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Novo coronavírus pode causar estresse brutal sobre sistema de saúde

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Emergência não será resolvida por economistas que defendem manter o teto de gastos para a Saúde

DRAUZIO VARELLA

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

Publicado no jornal Folha de São Paulo em 13/03

 

Prever o futuro de uma epidemia é tarefa inglória. Quando se trata de um agente infeccioso que entra pela primeira vez em contato com seres humanos, fica pior.

Mesmo reconhecendo que as variáveis são tantas e as perguntas mais numerosas do que as certezas, já podemos tirar alguma conclusões.

1) Está claro que o atual coronavírus (chamado de Sars – COV-2) se adaptou muito bem à transmissão inter-humana, por meio das secreções das vias aéreas. A doença foi detectada na China, em dezembro, e se espalhou pelos continentes em três a quatro meses. É uma pandemia, quer dizer, todos corremos risco de adquirir esse coronavírus.

2) O isolamento forçado de regiões com milhões de habitantes na China, o fechamento da fronteira com a Rússia, a paralisação das atividades e a proibição de deslocamentos num país como a Itália, os policiais nas ruas das cidades atingidas, a fiscalização em aeroportos e o cancelamento de viagens aéreas foram medidas que talvez tenham retardado a entrada do vírus em algumas regiões e até reduzido a velocidade de disseminação, mas foram incapazes de deter a propagação pelo mundo.

3) O quadro clínico é variável, depende da idade, da presença de doenças crônicas, do tabagismo e da eficiência do sistema imunológico individual. A evolução é benigna em mais de 80% dos casos.

A taxa de mortalidade aumenta com a idade. As crianças com menos de dez anos são poupadas — no entanto, não sabemos até que ponto serão portadoras relativamente saudáveis do vírus que infectará os familiares.

Dos 10 aos 40 anos, as mortes são eventos raros: ao redor de 2 em cada 1.000 infectados. O problema é a mortalidade na faixa dos 70 aos 80 anos (cerca de 8% a 10%) e nas pessoas com mais de 80 anos (de 14 a 20%).

4) Como esses números variam muito, ficam difíceis de serem interpretados. A OMS estima que a mortalidade média no mundo está ao redor de 3,5%, mas na Itália passa dos 6%, enquanto na Coreia do Sul é de 0,7% e na Alemanha ocorreram apenas duas mortes em 1.300 infectados. Como explicar tamanha discrepância?

Até aqui, não surgiram evidências de que o vírus da Itália seja mais agressivo.

Certamente os coreanos e os alemães testaram mais gente, e detectaram maior número de infecções assintomáticas ou com sintomas mínimos, enquanto o sistema de vigilância italiano teria deixado de diagnosticar esses casos iniciais. Se contarmos apenas os doentes mais sintomáticos que procuram os hospitais, a porcentagem de óbitos aumenta. Por uma série de razões, os epidemiologistas consideram mais precisos os dados coreanos e alemães.

O fato de 22% dos italianos terem mais de 65 anos, enquanto na Coreia esse número é de 14%, talvez seja parte da explicação. Digo parte porque a Alemanha tem uma população de idosos próxima da Itália.

5) No Brasil, os casos iniciais foram diagnosticados em pessoas que se infectaram em outros países, principalmente na Itália, mas também em lugares como os Estados Unidos. Agora surgem as primeiras infecções comunitárias, isto é, as de brasileiros que adquiriram o vírus sem terem viajado para o exterior nem tido contato com viajantes. Isso é um marco: significa que o aumento do número de infecções será crescente nas próximas semana.

O que vai acontecer?

Embora a velocidade de propagação possa ser reduzida às custas da adoção de medidas preventivas individuais e coletivas, tudo indica que uma epidemia de proporções nacionais provavelmente vai acontecer.

Num país de dimensões continentais, ela vai adquirir características regionais, com diferenças entre o norte e o sul ou o sudeste, entre as cidades grandes e as pequenas, entre litoral e interior. O risco de uma trabalhadora que depende de transporte público na periferia de São Paulo ou Recife, não é o mesmo que o de um trabalhador rural do centro-oeste ou de um ribeirinho no Pará.

