Getúlio e mestre Bimba
No dia 26 de novembro de 2014, uma das manifestações culturais mais ricas do nosso país, a Roda de Capoeira foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Essa foi uma importante conquista não só para os capoeiristas que, em sua grande maioria, dedicam suas vidas para manter viva essa riqueza, resgatando a história dos mestres antigos e de suas tradições, mas principalmente uma conquista do povo brasileiro.
A luta pelo reconhecimento da Capoeira não é uma luta recente. Podemos dizer que nasceu junto com a luta pela libertação dos escravos, dificilmente podendo ser separadas na história. Após séculos de humilhação, sendo submetidos às situações subumanas, tudo para enriquecer aqueles que aqui vieram para nos sugar, saqueando as nossas riquezas, os negros lutaram, resistiram e se libertaram.
Os negros foram trazidos da África e aqui criaram e construíram uma Nação. Mantiveram as suas crenças, as suas religiões, seus rituais, possibilitando a criação de um povo miscigenado, rico em sua cultura e forte. É dessa mistura, e dessa vontade de ser livre e independente que nasce a Capoeira. Estudiosos afirmam inclusive que a Capoeira foi muito utilizada como arma entre os negros do quilombo de Zumbi dos Palmares, onde os negros se utilizavam dos golpes, como rasteiras, chutes e acrobacias para o enfrentamento contra os escravocratas e seus capachos.
Mesmo após a abolição da escravidão, a Capoeira, por sua força, continuou a ser perseguida, inclusive passou a ser considerada crime no Código Penal, através do Decreto 847, de 11 de outubro de 1890. Dizia o texto:
"Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena — de prisão celular por dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro."
Foi apenas com Getúlio Vargas, a partir de 1937, que a Capoeira passa a ser reconhecida como esporte nacional. Neste ano, a academia de mestre Bimba, o criador da Capoeira Regional, obtém o alvará nº 111 de funcionamento. Em 1940, com o novo Código Penal, o uso da palavra "Capoeira" foi liberado e em 1941 o decreto 3.199, assinado pelo presidente Getúlio Vargas, estabelece as bases da organização dos desportos no Brasil, permitindo a criação do Departamento Nacional de Luta Brasileira, que foi o embrião da Confederação Brasileira de Capoeira. Este foi o primeiro reconhecimento desportivo oficial da modalidade.
Em 1953, Mestre Bimba e seus alunos realizaram uma apresentação na Bahia, a convite do então governador Juracy Magalhães, na presença do Presidente da República, Getúlio Vargas, que declarou: "A Capoeira é o único esporte verdadeiramente nacional".
A partir daí ela ganhou força nas academias, e cresceu. Mas não somente como esporte, como arte marcial. Desde cedo Bimba percebeu, principalmente através das músicas, que Capoeira era mais, era cultura desenvolvida nas lutas do povo brasileiro pela sua libertação e construção da identidade nacional. Forjou-se nos embates dos escravos na época de Zumbi dos Palmares, do exército brasileiro na Guerra do Paraguai. Nas lides pela liberdade de religião, pela afirmação do carnaval como festa popular, quando os capoeiras formavam a linha de frente dos blocos de samba e de frevo, durante os anos da proibição.
Porém, até hoje, não existiu nenhuma verdadeira política pública voltada para seu fortalecimento. Se ela se manteve até hoje foi graças à resistência dos mestres, que se desdobram e se sacrificam, sem o apoio do Estado, sem o suporte necessário, tendo que recorrer a um ou outro projeto localizado, insuficiente para fortalecer de fato a capoeira.
Já está mais do que na hora da Capoeira sair dos quilombos e estar onde ela mais precisa, onde ela mais pode contribuir para a nossa verdadeira libertação. Precisamos da Capoeira nas escolas públicas, onde os jovens estão.
A Capoeira foi sim reconhecida pela UNESCO, mas a realidade é que os jovens têm pouco acesso a essa nossa cultura nacional. Hoje vemos, principalmente entre os jovens, uma forte campanha para fortalecer o que há de pior da cultura enlatada, como funk ostentação e seus derivados, que nada tem a ver com o Brasil, com a nossa história e com a nossa luta. São produtos que tem o objetivo de gerar lucro para as grandes produtoras, alienar e marginalizar os jovens, mostrando, da maneira mais podre possível que o legal é andar de Ferrari ou voar de helicóptero com um Rolex no braço.
Os grandes monopólios culturais não têm o mínimo interesse em fortalecer a cultura nacional. A capoeira não ganha força e não está na escola pública porque não há nenhum enfrentamento a isso por parte do Estado, que permite que esses monopólios façam uma política de destruição de nossa identidade quando deixam de valorizar o que é nosso.
O negro construiu este país, criou a Capoeira, mas não tem acesso a ela, porque ela não está na escola pública e é jogada para escanteio, sem uma política para fortalecer esta que representa a luta de Zumbi, ou seja pela libertação e pela nossa identidade cultural. Temos que lutar para garantir que todos possam ter acesso a ela.
Texto escrito pelo professor-instrutor de capoeira da UMES, Fabiano Avelino (Pavio)