Há discussões que parecem se repetir ao longo dos anos – sobretudo quando o conhecimento do passado torna-se fosco.
Na década de 30 do século passado, o professor Antenor Nascentes, do Colégio Pedro II, culminou uma revolução nos estudos da língua portuguesa. Seu foco era a existência de um idioma nacional.
Nascentes – desde seu livro “O Linguajar Carioca” (1922) – não negava que no Brasil falava-se português. Mas, dizia ele – seguindo uma tradição que teve em José de Alencar o seu pioneiro – o português brasileiro era diferente, inclusive quanto às regras gramaticais, do português lusitano. O idioma nacional não era o português de Portugal, mas o que ele chamou de “o dialeto brasileiro”, com quatro subdialetos em sua primeira formulação (1922): nortista, fluminense, sertanejo e sulista; ou seis, em sua segunda formulação (1953): amazonense, nordestino, baiano, fluminense, mineiro e sulista.
Como tal, o dialeto brasileiro deveria ter – e tinha – regras próprias. Não se tratava apenas da língua falada, que, evidentemente, era diferente daquela de Portugal. O que Nascentes afirmava é que a língua literária também deveria ser diferente. O problema estava, exatamente, em que, para boa parte dos escritores e redatores brasileiros, permanecia um servilismo à (supostas) gramática e até à dicção lusitana. “É comum”, observava Antenor Nascentes, “ler-se oiro, tesoiro, toiro, etc., escritos por quem pronuncia ôru, tizôru, tôru, etc. Efeito estético? Francamente, não vejo razão para o emprego dessas formas que não vivem na língua. Pintainho escrevem muitos que, falando, só dizem pintinho, que não é forma errada. Mobilar ninguém diz e sim mobiliar (e às vezes mobilhar)”.
A questão era crítica no caso da colocação de pronomes oblíquos, onde tentava-se imitar um suposto linguajar literário lusitano, que hoje somente o sr. Michel Temer é capaz de usar.
Lembro-me que meu pai, sempre zeloso pela educação dos filhos, comprou um dia a “Gramática Expositiva”, de Eduardo Carlos Pereira. Infelizmente, ninguém conseguiu ler aquele calhamaço, publicado pela primeira vez em 1906 – o que eu somente soube em 2008, devido a uma entrevista de Evanildo Bechara. Também o nosso maior gramático da atualidade encontrara, em sua juventude, muita dificuldade em ler a “Gramática Expositiva”.
Na época em que o livro de Eduardo Carlos Pereira entrou na minha casa, eu não sabia que, diante do dilúvio de gramáticas publicadas em nosso país a partir do fim do século XIX, o maior escritor da nossa literatura, Machado de Assis, dissera que “sou dos menos competentes para avaliar pelo justo e pelo miúdo a importância e a superioridade de uma gramática”.
Era esse divórcio entre o uso literário e oral da língua – e a gramática – que Antenor Nascentes mirava quando dizia que “a língua é uma entidade viva e não pode obedecer a resoluções de gabinete, por mais respeitáveis que sejam”.
Mas, então, como se orientar sobre o que é certo e o que é errado?
Talvez a melhor forma de exemplificar o critério de Nascentes seja a maneira como abordou o problema da colocação de pronomes, que assim sintetizou:
“Em matéria de colocação de pronomes oblíquos, salvo o caso de um patente absurdo, não há certo nem errado; há o agradável e o desagradável ao ouvido”.
Ou seja, Nascentes remeteu ao campo da estilística um problema gramatical – as necessidades do estilo (e, portanto, o uso) deveriam determinar a gramática, e não o inverso.
De forma ainda mais explícita:
“O caso da colocação dos pronomes pessoais oblíquos é invenção dos gramáticos brasileiros.
“Em todas as línguas os pronomes têm sua colocação natural, que se aprende desde o berço; ninguém precisa na escola fazer aprendizagem especial de colocação de pronomes.
“Foi isto o que claramente enunciou Silva Ramos ao dizer que não sabia como se colocavam os pronomes, ‘pela razão muito natural que não sou eu quem os coloca, eles é que se colocam por si mesmos, e onde caem, aí ficam’. (Pela Vida fora… pg. 119).
“Todas as colocações, menos aquelas que aberrarem do bom senso tornando a frase ininteligível, são pois, aceitáveis.”
Bem, amigos leitores, este é o autor do texto que publicamos hoje, extraído do seu livro “O Idioma Nacional na Escola Secundária” (1935).
