Para Dilma, “democracia” só com ela na Presidência
Ela pretende que 28 senadores entrem nessa conversa fiada para continuar a infelicitar o país
Em uma de suas famosas conferências no Teatro Politeama, em Salvador, no ano de 1897, Rui Barbosa disse algo memorável:
“Impor a República pela sua forma, em lugar de recomendá-la pelo valor das suas utilidades, seria entronizar na política a superstição. As formas, que não corresponderem ao espírito, à ação viva, à existência interior, são máscaras de impostura. A república é a democracia e a liberdade na lei. Logo que a forma viola a justiça, oprime o indivíduo, ou falseia o voto da nação, a república está em contradição consigo mesma. O culto, que lhe reclamam, seria então o dos falsos deuses. E idolatria, senhores, quer dizer outra coisa: religião da mentira, idiotice do religionário” (cf. Rui Barbosa, OC, V. 24, t. 1, 1897, p. 59).
Esse culto à mentira, prenhe de idiotices, é, embora ainda mais rasteiro, a “democracia” que a senhora Rousseff exibe em sua carta, divulgada, finalmente, na terça-feira.
É sintomático – isto é, doentio – que ela fale o tempo todo em “meu compromisso com a democracia” e que este se resuma a um item: “meu retorno à Presidência”.
O resto é palhaçada, mentira, vigarice – ou despejos reacionários em ouvidos alheios.
Daí, seu suposto apoio a um “plebiscito” para antecipar as eleições tem um rabicho: “um Plebiscito, com o objetivo de consultar a população sobre a realização antecipada de eleições, bem como sobre a reforma política e eleitoral”.
Que “reforma política e eleitoral”? Qual delas? Dilma sabe perfeitamente que isso inviabiliza o plebiscito, pois são tantas as ideias e faltas de ideias, tantos os matizes, que não é possível acordo sobre o que entrar no plebiscito, exceto se ele for adiado para as calendas gregas – isto é, para nunca.
COLÉGIO
Depois de anunciar umas cem vezes essa carta, ela a leu, diante de uma plateia de jornalistas, proibidos de fazer perguntas, e um pequeno grupo de ex-ministros cabisbaixos. Os senadores, a quem é dirigida a carta, souberam de seu conteúdo pela televisão. Nada como ser educada e hábil politicamente…
Mas Dilma sempre surpreende as expectativas mais pessimistas. Disse ela, na carta, que, se os senadores votarem a favor do seu impeachment, “o colégio eleitoral de 110 milhões de eleitores seria substituído, sem a devida sustentação constitucional, por um colégio eleitoral de 81 senadores”.
O Senado não é colégio eleitoral, nem impeachment é eleição, até porque foi ela que colocou Temer na vice-presidência, com os mesmos 54 milhões de votos que repete a toda hora – e não os senadores.
Entretanto, aceitemos, por um momento, a sua argumentação. Qualquer sujeito normal diria: mas, se os senadores votarem contra o impeachment, por que seria diferente? Por que o “colégio eleitoral de 110 milhões” somente será substituído “por um colégio de 81 senadores” se ela perder a votação?
Tanto tudo isso é uma falácia, que Dilma está disputando o voto, não de 81, mas apenas de 28 senadores, para impedir que o impeachment seja aprovado, pois são necessários 54 votos (2/3 dos 81 senadores) para aprová-lo – e ela nem sonha em ter maioria. Portanto, ela está substituindo os 100 milhões por 28 votos – e para ficar no poder contra a maioria do Senado e do povo.
Ficar no governo contra o povo com apenas 28 votos deve ser o ápice do golpismo. Pelo menos a prorrogação do mandato de Castelo Branco, primeiro da ditadura, foi aprovado, em julho de 1964, por 205 votos – é verdade que o voto decisivo, o último, foi de um bêbado que passava pelo local. Mesmo assim, 205 votos são mais que 28 votos.
