CD Terra Esperança: CPC-UMES lança último registro do som genial de Sivuca
O texto que publicamos hoje é a introdução escrita pelo maestro Marcus Vinícius de Andrade para o último – em mais de uma das acepções da palavra – CD do grande Sivuca. Pela importância do texto e do CD, uma edição da Gravadora CPC-UMES, oferecemos aos nossos leitores esse depoimento pouco comum na música de nosso país.
Quase escrevíamos “popular” depois da palavra música, e nada teríamos contra relacionar o povo brasileiro com Sivuca, pelo contrário. No entanto, existem artistas tão imensos, de obra tão transcendente, que até mesmo o vocábulo “popular” parece, por alguma razão, restringi-los indevidamente.
Pessoas mais ou menos lá pelos 60 anos – como é o nosso caso – cresceram ouvindo falar na lenda chamada “Sivuca”. Tanto assim que, nos bairros populares – e aqui vai bem o adjetivo – todos os albinos eram “Sivuca”. Para sorte deles, havia um que resgatara a autoestima da categoria.
A lenda era maior ainda porque só de vez em quando ela aparecia – no rádio ou na televisão. Talvez eu esteja amplificando demais este sentimento que virou memória, porque, além de tudo, quem é filho de nordestino (ainda mais com um pai nascido em Cabedelo e criado no Rio Grande do Norte) não tinha o direito – nem conseguia – ignorar o grande Sivuca. Para meus pais (inclusive minha mãe carioca) ele era um de nós que mostrara aos gringos quem nós éramos, sem nenhuma concessão – e com desculpas ao leitor pelo português em diagonal.
Havia, além de tudo, o acordeom (e estou seguindo o maestro Marcus Vinícius, ao grafar a palavra com “m” final, ao invés do “n” metido a besta que é comum encontrar por aí).
Quando você é pobre, não é fácil aprender piano – nem é muito bem visto um aluno de piano nas hostes dos machos do bairro, embora sempre é possível admirar aquelas moças que percorriam “La Violetera” no teclado do piano. Não sei por que a música de Padilla e Montesinos era a favorita de 10 entre 10 meninas que aprendiam piano. Talvez pela repercussão do filme com Sarita Montiel, que frequentemente passava nos “poeiras” – isto é, nos cinemas de bairro, os mesmos que hoje viraram igrejas evangélicas… Naquela época, não havia quem não tivesse assistido “La Violetera”, “Joselito”, “Marcelino Pão e Vinho”, “A Bela Adormecida no Bosque” e “Viva Villa” – a biografia de Pancho Villa que Wallace Beery interpretara na década de 30, mas que os “poeiras”, até a década de 60, passavam de vez em quando, completamente livres da atual ditadura dos lançamentos.
Mas, divago: o instrumento ao alcance de todos, lá por 1963, era o acordeom. Muito mais que o violão, visto ainda por alguns, injustamente, como “instrumento de vagabundo” ou “de malandro”. De Ramos até a Penha, passando por Olaria, no Rio de Janeiro, havia naquela época uma escola de acordeom em cada esquina – e o leitor aqui nos perdoará a hipérbole, pois é claro que só os ignorantes levam as coisas ao pé da letra.
A popularidade do acordeom era devida a dois colossos: Luís Gonzaga e Sivuca. O primeiro era, para nós, menos misterioso. Devo confessar um crime: quando minha mãe falou que eu poderia, se quisesse, aprender acordeom, a imagem que me veio a cabeça foi a de um trio com dois acompanhantes – um com triângulo, outro com uma zabumba – e um chapéu de cangaceiro na minha cabeça (só depois eu aprenderia que era um chapéu de vaqueiro), enquanto tocava o instrumento. Achei-me ridículo com aquele chapéu na cabeça. Não me ocorreu que eu pudesse tocar acordeom e não usar aquele chapéu. São coisas que acontecem a quem tem menos de 11 anos. Certamente, entre as criaturas do acordeom existia a Adelaide Chiozzo, que sempre tocava nos filmes da Atlântida, mas ela era diferente – ela era mulher.
