Nós Que Nós Amávamos Tanto
CAIO PLESSMMAN*
Em Nós Que Nos Amávamos Tanto, Itália, 1974, Ettore Scola busca localizar com sua câmera as circunstâncias do colapso da amizade e do amor, expressões da resistência ao fascismo, vitoriosas no grande momento de liberdade do pós-guerra. Investiga assim, a partir da sociedade italiana, as bases sociais e psíquicas do entendimento humano.
Porém as condições sob as quais esse entendimento dá as cartas no filme (e nos rumos da contemporaneidade) parece fugir à percepção do autor, ou melhor, expressão da fluidez, parecem excepcionar a regra geral, tem momentos raros e, disfarçados pela presença do humor, se perdem pouco a pouco. Scola não apresenta, portanto, um esquema ideologicamente montado, mas, ao contrário, um painel complexo de contradições e variações surpreendentes. Dentre seus personagens, os preferidos parecem ser mesmo o casal socialista (Nino Manfredi e Stefania Sandrelli), que, cheios de altos e baixos, superam sempre as perspectivas de Nicola, anarquista (Stefano Satta Flores) e do democrata-cristão Gianni (Vittório Gassman), mas tudo isso é muito experimental, tem em vista se aproximar do como e do porque, em determinados períodos, as pessoas se juntam, se amam, trabalham unidas, ou ao contrário, rompem os propósitos pactuados no calor da amizade e rasgam a força aglutinadora desse sentimento.
Para alcançar esse laboratório afetivo, o autor conjuga várias atmosferas. Vale-se habilidosamente da comédia, da crítica social e do realismo mágico. Seu objetivo, de resto, se extrai das elipses desse mosaico, e de lá expõe sua tábua de valores singulares. É a sua tomada de posição, em um momento delicado. Antes de mais nada, a abertura do perspectivismo (dos personagens) na investigação, exclui todo tipo de ideia emprestada ou pré concebida. A cena onde o amigo Fellini (interpretando Fellini) ouve de Mastroianni (interpretando Mastroianni) “vamos conversar com Moro”, no set de La Dolce Vita, ao final de um dia cansativo e cheio de contrariedades, é o substrato de sua independência intelectual.
Não se trata, portanto, apenas do apontar das diferenças de pontos de vista com origem em classes sociais distintas ou posições ideológicas e definir o mais consistente e duradouro, mas de analisar nas diversas situações as deficiências e fraquezas que fazem da vida uma onda adversa frente à vontade humana. Todo um mapa se desenrola expondo de forma sutil aspectos políticos, fraternos, afetivos e estéticos que navegam no inconsciente da sociedade italiana.
Essa mistura de comédia e crítica social foi a formulação inicial feita aqui no Brasil, em meados dos anos 40, por Alex Vianny e Alinor Azevedo para a fundação da Atlantida. O projeto acabou desviado, mas sem dúvida já era uma dobra sobre o cenário brasileiro anterior.
Mais importante que essa alusão, parece que a forma de filme híbrido, composição de gêneros que surge de Scola, nesse caso, é um pouco mais que a busca de popularidade e ressonância a partir de expressão própria. É uma tentativa de diálogo mais aberto com toda a sociedade, como resposta, por um lado, aos seus personagens (que têm dificuldade, e, ao final, de fato não mais conseguem dialogar), e proposta ao arco cinematográfico que vai de De Sica em Ladrões de Bicicleta, a Fellini, de Dolce Vita, tendo por base os filmes documentais (Rosselini?) – agentes testemunhais da História, todos integrados à obra.
Abre-se a magia do filme onde, por dentro, outros filmes surgem e, ocultos, seus autores. Se a influência sobre os protagonistas, os próprios personagens de Nós… (a própria influência da cinematografia sobre a sociedade), parece perdida, a consciência do público se aguça. Os autores, dobras das obras, e, no caso italiano, atores da história e personagens da resistência, ecoam a questão de Scola: “nós, autores, podemos deixar prevalecer a incompatibilidade e a indiferença?”. Na realidade é a pergunta que cabe a nós responder, nós personagens autores de nossas vidas – nós que nos amamos tanto.
* É diretor de cinema
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