O voo de Rosmunda

 

Caio Plessmann * 

 

A dificuldade de abordar Una Giornata Particolare (Um Dia Especial), de Ettore Scola, Itália, 1977, não vem do aspecto sutil da trama que, no entanto, apresenta conflitos profundos, em uma evidente oposição interna que segue plano a plano em duas camadas de expressão.

 

Isso poderia ser visto como um dos aspectos geniais da obra: o fato do conflito vir, simultaneamente e de forma distinta, impresso e implícito em cada fotograma. Duas naturezas: a do conflito dito, evidenciado, mas também um outro, mais profundo, ocultado da materialidade fílmica e aberto à descoberta paulatina do público.

 

Hitler e Mussolini se encontram para consolidar publicamente o nazifascismo em um grande desfile militar na Itália de 1938. Às portas da 2a guerra mundial e por meio de uma transmissão de rádio colocada e comemorada em alto volume no saguão interno de um edifício, o passo a passo de uma dolorosa ilusão coletiva.

 

Enquanto isso dentro do prédio, um pássaro escapa da gaiola. Um episódio fortuito mas de grande repercussão para os protagonistas: Sophia Loren (Antonieta), ao sair para recuperá-lo, tem um encontro inusitado com Marcello Mastroianni (Gabriele), dois personagens fora do contexto fascista (apesar dela apoiar o regime e ele ser vítima) e de forma breve e intensa tem início um caso amoroso que sugere um caminho de redenção.

 

Ele, um homem sem o figurino adequado: inteligente, sensível e, pouco a pouco se revela, homossexual. Ela, belíssima, é oprimida pela ignorância vulgar da classe média italiana: machismo, xenofobia, preguiça e alianças corruptas sustentando a grandiloquência do heroísmo artificial.

 

Pouco a pouco vamos penetrando na problemática própria desse filme corajoso pois Scola parece desenhar a partir desses elementos todo um campo à margem daquela sociedade no auge da repressão, especulando as possibilidades dessas linhas de fuga – dadas por personagens de exceção – se articularem internamente, desenvolverem-se e se autoafirmarem. Na realidade o cineasta procura investigar as dimensões revolucionárias que o amor, fugido dos aparelhos de controle, solto, pode operar por dentro do esquema cultural do período.

 

Trata-se de um voo breve mas sem dúvida uma energia de liberdade e compreensão que caminha – sutil, lentamente, através da história pessoal e coletiva da Itália –, para se testar como antídoto transformador radical. Scola experimenta a ideia do amor por contiguidade, simultaneamente instantâneo e profundo, como coisa efetivamente revolucionária, e disso tira suas próprias conclusões no desfecho final.

 

A dificuldade para abordar o filme vem do fato de ser Rosmunda, o pássaro, um personagem-metáfora da condição humana. E pior: provavelmente, se inquirido, não teria a mesma opinião do autor. Escapou da gaiola e foi até Mastroianni, ciente do contexto de escravidão que lhe encerra.

 

Após o desfile nazifascista, quando o marido de Sophia volta com os filhos pra casa, sentimos, o pássaro parece poder denunciar algo (ele fala, é um pássaro que repete falas e se expressa de forma rudimentar com a linguagem humana, irreverente, aludindo a episódios que testemunha).

 

Mas tudo segue sem saltos nem surpresas. Não estávamos, todos nós, naquele instante do filme ainda tão distantes do colapso daquelas ilusões. O silêncio do pássaro é uma espécie de  cumplicidade. Necessitamos de algo mais que o amor breve, este que parte dos subterrâneos do antifascismo, e marcha firme para ao final afirmá-lo sem resistiência.

 

*É diretor de cinema

 

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