A peça, Os Azeredo mais os Benevides, de autoria de Oduvaldo Vianna Filho, prevista para estrear em 1964, permanceu inédita até hoje e será encenada pela primeira vez pelo Centro Popular de Cultura da UMES
Com um elenco de 20 atores, trabalhando 10 horas por dia, desde meados de fevereiro, o consagrado diretor João da Neves está montando no palco do Cine-Teatro Denoy de Oliveira a peça “Os Azeredo Mais Os Benevides”, de Oduvaldo Vianna Filho.
A peça iria inaugurar o teatro da UNE, no ano da graça de 1964. A trilha musical estava sendo composta por Edu Lobo, que já havia feito “Chegança”, especialmente para o espetáculo. O paulista Nelson Xavier, que desde 1962 participava em Recife das atividades do Movimento de Cultura Popular (MCP), já estava no Rio para assumir a direção da peça. O teatro estava tinindo. A expectativa era de uma grande estreia.
O golpe que depôs o presidente João Goulart, ocorrido há 50 anos, impediu que isso acontecesse. O prédio da UNE, e consequentemente o teatro, foi incendiado na madrugada do dia 1º. de abril. Depois veio a censura. “Os Azeredo…” ainda chegou a obter premiação, em 1966, pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), órgão do então Ministério da Educação e Cultura, e publicação em 1968. Mas montá-la, nem pensar.
A peça foi para o limbo e após o fim da censura, inexplicavelmente, permaneceu inédita. Há quem considere o texto excessivamente radical. Não vamos dizer que não seja radical, pois seu foco é a luta de classes, mas também é brilhante e transpira verdade por todos os poros. Outros avaliam que a montagem é complexa e a história datada, mas se isso fosse certo que razão haveria para encenar Shakespeare nos dias de hoje?
Por uma razão ou por outra, o fato é que fora do circuito das escolas de teatro – das boas, diga-se de passagem -, “Os Azeredo Mais Os Benevides” permanece inédita, 50 anos depois.
Para encarar o desafio de trazê-la à luz, nada mais apropriado do que contar com o trabalho do diretor João das Neves, que no auge dos 80 anos de uma vida talentosa, produtiva e coerente se lembra bem do dia em que teve que deixar o prédio da UNE que ardia em chamas. E montá-la no palco que leva o nome do multiartista Denoy de Oliveira, outro ex-integrante do CPC da UNE que estava lá naquela ocasião. A trilha musical iniciada por Edu Lobo foi completada pelo maestro Marcus Vinicius, pernambucano atraído para a vida artística pelos ventos emanados da experiência do MCP.
O time está formado e a estreia prevista para final do mês de abril. A produção é do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC-UMES). Vianinha, do céu, agradece. Nós, o público, também.
Os Azeredo mais os Benevides
JOÃO DAS NEVES
Havíamos saído da sede da UNE que estava em chamas, pulando o muro do quintal. Do alto de um edifício, ao lado, os moradores nos apontavam aos invasores. Conseguimos, não sei como, pegar um táxi na Rua do Catete. Tivemos de ir até a Glória e retornar pela praia do Flamengo, pois o Largo do Machado estava interditado por caminhões de lixo. A passagem pela frente do prédio em chamas permanece indelével em minhas retinas: eu, Vianinha e Carlos Vereza nos abraçamos chorando. Reedição cabocla do incêndio do Reichstag, ali ardia a utopia de transformar o Brasil num país menos injusto. Ardiam sonhos, esperanças, ardia também o nosso teatro que deveria ser inaugurado com “Os Azeredo Mais Os Benevides”.
Relendo hoje o texto para esta apresentação me vem à lembrança as palavras de Vianinha naquele instante: “apesar de tudo, eu não acredito num retrocesso do processo democrático”. O que me faz pensar na curiosa dicotomia que, às vezes, se estabelece entre o artista e sua obra. No caso, Vianinha, o militante político não conseguia perceber o que o artista já dizia com admirável clareza em Os Azeredo Mais Os Benevides”: que era irrealizável a aliança entre opressores e oprimidos; que aqueles sempre acabariam colocando em primeiro plano os seus interesses, e só eles, não importando as razões e (ou) emoções destes.
