Cinemateca Brasileira, localizada na Vila Mariana, em São Paulo
Por Eduardo Morettin, professor de História do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP
Publicado no Jornal da USP em 14 de agosto
Cinemateca Brasileira, criada por iniciativa de Paulo Emílio Salles Gomes em 1946, é a instituição responsável pela preservação, documentação e difusão de nossa memória audiovisual. Ela armazena e restaura o que restou dos filmes brasileiros, bem como a coleção de telenovelas e reportagens da TV Tupi, além de milhares de documentos, como roteiros, cartazes, fotografias de cena, reportagens, correspondências, livros, câmeras, etc. No Brasil e no exterior, inúmeras pesquisas e centenas de filmes realizados com material de arquivo somente chegaram a bom termo em razão da existência de seu rico e bem organizado acervo, composto de 30 mil títulos em 250 mil rolos de películas armazenados em seus vinte laboratórios climatizados e com controle de umidade. A cinefilia e o interesse pela cultura cinematográfica são fomentados a partir de mostras, cursos e sessões organizados com apurado critério nas duas salas de projeção providas com o que há de melhor e mais avançado para o setor. O corpo de técnicos capacitados viabiliza a realização das diferentes frentes de trabalho, permitindo que a Cinemateca seja uma instituição viva, aberta à riqueza, diversidade e pluralidade que caracterizam a produção cinematográfica e cultural de nosso país.
Diante do quadro atual, a insistência em empregar o tempo presente para descrever sumariamente o que a Cinemateca Brasileira (CB) representa para a sociedade indica a convicção de que, apesar da gravidade da situação, a instituição sobreviverá. Não será por moto contínuo ou por vontade dos mandatários de plantão, mas pela reação da sociedade civil e da Justiça ao festival de desacertos que a atingiu em cheio. A crise sofrida pela Cinemateca Brasileira neste ano é exemplar, infelizmente, do modus operandi do atual governo em relação à cultura, pautado pela destruição, esgotamento e asfixia de todas as instituições que se encontram sob a sua alçada.
A entrega das chaves pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que administrava a Cinemateca Brasileira desde 2018, ao representante da Secretaria do Audiovisual na última sexta-feira, dia 7 de agosto, ilustra a disposição geral para com o setor. Fato grave foi a presença, amplamente noticiada pelos diferentes meios de comunicação, de viaturas da Polícia Federal e de seus agentes armados com metralhadoras a fim de “garantir” que a “reintegração de posse” fosse concluída. Pela primeira vez em sua história, a ameaça de uso da violência pairou no espaço que é patrimônio de nossa memória audiovisual.
Neste imbróglio, é bom que se diga que a Acerp não teve seu contrato de gestão interrompido por suposto vínculo ao “marxismo cultural”. O único acerto de sua gestão foi o de manter, mesmo que em número reduzido, as trabalhadoras e os trabalhadores que mantiveram, com esforço e dedicação, as diversas e complexas atividades e tarefas. Dentre os desacertos, a substituição do logo criado em 1954 por Alexandre Wallner, ato simbólico de ruptura com o passado que foi acompanhado por outro mais concreto e nocivo: a não convocação do Conselho Consultivo, órgão responsável pela observância dos princípios que devem reger a CB e, como indicado em sua denominação, instância a ser consultada no momento da escolha de um novo diretor. Em setembro de 2018, Carlos Augusto Calil, incansável defensor da Cinemateca e do cinema brasileiro, e Lygia Fagundes Telles, por meio de notificação extrajudicial ao então ministro da Cultura, já denunciavam o desrespeito às salvaguardas que garantem a autonomia técnica, administrativa e financeira da instituição. Estas salvaguardas, estabelecidas por instrumento jurídico quando da incorporação em 1984 da Fundação Cinemateca Brasileira pelo Estado, por meio da Fundação Nacional Pró-Memória, foram criadas justamente para impedir o desvirtuamento de suas funções precípuas, zelando pelo seu bom funcionamento e interditando, por exemplo, a saída do acervo da cidade de São Paulo.
