais espantosas calamidades da humanidade, de uma lepra que tomaria conta da Europa.

Santa Maria dos Teutões nada mais é, originalmente, que um serviço de saúde militar mantido pelos cruzados alemães. Com a aprovação papal, ele se transforma em Ordem de Cavalaria, a 6 de fevereiro de 1191.

De início, limita-se ao tráfico de sua força militar e de sua experiência na guerra. Mas logo começa uma longa e sistemática ofensiva contra o leste europeu. Rivalizando com os tártaros na ferocidade contra os vencidos, os teutônicos (no intervalo eles absorvem outras ordens monásticas não menos primitivas) representam um perigo bem maior. Os tártaros faziam somente incursões, onde pilhavam, destruíam, mas não ocupavam as terras conquistadas.

Com os teutônicos e os seus aliados, a maneira de agir era diferente. Com estes, o caso era uma colonização sistemática acompanhada de transformação dos nativos em escravos, da destruição da religião, do sistema social e de qualquer traço de característica nacional.

Vencendo seus adversários não somente em material, mas como organização, os caridosos irmãos não se mostravam pios na escolha dos meios. As crônicas do tempo não somente nos conservaram os nomes dos valorosos defensores da pátria, mas também o do príncipe traidor Vladimir de Pskov que num abrir e fechar de olhos vendeu sua cidade aos alemães, recebendo uma polpuda comissão.

Está distante o século 13… E como figura central do filme: um santo! De início, essa posição desorienta. E, na primeira vez que se toma conhecimento do assunto, arrisca-se a possibilidade de não ter a perspicácia necessária para descobrir, por trás, a figura de um homem de Estado realista, muito próximo de seu povo, e com os seus dois pés na terra.

As características que possuímos do personagem são do tipo impressionante: “Pela nobreza de traços e imponência corporal, sua beleza singular o coloca fora de competição, não somente entre os demais príncipes de seu país, mas ainda entre os demais soberanos estrangeiros, desta terra, tal como o sol entre todos os astros do firmamento… Ele ultrapassa, pela estatura, o comum dos homens. Sua voz é a trombeta que chama o povo, seu rosto é o de José, o Esplêndido, que o Faraó fez rei do Egito. De uma força igual à de Sansão, recebeu de Deus ainda a sabedoria de Salomão e uma galhardia semelhante à de Vespasiano, imperador de Roma, que manteve cativa toda a terra da Judeia… Sua voz é a trombeta que chama o povo…”

Não obstante, não pretendo estourar o microfone com voz semelhante!

Pelo espírito, o século 13 mergulha na mesma tonalidade afetiva que o nosso. E ao pé da letra, mesmo, os acontecimentos são de tal modo familiares a ponto de parecer modelos. Jamais esquecerei o dia em que, pondo de lado o jornal onde acabava de ler a destruição de Guernica pelos fascistas, abri um livro de história e meus olhos tombaram sobre o relato da destruição de Guersik pelos cruzados; dir-se-ia uma cópia, palavra por palavra.

Mas como andávamos no século 13? Como comíamos e nos conduzíamos? Dever-se-ia reproduzir o estilo das encantadoras esculturas da catedral de Santa Sofia, e mesmo das miniaturas mais recentes da crônica de Koenigsberg? Como usar roupas que impõem, queiram ou não, gestos de “ícone” inspirados na escola de Novgorod? Como criar o contato com seres ao mesmo tempo longe e perto de nós?

Aqui, também, repentinamente tudo se esclarece. Estamos a contemplar a perfeição da Igreja do Salvador. Pela pureza das linhas e a elegância das proporções, esse monumento do século 12 talvez não tenha igual. Os homens que em poucos meses edificaram aquela catedral não eram ícones, nem miniaturas, nem estátuas ou estampas, mas gente como vocês e eu. Não são mais as pedras, agora, que nos falam e contam as suas histórias, mas os homens que as juntaram, talharam e carregaram.

Pelo amor que devotaram à pátria e o ódio ao inimigo eles são parentes, parentes próximos do soviético de nossos dias. Arcaísmo, imitação, erudição bacharelesca cedem depressa lugar ao que vai permitir que o leitmotiv patriótico do filme possa desenvolver-se sem entraves.

Partindo daí, vamos poder resolver a parte mais embaraçosa de nosso herói: a sua “santidade” vai tornar-se compreensível. O mais recomendável, sem dúvida, seria deixar desaparecer esse título, mandar de volta a auréola aos padres. Solução simplista… Resolvemos decifrar a “santidade” e acho que chegamos a adquirir cultura. De que valeu essa qualidade para Aleksandr – não no sentido das normas da Igreja, mas no do efeito que repercute no povo? André Bogolubski a teve porque foi martirizado. Mas ninguém assassinou Aleksandr. E então?