“Uma funda amizade
aqui começou.
Um doutor de verdade
e um camponês meu amor.”
Assim canta Lindaura, sublinhando o início da amizade entre seu homem, o camponês Alvimar e Esperidião, um jovem e empreendedor senhor de terras. Uma amizade que vai sendo desmontada ao longo do texto, por mais que os dois homens se obstinem em preservá-la. O olhar frontal, reflexo não apenas da nascente confiança mútua e da confiança em si mesmo, mas também do engajamento no projeto comum de redenção da terra vai sendo substituído, passo a passo, pela submissão e humilhação finais de Alvimar.
A terra redimida aumentou a fortuna dos senhores e a miséria dos camponeses. E o canto de Lindaura, com ligeira variação – “Uma funda amizade / aqui continuou…” – só faz ressaltar o absurdo desta amizade e o aviltamento que agora representa o ser amigo do inimigo de sua classe. A contradição sem solução possível que não a destruição do mais fraco.
Outro fato a ressaltar é o grande salto qualitativo que a dramaturgia de Vianinha realiza em tão curto espaço de tempo. Vale a pena ler “Os Azeredo…” logo após “Quatro Quadras de Terra”, pois as duas têm muitos pontos em comum.
Vianinha era um perfeccionista obsessivo e a impressão que se tem é que, não satisfeito com o texto anterior, voltou a se debruçar sobre a temática, a conviver com seus personagens e a aprofundá-los, resultando deste mergulho “Os Azeredo Mais Os Benevides”. Um dos textos fundamentais no conjunto de uma obra que necessita uma correta reavaliação crítica para que dela possamos tirar, para além das afirmações categóricas e sectárias, as lições que seus caminhos e descaminhos podem nos proporcionar; caminhos e descaminhos que são o fruto de uma obstinada procura da verdade. Verdade que, como a impossível aliança de Alvimar e Esperidião é, no fundo:
“A luta do homem no mundo
A luta do homem no mundo”
O diretor João das Neves
O carioca João das Neves reúne em seu currículo prêmios Molière (vários), Bienal Internacional de São Paulo, APCA, Golfinho de Ouro, Quadrienal de Praga. Escreveu livros sobre teoria e história do teatro, entre os quais “Análise do Texto Teatral”, “1950-1980: Trinta anos de Teatro Brasileiro” (inédito); obras de ficção infantil, como “História do Boizinho Estrela”, e cerca de duas dezenas de peças teatrais.
Dirigiu o teatro de rua do CPC da UNE até a sua extinção em 1º de abril de 1964. Alguns meses depois participa da fundação do Grupo Opinião, em parceria com Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa, Denoy de Oliveira e Ferreira Gullar, que também integravam o CPC. O grupo estreia com o espetáculo “Opinião”, reunindo no palco Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. Seguem-se os sucessos de “Liberdade, Liberdade” (1965), “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come” (1966), “Jornada de um Imbecil até o Entendimento” (1968). “O Último Carro”, peça escrita e dirigida por João das Neves em 1976, ficou mais de 2 anos em cartaz.
Em 1979, João faz na Alemanha o curso de Ciências Teatrais e trabalha no Westdeutscher Rundfunk (Setor de Peças Radiofônicas da WDR). Em 1986 transfere-se para o Acre e funda o Grupo Poronga, conhecido pela montagem de “Tributo a Chico Mendes”, de sua autoria. Em 1988 volta ao Rio de Janeiro onde encena, no centenário da Abolição, “A Missa dos Quilombos”, de Milton Nascimento, Pedro Tierra e D. Pedro Casaldáliga. O espetáculo ocupou o centro histórico da cidade, atraindo mais de 40 mil espectadores. Voltando ao Acre, encena “Caderno de Acontecimentos”.
Em 1991 e 1992 dirige a convite da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte uma oficina de interpretação no Parque Ecológico Lagoa do Nado, da qual resulta o projeto “Primeiras Estórias” – adaptação de 11 contos de Guimarães Rosa. Em 1997, dirige o concerto cênico “A História do Soldado”, de Stravinski. No ano seguinte, escreve e dirige o espetáculo “Uma Noite com Brecht”.
