Em seu pronunciamento de sexta-feira, a presidente Dilma propôs “um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos” – sobretudo os transportes urbanos, a Saúde e a Educação. Disse, também, que além de “convidar os governadores e os prefeitos das principais cidades do país”, iria ouvir “os líderes das manifestações pacíficas, os representantes das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares”.
Na segunda-feira, a presidente reuniu-se com alguns integrantes do Movimento Passe Livre e fez outro pronunciamento ante governadores e prefeitos. Disse a presidente que “nós todos sabemos onde estão os problemas. Nós todos sabemos que podemos construir soluções”.
Realmente, “os problemas” estão no monstruoso confisco de recursos públicos para juros, desonerações e financiamentos para as multinacionais, esmagamento financeiro dos principais Estados e municípios e contingenciamento sistemático das verbas orçamentárias. A solução (ou “construção das soluções”) está no fim da drenagem desses recursos e sua colocação para resolver os problemas do povo.
Sucintamente: de janeiro de 2011 a abril de 2013 foram desviados R$ 305 bilhões (mais exatamente: R$ 304.996.588.916) que estavam destinados às “despesas primárias” do governo federal (Saúde, Educação, Transportes e as demais despesas não-financeiras) para a reserva dos juros – o “superávit primário” do governo federal.
Apesar disso, no mesmo período, o total de juros transferidos aos bancos pelo governo federal somou R$ 448 bilhões (exatamente: R$ 448.178.902.484).
Esse gasto estúpido, quase 5% do PIB, foi uma decisão de política econômica, isto é, uma decisão do governo em nome de coisas tão mentirosas quanto “responsabilidade fiscal”, “austeridade fiscal”, “disciplina fiscal”, “consolidação fiscal” ou lá que apelido tenha essa pilhagem de recursos da coletividade em prol de meia dúzia (aliás, nem isso) de bancos. Este ano, em nome desse tipo de vigarice, além do previsto no Orçamento, já foram cortados mais R$ 28 bilhões com o mesmo objetivo.
O governo já está abatendo R$ 45 bilhões do “superávit primário”. Pela Lei Orçamentária Anual, pode abater até R$ 65,2 bilhões. Logo, há R$ 20,2 bilhões que podem e necessitam ser liberados, já e agora. (cf. SOF/MP, “Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias”, Brasília, maio 2013, p. 8).
O total de desonerações e benefícios fiscais concedidos pelo governo está, em 2013, em R$ 170 bilhões (R$ 170.015.969.718 – cf. SRF/MF, “Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária – 2013”, págs. 13 a 98, Quadro I ao XXIII).
Porém, concentremo-nos na atual onda de desonerações, concedidas a partir do segundo semestre de 2011. Segundo o Ministério da Fazenda, essas montam, em 2013, a R$ 70,1 bilhões (cf. SPE/MF, “Economia Brasileira em Perspectiva”, 18ª Edição, março 2013, p. 42).
Muitas dessas desonerações – possivelmente a maior parte em valor – servem apenas para aumentar a margem de lucros dos monopólios privados, via de regra multinacionais, sem qualquer efeito positivo no crescimento ou no emprego, pelo contrário. É o caso das desonerações concedidas à indústria automobilística, à “linha branca”, às teles, aos açambarcadores de aeroportos, ferrovias, ao cartel de armadores e aos futuros açambarcadores de portos, e, inclusive, à mídia (a MP nº 612 concedeu R$ 1,266 bilhão de desonerações cumulativas à mídia). Imediatamente é possível liberar mais R$ 20 bilhões a.a., no mínimo, que hoje não são pagos em função das desonerações.
A terceira fonte de recursos é o fim da opressão pela dívida que o Tesouro, desde o governo Fernando Henrique, mantém sobre Estados e municípios. Um exemplo: o Estado de São Paulo renegociou uma dívida de R$ 50,3 bilhões em junho de 1998 e, até o final de 2012, pagara R$ 91,8 bilhões ao Tesouro, por conta dessa renegociação; no entanto, a dívida cresceu para R$ 188,5 bilhões (março de 2013). Ou seja, São Paulo pagou 1,8 vezes a dívida e, apesar disso, a dívida estadual aumentou 3,7 vezes (todos os dados têm como fonte o BC).
Logo, a proposta de – além de mudar o indexador da inflação nos contratos dos Estados com a União para o IPCA (ao invés do atual, o irreal IGP-DI) – abater 45% do principal da dívida, recentemente em discussão na Câmara dos Deputados, nada tem de absurda. Pelo contrário, é insuficiente: seria necessário diminuir na mesma proporção o comprometimento das receitas estaduais com essa dívida (hoje entre 13% e 15%) e os juros (hoje em 6% ao ano).
