O artigo, de Gustavo Castañon, é uma resposta ao texto “Como a esquerda brasileira morreu“, de Vladimir Safatle, publicado em El País de 10/02/2020.
Originalmente, o artigo de Castañon foi publicado no Portal Disparada (C.L./HP).
Conheço Saflate superficialmente e o respeito como intelectual e como pessoa, por isso espero que a dureza de minha resposta não seja mal recebida. Seu artigo contém observações interessantes, mas tem uma tese central fundamentalmente errada. É claro que a esquerda brasileira como a conhecíamos nos últimos anos morreu, mas qual esquerda? A resposta de Saflate não poderia ser mais míope e errada, afinal de contas, a esquerda que morreu foi a dele próprio.
Talvez por isso mesmo seu artigo um tanto derrotista tenha sido bem aceito exatamente no cemitério da militância petista.
Não, a esquerda que morreu não foi o “populismo de esquerda”. Nem sequer foi a esquerda puramente liberal, que tenta reformas graduais dentro das estruturas representativas da democracia tradicional e praticamente nunca chegou a existir no Brasil. O que morreu foi o que eu chamaria de “esquerda pós-moderna”, ou seja, o PT, criação imortal (?) de Lula, Golbery e da intelectualidade da USP.
Saflate, reconheçamos, é a versão intelectualmente coerente dessa esquerda que, chegando ao poder, mimetizou o populismo na forma e no discurso, mas não para desafiar, de fato, as oligarquias tradicionais e a estrutura escravista do Brasil, e sim somente para conservar as estruturas da sociedade brasileira e se perpetuar no poder se refastelando no banquete do Estado.
A coerência de Safatle, assim como a do PSOL, foi ter renunciado a esta farsa desde o início do governo Lula e, na oposição, manter sua denúncia uspiana do populismo e seu moralismo burguês intactos, assim como a denúncia da falta de reformas progressistas pelo PT.
Mas com o PT fora do poder, o desconforto com o descompasso moral entre prática e discurso cessa e, incrivelmente, o PSOL volta para sua alma mater como uma viúva indiana desesperada que se atira na pira funerária do marido.
A desgraça da esquerda espiritualmente petista, no entanto, é bem maior que seu desastre conservador no exercício do poder. Sua falta de horizonte de transformação econômica no governo acrescentou uma caricatura muito mais funesta a este Frankstein ideológico, que agravou brutalmente o divórcio entre essa esquerda e as aspirações do povo brasileiro: a adesão, mais uma vez somente discursiva (a hipocrisia está no DNA petista, mas não no psolista, os últimos aderiram pra valer), ao identitarismo pós-moderno como substituto retórico para manutenção de um “ethos revolucionário” no petismo, já que as transformações estruturais e universais na sociedade foram definitivamente eliminadas do radar.
Foi uma tentativa desastrada de manter o apelo aos excluídos da sociedade enquanto seu governo, que nunca foi além de políticas compensatórias, aprofundava a desilusão e o fosso entre sua mensagem e prática.
Mas foi então que o fosso se tornou abismo.
Era o nascimento da “esquerda neoliberal pós-moderna brasileira”.
De uma luta por direitos e condições materiais iguais, portanto, universais, o Partido Democrata Norte-Americano do Brasil, o PT (assim como o PSOL), deixou de lutar pela extinção de divisões e fronteiras na sociedade (fronteiras de gênero, etnia, cor da pele e orientação sexual) e passou a lutar para acentuar essas fraturas através de uma reificação de identidades, transformando a luta por direitos e condições iguais para todos numa luta por direitos a serem distribuídos diferentemente por gênero, etnia e orientação sexual.
Os “privilégios” que a esquerda pós-moderna combatia não eram mais os econômicos – agora ela os perpetuava –, mas sim a vantagem de ter nascido num gênero, etnia e orientação sexual historicamente não perseguida.
Essa política fragmentadora dividiu em subclasses intermináveis companheiros de luta dentro dos partidos e de setores da sociedade de tendência esquerdista como um todo, com cada subgrupo em busca de reparação por sua história, ou proteção contra seu presente, de opressão concreta, real.
