Leilão de Libra lembrou cenas vistas apenas nos piores dias da Ditadura Militar e usurpou 60% da maior riqueza do país, nosso “passaporte para o futuro”, o que nos faz recordar a saga de Tiradentes e seu algoz Silvério dos Reis por um Brasil para os brasileiros, tão bem retratada por Cecília Meireles:
ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA
CECÍLIA MEIRELES
(Trechos)
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.
Recebeu trinta dinheiros..
– e tu muitas coisas pedes:
pensão para toda a vida,
perdão para quanto deves,
comenda para o pescoço,
honras, glórias, privilégios.
E andas tão bem na cobrança
que quase tudo recebes!
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério!
Pois ele encontra remorso,
coisa que não te acomete.
Ele topa uma figueira,
tu calmamente envelheces,
orgulhoso e impenitente,
com teus sombrios mistérios.
(Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
Há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.)
***
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
recordaríeis os grandes sonhos
que fizestes por esses campos,
Longos e claros como reinos;
contaríeis vossas conversas
nos lentos caminhos floreados,
por onde os cavalos, felizes
com o ar límpido e a lúcida água,
sacudiam as crinas livres
e dilatavam a narina,
sorvendo a úmida madrugada!
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
revelaríeis a ânsia acordada
à vista dos córregos de ouro,
entre furnas e galerias,
sob o grito de aves esplêndidas,
com a terra palpitante de índios,
e a vasta algazarra dos negros
a chilrear entre o sol e as pedras;
na fina aresta do cascalho.
Também pela vossa narina
houve alento de liberdade!
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
confessaríeis essas palavras
murmuradas pelas varandas,
quando a bruma embaciava os montes
e o gado, de bruços, fitava
a tarde envolta em surdos ecos.
Essas palavras de esperança
que a mesa e as cadeiras ouviram,
repetidas na ceia rústica,
misturadas à móvel chama
das candeias que suspendíeis,
desejando uma luz mais vasta.
Se vós não fôsseis os pusilânimes,
hoje em voz alta repetiríeis
rezas que fizestes de joelhos,
– súplicas diante de oratórios,
e promessas diante de altares,
suspiros com asas de incenso
que subiam por entre os anjos
entrelaçados nas colunas.
Aos olhos dos santos pasmados,
para sempre jazem abertos
vossos corações, – negros livros.
Mas ai! fechastes vossas janelas,
e os escaninhos de móveis e almas…
Mas homens novos, multiplicados
de hereditárias, mudas revoltas,
bradam a todas as potências
contra os vossos míseros ossos,
para que fiqueis sempre estéreis,
afundados no mar de chumbo
da pavorosa inexistência.
E vós mesmos o quereríeis,
ó inevitáveis criminosos,
para que, odiados ou malditos,
pudésseis ter esquecimento…
Chega, porém, do profundo tempo,
uma infinita voz de desgosto,
e com o asco da decadência,
entre o que seríeis e fostes,
murmura imensa: “Os pusilânimes!
“Os pusilânimes!” repete
o breve passante do mundo,
quando conhece a vossa história!
Em céus eternos palpita o luto
por tudo quanto desperdiçastes…
“Os pusilânimes!” – suspira
Deus. E vós, no fundo da morte,
sabeis que sois – os pusilânimes.
E fogo nenhum vos extingue,
para sempre vos recordardes!
Ó vós, que não sabeis do Inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só – PUSILANIMIDADE.
***
O mais destemido e forte,
um dia, também pergunta,
contemplando a humana sorte,
se aqueles por quem morremos
merecerão nossa morte.
Ambição gera injustiça.
Injustiça, covardia.
Dos heróis martirizados
nunca se esquece a agonia.
***
Dorme, meu menino, dorme,
que o mundo vai se acabar.
Vieram cavalos de fogo:
são do Conde de Assumar.
Pelo Arraial de Ouro Podre,
começa o incêndio a lavrar.
O Conde jurou no Carmo
não fazer mal a ninguém.
(Vede agora pelo morro
que palavra o Conde tem!
Casas, muros, gente aflita
no fogo rolando vêm!)
D. Pedro, de uma varanda,
viu desfazer-se o arraial.
Grande vilania, Conde,
cometes, para teu mal.
Mas o que aguenta as coroas
é sempre a espada brutal.
Riqueza grande da terra,
quantos por ti morrerão!
(Vede as sombras dos soldados
entre pólvora e alcatrão!
Valha-nos Santa Ifigênia!
– E isto é ser povo cristão!)
Dorme, meu menino, dorme…
Dorme e não queiras sonhar.
Morreu Filipe dos Santos
e, por castigo exemplar,
depois de morto na forca,
mandaram-no esquartejar!
Cavalos a que o prenderam,
estremeciam de dó,
por arrastarem seu corpo
ensanguentado, no pó.
Dentro do tempo há mais tempo,
e, na roca da ambição,
vai-se preparando a teia
dos castigos que virão
Embaixo e em cima da terra,
O ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo:
quem é bom, mandam matar.
Dorme meu menino, dorme..
Fogo vai, fumaça vem…
Um vento de cinzas negras
levou tudo para além..
Dizem que o Conde se ria!
mas quem ri, chora também.
