APEOESP: Reter ou aprovar?
Relatório divulgado pela Unesco, mostrou que, no Brasil, 18,7% dos alunos são reprovados no Ensino Fundamental
No Brasil, a educação básica está sempre sendo discutida, passando por análises e ajustes. Ora alguns componentes curriculares e disciplinas são inclusos, ora sistemas de ensino são recomendados. Metas, estratégias, formas de financiamento. A lista de itens em debate é grande. Nesse contexto, professores, alunos e escolas passam por um constante acompanhamento, a fim de garantir a qualidade da educação. Com os métodos de avaliação não é diferente. De um lado, nos últimos anos, a progressão continuada – que rompe o formato de desenvolvimento em séries – foi adotada em todo o País e, desde então, tem sido vista como vilã pelos educadores. De outro, os altos índices de reprovação revelam a deficiência não apenas dos alunos, mas também das escolas.
As grandes reclamações dos docentes em relação ao sistema de ciclos – que leva em consideração o desenvolvimento biológico e a formação continuada – são a aprovação forçada para o ano seguinte e a falta de autonomia dos professores para avaliar. “Muitas vezes, o estudante não tem condições de passar, mas não tenho como impedir isso, porque o sistema não permite. É por isso que tantas crianças chegam ao 3º ano do [ensino] fundamental sem saber ler e escrever direito e todo o aprendizado fica deficiente”, frisa a professora Amélia Rodrigues, de Fortaleza (CE). Geralmente, esse sistema divide os nove anos do ensino fundamental em dois ou três ciclos, e os estudantes só podem ser reprovados no fim de cada ciclo e não no meio dele. “Parece-me que a maior preocupação é que o País tenha um bom desempenho nas estatísticas; ela não está relacionada ao bom rendimento dos estudantes”, destaca a professora.
A repetência escolar, de fato, tem sido motivo de dor de cabeça para gestores escolares. Isso porque o índice é muito alto se comparado à média mundial. O 9º Relatório de Monitoramento de Educação para Todos (2010), divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), mostrou que, no Brasil, 18,7% dos alunos são reprovados no ensino fundamental, enquanto a média dos 128 países pesquisados é de apenas 2,9%. Como uma das consequências, a evasão nessa fase também é alta: 13,8% dos brasileiros abandonam os estudos já no primeiro ano do ensino fundamental, enquanto o índice médio no mundo é de 2,2%.
Os dados preliminares do Censo Escolar 2013, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), apresentam uma queda na evasão, mas o cenário ainda está longe do ideal. Atualmente, aproximadamente 12,40% dos alunos deixam o ensino fundamental entre os anos iniciais e finais, segundo cálculos preliminares.
Para a pedagoga Vânia Matos, de Brasília (DF), os ciclos representam uma forma moderna e eficiente de encarar o desenvolvimento dos estudantes. O problema está em como eles estão sendo aplicados. “Houve um rompimento repentino do sistema seriado para o sistema de ciclos. Mudou o sistema, mas o pensamento, a forma de avaliar, as condições de trabalho e a infraestrutura das escolas não acompanharam o formato proposto”, salienta. “Não podemos nos preocupar com os resultados das pesquisas, mas sim com as causas do baixo rendimento do nosso alunado”.
Para a professora da Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Psicologia, Norma Lucia de Queiroz, é necessário que os professores acompanhem o rendimento do estudante e o ajudem a superar as deficiências ao longo do ano, evitando, dessa forma, a repetência. “A reprovação não é benéfica. Ela é ruim para qualquer pessoa, em qualquer situação. Por outro lado, não admitimos a aprovação automática, porque isso traz prejuízo para o próprio aluno. Uma hora ele vai precisar dessa aprendizagem. Aprovar com base na possibilidade de recuperação no ano seguinte não tem garantia. O ideal é que não reprove, mas que desde o primeiro dia do ano letivo haja um cuidado com o desenvolvimento dos alunos”.