O resultado é que me tornei ignorante em música para sempre. Luís Gonzaga era grande – e não ficava mal com aquele chapéu na cabeça. Mas eu não estava pretendendo ser um Luís Gonzaga…
Se tivesse pensado em Sivuca, talvez meu destino fosse diferente. No entanto, o grande Sivuca era – ou continuava a ser – uma presença nos bairros populares do Rio, sem que para isso precisasse aparecer. Quem sabe se ele realmente existia (nunca tive o atrevimento de apresentar esta hipótese ao meu pai – ainda bem)…
Era um tremendo mistério, até que, como se diz que fazem os velhos leões, ele voltou para sua terra. Finalmente era possível constatar que ele existia.
Sivuca era, em pouquíssimas palavras, um gênio. Não é preciso “entender de música” para sabê-lo. Basta não ser surdo.
O leitor deve estar se perguntando por que o HP encarregou um sujeito que não sabe nada sobre o assunto além do que qualquer um sabe, para fazer uma introdução a um texto de um maestro sobre um gênio da música.
Acontece, leitor, que jornal tem essas coisas – não se pode sair com uma parte da página em branco. Bem, pronto, confessei. Assim o leitor agora sabe que estou fazendo aquilo que se chamava um “nariz de cera”. Ou seja, como se falava no Colégio Pedro II, estou enchendo linguiça.
Então, leitores, é hora de acabar com isso e ir ao texto do nosso maestro sobre o grande Sivuca. Se você conseguiu vir até aqui, prometo que não se arrependerá, pois, como no caso do vinho servido nas bodas de Canaã, o melhor está por último.
CARLOS LOPES.
MARCUS VINÍCIUS DE ANDRADE*
Numa noite de um distante 1970, recebi um telefonema do meu amigo Paulo Pontes (que falta que ele faz), convocando-me com entusiasmo fora do comum:
“Marquinho, vem correndo aqui pra casa. Sabe quem tá aqui? Sivuca!”
Era no tempo do ditador. Com o Brasil debaixo de botas, a tristeza e o medo dominando praças e lares, qualquer notícia de brasileiros brilhando fora do Brasil nos enchia de ânimo e esperança, como o sol invadindo catedrais. O nome de Sivuca, na época já reconhecido como um dos grandes músicos do mundo, trazia para mim, além do mais, lembranças de minha infância nordestina, quando lá em casa sintonizava-se a Rádio Jornal do Commércio (que assim mesmo, com dois mm, era “Pernambuco falando para o mundo”) e o som mágico do acordeom de Sivuca mostrava como todo o universo podia caber num simples fole com teclas em volta. Naquele começo de anos 1950, quando ainda se vivia a euforia do pós ll Guerra, os programas de auditório da rádio da minha infância conseguiam juntar artistas locais, como Gilvan Chaves, Claudionor Germano, Jackson do Pandeiro e outros, com nomes nacionais como o maestro Guerra-Peixe e sua orquestra, e até com enxeridos internacionais de passagem pelo Recife: Errol Garner, Tommy Dorsey e o Frei José Mojica eram alguns de quem me lembro. Mas quem mais me impressionava eram três músicos sararás e de galeguice tão resplandecente que, quando se juntavam, apresentavam-se como sendo o grupo O Mundo Pegando Fogo! Esses músicos eram ninguém menos que Sivuca, Hermeto Paschoal e seu irmão Zé Neto, também este um talento digno de nota, caso contrário jamais tocaria junto aos ‘cobras’. Alguns recalcados por aí dizem que esse grupo nunca se apresentou em público, o que é uma mentira sem tamanho, pois até hoje ele faz o maior sucesso na minha lembrança. E se ele foi só uma lenda, tanto melhor: fico com a lenda, que é mil vezes mais verdadeira que as realidadezinhas sem graça.
Voltando a 1970, só posso dizer que aquela noite passada no apartamento carioca de Paulo Pontes e da grande Bibi Ferreira marcou definitivamente as almas dos que lá estivemos: eu, o pintor Raui Córdula (diga aí, Presidente!), o diretor José Renato, Waltinho Carvalho (hoje um excepcional fotógrafo e diretor de cinema, mas na época um estudante da ESDI, com quem eu dividia um apartamento em Laranjeiras), o compositor Gilvan Chaves e outros poucos privilegiados. Deslumbrados, varamos noite e madrugada ouvindo e aplaudindo Sivuca, já então uma big star internacional, que dividia palcos com Harry Belafonte, Miriam Makeba, Julie Andrews, Toots Thielemans, Putte Wickman e outros, além de ter protagonizado o espetáculo Joy, que fez uma temporada de sucesso em Nova York, num teatro vizinho de onde se apresentava um rapaz francês que fazia umas momices e mugangas, um tal de Marcel Marceau.
