Considerações sobre a “crise na USP”: o mito dos 105% da folha
“As reitorias se distanciam do seu papel de fazer uma gestão pública transparente, não visualizando a janela de oportunidade que se abre para se discutir a importância do orçamento público das universidades”
O recente debate sobre a “crise” das universidades públicas paulistas suscitou a discussão acerca, dentre outros temas sensíveis, do modelo de financiamento destas e sobre o atual estado de desequilíbrio financeiro no qual aparentemente se encontram.
Para saber, entretanto, se “a crise foi plantada” apenas para servir de instrumentação política e de gestão dos atuais reitores e se é apenas mote para a grande mídia vender mais jornal – ou ainda se esse cenário “crítico” interessa particularmente algum outro ator ou grupo social interessado em questionar o modelo de autonomia e até o caráter público das universidades -, é extremamente necessária a leitura das ainda escassas informações e análises sobre a saúde financeira dessas importantes instituições sociais brasileiras, a fim de poder se discutir publicamente as possíveis soluções futuras para os problemas colocados.
O INDICADOR
No centro da discussão técnica surge um indicador que visa medir o nível de comprometimento dos orçamentos dessas universidades com o pagamento de seus contratados (docentes e servidores técnicos). O aparente pré-diagnóstico dos atuais gestores (reitores) sugere que o nível em que se encontra esse “índice de comprometimento” está no cerne da explicação para o presente estado de desequilíbrio, e que a solução passa ‘simplesmente’ em alterar essa relação (independentemente das medidas necessárias pra isso).
Vale lembrar, rapidamente, que os indicadores são ferramentas científicas de pesquisa que buscam oferecer informações sobre determinado fenômeno visando tanto a sua própria compreensão quanto à possibilidade de se traçar estratégias de ação (considerando que os agentes são capazes de influenciar e alterar situações futuras).
Tendo em vista que os recursos públicos são escassos e que a responsabilidade fiscal deve ser alcançada (sob a pena da lei), é razoável considerar que informações dessa natureza são extremamente importantes aos gestores públicos. Cabe ressaltar, entretanto, que os indicadores são simplificações da realidade e, como qualquer parâmetro de abstração, possuem suas limitações metodológicas; ao se reduzir toda a complexidade do mundo real a um único número, perde-se razoável quantidade de informação, ocultam-se aí nuances e sutilezas.
O índice ao qual se tem recorrido constantemente é uma relação proporcional (ou seja, uma fração) que possui dois componentes importantes: o numerador e o denominador. O primeiro, nesse caso, corresponde ao montante mensal destinado ao pagamento dos vencimentos de todos os servidores das universidades (chamado de “folha de pagamento bruta”). Já o denominador, por sua vez, consiste na estimativa do montante mensal ao qual as universidades paulistas têm direito (1); tal montante é uma parcela fixa (9,57%) de tudo que é arrecadado pelo estado através do ICMS e é dividido entre as três universidades (chamam isso de “liberações financeiras do Estado”).
PRIMEIRO PROBLEMA, USO ISOLADO
Em primeiro lugar, por mais importante (e até interessante) que seja esse número, utilizá-lo como principal (e por vezes único) parâmetro métrico parece ser insuficiente. Uma serie de outros indicadores, demonstrativos e outras informações certamente complementariam o desenho do cenário financeiro e permitiram uma análise mais precisa da saúde financeira das universidades.
Igualá-lo, portanto, à “situação financeira” das universidades parece demasiadamente simplista. Fazendo isso, as reitorias se distanciam do seu papel de fazer uma gestão pública transparente; mais do que isso, não visualizando a janela de oportunidade que se abre para se discutir a importância do orçamento público das universidades dentro da esfera pública e acadêmica, se isentam arbitrariamente da responsabilidade de serem agentes do processo de ensino, aprendizagem e propagação do conhecimento.
SEGUNDO PROBLEMA, METODOLOGIA DE CÁLCULO
Como visto, o índice é formado por dois componentes, numerador e denominador. Assim como se iguala a saúde financeira das universidades a esse índice, iguala-se a receita e a despesa aos seus principais componentes. No caso do numerador, trata-se como despesa apenas a folha de pagamento bruta. Ainda que se entenda que seja o maior componente da despesa, as universidades aplicam seus recursos em muitas outras “dotações” (chamadas de “outros custeios e capital”), como, por exemplo, os contratos administrativos, as obras e manutenção de equipamentos, área construída, áreas verdes e bibliotecas, a compra de materiais de consumo básicos ou ainda a concessão de bolsas e auxílios.