A proposta é garantir o desenvolvimento do estudante e o alcance dos requisitos básicos em cada ano. “É preciso vencer etapas. Por exemplo, o professor sabe que há algumas questões que precisam ser desenvolvidas no primeiro ano do [ensino] fundamental. Não dá para pular isso”, explica. Nesse contexto, as avaliações tornam-se fonte para orientar a ação dos educadores e das famílias. “[A avaliação] serve para dar referência sobre o trabalho do professor, do que pode ser melhorado, do que a escola precisa oferecer ao aluno. Ao mesmo tempo, ajuda os pais a tomar providências, como colocar a criança em um reforço”.
A repetência ainda pode representar prejuízos pessoais ao aluno, como o fato de ele ser privado do convívio com seus colegas e chegar rotulado como fracassado ou “burro” em sua nova turma.
Mudança em São Paulo
Em São Paulo, a aprovação automática não trouxe a melhoria dos resultados. Tanto que a Secretaria Municipal de Educação apresentou, entre as mudanças a ser aplicadas a partir do ano letivo de 2014, a ampliação das possibilidades de retenção no ensino fundamental. Apesar de ser divulgada como o fim da aprovação automática, a reformulação não põe um ponto final na prática, mas chama a atenção para a construção de um processo contínuo de conhecimentos e habilidades, com base em avaliações diagnósticas que apontem as insuficiências e necessidades de apoio adicional.
No programa Mais Educação São Paulo, os nove anos do ensino fundamental serão divididos em três ciclos – alfabetização, interdisciplinar e autoral. No fim de cada um deles (3º, 6º e 9º anos), os alunos poderão ser reprovados se não atingirem os objetivos previstos para cada fase. Nos 7º e 8º anos, também haverá a possibilidade de retenção. “Evidentemente que essa ampliação não é para que haja reprovação dos alunos. Mas, na realidade, são pontos de atenção que correspondem a objetivos educacionais claros e que devem mobilizar alunos, professores, escolas e famílias para que não haja fracasso relacionado a esses pontos de atenção. São cinco balizadores para que a aprendizagem aconteça e para que os alunos não levem consigo déficits educacionais que poderiam estar sendo acumulados no seu percurso educacional”, ressalta o secretário municipal de Educação de São Paulo, César Callegari.
Segundo ele, nos dois primeiros ciclos, as diferenças nas condições e nos ritmos de desenvolvimento são grandes. Já no último período, essas diferenças se atenuam e os estudantes já podem lidar com uma rotina parecida com a do ensino médio. “É totalmente justificável que assim aconteça e, evidentemente, até por termos objetivos e metas anuais, nós temos também que colocar em funcionamento, ou à disposição desses alunos, vários recursos de apoio pedagógico complementar, para que não haja acúmulo de dificuldades ou de déficits educacionais”, evidencia.
A fim de atender melhor aos alunos, a gestão municipal está destacando a avaliação voltada para a aprendizagem e não apenas para somar pontos ao longo do ano, com o intuito de atingir uma média. “As avaliações são subsídios para que o esforço educacional dos alunos e da escola se dê no tempo certo. Portanto, é uma avaliação de natureza formativa, processual, contínua e capaz de criar subsídios para a elaboração de várias estratégias educacionais, que levem em consideração os ritmos e as características de cada um dos alunos em cada uma das turmas”.
Isso significa que as provas aplicadas ao longo do ano terão uma importância maior, visto que permitirão a análise sobre quais são as dificuldades de cada aluno e turma. A ideia é que as avaliações sirvam de base também para ponderar sobre a prática ensino-aprendizagem, as metodologias adotadas e os recursos utilizados, oferecendo mais elementos para que a prática pedagógica seja ajustada ao longo do ano, para atender de forma eficaz cada turma e promover o desenvolvimento esperado. A orientação é para que as avaliações sejam bimestrais.
Nessa nova forma de trabalho, os docentes irão fazer um diagnóstico individual dos estudantes. “Teremos a produção de boletins com notas de zero a dez, seguidas de comentários para que os alunos e suas famílias possam acompanhar com maior clareza o desenvolvimento desses meninos durante o ano letivo ou ciclo”, informa o secretário.