C.L.*
ANTENOR NASCENTES
A questão primordial ao iniciar-se o estudo da metodologia do nosso idioma é a caracterização.
Embora falemos a língua portuguesa, não podemos deixar de reconhecer que esta língua assume em nosso país o caráter de uma variante e bem diferenciada.
Na pronúncia, no vocabulário, na construção da frase, divergimos muito do falar de Portugal.
Dentro do nosso falar, como aliás em toda parte, a língua popular é diferente da culta e na própria língua culta, a falada fica muito longe da escrita.
Tratando da língua falada no Brasil colonial assim se exprime Gilberto Freyre:
“Ficou-nos, entretanto, dessa primeira dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos; uma de luxo, oficial, outra popular, para o gasto, — dualidade que durou seguramente século e meio e que prolongou-se depois, com outro caráter, no antagonismo entre a fala dos brancos das casas-grandes e a dos negros das senzalas — um vício, em nosso idioma que só hoje, e através dos romancistas e poetas mais novos, os Bandeira, os Mario de Andrade, os Amando Fontes, os Jorge Amado, os Yan Prado, os Schmidt, os Oswald de Andrade, os Carlos Drummond, os Lins do Rego, os Ribeiro Couto, os Murilo Mendes, os Antonio de Alcântara Machado — vai sendo corrigido e atenuado: o vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis e doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo”.
(Casa-Grande e Senzala, 176-7).
Embora reconheçamos que a língua culta não pode ser igual à popular e que a língua literária tem de divergir da língua falada, não deixamos de dar em parte razão ao escritor pernambucano, pois ele vem salientar os motivos capitais das divergências notadas: o purismo, o preciosismo, o classicismo.
Repitamos com Macedo Soares: já é tempo de os brasileiros escreverem como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal (Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa).
E nisso estamos de acordo com um dos mais ilustres filólogos portugueses, o Sr. Dr. J. Leite de Vasconcelos, que entende ser dever de quem escreve dar aos seus escritos, além de feição individual ou própria, feição nacional (A Evolução da Linguagem).
Divergindo as línguas nos dois países, é claro que a gramática também variará e portanto o critério de correção gramatical.
“A nossa gramática não pode ser inteiramente a mesma dos portugueses. As diferenciações regionais reclamam estilo e método diversos.
“A verdade é que, corrigindo-nos, estamos de fato a mutilar ideias e sentimentos que nos são pessoais.
“Já não é a língua que apuramos, é o nosso espírito que sujeitamos a servilismo inexplicável.
“Falar diferentemente não é falar errado. A fisionomia dos filhos, não é a aberração teratológica da fisionomia paterna” (João Ribeiro, A Língua Nacional, 2ª ed., pg. 8).
Em nossas escolas primárias ensina-se a abrir a vogal a da desinência de primeira pessoa do plural no pretérito perfeito simples do indicativo [amámos], quando não existem vogais nasais abertas no Brasil.
É comum ler-se oiro, tesoiro, toiro, etc., escritos por quem pronuncia ôru, tizôru, tôru, etc. Efeito estético? Francamente, não vejo razão para o emprego dessas formas que não vivem na língua.
Pintainho escrevem muitos que, falando, só dizem pintinho, que não é forma errada. Mobilar ninguém diz e sim mobiliar (e às vezes mobilhar).
E como estes, muitos exemplos se poderiam citar.
Repugnam ao brasileiro as combinações mo, to, lho e variações. Os escritores que se jactam de caprichosos na língua, apreciam extraordinariamente estas expressões que nunca empregam.
Igualmente repugnam as expressões di-lo, fá-lo (lembra falar), trá-lo, pú-lo (parece o verbo pular), quere-lo; algumas até são quase incompreensíveis. Aparecem todavia, em muitos escritos, desses autores que timbram em exprimir-se à moda clássica, à moda lusitana genuína.
Falemos certo, sem precisar exprimirmo-nos à moda de Portugal.
Gramáticas há e muitas que capitulam de vício de linguagem o brasileirismo como se fosse vergonha falar à moda do país.
No Brasil, o brasileirismo só é erro quando constitui um solecismo e, neste caso, é errado por ser um solecismo e não por ser um brasileirismo.
Ao contrário, será impróprio lusitanismo ou portuguesismo, isto é, a expressão embora certa, mas que não corresponde à linguagem usada no Brasil.
O caso mais característico, o grande cavalo de batalha é a colocação dos pronomes pessoais oblíquos.