É pouco provável que ela consiga 28 senadores que se prestem a esse papel. O leitor sabe como é: golpistas sempre querem que outros sejam golpistas, pois seu ideal de vida é submeter a tudo e a todos.
Nesse sentido, a carta de Dilma é um primor.
Obviamente, não lhe passa pela cabeça que foi – e está sendo – afastada do poder porque traiu os 54 milhões de votos que recebeu, porque traiu o país, porque traiu cada palavra que disse em sua campanha, porque cometeu o mais escandaloso estelionato eleitoral da história republicana. Quem se atreveria a tentar afastá-la, se o conjunto do povo não a quisesse longe do Planalto?
Sua massa cinzenta parece demasiado escassa, ou inerte, para perceber que foi a sua adesão aos inimigos do país que fez com que – um ano e quatro meses após receber os 54 milhões de votos – não haja ninguém (exceto alguns fanáticos, daquele tipo de que falava Rui, a maior parte mais encenadores que fanáticos) chorando pelo seu afastamento. Nem Lula e a direção do PT, que têm não pouca culpa no cartório, estão lamentando, exceto para consumo dos incautos.
TANGENTE
Além disso, como já apontamos, os 54 milhões de votos, que ela tanto repete, foram apenas 38% do eleitorado – nada menos que 62% dos eleitores recusaram votar em Dilma (v. HP 29/10/2014).
Mas, voltemos à sua carta.
Dilma cortou o seguro-desemprego de trabalhadores, quando eles mais necessitavam dele; cortou as pensões das viúvas; atacou o seguro-defeso de um milhão e 100 mil pescadores, que não têm outra forma de viver na época em que a pesca não é permitida; e instituiu pela primeira vez no país um regime – o famigerado PPE – para rebaixar o salário nominal dos trabalhadores.
Depois disso, diz ela, na sua carta, que “nosso lema persistirá sendo ‘nenhum direito a menos’”.
E nós nem falamos no rebaixamento do salário real dos servidores. Ou dos três ou quatro milhões de trabalhadores a quem foi negado o direito ao trabalho, desempregados, em seu governo. Nem no aumento da desigualdade, de acordo com o IBGE.
Mas ela diz, pela tangente – ao modo do malandro agulha da tradição popular – qual é o problema que, em sua opinião, é o mais grave para o país.
Serão os juros, a título dos quais, segundo o Banco Central, ela passou R$ 1 trilhão, 663 bilhões e 757 milhões reais do setor público para o setor financeiro, entre janeiro de 2011 e maio de 2016?
Será o corte no investimento público, que ela derrubou violentamente, até a migalhice atual, provocando a paralisação do investimento privado, o estancamento da produção, a explosão do sistema público de Saúde, das escolas e universidades públicas?
Será a invasão estrangeira (US$ 738 bilhões e 382 milhões de 2011 a 2015, tendo como resultado a desindustrialização do país e a estagnação econômica), provocada por sua política de câmbio? A recessão, o desemprego, o arrocho salarial – isto é, as consequências de sua traição ao povo, ao Brasil?
Não, leitor, ela não está preocupada com nada disso, exceto pró-forma (“empresários e trabalhadores devem participar de forma ativa na construção de propostas para a retomada do crescimento” – desde quando o problema esteve na passividade dos trabalhadores ou dos empresários nacionais e não no seu governo, que entregou os recursos do país aos parasitas financeiros e concedeu todos os privilégios para que os abutres externos açambarcassem miríades de empresas nacionais?).
Segundo Dilma, o principal problema do país não é nada disso, mas a “fragmentação dos partidos”, “o número excessivo de partidos”, etc., etc.
Em suma, a sua proposta de reforma política é que só aqueles partidos que roubaram possam existir. Pois não foram os partidos em geral que assaltaram a Petrobrás, mas o PT e seus então aliados: o PMDB e o PP – com uma canja, segundo diz o PT, também para o PSDB.
Fonte: Carlos Lopes da Hora do Povo
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