Quando um dia fores grande
e passares por ali,
dirás: “Morro da Queimada,
como foste, nunca vi:
mas, só de te ver agora,
ponho-me a chorar por ti:
por tuas casas caídas,
pelos teus negros quintais,
pelos corações queimados
em labaredas fatais,
– por essa cobiça de ouro
que ardeu nas minas gerais.”
Foi numa noite medonha,
numa noite sem perdão.
Dissera o Conde: “Estais livres.”
E deu ordem de prisão.
Isso, Dom Pedro de Almeida,
é o que faz qualquer vilão.
Dorme, meu menino, dorme…
Que fumo subiu pelo ar!
As ruas se misturaram,
tudo perdeu seu lugar.
Quem vos deu poder tamanho,
Senhor Conde de Assumar?
“Jurisdição para tanto
não tinha, Senhor, bem sei… “
(Vede os pequenos tiranos
que mandam mais do que o Rei!
Onde a fonte do ouro corre,
apodrece a flor da Lei!)
Dorme, meu menino, dorme,
– que Deus te ensine a lição
dos que sofrem neste mundo
violência e perseguição.
Morreu Filipe dos Santos:
outros, porém, nascerão.
***
Já se ouve cantar o negro.
Que saudade, pela serra!
Os corpos, naquelas águas,
– as almas, por longe terra.
Em cada vida de escravo,
que surda, perdida guerra!
Já se ouve cantar o negro.
Por onde se encontrarão
essas estrelas sem jaça
que livram da escravidão,
pedras que, melhor que os homens,
trazem luz no coração?
(A terra toda mexida,
a água toda revirada…
Deus do céu, como é possível
penar tanto e não ter nada!)
***
Como as palavras se torcem,
conforme o interesse e o tempo!
(Como se fazem de honrados
os Condes, de bolsos cheios!)
***
Sobre o tempo vem mais tempo,
Mandam sempre os que são grandes:
e é grandeza de ministros
roubar hoje como dantes.
Vão-se as minas nos navios…
Pela terra despojada,
ficam lágrimas e sangue.
***
Correm avisos nos ares.
Há mistério, em cada encontro.
O Visconde, em seu palácio,
a fazer ouvidos moucos.
Quem sabe o que andam planeando,
pelas Minas, os mazombos?
A palavra Liberdade
vive na boca de todos:
quem não a proclama aos gritos,
murmura-a em tímido sopro.
***
(Antiguidades de Nimes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da Independência!
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)
***
Pelo Monte Claro,
pela selva agreste
que março, de roxo,
místico enfloresce,
cavalga, cavalga
o animoso Alferes.
A bússola mira.
Toma para leste.
Dez dias de marcha
até que atravesse
campinas e montes
que com os olhos mede:
tão verdes… tão longos…
(E ninguém percebe
como é necessário
que terra tão fértil,
tão bela e tão rica
por si se governe!)
Águas de ouro puro
seu cavalo bebe.
Entre sede e espuma,
os diamantes fervem…
(A terra tão rica
e – ó almas inertes! –
o povo tão pobre…
Ninguém que proteste!
Se fossem como ele,
a alto sonho entregue!)
Suspiram as aves.
A tarde escurece.
(Voltará fidalgo,
livre de reveses,
com tantos cruzados…)
Discute. Reflete.
Brinda aos novos tempos!
Que importa que o sigam
e que esteja inerme,
vigiado e vencido
por vulto solerte?
Que importa, se o prendem?
A teia que tece
talvez em cem anos
não se desenrede
Toledo? Gonzaga?
Alceus e Glaucestes?
– Nenhum companheiro
seu lábio revele.
Que a língua se cale.
Que os olhos se fechem.
(Lá vai para a frente
o que se oferece
para o sacrifício,
na causa que serve.
Lá vai para sempre
o animoso Alferes!)
Adeus aos caminhos!
– montes, águas, sebes,
ouro, nuvens, ranchos,
cavalos, casebres… –
Olham-no de longe
os homens humildes.
E nos ares ergue
a mão sem retorno
que um dia os liberte.
Adeus aos caminhos!
– montes, águas, sebes,
ouro, nuvens, ranchos,
cavalos, casebres… –
Olham-no de longe
os homens humildes.
E nos ares ergue
a mão sem retorno
que um dia os liberte.
(Pois que importa a vida?
aqui se despede
do sol da montanha,
do aroma silvestre:
– venham já soldados
que a prender se apressem;
venham já meirinhos
que os bens lhe seqüestrem;
venham, venham, venham..
– que sua alma excede
escrivães, carrascos,
juízes, chanceleres,
frades, brigadeiros,
maldições e preces!.
Venham, venham, matem:
ganhará quem perde.
Venham, que é o destino
do animoso Alferes.)
(No grande espelho do tempo,
cada vida se retrata:
os heróis, em seus degredos
ou mortos em plena praça;
– os delatores, cobrando
o preço das suas cartas…)
***
(Ai de quem na sua casa
se deixa estar, sem supor
o que em Sexta-feira Santa
escreve a mão de um traidor!)
O papel aceita
o que os homens traçam…
E a mão inimiga
como aranha estende
com fios de tinta
as teias da intriga.
(Ai de quem na sua casa
se deixa estar, sem supor
que, no Rio de Janeiro,
saltou da sela, o traidor.)
Texto extraído da Hora do Povo – Edição 3.197