Para alcançar o objetivo da implantação do sistema, a Secretaria de Educação irá reforçar a capacitação dos professores, com a instalação, inclusive, de 31 polos da Universidade Aberta do Brasil, que são centros de formação continuada. O resgate da autoridade do professor também está entre as metas. “Nós acreditamos em nossos professores. Essa condição é de qualquer profissional na educação básica. Ele está formado para isso [avaliar e acompanhar o rendimento]. A imensa maioria dos professores sabe como fazer isso. Sabe como acompanhar, como organizar os objetivos curriculares”, enfatiza. “Essas propostas não são matérias estranhas para cada um. Fazem parte da sua formação, compõem a sua experiência e, portanto, nós temos muita confiança que se trata apenas de melhor ordenar o sistema”, completa Callegari.
Para os professores, a mudança trará benefícios. “Nunca concordei com essa aprovação automática. É algo que nunca teve sentido: aprovar um aluno quando ele não tem condições nenhuma de acompanhar os demais estudantes. Isso foi um retrocesso”, considera Armando Grato. “Nós queremos é ver isso na prática, é ter condições de trabalho para dar atenção aos alunos, é não ter nenhum supervisor nos pedindo, no final do ano, para ‘dar um jeitinho’ de passar tal aluno. A proposta é ótima. A prática é que, nem sempre, corresponde”, diz a professora Maria da Silva*.
Motivação
Para o secretário de Educação César Callegari, além de melhorar a forma de avaliação, a restrição da aprovação automática terá influência sobre a motivação dos estudantes. “A motivação não é por nota, não é pelo medo de repetir o ano, de ser reprovado. A motivação é pelo aprendizado. Não há aprendizado sem esforço, não há construção de coisa alguma sem trabalho. Precisa ter trabalho, esforço, criação, tudo isso representa algo que tem que ter intencionalidades claras para a comunidade educacional, alunos e professores. Esses objetivos têm que ficar claros. As metas precisam ser compartilhadas por todos”, salienta.
Segundo ele, a aprovação automática tem causado uma “desorientação, como se fosse possível aprender sem estudar, construir sem esforço”. “Por isso, os resultados educacionais têm sido tão fracos, porque as pessoas pensam que podem ir passando sem nenhum compromisso com o ensino e com a aprendizagem”, afirma. As metas a ser alcançadas em cada ano precisam ser compartilhadas para que a comunidade escolar se organize e se responsabilize. “Acredito que vamos diminuir o fracasso educacional aqui em São Paulo. Esse tem sido um fracasso real, mas escamoteado, oculto. As dificuldades se revelam e elas são enfrentadas. Esse enfrentamento significa aprendizagem, maior comprometimento dos alunos, maior cooperação entre eles e os professores”, considera o secretário.
Didática
De acordo com a professora Maria do Rosário Mortatti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o alto índice de repetência precisa ser avaliado não apenas do ponto de vista pedagógico, mas também do social. “A motivação tem importância relativa. É fator externo às atividades humanas de ensinar e aprender. A motivação de não ser reprovado pode ser útil para o aluno, para a escola e para os sistemas de ensino, quando se almejam resultados demandados por políticas públicas e suas metas de melhora de desempenho do País em rankings internacionais. Mais importante e mais difícil, porém, é buscar compreender por que estudar não tem feito sentido para os estudantes, assim como para a maioria dos cidadãos brasileiros”, sustenta.
Para a educadora, a simples repetição, sem a análise das insuficiências de conhecimento e das práticas educacionais, também não apresentará resultados satisfatórios. “Simplesmente ‘repetir’ o ano, ou seja, cursar novamente o mesmo ano escolar, ser submetido à repetição dos mesmos conteúdos e atividades do ano anterior não é garantia de que o aluno tenha sucesso. Desconsiderar os motivos do não aprendizado e aprovar automaticamente também não é garantia de aprendizado. Em ambos os casos, apesar de se tratar de atitudes bem intencionadas, não se respeita o direito do aluno a aprender e o dever do professor de ensinar”.