Uma coisa é certa: a depender da velocidade de disseminação da epidemia o estresse sobre o sistema de saúde poderá ser brutal. Vou explicar:

1) No mínimo 80% dos infectados desenvolverão quadros semelhantes aos dos resfriados comuns, que podem e devem obrigatoriamente ser tratados em casa, com isolamento para não transmitir o vírus. O doente e os familiares devem lavar as mãos com frequência, usar máscara, higienizar maçanetas e superfícies de uso comum, separar talheres e pratos e reduzir ao máximo a possibilidade de contato com outras pessoas.

Se todos que ficarem resfriados correrem para o pronto-socorro, será o caos na saúde pública ou privada. As salas de espera ficarão lotadas —como já acontece em hospitais particulares de São Paulo— de gente infectada que transmitirá o vírus para pacientes com outras enfermidades, à espera de atendimento, além de colocar em risco os profissionais de saúde.

Não podemos esquecer que mesmo a doença com pouco sintomas afastará enfermeiras, atendentes, médicos e outros profissionais da linha de frente.

2) E os outros 20% de doentes que evoluem com sintomas mais exuberantes? Embora representem a minoria dos pacientes, na China um quarto deles precisou de internação; na Itália, cerca de 50%.

Esse é o desafio que enfrentaremos. Os casos graves representarão uma carga pesadíssima para o SUS e para os planos de saúde, com repercussões graves na economia do país.

Salvo exceções, não podemos mandar para casa pacientes com dificuldade para respirar, sobretudo porque serão os mais velhos, os fumantes com enfisema, os que sofrem de insuficiência cardíaca, renal, pressão alta, diabetes, Aids, tuberculose e outras doenças que debilitam o sistema imunológico.

Quem chegar ao pronto-atendimento com falta de ar precisará ser internado. No mínimo para ficar em observação, mas pode necessitar de inalação contínua de oxigênio ou de entubação endotraqueal e aparelho de ventilação pulmonar, intervenções drásticas só disponíveis em unidades de terapia intensiva.

Como pneumonias virais não costumam ser curadas em menos de 10 a 15 dias e podem evoluir com complicações bacterianas, o período médio de internação será prolongado.

Quantas pessoas infectadas exigirão cuidados mais intensivos? Em termos porcentuais, o número não assusta: 5% a 10% talvez, mas a depender do total de portadores do vírus no país inteiro haverá falta de milhares de vagas nas UTIs. Sem esquecer que a atual demanda, já reprimida, por leitos para pacientes recém-operados, com septicemia, ataque cardíaco, acidente vascular cerebral, enfisema ou traumatismo continuará a mesma.

De onde virão os profissionais, as instalações, os equipamentos e a expertise para cuidar intensivamente de tantas mulheres e homens de idade? A falta de leitos de UTI sempre foi um dos calcanhares de Aquiles do SUS. De onde os estados mais pobres e os mais endividados conseguirão recursos financeiros e humanos?

Esta semana ficamos chocados quando o médico. Paolo Pelosi, de Gênova, referência mundial em terapia intensiva e ventilação mecânica, revelou que os médicos do seu hospital enfrentavam o dilema ético de decidir que pacientes devem ter preferência no tratamento, uma vez que não há aparelhos de ventilação para todos. Se isso acontece nos hospitais públicos da Itália, será diferente aqui?

O que fazer?

Várias medidas devem ser tomadas imediatamente para reduzir os riscos de transmissão e a velocidade de disseminação, com a finalidade de ganhar tempo para nos organizarmos:

1) O programa Estratégia Saúde da Família, considerado pelos especialistas da OMS como um dos melhores do mundo, precisa ser preparado rapidamente para impedir que os doentes procurem os hospitais sem necessidade.

Os agentes de saúde que batem na porta de 2/3 dos brasileiros devem ser treinados para orientar os moradores com quadro de resfriado. As equipes do Saúde da Família podem convencê-los a ficar em casa, em repouso, sendo tratados como no tempo de nossas avós. Imaginem o desastre se esse contingente, que representará pelo menos 80% de milhares de infectados, for parar nos serviços de pronto-atendimento.

Imaginem o desastre que representará se toda essa gente fizer como pessoas da classe média alta de São Paulo, que já procuram os hospitais de convênio para fazer o teste ao primeiro espirro ou acesso de tosse. Faltarão kits para testar os que de fato precisarem.

