Uma noite no cinema
Títulos como este somente aparecem quando a ação deixou ou está deixando de ser comum. Assim, acho eu, seria difícil batizar alguma obra como “Uma noite no circo” ou “Uma noite na ópera”, se ir a um ou a outra após o por do sol fosse um hábito tão comum a ponto de não ter importância.
Esse nariz de cera, leitor, é para introduzir (não me entenda mal) um grande programa, se você mora em São Paulo: a “Mostra Subversiva” do “Cinema no Bixiga”, seleção de filmes exibida aos sábados, com direito a reprise na sexta-feira seguinte, no Cine-Teatro Denoy de Oliveira*. A entrada é franca e, ao contrário do velho adágio, segundo o qual até injeção no olho é bom se for gratuita, dessa vez o que é oferecido é tão valioso que não tem preço. Por isso, ninguém tem de pagar.
Boa parte da “Mostra Subversiva” é famosa e conhecida (“Amarcord”, de Fellini; “O Jardim dos Finzi Contini”, de Vittorio de Sica; e, certamente, “Casablanca”, de Michael Curtiz).
Mas, leitor, onde alguém poderia assistir a “Trem Noturno para Munique” – que passou no dia 23 de março -, o segundo sucesso de Carol Reed, filmado em 1940, depois de “Sob a Luz das Estrelas” (1939) – e ainda antes do início de sua colaboração com Graham Greene, que redundaria em “O Ídolo Caído” (1948), “O Terceiro Homem” (1949) e “Nosso Homem em Havana” (1959)?
A propósito, na época, Greene era o principal crítico de cinema inglês – e foi responsável pelo reconhecimento precoce de Reed (apesar de, em nossa opinião, Greene ter sido um pouco estimulado por sua antipatia pessoal em relação ao outro grande diretor inglês da época, Alfred Hitchcock).
“Trem Noturno para Munique” pertence a um gênero especial, não sei se já classificado e com nome (ou, como dizem, ou diziam, certos franceses especialmente pedantes, por exemplo, Gilles Deleuze, “inscrito numa taxionomia” cinematográfica).
Porém, não importa o nome do gênero. Qualquer um que tenha assistido aos velhos seriados – aqueles que, nos anos 50 e 60 do século passado, ainda passavam nas matinês de fim de semana – reconhecerá “Trem Noturno para Munique” como pertencente ao mesmo gênero, depois ressuscitado por Spielberg nos filmes de Indiana Jones.
Reed mescla esse gênero com o music hall (Rex Harrison aparece cantando, 24 anos antes de “My Fair Lady”, como disfarce de sua atividade de agente secreto – embora ninguém saiba por que um agente inglês precisaria de tal disfarce dentro da Inglaterra; mas essas coisas fazem parte do gênero) e, também, com o circo (os dois ingleses perdidos na Alemanha nazista, uma referência à dupla de clowns – originária, parece-me, da commedia dell’arte – com seus dois tipos, o clown “branco” e o clown “augusto”; a juventude de hoje talvez tenha dificuldade em reconhecê-los, mas não os que conheceram Carequinha e seu inseparável companheiro Fred – ou o Gordo e o Magro).
A Inglaterra, na época do filme, estava sob intenso bombardeio nazista (a batalha aérea somente terminaria no final de 1940) e sob ameaça de invasão. O filme de Reed, com seus homens e mulheres comuns, além de um heroi – um sucedâneo progressista do famoso Pimpinela Escarlate -, sua dedicação aos aliados que estavam ocupados por Hitler, e, sobretudo, seu humor, era bem o que os ingleses precisavam ver nas telas naquele momento. Não é uma surpresa, portanto, que tenha feito tanto sucesso.
De quebra, uma curiosidade: Paul Henreid, que, dois anos depois, faria Victor Laszlo – o herói e líder da Resistência (e, claro, marido que recupera Ingrid Bergman das garras de Humphrey Bogart) em “Casablanca” -, no filme de Carol Reed faz o vilão nazista, um SS ou Gestapo especialmente repugnante. Em “Trem Noturno para Munique” o ator ainda aparece nos créditos como Paul von Henreid (ele era, realmente, um nobre austríaco – mas, antinazista, preferiu cortar o von de seu nome, no que fez muito bem).
CARLOS LOPES
Texto extraído do jornal Hora do Povo, edição de 5 de abril de 2013
* R. Rui Barbosa, 323 – Bela Vista. Sessões aos sábados, 17h e reprise às sextas, 18h.
Próximos filmes:
Vencer – direção e argumento original Marco Bellacchio
Dividir e Conquistar – direção Frank Capra e Anatole Litvak
A Batalha da Inglaterra – direção Frank Capra e Anthony Veiller
Casablanca – direção Michael Curtiz
Sessão Especial de Justiça – direção Costa-Gavras
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