REVISTA DE CINEMA – Mostra exibe longas do cinema soviético e russo
“Stalker”, de Andrei Tarkovsky
Por Maria do Rosário Caetano
A Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo realiza sua sexta edição em casa nova. Ou melhor, em casas novas. Deixa a Cinemateca Brasileira, onde o CPC-UMES (Centro Popular de Cultura da União Municipal de Estudantes Secundaristas) realizou suas cinco primeiras edições, e estabelece-se, a partir desta quarta-feira, 4 de dezembro, no Espaço Itaú Augusta e no Cine Olido, do Circuito Spcine. Até dia 11 de dezembro, serão exibidos doze longas-metragens, em 29 sessões.
O filme inaugural, “A Balada do Soldado”, de Grigori Chukhray, realizado em 1959, é um rod-movie em tempos de guerra (a Segunda Guerra Mundial, ou A Grande Guerra Patriótica, como os russos a denominam), protagonizado por dois adolescentes.
Aliosha, um soldado de 19 anos, destrói dois tanques alemães. Ao invés de uma medalha, ele solicita licença para visitar a mãe e para consertar o telhado da casa da família, num aldeia. Ganha seis dias. Ao longo de sua jornada, feita em trens militares e nos mais improváveis meios de transporte, ele compartilhará com uma linda e arisca jovem (e com povo soviético, claro!) os sacrifícios da vida na retaguarda bélica.
Sintético (apenas 88 minutos), o filme, que recebeu prêmios em festivais internacionais (Cannes, São Francisco, Londres e Milão) se deixa ver com grande prazer e interesse, pois os atores são muito carismáticos e a fotografia (em preto e branco), de grande beleza. Excessiva, só a música.
A sexta edição da Mostra Mosfilm traz, claro, filmes de guerra, gênero em que os soviéticos desenvolveram excelente expertise (vide o magistral “Vá e Veja”, de Elem Klimov), obras de imenso empenho artístico (caso de “Stalker”, de Andrei Tarkovsky), balés filmados (o imperdível “Spartacus”, dançado pelo Bolshoi), comédias (“A Prisioneira do Cáucaso”, visto por 76 milhões de espectadores), dramas de nomes impensáveis em nosso tempo (“O Comunista”), e um filme menos badalado de Mikhail “Soy Cuba” Kalatozov ( “Amigos Verdadeiros”).
“Stalker” (1979) é uma ficção científica comandada por um dos maiores nomes do cinema soviético, Andrei Tarkowsky (1932-1986). Ao longo de 162 minutos, com imagens que imprimem a predominância de verdes, cinzas e cobres, o grande realizador moscovita nos conduz a um futuro indefinido e misterioso. E a um espaço idem. Um guia (o stalker do título) leva dois homens, identificados apenas como Escritor e Professor, a uma área proibida, a “Zona”. Dentro dela, há uma usina nuclear desativada e um aposento capaz de realizar os desejos de quem nele adentrar. No elenco, estão Aleksandr Kaidanovsky, Anatoly Solonitsyn, Nikolai Grinko e Alisa Freyndlikh. O filme conquistou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, em 1980.
“O Comunista”, de Yuli Raizman, realizado em 1957, foi produzido para marcar o quadragésimo aniversário da Revolução Bolchevique. O diretor optou por narrar “a curta, mas brilhante, vida” de Vassily Gubanov, “seu trabalho honesto e consciencioso” na construção de uma grande central elétrica em Zagora, durante a Guerra civil que se seguiu à revolução de Outubro. Sem perceber, “Vassily Gubanov realiza os feitos que o tornarão, postumamente, um herói”.
O filme, que ganhou Menção Honrosa no Festival de Veneza, seria um típico produto do Realismo Socialista? Primeiro, há que se lembrar que Josef Stálin (1878-1953) morrera e que o país experimentava novos ares. No livro “Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos” (Bazar do Tempo, 2019), o pesquisador e diplomata João Lanari Bo comenta: “Neste filme (‘O Comunista’), a história da implantação do comunismo em um microcosmo longínquo torna-se um relato privado (o filho relembrando a história do pai), carregado de tonalidades emocionais que revelam a internalização do mito revolucionário”. O herói “que mal conhece a cartilha comunista – a despeito do título do filme, ele age por uma ética própria, autodidata – termina sendo assassinado pelos representantes da velha Rússia: não há delegados do Partido que assegurem sua salvação, o que há é destruição da central elétrica e a falência momentânea do projeto revolucionário”.