Isso liberaria recursos importantes para o investimento nos serviços públicos – até porque a maior parte do investimento público, no Brasil, é feito pelos Estados e municípios, que no momento estão sitiados por essa dívida e pelas desonerações – que reduzem o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Além disso, é preciso cumprir o próprio Orçamento. Hoje existem R$ 170 bilhões em “restos a pagar”, ou seja, pagamentos que não foram feitos no ano de vigência de Orçamentos anteriores. Enquanto isso, no ano passado, o setor de Transportes, fora os “restos a pagar”, realizou apenas 34,91% da verba aprovada pelo Congresso no Orçamento de 2012. A Educação, pelo mesmo critério, realizou 68,26% (dados do SIAFI correspondentes à execução orçamentária até 31/12/2013).
Para este ano, segundo nota publicada pelo Ministério do Planejamento, “o governo repetirá o receituário de anos anteriores e executará prioritariamente neste primeiro semestre os chamados ‘restos a pagar’ – recursos já autorizados de Orçamentos passados”. Esse é um caminho que só conduzirá à catástrofe.
Momento requer não confundir a voz das ruas com a voz da mídia
A presidente, no pronunciamento de segunda-feira (24/06), propôs cinco “pactos”:
1) “… responsabilidade fiscal, para garantir a estabilidade da economia e o controle da inflação”. 2) “… construção de uma ampla e profunda reforma política (…). … convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política (…). … uma nova legislação que classifique a corrupção dolosa como equivalente a crime hediondo”. 3) “… acelerar os investimentos já contratados [na Saúde] (…) criação de 11 mil e 447 novas vagas de graduação e 12 mil e 376 novas vagas de residência para estudantes brasileiros até 2017. (…). Quando não houver a disponibilidade de médicos brasileiros, contrataremos profissionais estrangeiros”. 4) “… Fazer mais metrôs, VLTs e corredores de ônibus. (…) Além disso, decidi destinar mais R$ 50 bilhões para novos investimentos em obras de mobilidade urbana”. 5) “Pacto da Educação Pública. (…) o meu governo tem lutado, junto ao Congresso Nacional, para que 100% dos royalties do petróleo (…) sejam investidos na educação”.
Muito bom que a presidente tenha descoberto que é possível investir mais R$ 50 bilhões somente em Transporte (só resta saber em que prazo; ou seja, quando).
Disse a presidente que “o povo está agora nas ruas, dizendo que deseja que as mudanças continuem, que elas se ampliem, que elas ocorram ainda mais rápido. (…) As ruas estão nos dizendo que o país quer serviços públicos de qualidade, quer mecanismos mais eficientes de combate à corrupção que assegurem o bom uso do dinheiro público”.
Não há dúvida que o povo quer que as mudanças, iniciadas no governo do presidente Lula, e travadas há cerca de dois anos, continuem, se ampliem e ocorram mais rápido. No entanto, não é prudente confundir a voz das ruas com a voz da mídia. Nem – para usar uma interessante expressão de Hannah Arendt sobre a “massa” do fascismo – confundir a ralé, quando esta invade os logradouros públicos, com o povo nas ruas. Se até a senhorita Arendt sabia distinguir uma coisa da outra, não há razão para cairmos em tal confusão.
Por exemplo, a julgar pelos EUA ou pelos países da Europa, até que, em matéria de corrupção, as coisas aqui parecem muito, mas muito melhores. Somente aos inimigos do país interessa apresentar o país como especialmente corrupto, contra toda a realidade. O que evidentemente, não quer dizer que não existam corruptos – e para eles deve ser reservado o rigor da lei. Mas até nisso temos vantagem: como sabe a presidente, temos um governo que não transige com os corruptos – exceto, talvez, os da mídia. Da mesma forma a “estabilidade da economia” – nome reservado pelos neoliberais ao nenhum crescimento – ou a “responsabilidade fiscal” – expressão que designa a eterna permissão para que os bancos e outros monopólios financeiros saqueiem permanentemente o Tesouro, sem que haja qualquer relação com o combate à inflação, exceto aquela que existe entre o vigarista e os otários a quem engana.
Quanto ao Pacto da Educação Pública, o projeto enviado pela presidente ao Congresso destina os royalties, e metade do fundo social do pré-sal, que vierem de explorações iniciadas após dezembro do ano passado, à Educação. Logo, esses royalties vão demorar bem mais do que permite a urgência do país. Portanto, é preciso que o governo lance mão dos recursos que já existem – ao invés de referir-se sempre a recursos que ainda não existem.
Mas, tudo bem, até agora a presidente só ouviu o Movimento Passe Livre. Esperemos que ela ouça outros setores – e, sobretudo, que ouça antes de agir.
CARLOS LOPES
Publicado na Hora do Povo, edição 3.163