Cotidiano
Na teoria, a pedagogia da repetência é uma segunda chance, uma nova oportunidade para o aluno aprender e atingir os objetivos não alcançados no ano anterior. No dia a dia, a questão é um pouco diferente. “À primeira vista, faz sentido, porque se alguém chegou ao final do ano, em um certo patamar, e não atingiu determinados objetivos, fazer de novo o ano para atingir esses objetivos faz mesmo sentido, mas há limitações de várias ordens nisso”, aponta o professor da Universidade de São Paulo (USP), Ocimar Munhoz Alavarse, especialista em Avaliação de Sistemas Educacionais.
O primeiro problema apontado por ele está na responsabilização. “Quando o aluno não obteve um bom desempenho, a resposta mais tradicional é que o aluno não se esforçou, não estudou. É como se o único responsável por aquela situação fosse o próprio aluno. Mas os resultados ao final do ano, para efeito de avaliação, precisam ser vistos também como resultado da escola. E isso raramente acontece. Geralmente, a culpa é do aluno ou então da família, que é desestruturada”, comenta.
As avaliações periódicas precisam apontar novos caminhos para o ensino, a fim de garantir o desenvolvimento efetivo dos estudantes, por meio de acompanhamento constante e da adoção de novas estratégias para atrair a atenção e proporcionar a aprendizagem. “Toda avaliação deve permitir lições, orientações. Deve permitir que a escola possa, no futuro, repensar o que foi feito”, observa Munhoz. Isso significa que a identificação das deficiências no tempo certo – ao longo do ano – ajuda a evitar que o problema se propague, que tenha continuidade.
Nesse contexto, a repetência é apenas uma alternativa. Nada impede que o estudante vá para a série seguinte e seja acompanhado de forma mais adequada. Mas, para isso, é preciso realizar uma avaliação diagnóstica e os resultados precisam produzir mudanças. “Esse tipo de avaliação não serve apenas para o ano corrente, mas também para o ano seguinte, porque aponta para onde deve ser dada mais atenção, para quais materiais poderão ser utilizados. Essa é uma alternativa para a repetência. Agora, da maneira como as escolas funcionam, parece que é um delírio. No fim do ano, na dúvida, o aluno é que acaba sendo punido”, criticou.
Muitas escolas privadas têm usado o sistema de dependência, que permite a aprovação para a série seguinte simultaneamente à repetição das disciplinas em que o desempenho foi baixo. Na prática, por exemplo, um estudante que atingiu a média na maioria das disciplinas passa para a série seguinte, mas no contraturno deverá, obrigatoriamente, repetir as matérias em que não atingiu a média, com o limite de duas ou três disciplinas pendentes. Para o professor da USP, essa é uma boa opção, mas de operacionalização difícil na rede pública de ensino, devido ao número de vagas e ao grande volume de estudantes.
Apesar de favorável ao fim da aprovação automática, ele vê com ressalvas essa proposta. Na opinião dele, fazer um diagnóstico para cada aluno esbarra em condições materiais não favoráveis. “O padrão brasileiro é o do professor que chega à escola, dá aula e vai embora. Isso significa, de fato, que não temos condições materiais para o atendimento aos alunos”, avalia. Também há condições subjetivas. “Os professores acreditam na reprovação, eles acreditam na repetência. E usam isso, inclusive, como uma arma para punir maus alunos. A partir do momento que a secretaria [de Educação] libera para a reprovação, está liberando essa ânsia dos professores em reprovar”, acredita.
O medo da reprovação, portanto, não é tão eficaz para motivar a maior parte dos estudantes. “Ameaça é uma crença que não tem sustentação. Quando nós temos boas propostas, as crianças participam. E esse é o desafio. O [des]interesse na escola não é um problema só da criança. Vamos pensar no que podemos fazer para que essas crianças possam se interessar pela escola. A ameaça tem efeito muito menor que os seus defensores imaginam”, alerta Munhoz.
Por: Revista Profissão Mestre – novembro/2013 – Publicado no Portal da APEOESP
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