Há que se prestar atenção em “Eles Lutaram pela Pátria”, outra atração da Mostra Mosfilm, por razão extra-obra: o currículo de seu realizador, o cineasta (e ator) Serguei Bondarchuk (1920-1994). O filme é um épico de guerra, gênero preferido do astro soviético. Além dele, que fazia questão de atuar também nos filmes que dirigia, foram escalados Vassily Shukshin, Vyacheslav Tikhonov e Yury Nikulin.
Ano que vem, a Rússia vai festejar o centenário de nascimento de Bondarchuk, um dos nomes mais poderosos de sua história cinematográfica. Com sua bela estampa, ele tornou-se célebre nas 15 repúblicas soviéticas. Depois, tornar-se-ia nome de alcance planetário ao ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro com seu monumental “Guerra e Paz” (em quatro partes, 1966/67). Seu prestígio chegou ao ponto de ser ele o escolhido por Dino de Laurentis para comandar o épico “Waterloo”, com Rod Steiger na pele de Napoleão Bonaparte, Christopher Plummer como o General Wellington e Orson Welles como Luís XVIII (em aparição fugaz). Para se ter ideia do poder de Sergei Bondarchuk, basta evocar fala de Andrei Tarkovsky no filme “Uma Oração de Cinema”, dirigido por seu filho Andrey A. Tarkovsky e exibido na Mostra Internacional de Cinema de SP, em outubro último. O diretor de “Solaris” assegura que seu filme “Nostalgia”, realizado na Itália, só “não ganhou o Festival de Cannes, em 1982, porque Bondarchuk, um dos jurados, o teria boicotado sob o argumento de que aquele filme não representava a URSS”. Difícil apurar a história, agora que os dois estão mortos.
O selo CPC-UMES já lançou dois filmes de Bondarchuk em DVD – “O Destino de um Homem” (1959), sua estreia na direção e, para muitos, seu melhor trabalho, e o monumental “Boris Godunov”, recriação épica do poema de Alexander Pushkin. O próprio Bondarchuk interpreta o czar Boris Godunov, um dos malfadados herdeiros do trono de Ivan, o Terrível. Ambientado em tempo medieval-religioso, a narrativa nos atira no centro de um império, o russo, em convulsão e a ponto de esfacelar-se (entre 1598 e 1605). Os cenários são arrebatadores, os figurinos espantosos, as cenas de multidão impressionantes e a fotografia de aliciante beleza.
“Eles Lutaram pela Pátria”, que concorreu à Palma de Ouro em 1975, reconstitui os três dias de retirada de um regimento do Exército Vermelho, em direção à cidade de Stalingrado. E o faz a partir da ótica de três soldados de origens diferentes (um engenheiro agrônomo, um mecânico e um mineiro). Este épico bélico baseia-se em romance de Mikhail Sholokhov (1905-1984), Prêmio Nobel de Literatura, em 1965.
Confira abaixo dados gerais e sinopses dos sete filmes que completam a programação da sexta Mostra Mosfilm:
. “Spartacus” (1975, 93 minutos), de Yury Grigorovich. Com Vladimir Vassilev, Natalya Bessmertnova, Maris Liepa, Nina Timofeeva, este filme, um registro de um dos mais famosos espetáculos do Balé Bolshoi, criado por Khachaturian, situa-se na Roma Antiga. Spartacus, um soldado trácio, é capturado por Crasso. Forçado a lutar como gladiador e matar um de seus amigos, ele planeja um levante sem precedentes.
. “A Flor de Pedra” é uma trama de aventura, censura livre, dirigida por um mestre da animação e dos efeitos especiais, Aleksander Ptushko. Produzido em 1946, o filme tem fama, na Rússia, de ser “um dos mais instigantes exemplares da história do cinema fantástico”, gêneros de grande apelo popular. Ptushko narra a fábula de um artesão que se dispõe a sacrificar tudo pela perfeição técnica de sua arte.
.“Amigos Verdadeiros”, de Mikhail Kalatozov, premiado em Cannes com “Quando Voam as Cegonhas” (1959), é um mix de comédia e aventura. Três garotos, moradores de um subúrbio de Moscou, se comprometeram a, no futuro, se reencontrar. Adultos, Borka tornou-se um famoso cirurgião, Sashka, professor de pecuária, e Vaska, doutor em arquitetura. Para cumprir a promessa de outrora, eles partem em uma jangada, pelo rio Volga, para juntos, viverem uma série de aventuras.