Lembro de um comentário de Tiago Batista, diretor do centro de conservação da Cinemateca Portuguesa, a propósito de vídeo postado em agosto de 2019 nas redes sociais: Coisas muito assustadoras que se estão a passar na Cinemateca Brasileira... O curta de cinco minutos era aberto com o gesto de continência de um deputado estadual, responsável pelo post, o então superintendente da Acerp e dois assessores, sendo um deles um coronel do Exército, cuja fala foi dedicada à apresentação de projeto de mostra de filmes militares, proposta que não se efetivou, pois, como sabemos, o forte deste governo não é realizar e construir. A Acerp, portanto, já havia sido aparelhada com militares e políticos de orientação conservadora que circulavam pela instituição, aparelhamento que vemos em muitas instituições culturais em âmbito federal, administradas por pessoas absolutamente despreparadas para o exercício da função pública.
O alinhamento “ideológico” não impediu, porém, que o contrato de gestão mantido pela Acerp desde 2015 com o Ministério da Educação fosse renovado pelo governo federal ao final de 2019. A TV Escola, também gerida pela organização social, foi a primeira a ter a sua continuidade interrompida pelo senhor que ocupava o Ministério à época. O entendimento do governo foi de que o contrato da Acerp para a administração da Cinemateca, efetivado por meio de um aditivo ao contrato principal assinado então com o MEC e o Ministério da Cidadania (a confusão administrativa causada pela extinção do Ministério da Cultura e a passagem de sua estrutura por dois ministérios, o da Cidadania e o do Turismo, em que se encontra a Secretaria Especial da Cultura e a Secretaria do Audiovisual, também contribuiu para tornar todo e qualquer processo administrativo mais moroso e ineficaz), perdia a sua validade também e, com isso, os repasses de recursos deveriam ser interrompidos, o que ocorreu já no início de 2020.
Os motivos da cizânia nas hostes governistas são obscuros, como tudo o que povoa as mentes dos que hoje ocupam o Palácio da Alvorada e a sede dos edifícios ministeriais, mas as disputas entre os grupos que estão no poder fizeram as suas vítimas: a Cinemateca Brasileira, suas trabalhadoras e seus trabalhadores.
Os compromissos financeiros junto aos fornecedores e funcionários pararam de ser cumpridos há quatro meses. Em meio à pandemia, mais de sessenta funcionários e suas famílias passaram a sobreviver do auxílio obtido junto aos inúmeros movimentos de suporte e apoio que surgiram neste período. De imediato, a sociedade se mobilizou e manifestações foram organizadas em defesa da Cinemateca pela Associação Paulista de Cineastas (Apaci), que na pessoa de Roberto Gervitz encontra a caixa de ressonância de todas as demandas e questionamentos do setor, e pelos movimentos #SOSCinemateca, #SOSTrabalhadoresDaCinemateca, #CinematecaAcesa e Cinemateca Viva, que reúne as associações de moradores da Vila Mariana. Cineastas e atores de diferentes gerações, como Cacá Diegues, Mariana Ximenez, Arnaldo Jabor, Walter Salles, Tata Amaral, Kleber Mendonça e Jefferson De, dentre muitos outros, denunciam a situação de descaso com o acervo que eles, parte dos cerca de dois mil depositantes que deixaram seus rolos de filme ou HDs sob a guarda da Cinemateca, construíram.
No final de julho, a deputada Jandira Feghali conduziu sessão da Câmara Federal intitulada “A crise da Cinemateca Brasileira – soluções urgentes”, momento de construção de alianças e de formulação de propostas efetivas e concretas para que seja encontrada alguma solução de curto ou médio prazo. Não há dia em que a Cinemateca Brasileira não seja motivo de notícia, de um post ou de um podcast. Mesmo que o assunto seja a crise, não deixa de ser alentador que as questões da preservação sejam disseminadas por Débora Butruce, vice-presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e doutoranda na USP, em lives do Canal Brasil, e de Teresa Cristina dedicadas ao cinema brasileiro.