Já no caso do denominador, tratam-se como receita apenas as liberações financeiras do estado. De forma análoga, mesmo que seja o maior componente da receita, as universidades sabidamente possuem outras fontes de receita, como, por exemplo, os repasses e convênios nacionais e internacionais, as taxas administrativas de contratos e atividades externas, as taxas de cursos de extensão, além das receitas financeiras das aplicações das reservas. Ou seja, para que se soubesse de fato como anda a saúde financeira das universidades, o “indicador mais importante” deveria ser aquele que considerasse todas as “receitas” e todas as “despesas” das universidades.
TERCEIRO PROBLEMA, DISTORÇÕES NÃO CONSIDERADAS
Além do indicador negligenciar quantidade importante de informação, existe uma serie de distorções que não são consideradas:
I – O valor “bruto” da folha de pagamento pode não ser exatamente igual ao montante efetivamente gasto com folha. Por se tratarem de órgãos públicos, as três universidades gozam de “imunidade tributaria” (2). Logo, é possível que haja um percentual da folha bruta, correspondente à retenção de alguns encargos federais (especialmente o IR), que, mesmo considerado na elaboração da folha, talvez não seja de fato recolhido ao governo federal. Ainda que seja no ato do pagamento da folha, é possível que as universidades sejam restituídas posteriormente, e esse montante, na prática, seja contabilizado como receita, a qual, por sua vez, também não é considerada nesse indicador já que, como mencionado anteriormente, somente se considera as liberações financeiras do estado. O quanto desse montante retorna aos cofres públicos não pode ser visualizado nas informações disponíveis nos portais de transparência das universidades.
II – No montante gasto com folha, há a presença de considerável parcela paga à aposentados (no caso da USP, por exemplo, em 2014 é de cerca de 17% (3). Tendo em vista que no caso dos tributos sociais (nos quais não se aplica a imunidade) as universidades recolhem os tributos dos servidores dos seus dois regimes de trabalho (INSS, no caso dos celetistas e o IPESP, no caso dos autárquicos), essa presença não deveria existir, já que os aposentados deveriam receber pelos institutos de seguridade mencionados. Entretanto, como há uma “insuficiência financeira”(4) dos institutos que gerenciam o pagamento dos aposentados, as universidades (e não o governo estadual) ainda pagam parte do que é gasto por elas com os aposentados.
III – Por fim, a própria base de cálculo utilizada pelo governo estadual para estabelecer o que se arrecada com ICMS (a qual impacta nas liberações financeiras do estado) possui problemas – conforme documento (5) enviado pelo Fórum das Seis à Assembleia Legislativa do Estado em maio desse ano -, que vão desde o desconto indevido para os programas estaduais de habitação, passando pela não inclusão do montante arrecadado com o Programa da Nota Fiscal Paulista (NFP), até a não inclusão dos recursos obtidos com multas e juros de mora dos tributos recolhidos com atraso. Claro que na prática, esses recursos não tem se tornado receitas às universidades, mas a aparente negligência dos atuais reitores com essas distorções é incompreensível, sobretudo considerando o crescimento das atividades das universidades (e consequentemente das suas despesas) nos últimos 20 anos (6).
CONCLUSÕES
De fato, a relação “folha bruta / liberações financeiras” se elevou nos últimos anos e isso parece, ao menos a priori, ser preocupante. Entretanto, não parece ser o suficiente pra dizer que existe uma “crise” nas universidades. Diante do atual cenário, de se traçar uma análise mais bem fundamentada e da urgente necessidade de se buscar alternativas pra enfrentar a atual situação, é imprescindível que os órgãos centrais das universidades promovam a divulgação pública de um conjunto maior e mais qualificado de informações, em ressonância ao que já esta acontecendo em diversas outras esferas do poder público nacional. Falsear a criação de portais de transparência – que apenas centralizam as mesmas informações disponibilizadas anteriormente – não parece dar passos em direção a gestão pública transparente e participativa. As comunidades universitárias exigem a abertura ao diálogo. Manter-se alheio a essas demandas pode ser fatal, já que, parece ser questão de tempo para que a Lei de Acesso a Informação comece a ter aplicabilidade e eficácia nos campi paulistas.
*Rodrigo Gonçalves Winther e servidor técnico na Assistência Financeira da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), e aluno do Bacharelado em Relações Internacionais do IRI-USP. Publicado no Jornal Hora do Povo.