. “Volga-Volga” (1938) é uma comédia musical, dirigida por Grigori Aleksandrov, o mais próximo colaborador de Serguei Eisenstein. Juntos, eles trabalharam em vários filmes, incluindo a frustrada experiência mexicana (“Que Viva México!”) do diretor de “Encouraçado Potenkin”. Embora um de seus filmes – “Jovens Alegres” (1934) – seja objeto de estima da crítica francesa, Alexandrov acabou distante dos “Anos Eisenstein” (e da glória do mestre). Fez, inclusive, filmes patrióticos (ou de baixo risco) na era Stalin. É o caso deste, “Volga-Volga”. Na trama, dois grupos de artistas amadores deixam sua aldeia para participar de concurso de talentos em Moscou. Eles o farão acompanhados de um burocrata, interessado em utilizá-los em proveito próprio (ou seja, para turbinar sua ascensão na hierarquia soviética).
. “A Prisioneira do Cáucaso” (1966, 80 minutos), de Leonid Gayday, com os comediantes Aleksandr Demyanenko, Natalya Varley, Yury Nikulin, Vladimir Etush. Um grupo parte em viagem de pesquisa folclórica, rumo ao Cáucaso. O jovem estudante Shurik apaixona-se pela atlética, bela e politizada Nina. Mas a garota é sequestrada pelo homem mais poderoso da região, que planeja impor a ela um casamento arranjado. Um dos imensos êxitos populares de Gayday, que vendeu mais de 76 milhões de ingressos.
. “Rapaziada!” (1981, 92 minutos) é um drama dirigido por Iskra Babic, com elenco encabeçado por Aleksandr Mikhaylov, Pyotr Glebov, Irina Ivanova, Mikhail Buzylyov-Kretso e Pyotr Krylov. Na trama, o protagonista, Pavel, encontra-se prestando serviços ao Exército quando recebe carta da mãe, dizendo que Nastya, sua esposa, o estava traindo. Ele decide, então, não retornar à sua cidade natal. Porém, passados treze anos, descobre que a mãe se enganara. Nastya morrera, deixando três filhos órfãos (a mais velha, filha dele). O filme recebeu menção honrosa no 32º Festival de Berlim.
. “O Mensageiro” (1986, 89 minutos) é um drama dirigido por Karen Shakhnazarov, o poderoso presidente dos Estúdios Mosfilm, e grande apoiador do projeto de difusão do cinema soviético (e russo) empreendido, no Brasil, pelo CPC-UMES. O diretor de “Anna Karenina – A História de Vronsky” (2017), lançado ano passado, e com sucesso, no circuito de arte brasileiro, participa da sexta Mostra com uma narrativa ambientada na Era Gorbachev. Um rapaz sem noção consegue emprego de office boy. Ele se sente parte de uma sociedade à deriva. Ao fazer determinada entrega à domicílio, ele conhece o Prof. Kuznetzov e sua filha Katya. Para irritar o professor, ele afirma ter engravidado Katya. Para sua surpresa, ela confirma a história. À frente do elenco, estão Fyodor Dunaevsky, Anastasya Nemolyaeva, Oleg Basilashvili e Inna Churikova.
. “Aluga-se uma Casa com Todos os Inconvenientes” é o filme mais recente da Mostra Mosfilm. Trata-se de uma comédia de 90 minutos, realizada por Vera Storozheva, com Victoria Isakova, Irina Pegova, Nina Dvorzhetskaya e Svetlana Khodchenkova à frente do elenco. Na trama, um corretor ambicioso aluga a mesma casa para várias famílias. Depois de algumas situações embaraçosas, tudo parecia caminhar bem. Mas, ao retornar de uma viagem, o proprietário do imóvel descobre, surpreso, que o amigo a quem ele emprestara a casa a havia alugado a terceiros.
Dos 12 filmes programados, três chegam em cópia restaurada pela Mosfilm, dentro do rigor das mais avançadas técnicas digitais: a ficção científica “Stalker”, o drama de guerra “Balada do Soldado” e a comédia “A Prisioneira do Cáucaso”.
VI Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo
Data: 4 a 11 de dezembro
Local: Espaço Itaú Augusta (sessões diárias às 16h30, 19h e 21h), e no Cine Olido, do Circuito Spcine (sessões às 15h, 17h e 19h). Sessão gratuita para o filme inaugural, “A Balada do Soldado”. Ingressos para as demais sessões no Espaço Augusta (R$10,00 e R$5,00). No Olido (R$4,00 e R$2,00).
No sábado, no cinema do centro da cidade, haverá feira culinária e de artesanato russo. E também exposição de matrioskas, a famosa bonequinha-souvenir russa.