O cinema no calor da hora

Cena do filme “Concorrência desleal”, de Ettore Scola

 

Caio Plessmann *

 

Para o Ettore Scola de “Concorrência Desleal”, filme apresentado nesta segunda-feira (06/06) na mostra do Cine-Teatro Denoy de Oliveira, a solidariedade não é suficiente para vencer o fascismo.

 

O regime de exceção italiano é visto como um apanhado de reacionários pretensiosos que vivem de montar complôs contra os setores espontâneos e produtivos da sociedade.

 

Aí reside a deslealdade, muito distante da trama que domina de forma lúdica toda a primeira metade do filme, expressa na concorrência comercial entre dois alfaiates, um judeu e o outro italiano. É como se a disputa no âmbito comercial constituísse um protocolo civilizado cuja outra face é a própria solidariedade.

 

Mas os fascistas não queriam conversa. Eles acreditavam que seria possível recuperar por decreto a dignidade perdida – a dignidade de suas vidas parasitárias e pretensiosas.        Escondiam assim o substrato de seu universo de imaginário xenófobo sem preocupações com o bom senso, regendo artimanhas de ataque aos núcleos mais dinâmicos da sociedade.

 

Caio, a direita, durante gravação de seu filme “São Paulo Cidade Aberta”

 

Três aspectos da moderna cinematografia italiana constituem a essência da trama desse belíssimo filme: o achado de trabalhar os personagens infantis no centro da narrativa, a temática antifascista e a perspectiva autoral. Com estes elementos ele constrói sua jangada e se lança ao mar, atualizando o sentido de resistência à barbárie que vive em todo ser humano.

 

Scola utiliza o ponto de vista infantil, de dois meninos amigos, filhos das famílias rivais, e traz de seus universos o andamento da narrativa. Pelo afeto assim recuperado, a solidariedade nos adultos, antes oculta pelas desavenças comerciais, vai pouco a pouco chegando à luz, até se tornar generosa amizade, cheia de desprendimento.

 

Isso resulta da ação paralela, onde podemos acompanhar apreensivos o crescimento do aparato reacionário que aumenta e ajusta o foco nas comunidades judaicas, um pretexto para destilar o seu ódio aos negócios que envolviam habilidades variadas, sentido estético e disposição permanente para o trabalho.

 

O que se desenrola no filme a partir dessa mudança do lúdico para o trágico constitui outros quinhentos, ainda hoje um enigma para as civilizações. Passo a passo a truculência vai ocupando o contexto social sem aparentemente deixar opção de resistência aos indivíduos. O filme termina com o garoto observando com dor seu amiguinho judeu ser levado com a família para algum lugar desconhecido já identificado na História.

 

Poucas cinematografias se mostram tão eficientes ao retratar a emergência dos regimes de exceção e de jogar luz sobre suas estruturas e mecanismos de funcionamento. Apesar disso os italianos aparentemente não apontam os caminhos da resistência. Isso equivaleria estudar a parte obscura da própria coletividade.

 

Mas se engana quem acredita que o autor entende digamos tratar-se de situação irreversível: o menino observa, e reflete ao final como um convite a todos tomarem a mesma atitude. O avanço lento e subterrâneo da destruição dos valores vitais e da promoção da estupidez nos informam que não se deve transigir com a injustiça sob pena da mesma se tornar uma avalancha de iniquidade. Para Scola, se é necessário recuperar o afeto para compreender o fascismo, superá-lo parece ser demanda de adultos atentos, de um ponto de vista humano, às injustiças de seu próprio cotidiano.

 

*É diretor de cinema

 

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