2) O desafio maior, no entanto, será o de tratar os doentes graves. Nem o SUS nem os planos de saúde estão preparados para internar tanta gente, especialmente aqueles com indicação de ventilação respiratória assistida.

Neste momento, todos os esforços do ministério e das secretarias de saúde devem estar concentrados na criação da melhor estrutura possível para receber esses casos, tarefa difícil, porém não impossível.

Haverá dificuldades financeiras e organizacionais, pontos fracos do nosso sistema de saúde, mas nossos dirigentes devem entender que estamos diante de uma emergência de saúde pública que não será resolvida por economistas que defendem manter o teto de gastos para a Saúde. Será um crime se os recursos ficarem condicionados à mentalidade dos que dizem: “O SUS tem dinheiro suficiente, o que falta é organização”.

O pessoal de enfermagem e demais profissionais da área têm que receber treinamento urgente. Nosso sistema de saúde centrado nos médicos deve ser deslocado para os agentes de saúde nas visitas domiciliares e para a enfermagem nos hospitais, porque são eles que passam o dia inteiro em contato físico com os pacientes. Se caírem doentes, será difícil encontrar profissionais treinados para substituí-los.

Quanto mais medidas preventivas adotarmos agora para reduzir a velocidade de disseminação do vírus, mais tempo teremos para investir na atenção primária e na estruturação de nossos hospitais e demais serviços de saúde. O problema ficará pior se os doentes graves vierem todos de uma vez.

Mas qual é o seu risco pessoal?

Uma das tarefas mais complexas na área da educação em saúde é explicar para a população a diferença entre a percepção do risco individual e o risco para a sociedade. Assim, quando vacinamos uma criança, a mãe pode ficar assustada com o fato de a vacina provocar determinado efeito colateral, mesmo que ocorra em duas crianças para cada milhão de vacinadas. Para a saúde pública, o raciocínio é outro: quantas ficarão doentes ou morrerão se não tomarem a vacina?

No caso desse coronavírus, o impacto da epidemia no sistema de saúde será grave, pelas razões apresentadas, mas o risco individual é baixo e desigual. Vamos relembrar: na China, o país com o maior número infectados, não morreu nenhuma criança com menos de 10 anos. A mortalidade dos 10 aos 40 anos foi de 2 casos em cada 1.000 infectados. As taxas começaram a aumentar a partir dos 60 anos e chegaram a cerca de 15% depois dos 80 anos.

Qual a razão para uma mulher ou homem de 40 anos correr para fazer o teste porque a tia chegou da Itália? O resultado vai servir para que? Se for positivo, o pior que pode acontecer é ficar resfriado; se for negativo, que garantia haverá de assim permanecer depois de entrar em contato com o vírus no bar da esquina?

Quando o ministério e nós, médicos, dizemos que não existe razão para pânico, acham que estamos minimizando a gravidade do problema. Não é verdade. Pelo menos até aqui, as medidas técnicas adotadas pelo Ministério da Saúde têm sido impecáveis. Se esse vírus causasse mortes indiscriminadas em metade da população, haveria motivos para estratégias radicais, inadequadas para este momento.

Por enquanto, pelo menos, o maior perigo é a correria aos hospitais, de pessoas que não entraram em contato com o vírus ou não correm risco de complicações. Elas vão congestionar e desestruturar o sistema de saúde e colocar em risco muito mais gente do que a epidemia.

E o que vai acontecer?

Futurologia não é o forte dos médicos, mas vou arriscar. Se a epidemia seguir o curso da chinesa, a mais antiga, o número de infecções deve crescer significativamente nas próximas semanas. Num período de três a quatro meses, o pior período, deverá estabilizar-se e começar a perder força, porque haverá tanta gente que já entrou em contato com o vírus, que entrará em cena o fenômeno batizado como “imunidade de rebanho”, pelos epidemiologistas, segundo o qual, as epidemias são controladas quando o número de não imunizados é insuficiente para manter a transmissão em massa.

O vírus desaparecerá para sempre? Acho que não. Fará parte do grupo de mais de 200 vírus causadores de resfriado comum.

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