Um colunista da imprensa, conhecido por suas posições em geral muito conservadoras, escreveu:
“Escapa à compreensão humana entender o que pode ter levado 12 militares a executarem o músico Evaldo Santos Rosa em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro, quando ele levava a família para um chá de bebê, pelas circunstâncias inteiramente gratuitas da tragédia. É também surpreendente e chocante a falta de qualquer sentimento de pesar e solidariedade nas notas oficiais emitidas pelo comando militar do Leste tratando uma atitude injustificável como esta como se tivesse sido rotineiro erro operacional” (José Nêumanne Pinto, “Nota sem pesar”, OESP, 09/04/2019).
É inteligível o sentimento de perplexidade do colunista – e poeta – José Nêumanne.
No entanto, é impossível, para nós, deixar de registrar o parentesco quase xifópago do que ocorreu em Guadalupe com a indigência mental criminosa – pois não se pode chamá-la de “ideário” – que caracteriza o governo Bolsonaro.
Não se trata de armas a mais – ou armas de menos – para a população. Aqueles que atiraram, e acertaram 80 vezes em um carro, a poucos metros da Avenida Brasil, portavam armas de acordo com a lei – pertenciam ao Exército. E ninguém, que não seja doido, está propondo que o Exército seja proibido de possuir ou de portar armas.
Não se trata, também, de uma consequência da suposta “dureza” no combate aos bandidos, seja lá quais forem. Os alvos de Guadalupe não eram bandidos, mas uma família, pacífica, sem nem ao menos antecedentes criminais, que se dirigia a um chá de bebê.
Aliás, nenhuma testemunha, até agora, mencionou alguma atividade criminosa – ou suspeita – no local.
O morto era um pai de família, músico, que caiu sobre o volante após ser atingido por três balas.
Ao seu lado estava o sogro, Sérgio Araújo, também atingido pelas balas.
Atrás, no Ford Ka, estava um dos filhos de Evaldo, Davi, de sete anos, sua esposa, a técnica de enfermagem Luciana Nogueira, e uma amiga, a também técnica de enfermagem Michelle Neves, que conseguiram sair do carro.
A fuzilaria continuou mesmo depois que o carro já estava parado.
“A gente vinha cantando, brincando, porque ali se passa devagar. Eu vi que o Exército estava do lado de lá (da avenida), mas é Exército, estava pra te proteger. Aí deram um tiro. Eles atiraram de propósito”, relatou, depois, a viúva de Evaldo.
“Meu esposo morreu como um bandido. Eles queriam chegar perto do carro, e eu não deixei, para não plantarem nada. Mas eles ficaram de deboche”.
Um morador das redondezas, Luciano Macedo, que tentou socorrer Evaldo e a família, foi alvejado – e encontra-se em coma no Hospital Carlos Chagas.
Luciano é casado, com a esposa grávida de cinco meses.
Todos os alvos dos tiros eram trabalhadores – além de uma criança.
Alguns podem achar que estamos exagerando ao dizer que essa chacina – é impossível chamar por outro nome – é o retrato da política que Bolsonaro pretende instalar no país.
Mas não é um exagero.
Inclusive quanto a transformar o nosso Exército em uma “milícia” para esmagar o povo.
Afinal, há muito, Bolsonaro é um representante das “milícias” – e não dos militares.
A ponto de não achar anormal que na mesma rua em que mora – do outro lado da rua – estivesse a residência de um assassino de aluguel do Escritório do Crime, que matou covardemente uma mulher desarmada, a vereadora Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes.
Bolsonaro acha isso tão normal, que nem acha nada demais que seu filho namorasse a filha desse assassino.
Assim, é óbvio o que Bolsonaro acha que o Exército deve ser – mais óbvio ainda pela ausência completa de comentários sobre o que ocorreu em Guadalupe, segundo seu porta-voz, Otávio Rêgo Barros, que, agora sabemos, é também um porta-pensamento (“Ele [Bolsonaro] não comentou, mas confia na Justiça Militar, nos esclarecimentos que o Exército dará por meio do inquérito e espera que eventos de igual similitude não venham a ocorrer”).
“Eventos de igual similitude”?
O que aconteceu com essa gente? Onde perderam a sensibilidade humana ou – o que é o mesmo – a capacidade de se identificar com todos os seres humanos, sobretudo os de seu próprio povo?
Porém, há mais.
A erupção de lama obscurantista, que está no centro desse governo, inevitavelmente levaria – e levará – a tragédias como a de Guadalupe.
O maior de nossos militares, o Duque de Caxias, disse, em 1851: “A verdadeira bravura do soldado é nobre, generosa e respeitadora dos princípios de humanidade”.
Bolsonaro é o oposto disso.
Vilhena de Moraes, o melhor biógrafo de Caxias, escreveu: “ninguém jamais cumpriu ordens como Caxias” (cf. E. Vilhena de Moraes, “Caxias em São Paulo – a revolução de Sorocaba“, Ed. Calvino Filho, 1933).
Bolsonaro é aquele indisciplinado que planejava colocar “bombas de baixa potência” em instalações militares, o que acabou por encerrar sua carreira no Exército (v. Terrorismo de baixa potência).
Sua defesa histérica da ditadura e da tortura – da qual jamais fez qualquer autocrítica – é o que existe de mais antagônico ao espírito do Exército de Caxias, Osório e Deodoro.
Por sinal, o repúdio do país a essa infâmia, por ocasião das pretensas comemorações pelo golpe e pela ditadura de 1º de abril de 1964, mostrou quanto Bolsonaro é oposto às forças saudáveis – as forças nacionais – que, aliás, crescem, inclusive dentro das Forças Armadas.
O Exército Brasileiro é aquele que recusou a formação de unidades apenas de negros, na Guerra do Paraguai; aquele que aboliu o quesito “cor” dos registros dos soldados, quando ele se tornou um modo dos senhores de escravos perseguirem os que saíram de seus latifúndios; aquele que, depois da guerra, através de Deodoro, se recusou a perseguir escravos: “não somos capitães do mato!”.
Porém, o que Bolsonaro se propõe é, exatamente, ser um capitão do mato para os senhores de escravos de Wall Street ou até para os lacaios destes, que comem internamente os sobejos da especulação financeira.
E haja ignorância, preconceito, racismo e estupidez como política de governo!
Existe algo mais coerente com isso do que a fuzilaria de Guadalupe?
C.L.
Por Hora do Povo Publicado em 9 de abril de 2019
Daniel, filho mais velho de Evaldo Rosa, chora próximo do corpo de seu pai (foto: Fabio Teixeira/AP)
Parente de Evaldo chora diante do carro (foto: Fabio Teixeira/AP)
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