Para completar aquela noite de 1970, depois de ‘estraçalhar’ no acordeom, Sivuca ainda pegou um violão que eu levara e nos deslumbrou com algumas canções lindíssimas e de precioso sabor modal-nordestino. Como compositor e arranjador, fiquei simplesmente maravilhado com o que ouvi: lembro que registrei tudo num gravador doméstico e, caso pudesse recuperar essa fita de 43 anos atrás, a memória musical brasileira ganharia um precioso documento.
Após regressar ao Brasil e viver no Rio de Janeiro, Sivuca voltou de vez para a velha Paraíba, que ele chamava de ‘Viena Brasileira’, pois dizia que ali se encontravam alguns dos melhores músicos do país, por certo crias da Universidade local. Foi com muitos desses músicos que Sivuca prazerosamente trabalhou até o dia em que teve de sair de cena, para imensa tristeza de seu público, que sabia que o bis não mais viria.
Este TERRA ESPERANÇA é o último registro fonográfico feito por Sivuca, o que já basta para dar dimensão histórica ao CD que temos em mãos. Mas ele vai muito além: prova que Sivuca não era apenas o acordeonista (ou o sanfoneiro, como alguns o chamavam, de forma até meio desrespeitosa) virtuose, conhecido em todo o mundo, tendo sido também um arranjador-orquestrador de altíssimo quilate. Nesse aspecto, penso que sua singularidade estaria em que, mesmo escrevendo para as mais variadas formações instrumentais, Sivuca imprimia às suas concepções sonoras uma leitura acordeonística efetivamente preciosa e inusitada, pouco ou nada comum no contexto dos arranjos musicais. Até porque se são raros no mundo os acordeonistas-arranjadores, quase impossível seria encontrar dentre eles um que tenha sido gênio em seu instrumento. Mas um com certeza o foi: Severino Dias de Oliveira, Sivuca, paraibano de ltabaiana, a quem hoje os anjos respeitosamente tiram o chapéu, entre uma música e outra que ele toca por lá pelos sertões celestiais.
Quando regressou à sua Paraíba natal, Sivuca dedicou-se ao que considerou a fase mais produtiva e consistente de sua obra, atendendo ao chamado de um Brasil cuja voz era “o som do pandeiro, o batuque no terreiro, o axé do candomblé, a cirandinha, o reisado, a seresta gentil”, como disse Marilena Soneghet na letra da canção que nomeia este CD, feita em parceria com Glorinha Gadelha e gravada por esta. Mergulhando ainda mais nos sons do Brasil e na inesgotável alquimia da instrumentação, Sivuca buscou a excelência junto aos seus conterrâneos-músicos, com quem passou a conviver estreita e fraternalmente, com eles partilhando muitas formas de criar, desvendar, polir e, sobretudo, de reverenciar a música. Não por outra razão, este CD navega pelas mais distintas sonoridades, que vão desde um trio de acordeom-contrabaixo-bateria até uma big band, não sem antes passar por conjuntos camerísticos, quartetos, quintetos e sextetos de cordas ou de sopros: em todas estas formações destacam-se as digitais do gênio orquestrador de Sivuca, como se o mestre de Itabaiana estivesse nos legando uma aula magna para marcar sua despedida.
Nada disso teria sido possível, no entanto, sem Glorinha Gadelha. Musa, esposa, parceira e companheira de vida e arte de Sivuca, Glorinha não só foi a idealizadora deste CD, como também fez sua produção e direção musical. Assim, por justiça, este disco é também dela, já que foi Glorinha quem traçou a rota e capitaneou a travessia que levou Sivuca a ancorar na verdadeira Terra Esperança – que outra não é senão a terra da (boa) Música, da qual ele foi soberano e de cujo reinado este CD é prova mais que provada.
* Maestro, compositor e Diretor Artístico da Gravadora CPC-UMES
Fonte: Hora do Povo
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