No final de 2001, adapta e encena o clássico mexicano “Pedro Páramo” de Juan Rulfo. Em 2002, dirige “Território Interno”, solo de dança com a bailarina Diane Ichimaru. Em 2006, realiza a montagem de “Besouro Cordão de Ouro”, peça do poeta e compositor Paulo César Pinheiro. O espetáculo percorre diversas cidades e retorna ao Rio de Janeiro, em 2012, para nova temporada. Em 2013, dirige “Zumbi”, remontando com 10 atores negros o clássico de Boal e Guarnieri, musicado por Edu Lobo, “Arena Conta Zumbi” (1965).
Oduvaldo Vianna Filho (1936-74)
Vianinha viveu apenas 38 anos, mas de intensa atividade.
Foi um dos fundadores do Teatro de Arena (1955), com José Renato e Gianfrancesco Guarnieri. Junto com eles participou da revolução estética produzida pela montagem da peça “Eles Não Usam Black Tie” (1958), escrita por Guarnieri, com direção de José Renato e músicas de Adoniran Barbosa.
No Rio de Janeiro, criou o Centro Popular de Cultura da UNE (1960-1964) e foi se destacando como um autor de peças sintonizadas com a realidade brasileira, que tiveram importante significado no desenvolvimento da estética nacional-popular.
Em 1964, foi criador do Grupo Opinião, com Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves, Denoy de Oliveira, Ferreira Gullar, Pichin Plá e Thereza Aragão.
Também trabalhou como ator de teatro, cinema e como autor de televisão – onde fez sucesso com a série “A Grande Família”, na Rede Globo (1973).
Entre suas peças encontram-se “Bilbao, Via Copacabana” (1957), “Chapetuba Futebol Clube” (1959), “A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar” (1960), “Auto dos 99%” (1962), “Quatro Quadras de Terra” (1963), “Os Azeredo Mais Os Benevides” (1964), “Opinião” (1964), “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come” (1965), “Moço em Estado de Sítio” (1965), “Mão na Luva” (1966), “Meia Volta Vou Ver” (1967), “Papa Highirte” (1968), “A Longa Noite de Cristal” (1971), “Corpo a Corpo” (1971), “Em Família” (1972), “Allegro Desbum” (1973) e “Rasga Coração” (1974).”
Marcus Vinicius
Violonista, maestro e compositor, Marcus Vinicius ganhou, em 1967, o primeiro, segundo e quarto lugar da Feira de Música do Nordeste, realizada em Recife, sendo ainda escolhido o “Melhor Autor-Compositor” pelo conjunto da obra apresentada. Foi para o Rio de Janeiro em 1968 e formou, com Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos, um grupo de pernambucanos que se apresentavam em diversos locais. Em 1970, completou o curso superior de música no Instituto Villa-Lobos, onde passou a lecionar. No mesmo período, participou com Sérgio Ricardo e Sidney Muller do show “Opção”.
Em 1974, lançou seu primeiro disco, o LP “Dedalus”, seguido de “Trem dos Condenados” (1976) e “Nordestino” (1979). Foi diretor artístico da gravadora Marcus Pereira, que empreendeu uma importante série de gravações com intuito de preservar a memória musical popular de diversas regiões do Brasil. É autor das peças “Domingo Zeppelin” e “Boca do Inferno”, premiadas em 1975 e 1978 pelo Serviço Nacional do Teatro (SNT).
Compôs trilhas para cinema, como as de “O Evangelho Segundo Teotônio” (Vladimir Carvalho, 1984), “A Hora da Estrela” (Susana Amaral, 1985), “Uma Questão de Terra” (Manfredo Caldas, 1993), “São Paulo, Cidade Aberta” (Caio Plessmann, 2010), e teatro – “Sonho de Uma Noite de Verão” (1984), “O Burguês Ridículo” (1996), “Turandot” (1999). Em 1997 lançou o CD duplo “Música do Cinema Brasileiro”, com suas composições para diversos filmes.
Nos anos 90 passou a dirigir a gravadora CPC-UMES, voltada para a difusão da música brasileira de qualidade, cujo espaço nas majors é cada vez mais reduzido.
Fonte: Hora do Povo