Tivemos o manifesto “A Cinemateca Brasileira pede socorro”, que hoje conta com mais de 19 mil assinaturas, entre intelectuais, artistas, cineastas, associações nacionais e internacionais. Na cidade de São Paulo, em movimento liderado pelo vereador Gilberto Natalini, R$ 680 mil reais em emendas parlamentares de vereadores de diferentes partidos políticos, em frente suprapartidária, foram obtidos a fim de que a Cinemateca fosse salva, esforço conjunto que atesta a importância da instituição para o município e a preocupação com os seus destinos.
O Ministério Público Federal também se posicionou contra esta situação e moveu bem fundamentada ação civil contra a Secretaria Especial da Cultura por omissão, tendo em vista que a situação da Cinemateca era e é de abandono. Solicitava também a assinatura de contrato emergencial com a Acerp e a instituição do Conselho Consultivo. Infelizmente, a ação foi indeferida pela juíza federal que arbitrou o processo e questionada pela Advocacia Geral da União, em agravo de final de julho, entendendo que as demandas eram desprovidas de sentido. O amplo movimento de ideias ainda não contribuiu para que as duas instâncias compreendessem de fato a real dimensão do problema. Entendem que a assinatura dos contratos emergenciais de limpeza, fornecimento de água e energia elétrica, vigilância etc., serviços certamente fundamentais, sem os quais nenhuma instituição pode abrir as suas portas, sinalizam que a preservação do acervo está garantida. Confundem, na verdade, manutenção predial com a dos filmes e documentos. Desconhece-se tanto o que está implicado nas tarefas do dia a dia dos arquivos fílmicos quanto da necessidade de técnicos especializados, com conhecimento e experiência, para lidar com as especificidades dos materiais espalhados pelos seus laboratórios climatizados. Dou um único exemplo, ilustrativo dos desastres que estão em nosso horizonte. Em 2016, três anos depois da intervenção do Ministério da Cultura na Cinemateca, ponto de origem da atual crise, ocorreu no arquivo de nitrato, material de alta combustão, incêndio que destruiu para sempre 1.003 rolos de filme. O depósito em que estas películas estão armazenadas segue todas as orientações para a guarda de componentes deste tipo. Apesar de todas as precauções com a disposição física deste acervo, é preciso que um técnico, periodicamente e por amostragem, meça a temperatura de alguns rolos a fim de se antecipar eventual processo de combustão em curso. Sem este técnico, o acervo fica ao léu e sob os desígnios da natureza.
Com as chaves da instituição, a Secretaria Especial da Cultura e o Ministério do Turismo esperam publicar nos próximos dias o edital de chamamento a fim de que nova associação administre a Cinemateca. A perspectiva, a acreditar em tudo que está sendo prometido, é de que em três ou quatro meses tudo esteja resolvido! Ora, se este é o “timing“, e se havia o entendimento no final de 2019 que o contrato com a Acerp seria encerrado, por que o processo de transição não foi iniciado antes? De pronto, somente posso crer que prepondera o descaso, a ineficácia e o despreparo para com a cultura brasileira e suas instituições. A instituição não pode esperar tanto tempo.
No momento em que escrevo este artigo, a Acerp demitiu os funcionários que mantinham de forma voluntária a instituição funcionando. Neste momento desolador, sem os seus trabalhadores e trabalhadoras, de portas fechadas, nossa memória audiovisual se encontra sequestrada e trancafiada. Ela precisa ser devolvida à sociedade, e o Estado deve assumir de forma plena, respeitando as salvaguardas estabelecidas em 1984, o trabalho de preservação, documentação e difusão de nossa cultura cinematográfica.
Leandro Pardí, ex-coordenador de Difusão da Cinemateca, escreveu um texto belo e comovente sobre o seu trabalho à frente do setor e a sua percepção a respeito de tudo o que acabei de sintetizar acima. Ao final, Pardí encerra seu relato recuperando a figura solar de Paulo Emílio. Eu aqui termino esta história, que terá novos desdobramentos, com uma citação entremeada dos dois: permanecer, na luta, é o que importa!
Viva a Cinemateca!
(Eu não escreveria este texto sem o apoio de Almir Almas, Carlos Augusto Calil e Maria Dora Mourão. Sem os documentos fornecidos por Calil e Dora estas reflexões não seriam possíveis.)