As políticas afirmativas, de instrumento fundamental, mas frágil e provisório, para integração dos setores oprimidos da sociedade à cidadania, viraram a única resposta social de um governo que economicamente não oferecia nada que não a manutenção das estruturas de desigualdade. Em vez de integrar os oprimidos ao povo brasileiro, essa esquerda procurou sedimentar essa desintegração por via legal.
A luta da esquerda por toda espécie humana se transformou nessa esquerda (pós) liberal e pós-moderna numa contraposição entre mulheres e homens, negros e brancos, gays e héteros. A luta contra a pobreza, o racismo, o machismo e a homofobia em vez de se dar pela defesa e promoção da igualdade social e econômica, se transformou na defesa da diferença e segregação legal via compensações pela estrutura intacta. Em vez de unir e dar voz ao povo brasileiro, as divisões de identidades impostas pela nossa história com a escravidão e o machismo foram alimentadas e esgarçadas.
A busca por falar a língua e usar a estética popular foi substituída pela patrulha “politicamente correta” de expressões populares de nossa linguagem na luta contra preconceitos ocultos. Embora às vezes uma expressão legítima, a substituição da luta política e econômica pela luta linguística marca bem a esterilidade dessa esquerda que se tornou ela própria uma nova forma de opressão “ilustrada” da cultura popular e das formas tradicionais de uma língua. Seu objetivo não é mais justiça econômica e social sintonizada com a pauta popular, mas sim o combate a frases, expressões e formas de falar de populares, adversários e companheiros.
Importando essa abordagem norte-americana de forma totalmente acrítica, essa esquerda se inviabilizou, agora totalmente (agregado ao afogamento na corrupção e na falta de transformações sociais), como força unificadora popular.
Ela é o oposto do populismo de esquerda tradicional, e por isso, morreu.
O “populismo de esquerda”, que nas palavras de Saflate é “um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder” é muito mais que uma estética e forma de mobilização de forças sociais, mas um método de transformação da sociedade brasileira que consiste em, como diz Ciro Gomes, “chamar o povo na jogada”, mobilizando-o diretamente na hora dos grandes embates transformativos.
O Governo João Goulart não foi o primeiro governo de esquerda no Brasil, mas sim a grande ausência do artigo de Safatle, aquele que sua alma uspiana está proibida de considerar, o gigante Getúlio Vargas, que, em seu mandato eletivo, fez o primeiro governo claramente de esquerda no Brasil com a criação de grandes empresas estatais como a Petrobrás e a Eletrobrás e a mudança radical de patamar do salário mínimo.
O que os governos Vargas e Goulart tem em comum é o entendimento de que o papel de um governante decente no Brasil é reformar nossas estruturas escravocratas e democratizar a economia e a propriedade, e que para isso, qualquer governo tem que estar preparado para a mobilização popular para o confronto democrático, e não conciliação, com o núcleo das forças oligarcas brasileiras. Porque essas forças nunca farão qualquer acordo que diminua seus privilégios.
Lula sabia disso e ao invés de apostar no acordo com setores produtivos, que ainda existiam, da burguesia nacional para diminuir nosso fosso de privilégios, apostou na conciliação com o sistema financeiro nacional, que é o verdadeiro núcleo do novo oligarquismo brasileiro. E fez isso para que tudo ficasse como está, principalmente, é claro, o PT no poder.
Foi a lição de Vargas e de Goulart que não foi ouvida pela nova esquerda pós-moderna brasileira. E é por isso que ela sim, já está morta, seu legado desmontado e sua base organizacional popular dissolvida, enquanto o legado trabalhista, do “populismo de esquerda” para os uspianos, ainda é tudo aquilo que sobra de Brasil e de direitos dos trabalhadores e que a elite oligarca busca numa corrida contra o tempo exterminar completamente da Constituição.
Essa é a esquerda que ressurgiu das cinzas, a única que já fez algo pelo país e por seus trabalhadores, e que estava impedida de crescer por ter sido mimetizada – na forma e não no conteúdo – por Lula. A esquerda que quer ser a voz de todo o povo, representar suas aspirações, educá-lo profundamente, democratizar a propriedade e a oferta, nacionalizar a economia, dar empregos de qualidade, industrializar o país, cobrar imposto de rico, manter os juros baixos e diminuir a desigualdade.
A “esquerda” está morta. Viva a esquerda genuinamente brasileira!