“A nossa maneira fantasista (como alguns lhe chamam) de colocar os pronomes, forçosamente diversa da de Portugal, não é errônea, salvo se a gramática, depois de anunciar que observa e registra fatos, depois de reconhecer que os fenômenos linguísticos têm o seu histórico, a sua evolução, ainda se julga com o direito de atirar ciosa e receosa da imutabilidade, por cima do nosso idioma, a túnica de Nessus das regras arbitrárias e inflexíveis.
“As línguas alteram-se com a mudança de meio; e o nosso modo de falar diverge e há de divergir, em muitos pontos, da linguagem lusitana” (Said Ali, Dificuldades da Língua Portuguesa, 2ª ed., pg. 81).
Do mesmo sentir é Silva Ramos, que ninguém em sã consciência poderá acusar de lusófobo.
“A situação do pronome átono na proposição, tanto no Brasil como em Portugal, é determinada exclusivamente pelo ritmo, diferente numa e noutra região, consoante a tonicidade e o valor dos fonemas, que não condizem aquém e além-mar”.
“A discrepância que se nota neste particular entre o falar de aquém e o de além-mar é ocasionada única e exclusivamente pela modulação e cadência da frase que nunca será a mesma em Portugal e no Brasil”.
“Seja como for, o regulador único da distribuição dos pronomes átonos na locução brasileira é igualmente o ritmo, governado por princípios de que os naturais do Brasil não têm a mínima consciência, como os que nasceram em Portugal não a têm dos que regulam a cadência da locução portuguesa. Ora, tentar reduzir o ritmo, o número, a cadência da linguagem brasileira ao ritmo, número e cadência da linguagem portuguesa é irracionável empreendimento”. (Pela vida fora…, pgs. 82, 119 e 222).
Mirem-se neste espelho aqueles que corrigem colocações brasileiras de pronomes átonos em desacordo com as portuguesas.
Referindo-se a formas sintáticas dialetais de tal modo firmadas na língua de todas as classes que já estão entrando na literatura, erradas à luz da gramática, certas dentro da realidade linguística, solta Mario Marroquim eloquente brado de alarma em seu original livro A Língua do Nordeste:
“É martírio para a mocidade que aprende e humilhação para o mestre inteligente que ensina, esse bilinguismo dentro de um só idioma, — essa unidade exterior, de superfície, de duas línguas que se repelem, a língua que falamos e a língua que escrevemos.
“Nós, no Brasil, presos à gramática ‘portuguesa’, somos vítimas de uma desintegração dolorosa de nós mesmos.
“Os modernos escritores brasileiros que interpretam as cousas do Brasil, quando desobedecem aos cânones da língua culta e fogem às praxes gramaticais, fazem-no por ser essa a maneira de evitar a dissociação entre sua obra e eles mesmos.
“O homem brasileiro, vivendo no ambiente brasileiro, herdeiro de tradições que lhe dão um ‘caráter’ próprio, tem exigências de expressões e de linguagem de acordo com esse ‘caráter’.
“À medida que o meio social foi armando a sua estrutura autônoma, diferente do português, começou o brasileiro a moldar a sua construção linguística e a traçar rumos gramaticais, de acordo com o seu feitio.
“Criou a sua língua.
“Regras de gramática rígidas e áridas baseadas em fatos linguísticos isolados do ‘homem’, são camisas de força asfixiantes.
“A língua brasileira, já ninguém discute isso, diverge da portuguesa; é esta, entretanto, que a escola continua a ensinar ao brasileiro.
“O mestre, escudado em fórmulas frias, sem articulação nem plasticidade, violenta a espontaneidade dessa linguagem que é um efeito, pondo-a em litígio com a causa, que é a formação social e humana de quem a fala.
“Esse litígio é a tragédia ignorada de todos os pequenos estudantes, para os quais a gramática é um instrumento de tortura, justamente porque as suas regras representam já em muitos pontos a artificialidade de uma língua de que não sentem o poder, nem a força de expressão” (págs. 162-6).
Não nos move hostilidade contra o povo de que descendemos e sim apenas o desejo de adaptação à realidade.
Queremos somente que no ensino e na aferição da capacidade se leve em consideração o território em que a língua é falada.
“Que poderão, entretanto, pergunta Silva Ramos, fazer os mestres neste momento histórico da vida do português na nossa terra?”
Ele mesmo responde:
“Ir legitimando, pouco a pouco, com a autoridade dos nossos gramáticos, as diferenciações que se vão operando entre nós” (Pela vida fora…, 178).
*Carlos Lopes é editor chefe da redação da Hora do Povo