Vamos esclarecer, antes de mais nada, o que significa, em realidade, esse título de santo. Nas condições da época, nada mais do que o mais alto julgamento de valor concedido a um homem, quando suas qualidades atingem o limite das normas mais altas conhecidas, quando ele é mais do que “ousado”, “valoroso” e “sábio”.

Vista sob esse ângulo, a atribuição do título de santo a Aleksandr reveste-se do sentido profundo de uma prova, a prova que o pensamento daquele homem abrangia uma vastidão maior do que a ação, que aquele indivíduo genial, aquele chefe de exército, em anos distantes, sonhava claramente com a Rússia unificada. O povo também experimentava esse pressentimento diante daquela grande figura da História.

De uma só vez, os traços dominantes da figura central estavam desenhados. Dois ou três fatos alusivos tirados de crônicas completavam o esboço. Um deles nos agradou sobremaneira: a vitória não transformou a cabeça do vencedor, e este dirigiu à multidão em júbilo uma instrutiva, severa e edificante reflexão. Humanamente, tal fato ainda o aproximava mais dos homens de carne e osso. A sedução e o talento de Cherkassov [ator que fez o papel de Aleksandr Nevsky] completaram o resto.

Um ardor contido pela lucidez constituía, em suma, a essência do personagem. A síntese disso seria sublinhada pelas figuras de dois de seus companheiros: um que nos vinha das crônicas da batalha do Neva; e outro descenderia de um dos heróis intemporais das canções de gesta de Novgorod.

A intrepidez de Buslai e a sabedoria de Gavrilo emolduravam o vencedor de Peipus, que reunia uma e outra característica.

O gelo do lago Peipus! Que extensão! Que amplitude! E que tentação: o inverno russo, o cristal dos pedaços de gelo, as tempestades de neve, os traços deixados pelos patins, as barbas e os bigodes revestidos de branco…

Mas a gestação do roteiro prolongava-se. Uma única solução: adiar as tomadas de cena do inverno – sessenta por cento do filme – para janeiro/março de 1939. Ou então adotar a proposição audaciosa de um recém-chegado à nossa equipe, o diretor Dimitri Vassiliev: fotografar o inverno em pleno verão. No momento em que meditávamos dolorosamente sobre aquela ideia, o leitmotiv veio em nossa ajuda: pedaços de neve autênticos, ou autêntica bravura do povo russo? Neve verdadeira, ou verdadeiro heroísmo russo?

O inverno artificial nos saiu muito bem. Dizendo melhor: não levantou discussão; nem suscitou qualquer comentário; passou despercebido.

O segredo do êxito está em que não procuramos disfarçar. Não fingimos, não nós preocupamos em fazer crer que pedaços de vidro ou de arranjo postiço pudessem resolver detalhes reais da história russa. Apanhamos apenas o essencial, suas relações de valores sonoros e luminosos, o branco do terreno e o negro do céu, por exemplo.

Enfim a questão prazo. Por mais ridículo que possa parecer em face de meus outros camaradas, com “Aleksandr Nevsky” eu fazia a minha estreia no filme sonoro. Como eu gostaria de aproveitar para experimentar em paz, sistematicamente, tudo o que tinha armazenado em matéria de ideias e desejos depois de anos em que sonhava com o filme sonoro! O canhoneio do lago Hassan dissipa esses sonhos idílicos. Mordendo os dedos de raiva porque o filme não terminava, impedindo que o atirássemos como uma granada ao rosto do agressor, a equipe redobra de ardor em silêncio e o prazo impossível, dia sete de novembro, começa a repercutir em nossa consciência como realidade. Confesso que, até o último dia, vivi com a ideia: “É impossível terminar o filme no dia sete de novembro, mas vamos terminar”.

Foi aí que o mestre feiticeiro Serguey Prokofiev acorreu em nosso auxílio. Quando este fabuloso musicista encontrou tempo para refletir sobre o espírito da obra, para compreender num simples esboço de montagem toda a lógica interna de uma cena, para repeti-la em termos de música, para traduzi-la numa orquestração prodigiosa e, durante as horas passadas no estúdio de gravação com Volski, o engenheiro de som, e Bogdankevitch, o operador, para harmonizar o método de gravação através de diversos microfones de uma maneira que até então não tinha sido feita entre nós?

Por essas qualidades ele igualava-se a toda a nossa imensa equipe cuja energia e entusiasmo poderiam evidenciar-se num tempo tão reduzido para aquela tarefa formidável.

Nosso tema era o patriotismo!

De que maneira estávamos à altura da tarefa?

Cabe ao espectador soviético responder.

A filmagem de “Alexandre Nevsky” foi concluída no dia 4 de novembro de 1938. A equipe recebeu a Bandeira Vermelha por completar o filme antes do prazo previsto para sua conclusão.

 

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